sexta-feira, 13 de maio de 2016

Livre convencimento no novo CPP: mas, já não apanha(ra)m o suficiente?




Por Lenio Luiz Streck


E vem aí o NCPP: Novo Código de Processo Penal.

Todos sabem que fui um crítico contundente ao projeto do novo Código de Processo Civil. Conseguimos algumas alterações e avanços, como a expunção do livre convencimento (artigo 371), a obrigação de a jurisprudência ser íntegra e coerente (artigo 926), além do dever de fundamentação previsto no artigo 489, sem contar a proibição de decisões surpresa (artigo 10). Minha preocupação: democracia e equanimidade nas decisões.

Pois agora estamos em face de uma nova luta. É o novo Código de Processo Penal que está em gestação. Estava parado e provavelmente as contingências o tenham tirado da gaveta. Não importam as razões. Estamos com o problema à vista.

Já enviei algumas sugestões ao projeto. Saibam os leitores que no campo do processo penal, portanto, no sagrado terreno das liberdades, o projeto, no seu artigo 168, foi aprovado (até agora) por uma comissão de juristas, mantendo, entre outros autoritarismos, o poder de livre apreciação da prova ou livre convencimento. Pois é. Inacreditável. Justificativa “genial”: a livre apreciação se dá porque está superada a prova tarifada. Ah, bom. E o livre convencimento? “Ele é motivado.” Ah, bom, digo novamente. Agora vai. Se ele é motivado, então tá. Falei disso na coluna passada (ler aqui). Parece até que estamos diante de meros truísmos, como se fossem decorrências necessárias. Sinto dizer, e aqui homenageio meus colegas analíticos, mas desta argumentação non sequitur.

Essa linha de defesa do livre convencimento ou livre apreciação vem na mesmíssima seara (de alguns) dos processualistas civis que continuam a dizer que, mesmo que o texto do NCPC tenha expungido o “livre convencimento”, isso nada quer dizer. Alega-se que o artigo 489, parágrafo 1º, CPC/2015, trata apenas do elemento chamado “motivação” e não da “liberdade na valoração da prova”. O que isto quer dizer? Simples: eles estão apenas repetindo uma velha e surrada cisão entre fato e Direito e entre interpretação e aplicação. Rios de tinta já foram gastos para demonstrar que isso é absolutamente equivocado. Gente como Müller, Castanheira Neves, Ovidio Baptista já colocaram uma pá-de-cal nessa falsa dicotomia. Mas, não adianta. Por aqui, o que vale é o velho subjetivismo. O velho solipsismo.[1] Ora, o que é esse subjetivismo – retrógrado e antidemocrático – senão aquilo que exatamente sustenta a cisão entre interpretação e aplicação? A mágica estaria no seguinte: uma coisa é interpretar a lei; outra seria valorar a prova. Mais ou menos o seguinte: para interpretar o que leio em um livro uso determinados parâmetros; para saber se devo desviar de uma pedra ou não, utilizo outros componentes “cognitivos”. Se isso fosse possível, quem defende isso seria comido pela primeira onça que encontrasse, porque primeiro “interpretaria” e depois “aplicaria”. Nesse ínterim, seria devorado.

Como diz Eros Grau, fulcrado em Müller: “o intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do direito”. Ou seja, a filosofia enterra, com bem diz Guilherme Vale (ver aqui) essa espécie de cisão canônica entre a faticidade (prova) e o Direito (norma): “A compreensão não ocorre assim, mesmo que um juiz eventualmente ponha em sua decisão que ‘agora estou apenas valorando a prova; a partir daí, passarei a interpretar o Direito’. Aliás, sejamos claros: valorar a prova nada mais pode significar do que interpretar”.

Lamentavelmente, parece que parcela dos processualistas pouco apreendeu em termos de paradigmas filosóficos e naquilo que se entende por cognitivismo e não cognitivismo (podemos falar até de meta-ética, aqui) ou o nome que se queira dar ao modo como compreendemos os fenômenos.

Retornando ao projeto do CPP, entre outras sugestões, obviamente está a de retirar a palavra “livre” do artigo 168 do projeto. O CPC já não o tem. De todo modo, parece inconcebível que, no processo civil, haja um dever de accountabillity maior que no processo penal, que trata das liberdades. É um contrassenso que, para decidir o sentido de uma lide civil, o juiz não possua livre convencimento, e, para decidir um Habeas Corpus, sim. Por isso, para que os códigos tenham coerência, também aqui necessitamos intervir filosoficamente. Ademais, esta exigência provém da própria democracia. O Estado-juiz deve tratar a todos de modo equânime, e isto, em todos os ramos do Direito.

