Por Lenio Luiz Streck
Bula para casos de ingestão indevida
Como a da semana passada, também esta coluna não é indicada para quem gosta de jurisprudencialização do Direito e do jargão “o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é” e da máxima de que “princípios são valores”. Em caso de ingestão indevida, a Constituição deverá ser consultada.
Passando batido?
Dito isso, volto a um assunto que não está merecendo a devida atenção da comunidade jurídica. É impressionante como o projeto do novo CPC está passando “batido”. Cheio de problemas, repleto de equívocos, é o retrato daquilo que se pode chamar de “baixo apego dos juristas à Teoria do Direito”. Seria isso sinal de acomodação, alienação ou sintomas de que, definitivamente, pouco estamos nos importando com o futuro do direito? Talvez devamos fazer uma campanha, em outdoors: “Salvemos o Direito dos predadores exógenos (política, moral e economia) e endógenos (pan-principiologismo, relativização da coisa julgada, embargos declaratórios, commonlização e discricionariedades)”.
De há muito venho alertando à comunidade jurídica para esse problema do protagonismo judicial, que deita raízes em uma questão paradigmática e não meramente “técnica”. Veja-se, por exemplo, a seguinte decisão, que se repete nas várias instâncias da justiça brasileira: “O sistema normativo pátrio utiliza o princípio do livre convencimento motivado do juiz, o que significa dizer que o magistrado não fica preso ao formalismo da lei nem adstrito ao laudo pericial produzido nos autos, devendo o julgador analisar o caso concreto, levando em conta sua livre convicção pessoal”. (5001367-22.2011.404.7119). Decisão desse jaez é emblemática, porque é uma amostra da dificuldade com que a dogmática jurídica lida com a teoria do direito e, especialmente, com o conceito de princípio jurídico (veja-se, no caso, o famoso princípio do livre convencimento). Não faltam vozes para afirmar que princípios são “normas gerais que possibilitam a criação de normas mais específicas”... Dever-se-ia perguntar: criação de normas particulares por parte de quem? Por parte do juiz, para levar a cabo o seu livre convencimento? Mas, se assim o é, qual a diferença dessa postura para com aquela defendida por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, que previa para o aplicador, no momento de criar a norma concreta de solução para o caso, uma margem geral de atuação, isto é, um campo semântico que daria uma margem de liberdade (discricionariedade) para o aplicador da norma geral superior. Não faltam vozes, também, que consideram a questão dos princípios ligada umbilicalmente à “questão da ponderação” (argh!)... De todo modo, esse assunto demandará uma Coluna específica, na sequência.
Nem quero falar das “macro-lides”, como a decisão do STJ que “criou” um recurso sustentado nessa tese, como pode ser visto no recente REsp. 1.251.331-RS? Tudo em nome de efetividades quantitativas. E nem das demandas repetitivas em discussão no STF.
Nesse sentido, insisto na pergunta: adianta somente mudar a lei? De que importa tudo isso se o projeto não abre mão do livre convencimento, corolário do paradigma epistemológico da filosofia da consciência?[1] Vejamos o artigo 378: “O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”. Já o artigo 401 diz que “A confissão extrajudicial será livremente apreciada pelo juiz.” E no artigo 490 lê-se que “A segunda perícia não substitui a primeira, cabendo ao juiz apreciar livremente o valor de uma e outra”. Vejam: não é invenção minha. E nem cisma!
Sendo mais claro: não avançaremos enquanto não nos dermos conta da necessidade de construirmos uma teoria abrangente do processo, para guiar a nossa interpretação dos dispositivos legais.
Ou seja: não basta falar em apreciação das provas... No caso, o projeto falha em dizer que a apreciação é livre, o que é pior. Mas o que falta mesmo, permito-me repetir, é uma-teoria-abrangente-do-processo-para-guiar-a-nossa-interpretação-da-lei!
“Fundamentação”? Adianta? E o livre convencimento?
Ao se fazer uma análise mais detida do CPC projetado, fica claro que suas bases fundantes partem do velhíssimo e desgastado modelo social protagonista, que impõe o evidente receio de mantença da matriz autoritária de processo social, capitaneado pelas correntes instrumentalistas, que acreditam, de modo romântico, nas virtudes soberanas do decisor e em sua capacidade de antever o impacto decisório (político, econômico e social). Ah, como isso é velho!
Veja-se o equívoco do projeto. Embora pareça assumir uma postura participativa (leiam seus primeiros 12 artigos), aposta, ao fim e ao cabo, no (velho) protagonismo (solipsista). Aliás, é um equívoco que corrói a raiz do projeto. Nisso há um déjà vu, que nos remete ao século XIX. Ouve-se, ao longe, o discurso de Bülow ao Imperador... Ora isso viabilizou, anos depois, o surgimento, por exemplo, das correntes voluntaristas, como a Escola do Direito Livre. Livre do que? Bingo: Livre da lei, é claro.
Igualzinho ao projeto do novo CPC. Livre da lei e atirado nos braços dos “precedentes”. Portanto, não é sem razão que os novos projetos de Códigos Processuais (sim, os dois projetos) não abrem mão do livre convencimento ou da livre apreciação das provas. E, além disso, apostam nos precedentes.
Por isso, não tenho receio em afirmar que o projeto do novo CPC já nasce velho. O projeto favorece uma espécie de Judiciariocracia dos Tribunais Superiores. Já nas instâncias inferiores... Bem, é melhor lerem o projeto...
