Fonte: TRT3
Pela definição dada pelo Juiz do TRT da 23ª Região e Professor de Direito João Humberto Cesário, acesso à jurisdição é o direito que têm aqueles que procuram o Judiciário de ter uma resposta justa e ágil às suas demandas. E isso, segundo lembrou, é constitucional: o artigo 5º, XXXV, garante que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Mas não se trata só do acesso formal à jurisdição. “O plano constitucional é mais ambicioso. Mais que garantir o acesso formal, a Constituição garante o acesso substancial à jurisdição”,pontua.
Mas o que seria esse acesso substancial? Para explicar, ele excursiona pelo itinerário do direito ao longo do tempo, partindo lá do positivismo exegético, clássico, até o chamado pós-positivismo ou positivismo inclusivo dos dias de hoje. E ele esclarece que o objetivo do jurista é reconhecer o direito positivo, que é o direito posto por uma autoridade humana legitimada a legislar. Para os positivistas, é o quanto basta: o direito é um conjunto de regras, separado da moral. Para eles os princípios não vêm ao caso. O juiz é um simples aplicador do direito encerrado nos códigos, e a ele não cabe fazer discursos de fundamentação, mas de faticidade, ou seja, apenas confronta os fatos às regras e disso extrai a decisão.
Mas a civilização evolui, a partir da revolução francesa, e com ela o positivismo e suas novas correntes. A partir de Kelsen e sua Teoria Pura do Direito, os positivistas mudam a compreensão de como o direito deve ser aplicado. Eles entendem que a ciência do direito é que deve ser pura, o direito aplicado não, já que sofre influência dos fatos e da realidade concreta. O juiz, então, deve se preocupar com o que o direito é, e não com o que deveria ser, tarefa essa a cargo dos cientistas do direito. No entanto, Kelsen diz que ao aplicar o direito ele é ressignificado pela realidade, de forma que o aplicador do direito também constitui o direito. Assim, o direito é moldura em que várias soluções podem ser encontradas, dando certa margem de discricionariedade para o juiz dentro dos limites da moldura desenhada pela lei.
Esse positivismo pós-exegético kelseniano tem outros expoentes, como Herbert Hart que diz que tem espaços vazios na moldura, nas quais o juiz pode atuar com certa discricionariedade. Afinal, o direito não dá resposta pronta e acabada a todos os problemas da sociedade. E, nos casos onde há lacuna, o juiz deverá decidir, constituindo o direito, e não apenas transcrevendo os códigos em suas decisões.
“Vejam que mesmo dentro de uma perspectiva positivista há autores que dizem que ao juiz é lícito constituir odireito, obviamente que não com a liberdade de um legislador”, ressalta o palestrante, observando que isso fica mais claro após a segunda guerra mundial. É que Hitler chega ao poder em 1933, pela via democrática, e o fascínio que ele exercia sobre a sociedade era tão intenso que o parlamento Alemão edita o ato de habilitação concedendo ao gabinete do Führer poderes para legislar. Ou seja, a vontade dele passa a ser a fonte socialmente legitimada para dizer o direito no Estado Alemão. Com base nessa legitimidade é que ele edita em 1935 as leis de Nuremberg, que são construídas sobre dois pressupostos: na superioridade genética da raça ariana e no fato de que a penúria vivida pela sociedade alemã devia-se ao fato de que o poder econômico e midiático estava nas mãos dos judeus. A partir daí, estabelecem o antissemitismo e várias restrições aos judeus, como proibição de casamento e até de reprodução, confisco de bens etc. E em nome do cumprimento da lei válida, esses, entre tantos outros atos de atrocidades foram praticados. “Em nome da lei, foram cometidos os atos mais bárbaros da História do Século XX”, lembrou o professor. E foi justamente isso o que alegaram os oficiais julgados no Tribunal de Nuremberg, instaurado no pós-guerra: que não cometeram nenhum crime porque apenas cumpriram o direito posto em seu país, colocando uma equação de difícil enfrentamento para o direito de então.
A partir desse momento, pontua o professor, fica claro que o fundamento de validade de uma lei não pode ser apenas a sua formal e regular aprovação por um órgão que tem poderes constituídos para legislar. “Isto porque, além de cumprir requisitos formais, a lei tem de observar fundamentos e valores universais, como tratados internacionais de direitos humanos e o bloco de constitucionalidade das nações democráticas”,ensina João Humberto, concluindo que o direito precisava, então, se aproximar da moral.