Para tanto as regras do jogo precisam estar expostas antes do jogo, devendo haver limitações/impedimentos a mudanças repentinas, ou movimentos/ações que obscurecem os sentidos para um resultado final que poderíamos dizer que seja constitucionalmente adequado. Por isso, a adjetivação “livre”, seja do convencimento ou da apreciação das provas, deve ser extraída do ordenamento. O Direito em ambientes democráticos demanda uma justificação pública que não se coaduna com estes exames particularistas/solipsistas. Sendo bem explícito, resumo assim a minha tese:

Que processualistas-juízes sustentem o livre convencimento é até possível de entender; afinal, neste Pindorama estamental e autoritário, pode ser “normal” cada um defender seu feudo e interpretar as leis como bem querem; mas o que é incompreensível é que não-juízes o façam. E continuem sofrendo no lombo todos os dias o chicote do livre convencimento e da livre apreciação. Trata-se de um autêntico “látego epistêmico” que lanha as costas do utente e dos advogados. Por isso se diz que “do couro saem as correias”.

O processo penal está atrasado no tempo. É um osso de megatério filosófico, porque admite até hoje a verdade real, outra coisa ridícula que faz com que filósofos façam troça dos juristas. Filósofos riem dos juristas quando estes falam da verdade real. Nós, os juristas, não nos damos o devido respeito. Convivemos com livros simplificadores, mastigadinhos, que conformam um novo paradigma: a nesciontologia. Há livros de processo penal que dizem que o juiz, a partir de sua consciência[2], busca a verdade real (sic). Genial, não? Prêmio Nobel. Bingo. Como explicar essa mixagem que vai do nada ao lugar nenhum? Vivemos uma tempestade perfeita.

Por isso, a hora é de mudar. Não esqueçamos a surra que a dogmática jurídico-processual levou no julgamento do mensalão. E as agruras dos advogados nas lides cotidianas... Ora, há coisas acacianas que deveriam fazer com que os juristas se dessem conta do perigo que é dar um tiro no pé ao desdenhar da importância da filosofia. Quando falamos em livre convencimento ou livre apreciação da prova inegavelmente estamos tratando do paradigma filosófico instituidor da modernidade. O sujeito da modernidade é uma descoberta de Descartes. Aquilo que se mostrava nos sofistas ou no nominalismo ainda não era “o sujeito”. Ainda na modernidade, Kant mostra a impossibilidade da apreensão da coisa em si, isto é, o que precisamos para compreender algo não vem da coisa (em si), mas da autonomia do sujeito, liberto do “mito do dado”, por assim dizer. O contraponto foi o voluntarismo que tomou conta inclusive das correntes “críticas” do Direito. O que se diz sobre “a verdade”[3] é fruto de tudo isso: da metafísica clássica, da filosofia moderna e das teses e teorias que buscaram ultrapassar aquilo que superou o objetivismo (realismo) pré-moderno. É nesse caldo de cultura que nos movemos, queiramos ou não.

Afinal, quando tratamos de “provas no processo penal ou civil”, estamos tratando das condições de possibilidade de dar sentido a um determinado fenômeno. Pois não é que o Tribunal do Júri admite a íntima convicção? Fantástico. O indivíduo é condenado por uma maioria que entende, no seu íntimo, que ele é culpado. Íntima convicção, que no fundo é igual a livre convencimento. E mais não precisa ser dito. Já sugeri, há anos, que se alterasse isso.

Numa palavra. Vi que tem gente defendendo a ideia de que o livre convencimento seria necessário para o melhor direito, supondo uma “discricionariedade racionalizada” a meio caminho da íntima convicção e as provas tarifadas. Contra isso, afirmo: esse tipo de defesa só teria sentido se o Direito estivesse separado da filosofia. Só quem pensa o Direito fora dos paradigmas é que pode dizer que o livre convencimento é necessário, ignorando dois linguistic turns e toda a intersubjetividade que mudou a história do pensamento. Claro – e aqui vai uma ironia – o livre convencimento é necessário se o direito é visto como uma racionalidade instrumental. Ele é tão necessário (outra ironia) quanto a ponderação “à brasileira”, essa katchanga real que talvez tenha sido a maior fraude jurídica já manejada pelos juristas (e que está no parágrafo 2º do artigo 489 do CPC: já me ofereci para a Ordem dos Advogados do Brasil para elaborar a inicial de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para expungir essa verruga epistêmica do Código). A presidente da República (clique aqui para ler coluna “Veta Dilma”) não quis vetar: deve ter sido “bem instruída” por sua equipe de assessoramento jurídico. Bom, isso apenas demonstra o cuidado com que o governo tratou o Direito nestes 14 anos. Repito: o Brasil é incrível. Por aqui ainda tem gente que acha que o Direito é apenas uma superestrutura. Ou uma mera racionalidade instrumental. O que dá no mesmo.