“Cadê”a civil law e a legalidade que estavam aqui? O CPC comeu...
Vejamos às incongruências do projeto. Há um capítulo (XV) intitulado “Do Precedente Judicial” (vejam: não há um capítulo do tipo “Da Lei”!). Diz que os tribunais “devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável”. Aí está o busílis. Se resolveram importar a doutrina dos precedentes, já começaram mal. Muito mal. Ora, a estabilidade é diferente da integridade e da coerência do Direito, pois a “estabilidade” é um conceito autorreferente, isto é, numa relação direta com os julgados anteriores. Já a integridade e a coerência guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso. Simples, pois.
Sob o pretexto de que se almejaria dar efetividade ao princípio da legalidade, cria-se um elo impossível entre este princípio e o pragmati(ci)smo dos tribunais. Por isso, denuncio aqui que, nesse Capítulo XV, o projeto do novo CPC põe abaixo o princípio da legalidade na teoria da interpretação. E o Congresso, seu autor, comete(rá) uma espécie de haraquiri. O suicídio de sua função normativa. E ele não se dá conta disso. O Parlamento foi envolvido pelo canto da sereia dos precedentes. Mal sabe ele que está abrindo mão de dizer o que é a lei.
Repetindo: o projeto revoga por meio de um texto infraconstitucional o princípio constitucional da legalidade. Ao invés da cláusula pétrea do artigo 5º, inciso II, da Constituição, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, teremos, agora, um “novo”, pelo qual “os juízes não serão obrigados a decidir senão em virtude dos precedentes”. E isso sem qualquer emenda a Constituição (que nem poderia vingar, por ser cláusula pétrea!).
Isto é, um texto infraconstitucional que contraria a Constituição, que determina que os juízes não devem mais julgar com base na normatividade, mas, sim, de acordo com as decisões dos tribunais. Adeus jurisdição constitucional às instâncias que se tornam, de fato, inferiorizadas. O mais grave é que é um texto infraconstitucional que altera a espinha dorsal de nossa tradição, baseada no princípio da legalidade. Na prática, opera uma ruptura histórica em nossa ordem jurídica, de romano-germânica para common law. Explico isso melhor:
Diz o texto do projeto do novo CPC (artigo 521), que os juízes e os tribunais seguirão “a súmula vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos”; depois, os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional, do STJ em matéria infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem; e “não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e os tribunais seguirão”... os precedentes do STF, em matéria constitucional, do STJ, em matéria infraconstitucional.
Mais: Em não havendo precedente do STF ou do STJ, “os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal seguirão os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem”.
Mas, não para por aí, porque o texto estabelece que “os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem”. Como no tempo de criança, pergunto: “cadê” a tradição romano-germânica e a legalidade que estava aqui? O CPC comeu...
Nem vou falar dos atos de ofício previstos no projeto. Nada mais serôdio do que isso. Nem vou me referir aos embargos declaratórios, que não passam de uma gambiarra hermenêutica (um puxadinho proto-epistêmico) para salvar a falta de fundamentação... Nem vou falar da parte destinada às cautelares, que sofre de um anti-hermeneutismo à toda evidência, uma vez que dependente – e eis, aqui, de novo, o busílis da questão – em demasia do protagonismo judicial.
De como o projeto recupera dois positivismos
Sigo. Poder-se-ia alegar, em favor do projeto, que este tenta resolver o problema da litigiosidade repetitiva, com o reforço do modelo de padronização decisória, que faz crer que os litígios devam ser exterminados, após o proferimento de uma decisão modelar proferida por tribunais, sem que se perceba a completa ausência de uma teoria apta para a interpretação/aplicação dessa “padronização”.
Mas, eis aí o problema: não adianta fazer um modelo de extermínio de ações repetidas sem uma teoria decisional! Não tenho nenhum receio em afirmar isso. E lanço esse desafio à comunidade jurídica.
É que, nesse ponto, o projeto comete um pecado hermenêutico. Vou tentar ir mais a fundo. Faltou, sim — e temos de ter coragem para dizer isto, com todas as letras — um hermeneutic turn no projeto. Nele, há uma falácia semântica ou uma crença na plenipotenciariedade dos conceitos, como se fosse possível a uma lei — e agora, especialmente a uma Súmula ou a uma ementa jurisprudencial — prever todas as hipóteses de aplicação de forma antecipada. Ou seja, para os autores do projeto, os conceitos podem abranger todas as hipóteses de aplicação... No fundo, o projeto faz um mix: ao mesmo tempo que aposta na construção de conceitos com pretensão de “norma geral” (ah, o velho positivismo), aposta também no protagonismo decorrente do livre convencimento.
Apostando na commonlização do Direito[2], o projeto consegue a façanha de acumular dois positivismos: o velho exegetismo, porque aposta em uma espécie de conceptualização (saudades da Bregriffjurisprudenz?[3]), e no positivismo pós-exegético de perfil normativista, porque aposta no poder discricionário dos juízes, em especial, das cúpulas (eis aí o protagonismo judicial). Veja-se: de um lado, um capítulo sobre Precedentes (artigos 520 e seguintes, com o já visto), apostando no conceptualismo; de outro, o livre convencimento na apreciação das provas... Como coadunar isso? Ou seja, sob o pretexto de se livrarem das velhas posturas positivistas (clássicas), o projeto reafirma tanto o velho como o “novo” (sic) positivismo. Isso apenas mostra que parcela da comunidade jurídica ainda não entendeu o “que é isto — o positivismo”.
