Com satisfação, inauguramos esta primeira coluna do site Consultor Jurídico versando sobre direito do consumidor, a qual se pretende seja um útil espaço de discussão sobre este ramo do Direito que, especialmente no Brasil, é responsável não apenas pela disciplina das relações de consumo no mercado, mas também por sensíveis transformações no âmbito do direito privado e do direito processual ao longo do seu desenvolvimento. A proposta da coluna é justamente tratar de temas relevantes e atuais sobre o Direito do Consumidor, a partir da contribuição de colegas reunidos pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), entidade científica de estudos e pesquisas sobre o direito do consumidor, associada àInternational Association of Consumer Law, e que reúne os principais especialistas sobre esta disciplina no Brasil.
Com este propósito, nada melhor do que discutir tema cuja atualidade retorna, em vista de julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal acerca da aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor ao contrato de transporte aéreo internacional de passageiros. Desde já, cumpre situar o leitor acerca do aspecto controvertido neste caso: discute-se se o Código de Defesa do Consumidor deve incidir sobre estes contratos, em detrimento de convenções internacionais celebradas pelo Brasil antes de sua vigência — no caso, a Convenção de Varsóvia de 1929 e suas modificações posteriores. E sendo mais exato, o aspecto mais relevante desta discussão diz respeito à definição dos valores de indenização no caso do descumprimento, pelo transportador aéreo, do contrato celebrado. As situações aí se multiplicam, desde a indenização a ser arbitrada em caso de extravio de bagagem em voos internacionais, até situações mais graves, com a compensação de danos de vítimas de acidentes aéreos e seus familiares.
Ocorre que a Convenção de Varsóvia estabelece limites pré-definidos para a indenização de danos sofridos por passageiros, hipótese também conhecida comumente como tarifamento. Por esta razão, sofreu firme rejeição por expressiva jurisprudência e doutrina, em vista das normas do Código de Defesa do Consumidor e da própria Constituição de 1988. Em especial, pelo fato de confrontar-se com o direito à indenização, identificado por parte da doutrina como espécie de direito fundamental associado à própria dignidade humana (artigo 5º, V c/c artigo 1º, III, da Constituição da República). Mas que mesmo que a tal não se chegue, também definido como um direito básico do consumidor, assegurado pelo artigo 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor. Em outros termos, da incidência do Código de Defesa do Consumidor ao transporte aéreo – considerado espécie de serviço oferecido no mercado de consumo mediante remuneração, a teor do seu artigo 3º, § 2º — resultou o afastamento dos limites de indenização definidos na Convenção de Varsóvia e no próprio Código Brasileiro de Aeronáutica, tendo em vista o direito básico do consumidor à efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (artigo 6º, VI, do CDC) e a ampla reparabilidade dos danos, assegurada pela Constituição de 1988.
Esse modelo de indenização pré-definida por lei foi afastado pelas cortes brasileiras em face de sua incompatibilidade com a Constituição Federal de 1988, não apenas em relação aos danos sofridos pelo consumidor, mas também em outras hipóteses de reparação de danos[1]. No caso do transporte aéreo, não bastasse a incompatibilidade do Código de Defesa do Consumidor, com a vigência do Código Civil de 2002 somou-se o argumento que seu artigo 732, ao disciplinar o contrato de transporte formalmente, derrogou a Convenção[2], entendimento assumido pela majoritária jurisprudência brasileira[3]. Estabelece o artigo 732 do Código Civil: "Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais"[4].
A atenção ao tema foi renovada, contudo, em vista de decisão, originalmente isolada, do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 297.901[5], de relatoria da ministra Ellen Gracie. Esta orientou-se em sentido contrário a outros precedentes da Corte, reconhecendo a prevalência da Convenção de Varsóvia em relação ao Código de Defesa do Consumidor. Mais recentemente, foi atribuída repercussão geral ao tema a partir da decisão do Agravo de Instrumento 762.184/RJ[6], o qual foi substituído, como paradigma para exame da questão, pelo Recurso Extraordinário 636.331/RJ, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. O objeto da controvérsia, então, é novamente a prevalência das disposições da Convenção de Varsóvia sobre o CDC.
O julgamento do recurso já foi iniciado pelo STF em maio de 2014, tendo sido colhidos os votos do ministro-relator, Gilmar Mendes, bem como dos ministros Luís Roberto Barroso e Teori Zavascki, no sentido da prevalência das disposições da Convenção de Varsóvia e os limites de indenização que define, sobre as regras do Código de Defesa do Consumidor. Na mesma sessão, pediu vista a ministra Rosa Weber, que ora examina a questão.
O argumento que orienta o entendimento dos votos já proferidos resulta do reconhecimento da prevalência dos tratados e convenções internacionais sobre transporte internacional, em vista do disposto no artigo 178 da Constituição de 1988, que refere: “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”.
Em sentido contrário, repousa o argumento não apenas do fundamento constitucional da defesa do consumidor como espécie de garantia fundamental (artigo 5º, XXXII) expressa pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, de igual origem (artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), mas também, o fato de seu artigo 1º ter expressamente reconhecido como lei de ordem pública[7]. Não há espaço, segundo as dimensões deste texto, para avançar sobre toda a evolução doutrinária em Direito brasileiro e comparado sobre o sentido do que se indicam como leis de ordem pública. Diga-se, apenas, que expressam um conteúdo afeto aos valores e preceitos fundamentais do sistema jurídico a que pertencem, e por isso terão prevalência de sua aplicação em relação a outras normas.
Por outro lado, a prevalecer este giro jurisprudencial, a partir da redefinição da questão pelo Supremo Tribunal Federal, note-se que os efeitos não serão percebidos apenas na questão específica em julgamento. A Corte estará admitindo também, pela primeira vez desde a consolidação do entendimento sobre a ampla reparabilidade dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais, resultado da interpretação da Constituição de 1988, a possibilidade de limitação (ou tarifamento) de sua indenização por norma infraconstitucional. E neste caso, alterando um importante paradigma fixado na compreensão da reparação de danos pelo direito brasileiro contemporâneo.
[1] Assim ocorreu, também, com o tarifamento da indenização presente nas disposições da Lei de Imprensa (Lei Federal 5.250/67), declarada como não recepcionada pela ordem constitucional vigente de acordo com a decisão do STF na ADPF 130 (Rel. Min. Ayres Britto, j. 30/04/2009, p. 06/11/2009).
[2]ASSIS, Araken de. Contratos nominados: mandato, comissão, agência e distribuição, corretagem e transporte. São Paulo: Ed. RT, 2005, p. 213.
[3] STF, RE 351750, 1.ª T., j. 17.03.2009, rel. p/ acórdão Min. Carlos Britto, DJ 25.09.2009; STJ, REsp 235678/SP, 4.ª T., j. 02.12.1999, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 14.02.2000; AgRg no REsp 1060792/RJ, 3.ª T., j. 17.11.2011, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 24.11.2011.
[4] MIRAGEM, Bruno. Contrato de transporte. São Paulo: RT, 2014, p. 170 e ss.
[5] STF, RE 297901, 2.ª T., j. 07.03.2006, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 31.03.2006.
[6] AI 762184/RJ, j. 22.10.2009, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 18.12.2009.
[7] Nelson Nery Junior, ao comentar o Código de Defesa do Consumidor com outros autores do anteprojeto, chega a cunhar a expressão “ordem pública constitucional de proteção” ao explicar o conteúdo deste preceito.
Bruno Miragem é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2015, 8h00
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