Por Marcos de Vasconcellos
Enquanto o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, decidia que os Embargos Infringentes ainda existem e, portanto, aplicam-se na Ação Penal 470, o processo do mensalão, pessoas foram para a frente do prédio do tribunal, pendurar faixas "contra a impunidade" e clamando para que o ministro “mandasse” os réus para a prisão. Questão técnica, o Supremo decidia se o recurso era cabível ou não em ações penais originárias na corte. Mas a imprensa, de modo geral, tratou como se os ministros estivessem a discutir a culpa ou as condenações.
A dificuldade de separar a questão técnica — se existem ou não os recursos chamados Embargos Infringentes em ações penais originárias do Supremo — da política não foi visível apenas entre os leigos ou na imprensa. “Ministros não julgaram o cabimento dos embargos, mas o mérito dos embargos, em uma linha nerval de sustentação”, reclama Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. O advogado elogia o posicionamento da ministra Cármen Lúcia que fez opção técnica e sustentou que não seriam cabíveis os embargos porque não haveria recurso semelhante para réus no Superior Tribunal de Justiça. Mesmo elogiando seu posicionamento técnico, ele critica a linha de raciocínio: “É como dizer que uma cidade não pode ter médicos porque uma cidade vizinha não tem profissionais da área. A Justiça deve garantir o direito de um acusado se defender”.
O voto de Celso de Mello sobre infringentes estava pronto desde a semana passada, mas colegas de corte adiaram sua vez de votar sobre os infringentes, deixando o ministro no alvo da comoção que se criou sobre o julgamento — figurando na capa de revistas semanais, como Veja e Carta Capital. Se a ideia era expô-lo à pressão para que alterasse seu voto, a manobra teve efeito contrário. O ministro abre seu voto dizendo que a espera teve “um efeito virtuoso, pois me permitiu aprofundar, ainda mais, a minha convicção em torno do litígio ora em exame e que por mim fora exposta no voto que redigira — e que já se achava pronto — para ser proferido na semana passada”.
A frustração com a aceitação dos Embargos Infringentes foi visível nesta quinta-feira (19/9), quando manifestantes levaram 37 pizzas até a porta do Supremo, “simbolizando os réus do processo”. A decepção, porém, só existe porque se criou uma expectativa sobre a questão, de que o ministro mudasse posicionamento que já sinalizava há pelo menos dois anos, por conta do clamor popular. “Querem pegar a imagem da Justiça, tirar a venda dos olhos dela e ainda colocar um aparelho auditivo para que ela ouça a voz das ruas”, reclama Kakay.
O peso diferente que se dá aos réus no caso do processo do mensalão pode ter interesses de setores políticos, mas o clamor por condenações imediatas faz parte do cotidiano da imprensa “comprometida apenas em vender jornal”, como lembra Marcelo Knopfelmacher. “Setores da mídia sabem muito bem que punição e prisão dão manchete. Absolvição não dá nem notícia”, diz o advogado e presidente do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA).
A culpa pela decepção é da própria mídia, sentencia a criminalista Heloísa Estellita. A advogada afirma que foi a imprensa que estabeleceu que a admissão dos embargos é sinônimo de impunidade dos acusados. “Agora todos acreditam que não vai virar nada, o que não é verdade!”
“A questão teve repercussão muito maior do que qualquer outro ponto técnico como esse em julgamentos do Supremo”, aponta o advogado Pierpaolo Bottini. Ele faz uma ressalva: a expectativa que se criou, porém, não é completamente artificial, pois cinco ministros do Supremo votaram pela não aceitação dos infringentes, o que encerraria o processo. O voto de Celso de Mello, no entanto, já era esperado por todos que acompanharam o processo.
Quem hoje condena Celso de Mello por ter definido que cabem Embargos Infringentes no processo deixa de lado que ele o fez com outros cinco ministros do Supremo. Também se esquece dos votos do ministro no mérito das condenações. Ele foi duro com os condenados, seguindo uma linha muito mais próxima ao relator do caso, ministro Joaquim Barbosa, do que do revisor, ministro Ricardo Lewandowski. Nos doze casos em que há a possibilidade de Embargos Infringentes, Celso de Mello votou pela condenação, compondo o voto vencedor, no julgamento de mérito.
Marcelo Knopfelmacher, a exemplo de grandes constitucionalistas, elogia a postura do ministro e diz que a aceitação dos embargos dá a certeza de que as penas decididas pelo Supremo sejam cumpridas em sua totalidade, não abrindo espaço para recursos dos condenados em organismos internacionais. “Se o Supremo não admitisse os infringentes e não desse aos réus o direito de terem rejulgados os pontos de suas condenações em que houvesse dúvida, a condenação poderia ser, claramente, contestada em tribunais internacionais”, afirma. Agora, diz ele, a decisão que o STF tomar em relação aos 12 réus que podem entrar com infringentes será absolutamente definitiva. O que preserva o julgamento, segundo o advogado, é a certeza de que haverá duplo grau de jurisdição, garantido constitucionalmente.
As reclamações da imprensa pela aceitação dos embargos, porém, deverão terminar por aí mesmo, sem qualquer influência nas decisões futuras da Justiça, segundo o criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes. “Esse negócio de ‘a voz do povo é a voz de Deus’ é picaretagem grossa, porque Deus não pode ficar confuso entre atender aos reclamos de Obama, por exemplo, e aos queixumes dos sírios a disputarem a primazia dos foguetes carregados de gás mortífero, dizimando centenas de crianças.”
Na visão do advogado, o povo não tem uma vontade autêntica. “Ela é gerada em todos os cantos, na mídia, na imprensa, nas igrejas, nas sinagogas, nas mesquitas, nos templos de umbanda...”. Por isso, o voto de Celso de Mello deve ser elogiado: "tudo faz parte de um jogo soturno no qual o ministro não se entranha. Decidiu tecnicamente, adequadamente e não tem qualquer intuito menos jurídico na decisão".
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2013
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