Aliás, uma coisa inacreditável: a aposta no conceptualismo ou na vontade de regressar a uma jurisprudência analítica ou, quem sabe, a uma Begriffjurisprudenz, parece também estar clara no fato de o novo CPC incentivar a que se construam súmulas e que nos encaminhemos, efetivamente, a um direito jurisprudencializado. Ora, isso enfraquece a doutrina. E, sobremodo, fragiliza a autonomia do direito. Com efeito, os artigos 520 e seguintes me deram essa nítida impressão.
E, atenção: que história é essa de “modelo de como seguir precedentes”? Afinal, o que seria isso? E que coisa é essa — a modulação dos efeitos em caso de alteração dos precedentes? Nem vou falar aqui do restante do capítulo destinado aos precedentes (por exemplo, o que se quer dizer com o parágrafo 7º do artigo 521: “O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado?)”. Parece que no Brasil somos campões em fazer gambiarras e puxadinhos: pegamos a ponderação de Alexy e a transformamos em uma pedra filosofal interpretativa; transformamos os princípios em meros álibis teórico-retóricos e agora pegamos a common law e a acoplamos ao sistema romano-germânico... Como é que ninguém pensou nisso antes? Como sobrevivemos até hoje sem essas ideias revolucionárias?
Quando o réu não se ajuda...
Em outras palavras: do que menos se fala no novo CPC é... da lei e de como a cumprir de forma equânime. Bingo! Sim. O Congresso, que deveria preservar o papel da lei, aposta na... jurisprudência. E, o pior: desgastado,aceita isso dando um tiro no próprio pé! De fato, “o réu não se ajuda”. Incrível. O Congresso se queixa da invasão do Judiciário e, ao mesmo tempo, aprova a forma mais sofisticada de imperialismo jurisprudencial. Onde estão os caros assessores — e os assessores caros — dos parlamentares? Acho que eles deveriam pedir socorro aos estagiários, essa valorosa classe que ainda tomará o poder. Talvez só ela possa nos salvar.
A questão mais grave... e um exemplo de poder discricionário
Portanto, é neste ponto — a commonlização — que aparece a questão mais grave. Gravíssima. Ninguém está se dando conta que, com o projeto, qualitativamente, há uma grande chance de perda no nosso sistema decisório, porque de um lado, o projeto não combate a possibilidade de o STJ e o STF continuarem a decidir discricionariamente, e de outro ele atribui, irrefletidamente, efeito vinculante para a quase totalidade das decisões desses tribunais (inclusive dos obter dictum).
Vejam: O projeto traz um modelo de “como-seguir-precedentes”... só que esse modelo só serve para as instâncias inferiores. Não há nada que indique que quem faz o precedente tenha algum controle. Pronto. Controle sobre os juízes. Quem elabora os precedentes mais relevantes não precisa seguir os caminhos que as instâncias inferiores devem seguir...
Essas coisas todas e em especial a aposta no protagonismo do tipo “realismo jurídico”, não são implicância minha. Basta ler o projeto.[4] Parece que os processualistas não conseguem trabalhar a ideia de um processo que não dependa do solipsismo. Parece que o sistema presidencialista de governo se incrustou também no modo de aplicar o direito. No fundo, o projeto estabelece uma espécie de Direito Processual de Coalisão...!
No âmago, o discurso da grande maioria dos processualistas se cinge a defesa do aumento da produtividade e da celeridade processual, esquecendo-se que o processo civil brasileiro não serve somente para resolução de conflitos privados e patrimoniais, mas também viabiliza o aferimento de direitos fundamentais básicos.
Perceba-se que não se promove um ataque generalizado ao trabalho dos juristas que participaram das comissões, especialmente agora na Câmara, uma vez que o trabalho dogmático promoveu uma boa melhora técnica do projeto. Impossível não reconhecer isso. O que critico é a ausência de uma mudança paradigmática, que fará manter e, talvez, fortalecer a análise do sistema processual sob a ótica principal e única do juiz e da jurisdição, tal qual já ocorre na atualidade.
Quero saber se estamos dispostos a sacrificar a qualidade das decisões em prol da quantidade (não que, hoje, tenhamos isso). O que quero dizer é que um novo CPC deveria se preocupar com efetividades qualitativas, já que as efetividades quantitativas são decorrência. A recíproca, entretanto, nem de longe é verdadeira.
Não estou de má vontade
Nem de longe estou tendo má vontade com o projeto do novo CPC. Tudo o que já escrevi sobre o problema do instrumentalismo processual e seus problemas dão mostras suficientes que estou apenas mantendo a coerência.
Mas, com relação à commonlização, sim, confesso minha má vontade. Mas é uma má vontade de caráter epistêmico. Parece que os seus defensores querem repristinar o realismo jurídico, que não passa de um positivismo fático (só que a aplicação do direito, por exemplo, em Alf Ross, era muito mais complexa do que querem os neocommonlizadores). Para quem não entendeu ainda, tento ser mais simples: o projeto desloca o discurso de validade da lei em direção à decisão judicial. Sendo mais explícito ainda: Conforme o projeto, o direito é aquilo que os tribunais superiores dirão que é. De minha parte, prefiro o original, Holmes, do que uma clonagem sua.
