sábado, 21 de junho de 2014

Teoria do Direito deve contemplar principais discussões contemporâneas


Teoria do Direito deve contemplar principais discussões contemporâneas






No mês passado, foi publicada pela editora Revista dos Tribunais, a segunda edição do livro, Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito que escrevi em parceria com Georges Abboud e Henrique Garbellini Carnio. A obra conta, ainda, com o prefácio de Nelson Nery Júnior e o posfácio de Lenio Streck.





O livro foi pensado a partir de um diagnóstico claro com relação ao estado das disciplinas de formação nos quadros do curso de Direito. Em especial, a Filosofia e a Teoria do Direito. Há um certo descompasso entre aquilo que é objeto de debate na contemporaneidade e aquilo que compõe as ementas institucionalizadas nos diversos cursos de Direito deste país. Há fatos que servem de amostra para isso. A perplexidade expressada em alguns comentários à coluna de Lenio Streck dessa última quinta-feira (19/6) serve como um bom exemplo. Ora, apesar de tudo o que se discute e se discutiu sobre o problema da decisão judicial desde o início do século XX, somos ainda bombardeados por acepções que separaram ser de dever ser, prescrição de descrição etc., em afirmações do tipo: “isso — a decisão variar de acordo com a alimentação ou a problemas familiares — é assim mesmo”. Ou ainda, “o juiz não é uma máquina”; “o juiz é gente como a gente”... Minha perplexidade é: porque precisamos de pesquisas para dizer algo que, pelo menos desde a discussão em torno do problema das lacunas, do realismo jurídico e do movimento do direito livre, já sabemos no âmbito da Teoria do Direito?


A resposta começa, certamente, por tentativas de reconstruir o discurso em torno da Teoria do Direito e pontuar aquilo que são as principais discussões que nos envolvem em nossos dias atuais.


É a isso que a obra citada se propõem. Trata-se, na verdade, de um livro preparado com o objetivo de introduzir aos problemas fundamentais do conhecimento jurídico os estudantes e pesquisadores do Direito. O livro pretende-se como uma espécie de “guia de leitura” que objetiva posicionar corretamente tanto o calouro que ensaia os primeiros passos no universo da juridicidade, quanto o profissional que se lança nos tortuosos caminhos da pós-graduação, no interior do discurso teórico-filosófico articulado contemporaneamente no campo do direito.


Cuida-se de uma introdução ao Direito que não foi pensada como um inventário de matérias acumuladas historicamente pelo conhecimento jurídico em torno dos temas que classicamente compõem os interesses da Teoria Geral do Direito e da filosofia jurídica, como justiça, hermenêutica, metodologia, teoria da norma, fontes, moral e interpretação.


Não optamos, portanto, pela facilidade oriunda de uma exposição linear e cronologicamente simplificada de tais temas, pois entendemos que uma tal abordagem não se mostra apta a depreender toda a complexidade do fenômeno jurídico. Mais importante do que ter contato perfunctório sobre os mais diversos aspectos do pensamento jurídico é conseguir colocar-se em condições de diálogo com este pensamento.


Nessa medida, Martin Heidegger[1] afirmava que: “introduzir à filosofia significa pôr o filosofar em curso”, isto é, o fundamental para se aprender a filosofia é filosofar, daí sua metáfora de que não seria possível aprender a nadar por meio de manual de natação, mas tão somente nadando.[2] De modo similar, nosso intuito é justamente estabelecer a aproximação do pensamento jurídico que possibilite aos leitores um manejo adequado das principais polêmicas que povoam a contemporaneidade jurídica.


Ou seja, não se pode aprender Direito simplesmente observando-o do lado de fora. Mais precisamente, não se compreende o Direito a partir de mero receituário com diversos conceitos abstratos e superficiais. Conscientes de que no conhecimento jurídico não existem posicionamentos teóricos unânimes e incontroversos, optamos por encará-lo a partir de sua complexidade e de sua predisposição para a polêmica. Tal qual já afirmou Dworkin, a controvérsia é o coração do argumento jurídico. Daí que a melhor forma de se trabalhar seus conceitos é a partir dos problemas que a própria operacionalidade do Direito propicia.


Isso significa projetar o horizonte adequado para abrir os contextos significativos em que os problemas do conceito e definição do direito; da fundamentação e da validade jurídica e de como são decididas as questões jurídicas. Tais pontos não podem ser pensados fora da dimensão filosófica que os abarca e que apresenta como questão principal a relação entre saber teórico e saber prático e suas consequências para o conhecimento jurídico.


Assim, optamos por estruturar a obra a partir do eixo fundamental de três perguntas: O que é o Direito? O que fundamenta o Direito? Como são decididas as questões jurídicas? Cada uma dessas perguntas é respondida no desenrolar de dez capítulos.


De todo modo, fato é que, para muitos juristas, o jurídico está para o direito assim como a “cavalice”[3] está para o cavalo. De nosso ponto de vista, contudo, o Direito é complexo, dinâmico, histórico e conflituoso, o que impede a formulação de qualquer estratégia essencialista para definição de um único conceito que defina toda a gama de possibilidades que se projetam a partir do jurídico. Sendo assim, uma, ainda que simples e breve, introdução ao Direito, para cumprir seu desiderato, de forma teoricamente honesta, não pode ser esquematizada, simplificada, condensada, entabulada, plastificada etc.[4]


Aliás, como já afirmado, vivemos hoje um momento de apreensão com relação às assim chamadas disciplinas de formação do curso de Direito. Um breve euforia inicial em face do reconhecimento oficial da dignidade de tais disciplinas em concursos para carreiras jurídicas — cujo marco foi a Resolução 75/2009 do CNJ — foi substituído por um sentimento de receio na medida em que o modo como os examinadores de tais concursos lidam com tais conteúdos é altamente questionável.


