Não podemos permitir que sigilo entre advogado e cliente seja devassado
A Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro fará um ato em defesa da inviolabilidade da comunicação entre advogado e clientes durante seção do pleno da entidade, nesta quinta-feira (14/8). Muitos colegas que lêem essas linhas certamente já trataram, por meio de telefone, celular ou fixo, ou de correspondência eletrônica, de questões ligadas ao exercício profissional, de natureza cível ou criminal, com seus clientes. E quantos imaginariam que tais conversas telefônicas ou correspondências poderiam ser ouvidas ou lidas por terceiros, gravadas e, finalmente, acostadas aos autos de procedimentos criminais acessíveis a outras tantas pessoas? A natureza da função exercida pelo advogado o torna depositário de todo tipo de informação sigilosa, inviolável, até mesmo daquelas correspondentes à confissões da prática de condutas ilícitas ou repudiadas socialmente.
O advogado tem não apenas o direito, mas também o dever, de guardar segredo sobre as informações que recebe em razão da relação com seu cliente, respondendo até mesmo por crime de violação de sigilo profissional se não atender às respectivas determinações deontológicas previstas em lei. Como se pode então cogitar permitir o acesso por terceiros a tais informações?
Recentemente veio a público notícia dando conta de que a garantia da inviolabilidade das comunicações de advogados com seus clientes foi violentamente afastada nos autos da investigação que culminou com a propositura de ação penal contra manifestantes acusados de participação em atos ilícitos. E o que é pior: a devassa nas conversas entre os manifestantes e seus advogados não decorreu apenas de interceptação telefônica realizada nas linhas daqueles primeiros, suspeitos da prática de crime. Fosse apenas isso, a medida encetada seria admissível — desde que determinada por decisão judicial, presentes os requisitos legais — devendo-se, por evidente, desentranhar dos autos a integralidade dos diálogos havidos entre investigados e seus defensores.
Mas no caso de que se trata — e aqui reside o motivo de nossa estupefação, manifestada no ato desta quinta — tiveram suas linhas telefônicas interceptadas, por decisão judicial, diversos advogados que, no exercício absolutamente regular de suas profissões, defenderam manifestantes, lançando mão das medidas judiciais cabíveis, sem que pese sobre eles suspeita da prática de qualquer conduta criminosa.
Não há finalidade — nem mesmo a investigação da prática de crimes — que justifique o emprego de tal medida. Aos acusados, pouco importando a gravidade do crime de cuja prática sejam suspeitos, deve ser garantida a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; e isso inclui, por óbvio, o direito à assistência de advogado que tenha garantidas suas prerrogativas profissionais, notadamente aquela atinente à inviolabilidade de suas comunicações.
A medida em questão violou, portanto, a um só tempo, o inciso LV do artigo 7º da Constituição Federal e o inciso II do artigo 7º da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB). A inviolabilidade da comunicação entre advogado e seus clientes é direito reconhecido internacionalmente e protegido pela legislação da maior parte dos países democráticos, tendo sido até mesmo posto em relevo em distintas sentenças do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como, por exemplo os casos "Marcello Viola contra Itália", "Castravet contra Moldávia" e "Zagaria contra Itália".
O processo penal, por assim dizer, moderno, já açambarcou uma série de medidas invasivas da intimidade e da vida privada — a exemplo do afastamento do sigilo telefônico e telemático e de buscas e apreensões em domicílios — a partir da relativização de garantias constitucionais, em prol de uma suposta efetividade da prevenção da prática de crimes. Não se pode ir mais longe, sob pena de se admitir que a pessoa humana seja meio e não o fim da ordem jurídica.
Se permitirmos que o sigilo entre advogados e seus clientes seja devassado, o próximo passo será a instalação de aparelhos de escuta ambiental em consultórios de psicanalistas e em confessionários, em intolerável violação da intimidade. A dignidade da pessoa humana que sedimenta seus direitos fundamentais, entre os quais a intimidade e a ampla defesa, constitui, de acordo com a Constituição brasileira, elemento estrutural do Estado Democrático de Direito.
Todos que defendem o respeito absoluto às prerrogativas da advocacia estão convidados a participar do ato.
Felipe Santa Cruz é presidente da OAB-RJ.
Fernanda Tórtima é advogada, conselheira da OAB-RJ.
Revista Consultor Jurídico, 14 de agosto de 2014, 06:17h
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