Numa palavra: seja do ponto de vista normativo, seja do ponto de vista performativo, “livre convencimento” (ou livre apreciação da prova) não é o mesmo que “decisão fundamentada”. Isso porque da perspectiva normativa do princípio que exige a fundamentação das decisões, o juiz não tem a opção para se convencer por qualquer motivo, uma espécie de discricionariedade em sentido fraco que seja, mas deve explicitar com base em que razões, que devem ser intersubjetivamente sustentáveis, ele decidiu desta e não daquela maneira, conforme bem diz Marcelo Cattoni. É claro que nenhuma decisão se dá no vácuo, mas num contexto histórico-institucional. Todavia, na sua fundamentação, o juiz deve posicionar-se explicitamente em relação a este contexto institucional.
Realmente, ser correto e decidir de forma imparcial não é fácil mesmo. Exige exercício prático, senso de dever, capacidade de se adotar uma atitude reflexiva em relação às próprias precompreensões, garantia de comparticipação dos destinatários da decisão no processo deliberativo, aprendizado institucional e debate público. O resto é desculpa para se fugir de responsabilidades.
Nos rios, leite fresco; nas árvores, favos do mais puro mel...
O que o projeto faz, na esteira do que a maioria dos processualistas vem fazendo,é incorrer na chamada falácia naturalista: uma inversão normativa fundada na suposta força do factual. Na verdade, uma força atribuída ao factual em função do próprio ponto de partida interpretativo que se adota. O suposto do qual se parte é aquele segundo o qual a “realidade” é um obstáculo para a concretização da normatividade.
Portanto, o projeto do novo CPC recupera pressupostos da dogmática jurídica, mas sacrifica os pressupostos filosóficos, que são a condição de possibilidade de o projeto se tornar compatível com o paradigma do constitucionalismo contemporâneo e não com posturas teóricas que, a pretexto de superar velhas fórmulas como “o juiz boca da lei”, nada mais fazem do que apostar em um “juiz protagonista”. Nada mais velho do que isso. Escopos processuais, instrumentalismo, agora com novos nomes.
Metaforicamente, o projeto propõe que os utentes de terrae brasiliensis escolham entre isso que está ai (a barbárie, que já gerou, darwinianamente, as Súmulas Vinculantes e a Repercussão Geral) ou a “civilização”, em que os rios fornecerão leite e as árvores favos de mel. Assim, os utentes fazem, primeiro, um pacto de associação e, depois, um pacto de submissão... Delegando todo poder ao soberano, representado pelo protagonismo judicial. Uma espécie de leviatã neoprocessual (como em Hobbes, se me entendem).
Bem, cumpri meu dever cívico de denunciar (de novo) a falácia que é o projeto do (novo?) CPC. Com tantos programas de pós-graduação no Brasil, a academia deve cumprir seu papel de locus de reflexão e de crítica, visando a estabelecer um projeto de CPC cuja arquitetura se compatibilize com a do edifício constitucional, ao invés de se omitir ou avalizar puxadinhos, lajes e gambiarras jurídicas. O projeto reproduz um conjunto de ingenuidades, algo como aquilo que Lénin denunciava nos anos 20 do século XX: o esquerdismo era a doença infantil do comunismo, alusão àqueles que achavam que os partidos políticos eram inúteis. Pois, então: quem acha que a lei vale menos que a jurisprudência ou que a lei é (praticamente) inútil, apostando no communlismo, pode estar praticando um erro histórico, ou seja, o communlismo (ou commonlização) pode ser a doença infantil do processo.
Tenho a certeza de que os juristas brasileiros podemos mais do que isto... Ou não.
Dica final
Nesta sexta-feira (13/9), farei a abertura do XII Congresso de Direito Constitucional Aplicado, em Salvador, no Hotel Fiesta. Falarei sobre Teoria Constitucional, Teoria do Direito e Jurisdição Constitucional. Enfim, as cinco recepções equivocadas que a doutrina e os tribunais brasileiros fizeram pós-1988.
[1] Permito-me ser repetitivo e insistir na “questão da filosofia”, embora setores importantes do direito desconsiderem o fato de a filosofia ser condição de possibilidade do próprio direito. De todo modo, faço a seguinte observação: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. Mas não vou aprofundar isso aqui. Remeto o leitor para o meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise (Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2013).
[2] Essa circunstância foi denunciada no livro O Que é Isto – Os Precedentes e as Súmulas Vinculantes (Lenio Streck e Georges Abboud; 1ª. E 2ª. Ed; Livraria do Advogado, 2012).
[3] Jurisprudência dos Conceitos, forma de positivismo exegético predominante na Alemanha do século XIX.
[4] Na verdade, estou com uma dúvida. O realismo jurídico foi uma reação à jurisprudência analítica, forma de positivismo exegético inglês do século XIX, semelhante ao que ocorria na França e com as pandectas alemãs. Logo, não estaria eu sendo generoso, ao epitetar o projeto de intentar um “realismo jurídico tropical”? O projeto não buscaria, mesmo, uma imitação da jurisprudência analítica, em que os precedentes tinham que ser tão duramente seguidos como uma lei em França e uma pandecta na Alemanha? O que os leitores acham?
