Juiz com fome ou que almoçou mal deve julgar nossas causas?
Advertências necessárias I
De novo advirto como se faz em bula de remédio: se o leitor não simpatiza com o colunista ou com os assuntos tratados, não leia. Faça outra coisa mais útil. Os haters da coluna se equiparam aos néscios que Voltaire (o da tolerância) detestava. Por isso, sou um misan-néscio (e aqui o Google não ajudará!).
Advertências necessárias II
Poderia chamar a esta coluna de “Dez receitas balanceadas para os juízes julgarem bem em terrae brasilis”. Mas, neste caso, “receitas” teriam que ser não modelos de decisão, e, sim, receitas colunarias... Portanto, advirto que esta coluna é uma crítica bem humorada às teses que acreditam que o almoço (ou a fome) de juízes pode influenciar no (bem ou mal) decidir. Não esqueçamos da pesquisa recente dando conta de que os juízes israelenses da execução penal negam mais os pedidos de soltura quando estão com fome...e libertam os acusados depois do café da manhã. Minha tese: dê-se aos juízes de Israel — objetos da tal pesquisa — uma bolsa-alimentação. Ou tickets do McDonald’s. Ou um livro do Dworkin. PS: a coluna de hoje é uma homenagem aos juízes que não acreditam nesse tipo de coisa. Homenageio, pois, os juízes que julgam conforme o Direito. Agentes políticos que são, sabem suspender seus pré-juízos, para não causar, assim, prejuízos à sociedade.
O erro do jornalista-filósofo
Há muitos anos venho sustentando que uma decisão judicial não pode ser uma escolha — e daí a minha crítica ao livre convencimento e teses “aliadas”. No campo do direito, diz-se que “não adianta”, “isso é assim mesmo”... Aliás, que a decisão judicial seja (simples) escolha voluntário-ideológica parece ser uma tese que é também recebida com “naturalidade” no campo filosófico. Por isso, trago de novo um artigo do filósofo Helio Schwartsman, publicado na Folha de S.Paulo intitulado As cabeças dos juízes. Diz ele, depois de falar nos swing justices (juízes pêndulos) de que fala a literatura norte-americana: “Em tribunais, bem como em Parlamentos e na sociedade, a distribuição de opiniões costuma ser mais ou menos equilibrada. Formam-se dois grupos...”. E por aí vai.
Estranho que o filósofo Schwartsman pense que uma decisão judicial é uma (mera) opinião... Pior: parece que, para ele, uma decisão de tribunal tem o mesmo caráter de escolha política feita pelos parlamentos. Ora, uma decisão não é escolha. Há responsabilidade política do julgador. Há, no mundo, vasta literatura sobre isso. Aliás, a grande luta das teorias contemporâneas é encontrar modos de controlar as decisões judiciais, que, de modo algum, podem ser manifestações e produtos da razão prática... Schwartsman não andou bem nessa, ao “naturalizar” algo que temos que combater. Ou seja, a nação não pode ser refém da opinião pessoal de um ministro. Se ele decide conforme seu gosto, esta(re)mos lascados. Pode até ser que seja assim que acontece... Mas não deve ser assim! Não fosse isso, os franceses não teriam fundado a Escola da Exegese. E nem os alemães teriam fundado a Jurisprudência dos Conceitos. E nem Habermas teria escrito sua obra... E nem Dworkin... Bem, não é preciso continuar.
O erro do jurista
Preocupa-me, de todo modo, que um jurista acabe perigosamente trilhando um caminho próximo ao do filósofo acima, confundindo decisão com escolha. Refiro-me ao estimado e emérito jurista e professor da FGV-SP, Oscar Vilhena Vieira, que, aliás, nesse particular, é reincidente. Explico: há alguns meses, em artigo sobre o julgamento do Mensalão, disse:
“Como todos os seres humanos, juízes têm intuições fortemente influenciadas pelas suas preferências conscientes ou inconscientes. Muitas vezes são influenciados por fatos aparentemente arbitrários, como a hora do almoço. Assim, embora não seja desejável que juízes deem atenção às ruas ou às suas consciências na hora da decisão, o fato é que tudo isso é levado em consideração”.
À época, assim respondi a essa manifestação:
“Preocupa-me não apenas a fala do ilustre e estimado Dr. Vilhena, que, surpreendentemente, relega a decisão jurídica a uma simples escolha produto da razão prática, como também passo a me preocupar com o almoço dos juízes (acrescento, nessa linha, o trânsito pelo qual passam os juízes, a bronca conjugal, o time de futebol que perdeu no domingo...). Segundo entendi, um almoço ruim pode mexer com a República...”.