Mas, por outro lado, se o Direito tem um papel de garantir a democracia – como deve ser sob o Estado Democrático – discricionariedade é igual a arbítrio. Chega a ser cansativo ter de explicar que um juiz sem livre convencimento (motivado que seja), não é um juiz do século XIX, o velho boca-da-lei. Definitivamente, expungir o livre convencimento dos códigos não equivale à proibição de interpretar. Não se reproduz sentido nem se o atribui livremente. Lembremos de Gadamer: antes de dizer algo sobre o texto, deve-se deixar que o texto diga algo. Também Müller, Habermas e Dworkin são testemunhas de que nem de longe o mundo é tão simples quanto a divisão entre exegese e não-exegese, ou realismo e não-realismo. Falta só aparecer alguém para dizer que onde está escrito “coerência e integridade” no artigo 926 do CPC, deve-se ler apenas “estabilidade”. Não me surpreenderia.

Nesse sentido, tenho referido de há muito, ironicamente, que “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa no Direito”. Veja-se que os franceses, para garantir o produto do legislador, tiveram que institucionalizar uma rígida exegese. Mas isso foi no século XIX. Não creio que em plena democracia e na vigência do paradigma do Estado Democrático de Direito, seja necessário, para garantir uma legalidade mínima, seja necessário voltar a ter esse tipo de “amarração”. Vivemos hoje no paradigma da intersubjetividade. Logo, não há lugar nem para o “dono da lei”, nem para o “escravo da lei”. Ou há? Alunos de todo Brasil (nada – mais – tendes a perder): perguntem isso aos seus professores, principalmente para esse que fica dizendo que princípios são valores. Cobrem dele. Ponham-no contra a parede. E perguntem também por que o Brasil já é refém de um positivismo jurisprudencialista, fruto exatamente dessa algaravia que se transformou a teoria e a aplicação do direito. Se ele disser: “Isso só pode ser coisa de Lenio Streck”, não se zanguem com ele. Apenas continuem insistindo. Digam que ele pode responder a vocês na semana seguinte, dando a ele tempo para estudar isso.

Penso que mais não precisa ser dito, nos limites desta coluna. Voltarei ao assunto, por óbvio. Também aproveito para falar de outra sugestão de extrema relevância, que é a introdução, nos moldes em que ficou a redação do artigo 926 do CPC, da obrigatoriedade de a jurisprudência ser estável, integra e coerente no CPP. Estabilidade é autoexplicativa. Coerência evita decisões fora da curva, ressalvadas, obviamente, as situações excepcionais em que a própria faticidade aponte para a inauguração de novas cadeias jurisprudenciais, sendo sempre mantida a integridade. Por isso afirmo que não basta ser coerente, porque é possível ser coerente no erro. Para isso a necessidade de se exigir a integridade. Essa vem da lei e da Constituição. Fecha-se o círculo. É o mínimo para que tenhamos um CPP democrático. Outras sugestões tratarei em outra coluna.

Que aproveitemos as agruras, do solipsismos e as decisões tipo “ponto fora da curva” para construirmos barreiras contra o subjetivismo. Democracia não rima com discricionarismo e com subjetivismo. E com livre convencimento, tampouco com a livre apreciação da prova...

E não adianta se irritarem. Vou continuar batendo nisso. E para quem acha que isso que eu acabei de dizer é abstração e coisa sem importância e desnecessária, invoco a máxima do filósofo Avicena:


“Um sábio sabe a diferença entre o que é necessário e o que não é necessário; um néscio, não; então, bata-se nele até que ele diga em alto e bom som que ‘isso não é necessário’. Pronto: agora ele sabe a diferença”!

Tenho a certeza que os leitores são sábios. E sabem a diferença.

Post Scriptum: Uats ap: juiz atirou em um “lagarto” com um canhão e...errou!