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2013
Bula para casos de ingestão indevida
Como a da semana passada, também esta coluna não é indicada para quem gosta de jurisprudencialização do Direito e do jargão “o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é” e da máxima de que “princípios são valores”. Em caso de ingestão indevida, a Constituição deverá ser consultada.
Passando batido?
Dito isso, volto a um assunto que não está merecendo a devida atenção da comunidade jurídica. É impressionante como o projeto do novo CPC está passando “batido”. Cheio de problemas, repleto de equívocos, é o retrato daquilo que se pode chamar de “baixo apego dos juristas à Teoria do Direito”. Seria isso sinal de acomodação, alienação ou sintomas de que, definitivamente, pouco estamos nos importando com o futuro do direito? Talvez devamos fazer uma campanha, em outdoors: “Salvemos o Direito dos predadores exógenos (política, moral e economia) e endógenos (pan-principiologismo, relativização da coisa julgada, embargos declaratórios, commonlização e discricionariedades)”.
De há muito venho alertando à comunidade jurídica para esse problema do protagonismo judicial, que deita raízes em uma questão paradigmática e não meramente “técnica”. Veja-se, por exemplo, a seguinte decisão, que se repete nas várias instâncias da justiça brasileira: “O sistema normativo pátrio utiliza o princípio do livre convencimento motivado do juiz, o que significa dizer que o magistrado não fica preso ao formalismo da lei nem adstrito ao laudo pericial produzido nos autos, devendo o julgador analisar o caso concreto, levando em conta sua livre convicção pessoal”. (5001367-22.2011.404.7119). Decisão desse jaez é emblemática, porque é uma amostra da dificuldade com que a dogmática jurídica lida com a teoria do direito e, especialmente, com o conceito de princípio jurídico (veja-se, no caso, o famoso princípio do livre convencimento). Não faltam vozes para afirmar que princípios são “normas gerais que possibilitam a criação de normas mais específicas”... Dever-se-ia perguntar: criação de normas particulares por parte de quem? Por parte do juiz, para levar a cabo o seu livre convencimento? Mas, se assim o é, qual a diferença dessa postura para com aquela defendida por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, que previa para o aplicador, no momento de criar a norma concreta de solução para o caso, uma margem geral de atuação, isto é, um campo semântico que daria uma margem de liberdade (discricionariedade) para o aplicador da norma geral superior. Não faltam vozes, também, que consideram a questão dos princípios ligada umbilicalmente à “questão da ponderação” (argh!)... De todo modo, esse assunto demandará uma Coluna específica, na sequência.
Nem quero falar das “macro-lides”, como a decisão do STJ que “criou” um recurso sustentado nessa tese, como pode ser visto no recente REsp. 1.251.331-RS? Tudo em nome de efetividades quantitativas. E nem das demandas repetitivas em discussão no STF.
Nesse sentido, insisto na pergunta: adianta somente mudar a lei? De que importa tudo isso se o projeto não abre mão do livre convencimento, corolário do paradigma epistemológico da filosofia da consciência?[1] Vejamos o artigo 378: “O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”. Já o artigo 401 diz que “A confissão extrajudicial será livremente apreciada pelo juiz.” E no artigo 490 lê-se que “A segunda perícia não substitui a primeira, cabendo ao juiz apreciar livremente o valor de uma e outra”. Vejam: não é invenção minha. E nem cisma!
Sendo mais claro: não avançaremos enquanto não nos dermos conta da necessidade de construirmos uma teoria abrangente do processo, para guiar a nossa interpretação dos dispositivos legais.
Ou seja: não basta falar em apreciação das provas... No caso, o projeto falha em dizer que a apreciação é livre, o que é pior. Mas o que falta mesmo, permito-me repetir, é uma-teoria-abrangente-do-processo-para-guiar-a-nossa-interpretação-da-lei!
“Fundamentação”? Adianta? E o livre convencimento?
Ao se fazer uma análise mais detida do CPC projetado, fica claro que suas bases fundantes partem do velhíssimo e desgastado modelo social protagonista, que impõe o evidente receio de mantença da matriz autoritária de processo social, capitaneado pelas correntes instrumentalistas, que acreditam, de modo romântico, nas virtudes soberanas do decisor e em sua capacidade de antever o impacto decisório (político, econômico e social). Ah, como isso é velho!
Veja-se o equívoco do projeto. Embora pareça assumir uma postura participativa (leiam seus primeiros 12 artigos), aposta, ao fim e ao cabo, no (velho) protagonismo (solipsista). Aliás, é um equívoco que corrói a raiz do projeto. Nisso há um déjà vu, que nos remete ao século XIX. Ouve-se, ao longe, o discurso de Bülow ao Imperador... Ora isso viabilizou, anos depois, o surgimento, por exemplo, das correntes voluntaristas, como a Escola do Direito Livre. Livre do que? Bingo: Livre da lei, é claro.
Igualzinho ao projeto do novo CPC. Livre da lei e atirado nos braços dos “precedentes”. Portanto, não é sem razão que os novos projetos de Códigos Processuais (sim, os dois projetos) não abrem mão do livre convencimento ou da livre apreciação das provas. E, além disso, apostam nos precedentes.
Por isso, não tenho receio em afirmar que o projeto do novo CPC já nasce velho. O projeto favorece uma espécie de Judiciariocracia dos Tribunais Superiores. Já nas instâncias inferiores... Bem, é melhor lerem o projeto...