Agora, antes do julgamento do caso da correção das cadernetas de poupança, o professor Vilhena Vieira[1] escreve:
“Como esse processo [da decisão] não se dá no nível da consciência, ele é fortemente contaminado por fatores como ideologia, traumas infantis ou preconceito, ou mesmo eventos fortuitos, como se o julgamento estiver ocorrendo antes ou depois do almoço”.
De minha parte — e minha contestação é feita com toda a lhaneza e respeito acadêmico — , espero que não precisemos depender de (tantos) fatores exógenos e endógenos para uma decisão jurídica. A teoria do direito deve ter condições para colocar à disposição dos juristas uma criteriologia apta a preservar a autonomia do direito (afinal, somos juristas, pois não?), ou seja, que uma decisão não dependa da subjetividade do intérprete. Ou seja, isto quer dizer que uma decisão judicial não-pode-depender-de-correções-morais e nem de argumentos meta-jurídicos. Enfim, esperamos que também não venhamos a depender de ágapes e cardápios dos restaurantes dos tribunais ou próximos a eles...
Permito-me ir mais longe nessa minha chatice epistêmica e perguntar: Se Schwartsman e Vieira tiverem razão, então para o que serve a teoria do direito, a doutrina e a jurisprudência, se tudo é tão “vontade de poder”? O direito seria, então, pura estratégia para descobrir como o juiz pensa? Para quem acredita que a decisão é um ato de vontade de poder, pode até ser... Eu não quero acreditar nisso. Eu não devo acreditar nisso. Sob pena de afirmar(mos) o fracasso do direito, da pós-graduação... Enfim, tudo vira política, análise econômica, consequencialismo, poder, jogo, estratégia, etc. Teimo em dizer que não! Teimo em não aceitar isso!
Mas, quero aprofundar. E avisar que há um problema filosófico no fenômeno da decisão jurídica que não pode, simplesmente, ser apanhado a partir de análises empíricas ou meramente factuais a respeito da atividade judicante, como parece querer Vilhena Vieira. Ou seja, quando tratamos da decisão judicial — ou da decisão jurídica, em um contexto ainda mais amplo — não estamos lidando com objetos. Não se trata da conduta do juiz “x” ou “y” na decisão do caso “a” ou “b”. Isso pode até fazer sentido no campo da sociologia ou da ciência política, mas, no caso da Teoria do Direito, a questão se coloca para além da experiência imediata. Uma decisão é um ato de responsabilidade política. Há elementos de eticidade que incorporam as dimensões basais dessa atividade. E aqui vem o busílis que Vieira esqueceu: o ambiente pré-reflexivo — que o texto faz referência como sendo um âmbito reservado à intuição (sic) e ao nível do inconsciente (sic) — não pode ser visto como um dado negativo na composição do ato. Se ele é o lugar de embaraçosos mal-entendidos (que podem ser o produto de atribuições arbitrárias de sentido, decorrentes de posições que podemos dar o nome de ideológicas, na falta de um melhor termo), é também nesse ambiente — que hermeneuticamente chamamos de pré-compreensão (Vorsverständnis) — que estão depositados projetos de sentido autênticos. O interprete-juiz tem o dever de apresentar em sua decisão uma interpretação que melhor se ajuste ao direito da comunidade política a que está inserido (e, porque não dizer, submetido democraticamente!). Excesso de trabalho e metas quantitativas de decisão podem até explicar parte do problema que temos diante de nós. Mas são apenas a ponta do iceberg. No contexto atual, aliás, representam álibis pretensamente irrefutáveis de jogar para debaixo do tapete o dever fundamental de fundamentar as decisões. Fundamentação essa que não depende de pequenas subjetividades, idiossincrasias, bons ou maus almoços, mas, sim, de uma conexão forte com-o-direito-da-comunidade-política.
Sigo para ainda acrescentar uma obviedade: é evidente que o juiz não é neutro. Ele não é uma alface ou um índio de tabacaria (permito-me não retomar esse ponto “da neutralidade” ou das “verdades apodíticas” que tanto já comentei aqui no ConJur e em meus livros). Veja-se que o subtítulo da matéria assinada por Vieira diz: “O Juiz é fortemente contaminado por fatores como ideologias, traumas ou mesmo eventos fortuitos”. E digo eu: E alguém duvida disso? Mas o busílis é que, se o almoço, traumas, intuições ou ideologias são fatores decisivos na sentença, passemos a escrever livros sobre estratégias de convencimento ou sobre “como devem se alimentar os magistrados” ou, na linha de best sellers como O Monge e o Executivo, escrevamos paródias sobre o “O Monge e o Juiz” ou “Salomão – o magistrado sábio”, “O Juiz e as Pirâmides”, “O juiz e o Barão de Munschausen: guia para superação do paradoxo”, “Quem é você, Juiz” (pensemos em John Green, esse chato do momento, estourando nas bancas com o livro Quem é você, Alasca?”) ou brinquemos com coisas do tipo “O juiz e o promotor que roubavam livros”... (o estagiário levanta diversas placas neste momento para informar que se trata de ironias e sarcasmos).