Os famosos cursinhos preparatórios — que se alastraram no universo jurídico como uma erva daninha, dando a impressão de que o encerramento da faculdade de direito seria uma espécie de segundo turno do ensino médio — passaram a incorporar em sua grade de matérias as disciplinas humanísticas. Evidentemente que o rescaldo desse fenômeno foi a tentativa de manipular tais conteúdos a partir dos esquemas, quadro mentais, resumos e outras tantas metodologias despistadoras que já eram empregadas para a análise das disciplinas técnicas ou dogmáticas.


Todavia, as disciplinas de formação estão inseridas no projeto daquela que, talvez, seja a mais imponente das utopias: o humanismo e seu ideal de formação do ser humano. Será que todo esse nobre propósito cabe nas caixas conceituais que, tradicionalmente, nos foram impostas para lidar com o conhecimento jurídico? Por certo que a resposta é negativa.


Com efeito, como nos lembra Peter Sloterdijk[5], em seu polêmico Regras para o Parque Humano, o humanismo está ligado à intenção de se formar uma grande comunidade de leitores; de seres humanos que deixam o estado da pura barbárie e se civilizam por meio da leitura de textos que transmitem, através de elos inscritos no passado, a tradição cultural que nos conforma. O autor nos lembra que, desde os dias de Cícero, aquilo que se chamahumanitas faz parte, no sentido mais amplo e no mais estrito, das consequências da alfabetização e se aperfeiçoa com o exercício da leitura. Ou seja, da possibilidade que se abre a partir da comunicação realizada à distância pela escrita.


O sempre aberto diálogo entre leitor e escritor é um convite à toda dimensão de complexidade que a vida engloba. Através desse diálogo somos chamados a refletir sobre angustias, frustrações, sucessos e problemas morais. A ideia é que a leitura nos torna mais humanos e nos distancia de nossa herança animal.


Não é a toa que grandes distopias como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley[6]; 1984, de Georg Orwell[7]; e Fahrenheit 451, de Ray Badbury[8]criavam um tipo de sociedade em que os livros — e consequentemente a escrita e a leitura — estavam banidos das atividades sociais e os seus indivíduos, justamente por isso, acabavam moldados por um coletivo acrítico e, portanto, aculturado. Não deixa de ser igualmente sintomático nesse sentido que, no livro de Huxley, por exemplo, é o Selvagem — alguém que está situado fora da ordem pré-estabelecida — quem descobre Shakespeare, lê suas obras e, a partir de então, começa a questionar as estruturas do establishment. Há um diálogo, extremamente marcante nesse sentido, no qual Mustafá Mond — o grande Dirigente daquela sociedade distópica de Huxley — afirma que a leitura de livros como os de Shakespeare era uma atividade proibida. O Selvagem, então, questiona o todo poderoso a respeito da proibição, ao que responde o dirigente: “porque é velho; — eis a principal razão. Aqui não temos aplicações para coisas velhas”.


As disciplinas, chamadas de formação humanística, são exatamente recheadas de “coisas velhas”. São elas que nos ligam ao passado. E é esse diálogo literário com o passado que nos constitui culturalmente.


Na verdade, não é apenas o ódio ao “velho” e o culto acrítico ao “novo” que marca o estilo dessas distopias. No livro de Ray Badbury, por exemplo, logo no início da narrativa, o Bombeiro Montag — lembrando que, na sociedade criada por Badbury, os bombeiros não combatiam incêndios. As casas eram “à prova de fogo”. Sua função era queimar os livros que, eventualmente, ainda existissem nas casas das pessoas — faz a seguinte consideração: “Os livros são o caminho da melancolia”. Eles seriam, enfim, um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino de uma humanidade conformada. Nessas sociedades distópicas, a ausência da leitura homogeiniza a todos.


Por certo que a simplificação, os quadro sinóticos, os quadros mentais, as rimas, as aulas travestidas, não queimam livros. Pelo menos não na sua literalidade. Todavia, produzem um certo tipo de atividade de pastoreio, de arrebanhamento que, paradoxalmente, é contraditória com qualquer princípio humanístico que guarnece a estrutura dessas disciplinas de formação.


Enfim, essa nossa introdução passa bem longe dessas pretensões. Ela trata o leitor com o respeito que ele merece e o convida para participar de um diálogo que nós não iniciamos e também não encerraremos. Todos somos apenas parte dessa comunidade intergeracional de leitores.


[1] Martin Heidegger. Introdução à filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2008.


[2] Martin Heidegger. Los problemas fundamentales de la fenomenologia.Madrid: Editorial Trotta, 2000.


[3] Cavalice é a essência de todo cavalo. James Joyce. Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 227.


[4] Sobre a “estandardização” do ensino jurídico, cf. Lenio Luiz Streck. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010, passim.


[5] Cf. Peter Sloterdijk. Regras Para o Parque Humano. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.


[6] Cf. Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Globo, 2009.


[7] Cf. George Orwell. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


[8] Cf. Ray Badbury. Fahrenheit 451. Rio de Janeiro: Globo, 2009.






Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).





Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2014, 08:00h

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...