“Cadê”a civil law e a legalidade que estavam aqui? O CPC comeu...
Vejamos às incongruências do projeto. Há um capítulo (XV) intitulado “Do Precedente Judicial” (vejam: não há um capítulo do tipo “Da Lei”!). Diz que os tribunais “devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável”. Aí está o busílis. Se resolveram importar a doutrina dos precedentes, já começaram mal. Muito mal. Ora, a estabilidade é diferente da integridade e da coerência do Direito, pois a “estabilidade” é um conceito autorreferente, isto é, numa relação direta com os julgados anteriores. Já a integridade e a coerência guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso. Simples, pois.
Sob o pretexto de que se almejaria dar efetividade ao princípio da legalidade, cria-se um elo impossível entre este princípio e o pragmati(ci)smo dos tribunais. Por isso, denuncio aqui que, nesse Capítulo XV, o projeto do novo CPC põe abaixo o princípio da legalidade na teoria da interpretação. E o Congresso, seu autor, comete(rá) uma espécie de haraquiri. O suicídio de sua função normativa. E ele não se dá conta disso. O Parlamento foi envolvido pelo canto da sereia dos precedentes. Mal sabe ele que está abrindo mão de dizer o que é a lei.
Repetindo: o projeto revoga por meio de um texto infraconstitucional o princípio constitucional da legalidade. Ao invés da cláusula pétrea do artigo 5º, inciso II, da Constituição, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, teremos, agora, um “novo”, pelo qual “os juízes não serão obrigados a decidir senão em virtude dos precedentes”. E isso sem qualquer emenda a Constituição (que nem poderia vingar, por ser cláusula pétrea!).
Isto é, um texto infraconstitucional que contraria a Constituição, que determina que os juízes não devem mais julgar com base na normatividade, mas, sim, de acordo com as decisões dos tribunais. Adeus jurisdição constitucional às instâncias que se tornam, de fato, inferiorizadas. O mais grave é que é um texto infraconstitucional que altera a espinha dorsal de nossa tradição, baseada no princípio da legalidade. Na prática, opera uma ruptura histórica em nossa ordem jurídica, de romano-germânica para common law. Explico isso melhor:
Diz o texto do projeto do novo CPC (artigo 521), que os juízes e os tribunais seguirão “a súmula vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos”; depois, os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional, do STJ em matéria infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem; e “não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e os tribunais seguirão”... os precedentes do STF, em matéria constitucional, do STJ, em matéria infraconstitucional.
Mais: Em não havendo precedente do STF ou do STJ, “os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal seguirão os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem”.
Mas, não para por aí, porque o texto estabelece que “os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem”. Como no tempo de criança, pergunto: “cadê” a tradição romano-germânica e a legalidade que estava aqui? O CPC comeu...
Nem vou falar dos atos de ofício previstos no projeto. Nada mais serôdio do que isso. Nem vou me referir aos embargos declaratórios, que não passam de uma gambiarra hermenêutica (um puxadinho proto-epistêmico) para salvar a falta de fundamentação... Nem vou falar da parte destinada às cautelares, que sofre de um anti-hermeneutismo à toda evidência, uma vez que dependente – e eis, aqui, de novo, o busílis da questão – em demasia do protagonismo judicial.
De como o projeto recupera dois positivismos
Sigo. Poder-se-ia alegar, em favor do projeto, que este tenta resolver o problema da litigiosidade repetitiva, com o reforço do modelo de padronização decisória, que faz crer que os litígios devam ser exterminados, após o proferimento de uma decisão modelar proferida por tribunais, sem que se perceba a completa ausência de uma teoria apta para a interpretação/aplicação dessa “padronização”.
Mas, eis aí o problema: não adianta fazer um modelo de extermínio de ações repetidas sem uma teoria decisional! Não tenho nenhum receio em afirmar isso. E lanço esse desafio à comunidade jurídica.
É que, nesse ponto, o projeto comete um pecado hermenêutico. Vou tentar ir mais a fundo. Faltou, sim — e temos de ter coragem para dizer isto, com todas as letras — um hermeneutic turn no projeto. Nele, há uma falácia semântica ou uma crença na plenipotenciariedade dos conceitos, como se fosse possível a uma lei — e agora, especialmente a uma Súmula ou a uma ementa jurisprudencial — prever todas as hipóteses de aplicação de forma antecipada. Ou seja, para os autores do projeto, os conceitos podem abranger todas as hipóteses de aplicação... No fundo, o projeto faz um mix: ao mesmo tempo que aposta na construção de conceitos com pretensão de “norma geral” (ah, o velho positivismo), aposta também no protagonismo decorrente do livre convencimento.
Apostando na commonlização do Direito[2], o projeto consegue a façanha de acumular dois positivismos: o velho exegetismo, porque aposta em uma espécie de conceptualização (saudades da Bregriffjurisprudenz?[3]), e no positivismo pós-exegético de perfil normativista, porque aposta no poder discricionário dos juízes, em especial, das cúpulas (eis aí o protagonismo judicial). Veja-se: de um lado, um capítulo sobre Precedentes (artigos 520 e seguintes, com o já visto), apostando no conceptualismo; de outro, o livre convencimento na apreciação das provas... Como coadunar isso? Ou seja, sob o pretexto de se livrarem das velhas posturas positivistas (clássicas), o projeto reafirma tanto o velho como o “novo” (sic) positivismo. Isso apenas mostra que parcela da comunidade jurídica ainda não entendeu o “que é isto — o positivismo”.