Para ser mais claro: se a democracia depender de coisas como almoços e circunstâncias pessoais do julgador, então teremos que parar de estudar mesmo. Sim, porque estaremos confessando que somos reféns de um paradigma ultrapassado como a filosofia da consciência (e/ou de suas inúmeras vulgatas voluntaristas). Ou os paradigmas filosóficos não servem para nada? Por que será que Habermas tem horror ao solipsismo (e olha que nem sou habermasiano, como já frisei na semana passada)?
Sendo mais específico ainda: se-o-sentido-da-lei-depende(r)-da-subjetividade-de-alguém é porque é ela mesma, a lei, ao fim e ao cabo, dispensável, despicienda. Ou seja, o juiz estaria a autorizado tomar certas liberdades com essa digníssima senhora, a lei. Ou mesmo toda a liberdade que desejar, a depender do seu próprio estado de espírito no dia do julgamento... Volta(ría)mos portanto ao realismo jurídico, onde o discurso de validade está na decisão. Positivismo fático, para dizer o menos. Pronto. Simples. Bingo! Direito é aquilo que o Judiciário diz que é. E nada resta aos pobres mortais que não-tem-o-poder-de-decidir. À patuleia, sequer o que resta das batatas.
O voluntarismo venceu?
Quando a vontade superou a razão — refiro-me aos movimentos que, dialeticamente, superaram o exegetismo do século XIX — não se poderia imaginar, por óbvio, que, mesmo em plena democracia (repito: mesmo em plena democracia!), as leis pudessem ser desprezadas em nome de voluntarismos interpretativos. Pior do que isso é a atuação pendular da doutrina e da jurisprudência, isto é, quando interessa à vontade de poder (ou à consciência individual do intérprete), a lei pode “valer tudo”... Mas já quando não interessa ao intérprete, a lei (lato sensu) pode nada significar. Fica fofa. Dúctil.
O problema é que o pobre do utente fica diante de uma situação inusitada, porque não sabe quando o Judiciário julgará respeitando os limites semânticos da legislação, e quando julgará a partir de argumentos outros, como, por exemplo, argumentos meta-jurídicos ou com base em valores que flutuam como “fatores ontológico-objetivistas de correção da lei”. Parada para um café e um necessário aviso: por favor, sem ingenuidades com relação ao que seja “limites semânticos”. Estes devem ser entendidos, à evidência, no sentido que explicito em livros como Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Digo isso só para que algum incauto não me confunda (de novo) com um exegeta do século XIX.
Isso tudo tem uma agravante. Explico. Também o pretenso exegetismo é uma forma de voluntarismo. Simples, porque, quando interessa, usa-se a “letra da lei”. Mas esse “quando interessa” já é um ato de voluntarismo, do que resulta que a interpretação foi transformada em “vontade de poder”, disfarçada em vários nomes e codinomes.
As raízes do problema?
Bem, as raízes disso podem estar em cinco recepções equivocadas, feitas pela doutrina brasileira, as quais venho me dedicando em palestras, artigos e livros. Não vou explicitá-las aqui. Já o fiz. Mas, apenas para resumir, são elas: a primeira foi a Jurisprudência dos Valores alemã, importada de forma descontextualizada; a segunda foi a teoria da argumentação jurídica (Alexy), da qual pegamos apenas uma parte, a malsinada ponderação, gerando um paradoxo: Alexy elaborou-a para racionalizar a irracionalidade da jurisprudência dos valores... Só que, em Pindorama, juntamos as “facilidades interpretativas” de ambas as teses e fizemos uma gambiarra. A terceira foi o ativismo norte-americano, que lá não é um sentimento e, sim, fruto de contingências. Apaixonamo-nos pela tese e, hoje, pagamos o pato, ao ponto de judicilializarmos de tudo, até xampu para calvos e cremes para relações sexuais. Um sintoma disso tudo é o site do Ministério da Saúde, que tem um “manual” para exercitar o ativismo, ensinando como entrar em juízo contra a Viúva...