Por falar em livre convencimento – eis um bom exemplo: o juiz de Lagarto (SE) está livremente convencido... Pois é. Fico pensando se podemos caçar um lagarto, ou uma lagartixa, com uma arma de destruição em massa. Mesmo dizendo “livremente que sim” (sic), diríamos, acredito, que não deveríamos, porque o meio é desproporcional – os alexyanos entendem bem disso, nos vários sentidos. O problema maior são efeitos demasiadamente gravosos para quem nada tem com a situação. Caros leitores, crédulos e incrédulos: a suspensão do WhatsApp é representativa deste estado da arte. O “Eu” juiz posso determinar que uma ferramenta já incorporada no dia a dia de parcela significativa dos brasileiros, incluindo instituições públicas, seja suspensa devido ao não fornecimento de informações que ainda não se sabe tecnicamente se é exequível. Não importa se milhares e milhares de pessoas serão (indevidamente) prejudicadas. Não importa se minha decisão não tem respaldo jurídico. Pergunto: Onde está a responsabilidade política? A accountability? Ah! Antes que eu me esqueça. Todo este desgaste pode ter sido em vão – e mesmo que tenha êxito nesta situação continua sendo injustificável, mesmo com a previsão no Marco Civil –, assim o lagarto permanece vivo. Sugiro, em tempos como os nossos, que reflitamos seriamente sobre os limites dessa nossa “liberdade” (de consciência), caso contrário a juristocracia se tornará a esperança política de muitos, se já não é.



[1] Aqui cai como uma luva a lição de Ramón Rodrigues, o germanófilo filósofo espanhol por quem tenho imenso carinho e respeito, em palestra proferida anos atrás: a crítica do sujeito metafísico da modernidade exercida durante todo o século XX tem um sentido inequívoco: desalojá-lo de seu lugar transcendental e “desposeerlo” (entfernen Sie sie aus dem Besitz) de seu papel de instância constituinte do mundo em que vive e do fundamento de sua própria legalidade. Bingo, professor Ramon.


[2] Estamos atrasados em relação às ordenações filipinas, precisamente a parte constante do Livro III, Título LXVI ao tratar das sentenças definitivas. Já há, aqui, uma passagem interessante, que é a que diz [o juiz] tem que proferir “... a sentença ‘definitiva’, segundo o que achar ‘alegado’ e comprovado de ‘uma’ parte e da outra, ainda que lhe a consciência ‘dite’ outra ‘coisa’, e ‘ele’ saiba a verdade ser em contrário do que no feito ‘for’ provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, ‘é’ outorgado ‘por’ Direito, que julgue segundo sua consciência”. Naqueles dias...


[3] Talvez o texto mais profundo dos últimos tempos esteja em Puntel, Lorenz. . Wahrheitstheorien in der neueren Philosophie. Eine kritisch-systematische Darstellung. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1978; Auflage 1993; Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. W. de Gruyter, Berlin/New York 1990. Por aqui, os livros de Ernildo Stein e tantos outros filósofos que desmistificam as concepções voluntaristas acerca da verdade.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2016, 8h00

As notícias não são boas. Judiciário não cumpre o CPC: Is it the law?






Por Lenio Luiz Streck


Uma das séries mais famosas do mundo é House of Cards. Já alerto para spoilers. Por sinal, há discussões éticas cada vez profundas e acaloradas sobre o que se pode ou não ser contado de séries e filmes para quem ainda não os assistiu; teoria da decisão jurídica é que é bobagem! Imagina, querer dar sentido a uma coisa dessas — a decisão... Mas vamos à série e à teoria. A cena é: o presidente dos EUA leva um tiro. Precisa transplante de fígado. No hospital, o médico diz que ele é o terceiro da fila. Mesmo que seja o presidente dos EUA, a fila não pode ser ignorada. Nada de furar a fila. O médico diz: It’s the law. É a lei. Fiquei pensando: correto o médico. Foi uma resposta não consequencialista. Decisão por princípio (para quem ficou preocupado com a saúde do presidente dos "Isteites", novo spoiler: ele se salva). Não é só pela “letra da lei” que se recusa. É que há um princípio que enuncia essa regra da “fila”. E outro pelo qual uma vida é uma vida. E mais um que diz que todos são iguais perante “a fila”, se me permitem estender um pouco e deixar isso mais claro.

Quero apenas usar isso para falar sobre o valor da lei. A modernidade somente surgiu com a interdição proporcionada pela lei. Entre civilização e barbárie, optamos pela primeira. O custo disso é obedecermos à lei. A lei passa a ser um princípio. O princípio de que se obedeça a lei. Uma sociedade sem princípios é anarché (anarquia).