Aliás, uma coisa inacreditável: a aposta no conceptualismo ou na vontade de regressar a uma jurisprudência analítica ou, quem sabe, a uma Begriffjurisprudenz, parece também estar clara no fato de o novo CPC incentivar a que se construam súmulas e que nos encaminhemos, efetivamente, a um direito jurisprudencializado. Ora, isso enfraquece a doutrina. E, sobremodo, fragiliza a autonomia do direito. Com efeito, os artigos 520 e seguintes me deram essa nítida impressão.
E, atenção: que história é essa de “modelo de como seguir precedentes”? Afinal, o que seria isso? E que coisa é essa — a modulação dos efeitos em caso de alteração dos precedentes? Nem vou falar aqui do restante do capítulo destinado aos precedentes (por exemplo, o que se quer dizer com o parágrafo 7º do artigo 521: “O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado?)”. Parece que no Brasil somos campões em fazer gambiarras e puxadinhos: pegamos a ponderação de Alexy e a transformamos em uma pedra filosofal interpretativa; transformamos os princípios em meros álibis teórico-retóricos e agora pegamos a common law e a acoplamos ao sistema romano-germânico... Como é que ninguém pensou nisso antes? Como sobrevivemos até hoje sem essas ideias revolucionárias?
Quando o réu não se ajuda...
Em outras palavras: do que menos se fala no novo CPC é... da lei e de como a cumprir de forma equânime. Bingo! Sim. O Congresso, que deveria preservar o papel da lei, aposta na... jurisprudência. E, o pior: desgastado,aceita isso dando um tiro no próprio pé! De fato, “o réu não se ajuda”. Incrível. O Congresso se queixa da invasão do Judiciário e, ao mesmo tempo, aprova a forma mais sofisticada de imperialismo jurisprudencial. Onde estão os caros assessores — e os assessores caros — dos parlamentares? Acho que eles deveriam pedir socorro aos estagiários, essa valorosa classe que ainda tomará o poder. Talvez só ela possa nos salvar.
A questão mais grave... e um exemplo de poder discricionário
Portanto, é neste ponto — a commonlização — que aparece a questão mais grave. Gravíssima. Ninguém está se dando conta que, com o projeto, qualitativamente, há uma grande chance de perda no nosso sistema decisório, porque de um lado, o projeto não combate a possibilidade de o STJ e o STF continuarem a decidir discricionariamente, e de outro ele atribui, irrefletidamente, efeito vinculante para a quase totalidade das decisões desses tribunais (inclusive dos obter dictum).
Vejam: O projeto traz um modelo de “como-seguir-precedentes”... só que esse modelo só serve para as instâncias inferiores. Não há nada que indique que quem faz o precedente tenha algum controle. Pronto. Controle sobre os juízes. Quem elabora os precedentes mais relevantes não precisa seguir os caminhos que as instâncias inferiores devem seguir...
Essas coisas todas e em especial a aposta no protagonismo do tipo “realismo jurídico”, não são implicância minha. Basta ler o projeto.[4] Parece que os processualistas não conseguem trabalhar a ideia de um processo que não dependa do solipsismo. Parece que o sistema presidencialista de governo se incrustou também no modo de aplicar o direito. No fundo, o projeto estabelece uma espécie de Direito Processual de Coalisão...!
No âmago, o discurso da grande maioria dos processualistas se cinge a defesa do aumento da produtividade e da celeridade processual, esquecendo-se que o processo civil brasileiro não serve somente para resolução de conflitos privados e patrimoniais, mas também viabiliza o aferimento de direitos fundamentais básicos.
Perceba-se que não se promove um ataque generalizado ao trabalho dos juristas que participaram das comissões, especialmente agora na Câmara, uma vez que o trabalho dogmático promoveu uma boa melhora técnica do projeto. Impossível não reconhecer isso. O que critico é a ausência de uma mudança paradigmática, que fará manter e, talvez, fortalecer a análise do sistema processual sob a ótica principal e única do juiz e da jurisdição, tal qual já ocorre na atualidade.
Quero saber se estamos dispostos a sacrificar a qualidade das decisões em prol da quantidade (não que, hoje, tenhamos isso). O que quero dizer é que um novo CPC deveria se preocupar com efetividades qualitativas, já que as efetividades quantitativas são decorrência. A recíproca, entretanto, nem de longe é verdadeira.
Não estou de má vontade
Nem de longe estou tendo má vontade com o projeto do novo CPC. Tudo o que já escrevi sobre o problema do instrumentalismo processual e seus problemas dão mostras suficientes que estou apenas mantendo a coerência.
Mas, com relação à commonlização, sim, confesso minha má vontade. Mas é uma má vontade de caráter epistêmico. Parece que os seus defensores querem repristinar o realismo jurídico, que não passa de um positivismo fático (só que a aplicação do direito, por exemplo, em Alf Ross, era muito mais complexa do que querem os neocommonlizadores). Para quem não entendeu ainda, tento ser mais simples: o projeto desloca o discurso de validade da lei em direção à decisão judicial. Sendo mais explícito ainda: Conforme o projeto, o direito é aquilo que os tribunais superiores dirão que é. De minha parte, prefiro o original, Holmes, do que uma clonagem sua.