A quarta recepção equivocada (ou mal feita) foi a velha metodologia do século XIX, com alguns puxadinhos hermenêuticos do século XX. Resultado: aquilo que tinha um sentido na Escola Histórica, transformou-se em “modelo” para justificar qualquer decisão no século XXI, o que se pode ver recentemente na decisão do MS 32.326 (caso Donadon).
A quinta recepção equivocada foi o neoconstitucionalismo, ao menos na forma de aceitação acrítica do “poder” discricionário para superar o velho exegetismo. Setores do neoconstitucionalismo pensa(ra)m assim: se a moral está separada do direito no positivismo clássico, então coloquemos a moral para dentro do direito... E como fazemos isso? Com o poder discricionário e o uso de princípios, que, nesse sentido, são valores...
Consequência disso? Simples: como não conseguimos controlar – hermeneuticamente - as decisões, apostamos em um jogo de estratégias acerca de como pensam e como se comportam os juízes. Por isso, muitos juristas consideram a decisão judicial um mero ato de escolha político-ideológica, enfim, de mera subjetividade. E é contra isso que peleio.
Teremos que nos conformar?
As perguntas que devemos fazer — e responder — são: sobra algo? Ou tudo é mesmo, “vontade de poder”? Não há fatos, só há interpretações? Nietzsche tinha razão? Não temos como controlar, nem a partir da lei e da Constituição, “os atos de vontade” dos julgadores? Até a refeição do juiz é determinante? E sua unha encravada, também é? E o que dizer de seu humor depois de ter brigado com a(o) esposa(o) ou namorada(o)?
Ora, ora. E ora. Vivemos tempos de relativismo? Tudo pode ser e tudo pode não ser? Cada um atribui os sentidos que quer? Mesmo que haja indícios formais apontando para determinado sentido, conformado pela tradição, surge alguém para dizer que “como tudo é relativo”, cada um tem a sua verdade... E como suportamos isso? Alienamo-nos a esse ponto? Afinal, o que é isto - “obedeço apenas a minha consciência”?
A questão é: e-o-que-eu-tenho-a-ver-com-a-sua-consciência?[2] Por que devo eu — ou a nação brasileira — depender da consciência isolada (solipsista) de um julgador? Ora, não haveria aí uma contradição insolúvel, isto é, se tudo é relativo, é exatamente por isso que não devo acreditar em uma decisão (ou escolha) feita a partir exatamente do... relativismo? Elementar, pois não? Se tudo é relativo, isso o que o emissor da mensagem acabou de dizer é relativizável... Isso é o que se chama de uma contradição performativa.
Somemos, ao relativismo, o senso comum e, bingo. Eis aí a fórmula para assentar o niilismo. Sim, porque a admissão do relativismo pode estar assentada exatamente no senso comum. Ou seja, é pelo senso comum que se sustenta que “isso é assim mesmo”. E, assim, vamos reproduzindo a vontade do poder... O espaço para a crítica é diminuto. Por isso o status quo é tão difícil de ser alterado.
E é por tudo isso que uma parcela (considerável) de nossos juristas acha que não precisamos de uma teoria da decisão. Basta que saibamos como os juízes pensam... Logo, não necessitamos estudar teoria do direito. Basta contratarmos detetives, carpinteiros, rackers, adivinhos, gestores, mestres em retórica, cozinheiros, matemáticos, estrategistas e psicólogos... Tudo para melhor argumentar, com o objetivo de convencer o juiz. Afinal, ele decide conforme a sua vontade... ou é influenciado pelo seu almoço. Tratemos de “cercar” Sua Excelência por todos os lados.
Post scriptum: Esta coluna foi escrita antes do almoço. Portanto, a parte azeda do texto deve ter sido motivada pela minha fome... Por isso, vou estocar comida! Para ser mais justo! Bingo de novo!
[1] Vilhena Vieira segue, ao que parece, um pensamento, nesse particular, similar ao de Richard Posner, para quem os juízes frequentemente atuam com liberdade e poder discricionário, aplicando o direito para satisfazer não raras vezes, e ainda que inconscientemente, sua orientação ideológica, suas preferências pessoais e seus próprios valores e preconceitos.
[2] Falando hegelianamente: quando pergunto "o-que-eu-tenho-que-ver-com-a-sua- consciência?", digo isso não porque o reconhecimento da autonomia moral individual seja errado. Ao contrário! O que minha frase mostra é que a moralidade pressupõe uma eticidade reflexiva e moderna da qual o Direito faz parte. Enfim: a intersubjetividade constitutiva de toda consciência.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.Topo da página
Revista Consultor Jurídico de 05 de junho de 2014, 08:00h
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