E foi aí que vieram os debates que levaram ao pós-positivismo e seus novos postulados. Um deles é que a Constituição não é pauta programática, mas uma lei maior, com força normativa. Os princípios nela previstos têm de ser densificados pelo Estado-juiz na aplicação da lei ao caso concreto.
De acordo com o palestrante, a diferença entre lei e norma é que lei é texto e a norma é o texto legal interpretado, ou seja, o resultado da atividade interpretativa. “Só se conhece o teor de um texto legal a partir do momento em que ele dialoga com os princípios e normas fundamentais do ordenamento jurídico como um todo”, completa. E essa contextualização, na fala do professor, é o que o próprio sistema brasileiro permite, já que o legislador reconhece que o juiz constitui o direito, em alguma medida. Como prova, ele cita o artigo 140 do CPC, pelo qual o juiz não pode deixar de decidir alegando lacuna e obscuridade na lei. Esse mesmo CPC de 2015 reconhece que os motivos determinantes em casos difíceis passam a ser fontes formais do direito. E esses motivos determinantes dos precedentes vinculam toda a sociedade àquela decisão que, para se constituir como tal, deve observar motivos fortes, fundamentação analítica e até, por vezes, realização de audiências públicas antes de serem proferidas.
O legislador exige ainda no art. 926 do CPC, que os tribunais devem unificar sua jurisprudência para mantê-la estável, íntegra e coerente. “Então está claro que os precedentes são fontes formais do direito”, comemora o professor.
A partir daqui, ele passa a enumerar disposições da reforma trabalhista que, se forem inadequadamente interpretados, vão impedir o juiz de prestar ao jurisdicionado uma resposta justa e em tempo razoável: o acesso substancial à jurisdição.
- Artigo 8º, § 2o “Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei.” Para Cesáreo, “Se interpretado inadequadamente esse dispositivo, vamos voltar ao positivismo exegético, que compromete o acesso do cidadão à jurisdição”.
- Artigo 8º § 3o - “No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.” Aí o palestrante protesta contra a limitação de analisar exclusivamente aspectos formais do art 104. “O legislador não estaria interferindo além do razoável na atividade do juiz? Por acaso o negócio jurídico não pode ter outros vícios como erro, dolo, coação, fraude, lesão etc? Não poderemos, então, controlar esses vícios?”, questiona Cesário, vendo aí um ponto de clara inconstitucionalidade da nova lei.
Ele entende que o juiz poderá, sim, declarar, à luz da Constituição, se as cláusulas convencionais são lícitas ou ilícitas. “Mas até isso o legislador já fez por nós, pois no Art 611-A já diz o que deve ser considerado lícito e no Art. 611-B, o que considerar ilícito, e o faz em numerus clausus”, assinala o magistrado, ainda questionando se não seria isso uma interferência excessiva e indesejável na atividade jurisdicional, já que o discurso decisório já foi feito pelo legislador. E aí ele lança ao ar outra indagação: “Ora, mas porque não podemos fazer controle de constitucionalidade das cláusulas normativas, se podemos até declarar a inconstitucionalidade desses próprios artigos legais?”.
Outra interferência excessiva apontada está no Art. 223-A, ao dizer que o dano extrapatrimonial será regido APENAS pelos dispositivos daquele título. Para o palestrante, o legislador, mais uma vez, volta ao positivismo. “Não podemos nem aplicar a Constituição? A CLT está, então, acima da Constituição Federal?”, provoca.
Por seu turno, o Artigo 223-B não explica o que é dano extrapatrimonial, o dano estético e o dano existencial. “Se definirmos isso vamos ser acusados de usurpar a competência legislativa? Não há aqui vagueza e ambiguidade que nos permitiria também constituir o direito?”
O palestrante faz uma observação curiosa: é que o artigo 223-C enumera os alvos da tutela do dano extrapatrimonial (honra, imagem, intimidade, etc.) e, por incrível que pareça, não insere a vida. “Se aplicar esse artigo apenas, chegaria à conclusão de que a ofensa à vida não caracteriza dano extrapatrimonial? E os direitos dos familiares que perdem o trabalhador? Não haverá mais dano em ricochete?”, protesta.
Tudo isso, segundo concluiu o palestrante, afeta o acesso substancial à jurisdição. Ou seja, se não se interpretarem adequadamente ou se não se encontrarem soluções para essas questões trazidas pela reforma, o cidadão terá o acesso formal, mas não conseguirá obter uma resposta justa e rápida do Judiciário, sendo privado do acesso substancial à jurisdição.
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