Numa palavra: seja do ponto de vista normativo, seja do ponto de vista performativo, “livre convencimento” (ou livre apreciação da prova) não é o mesmo que “decisão fundamentada”. Isso porque da perspectiva normativa do princípio que exige a fundamentação das decisões, o juiz não tem a opção para se convencer por qualquer motivo, uma espécie de discricionariedade em sentido fraco que seja, mas deve explicitar com base em que razões, que devem ser intersubjetivamente sustentáveis, ele decidiu desta e não daquela maneira, conforme bem diz Marcelo Cattoni. É claro que nenhuma decisão se dá no vácuo, mas num contexto histórico-institucional. Todavia, na sua fundamentação, o juiz deve posicionar-se explicitamente em relação a este contexto institucional.
Realmente, ser correto e decidir de forma imparcial não é fácil mesmo. Exige exercício prático, senso de dever, capacidade de se adotar uma atitude reflexiva em relação às próprias precompreensões, garantia de comparticipação dos destinatários da decisão no processo deliberativo, aprendizado institucional e debate público. O resto é desculpa para se fugir de responsabilidades.
Nos rios, leite fresco; nas árvores, favos do mais puro mel...
O que o projeto faz, na esteira do que a maioria dos processualistas vem fazendo,é incorrer na chamada falácia naturalista: uma inversão normativa fundada na suposta força do factual. Na verdade, uma força atribuída ao factual em função do próprio ponto de partida interpretativo que se adota. O suposto do qual se parte é aquele segundo o qual a “realidade” é um obstáculo para a concretização da normatividade.
Portanto, o projeto do novo CPC recupera pressupostos da dogmática jurídica, mas sacrifica os pressupostos filosóficos, que são a condição de possibilidade de o projeto se tornar compatível com o paradigma do constitucionalismo contemporâneo e não com posturas teóricas que, a pretexto de superar velhas fórmulas como “o juiz boca da lei”, nada mais fazem do que apostar em um “juiz protagonista”. Nada mais velho do que isso. Escopos processuais, instrumentalismo, agora com novos nomes.
Metaforicamente, o projeto propõe que os utentes de terrae brasiliensis escolham entre isso que está ai (a barbárie, que já gerou, darwinianamente, as Súmulas Vinculantes e a Repercussão Geral) ou a “civilização”, em que os rios fornecerão leite e as árvores favos de mel. Assim, os utentes fazem, primeiro, um pacto de associação e, depois, um pacto de submissão... Delegando todo poder ao soberano, representado pelo protagonismo judicial. Uma espécie de leviatã neoprocessual (como em Hobbes, se me entendem).
Bem, cumpri meu dever cívico de denunciar (de novo) a falácia que é o projeto do (novo?) CPC. Com tantos programas de pós-graduação no Brasil, a academia deve cumprir seu papel de locus de reflexão e de crítica, visando a estabelecer um projeto de CPC cuja arquitetura se compatibilize com a do edifício constitucional, ao invés de se omitir ou avalizar puxadinhos, lajes e gambiarras jurídicas. O projeto reproduz um conjunto de ingenuidades, algo como aquilo que Lénin denunciava nos anos 20 do século XX: o esquerdismo era a doença infantil do comunismo, alusão àqueles que achavam que os partidos políticos eram inúteis. Pois, então: quem acha que a lei vale menos que a jurisprudência ou que a lei é (praticamente) inútil, apostando no communlismo, pode estar praticando um erro histórico, ou seja, o communlismo (ou commonlização) pode ser a doença infantil do processo.
Tenho a certeza de que os juristas brasileiros podemos mais do que isto... Ou não.
Dica final
Nesta sexta-feira (13/9), farei a abertura do XII Congresso de Direito Constitucional Aplicado, em Salvador, no Hotel Fiesta. Falarei sobre Teoria Constitucional, Teoria do Direito e Jurisdição Constitucional. Enfim, as cinco recepções equivocadas que a doutrina e os tribunais brasileiros fizeram pós-1988.
[1] Permito-me ser repetitivo e insistir na “questão da filosofia”, embora setores importantes do direito desconsiderem o fato de a filosofia ser condição de possibilidade do próprio direito. De todo modo, faço a seguinte observação: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. Mas não vou aprofundar isso aqui. Remeto o leitor para o meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise (Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2013).
[2] Essa circunstância foi denunciada no livro O Que é Isto – Os Precedentes e as Súmulas Vinculantes (Lenio Streck e Georges Abboud; 1ª. E 2ª. Ed; Livraria do Advogado, 2012).
[3] Jurisprudência dos Conceitos, forma de positivismo exegético predominante na Alemanha do século XIX.
[4] Na verdade, estou com uma dúvida. O realismo jurídico foi uma reação à jurisprudência analítica, forma de positivismo exegético inglês do século XIX, semelhante ao que ocorria na França e com as pandectas alemãs. Logo, não estaria eu sendo generoso, ao epitetar o projeto de intentar um “realismo jurídico tropical”? O projeto não buscaria, mesmo, uma imitação da jurisprudência analítica, em que os precedentes tinham que ser tão duramente seguidos como uma lei em França e uma pandecta na Alemanha? O que os leitores acham?
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2013
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