A Constituição passou a ser a lei das leis. Ela constitui tudo o que existe em termos de direito. Há uma metáfora — que circula há anos — interessante para explicar o valor da Constituição. Ulisses, voltando de Ítaca, pede para seus marinheiros que o amarrem no mastro do navio. E lhes ordena que, sob hipótese alguma obedeçam qualquer gesto seu no sentido de que o soltem. Só devem obedecer à primeira ordem: “amarrem-me ao mastro”. A sobrevivência de Ulisses reside no cumprimento da primeira ordem. Porque Ulisses sabe que, caso contrário, morrerá. E por quê? Porque ele não resistirá ao canto das sereias. As maiorias são como as sereias. Tem um canto sedutor. Quem não se proteger, pode sucumbir. Ulisses se salvou porque ficou amarrado às correntes.

Essas correntes são a segurança de Ulisses. A Constituição é como as correntes. A Constituição sustenta as leis. Isso quer dizer que uma lei para não ser aplicada deve ser declarada inconstitucional. Ou se faz uma interpretação conforme a Constituição. Ou uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Ou uma nulidade parcial com redução de texto. Ou um modo de resolver o problema com a aplicação dos critérios das antinomias. Ou, ainda, na contraposição regra-princípio, nos moldes explicitados em Verdade e Consenso. Fora disso, estamos saindo do terreno da democracia e entrando no decisionismo e seus congêneres.

Eis, portanto, um modo de verificar em que momento não há saída para o judiciário: aplicar a lei ou atuar fora da lei e alheio ao direito. Por exemplo, proferir uma decisão fundada na...excepcionalidade.

Poderia falar da ADI que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) ingressou contra o Tribunal Superior do Trabalho (leraqui) contra a Resolução 39 que estabelece o que deve ser cumprido do novo Código de Processo Civil. Interessante é que a Anamatra, em vez de fazer uma campanha para que os juízes apliquem o CPC, insurge-se contra o TST naquilo que ele — embora com algumas omissões — estabelece, de forma alvissareira, como obrigação a ser cumprida pelos magistrados do trabalho. Tive a ocasião em dizer para os magistrados do trabalho de Santa Catarina que a Resolução do TST era muito interessante, porque simbolicamente representava um avanço. Por outro lado, é lamentável ser necessário fazer uma Resolução para que alguém cumpra aquilo que já está estabelecido em uma lei federal, pois não?

Poderia também falar das insurgências contra a aplicação do artigo 10 na sua integralidade e substancialidade. Ou do artigo 489, parágrafo primeiro, que alguns tribunais insistem em não cumprir. Ou não dar bola. Na coluna passada falei disso. O plano é muito simples: devagarinho, o judiciário “naturaliza” o não cumprimento. Depois os advogados se acostumam. Já nem sentem o látego. A naturalização é um fenômeno que faz com que, mais tarde, alguém diga: mas isso sempre foi assim.

Vou trazer alguns dados e elementos que mereceriam uma CPI Epistêmica. Fosse em um país civilizado, isso geraria um escândalo. Realizei a pesquisa em alguns tribunais. Pesquisei o termo "livre convencimento", deixando de fora o 'motivado' que aparecem em ementas. Claque, ao lado desses descumprimentos, há também a não aplicação dos incisos do parágrafo primeiro do artigo 489. As notícias não são animadoras. Da data de 18 de março até 4 de maio — TJ-SP - 114 menções em ementas de processo civil ou trabalhista de sua competência; TJ-RJ – 264 (de todo o período de 2016 — não há como fatiar por meses); TJ-MG - 20 menções ao livre convencimento; TRF-4 - 44 menções e, por fim, e por fim, o TJ-RS com 483 registros em ementas na seção cível do TJ-RS (incluindo turmas recursais). Ressalto que incluí as turmas recursais. Nos demais, os números podem ser menores por não incluir as turmas recursais. Atenção: também estão presentes em vários desses julgados violações a outros dispositivos do novo CPC.

Cito algumas passagens que mostram o que estou dizendo. Trago à baila alguns trechos das decisões, sem fulanizar os relatores ou os demais votantes (decisões entre a entrada em vigor do CPC e a data de 4 de maio):

Preliminar de nulidade da sentença rejeitada. (...) Matéria de direito que dispensa a produção de prova pericial. Ademais, o juiz é o destinatário da prova, incumbindo a ele decidir acerca da necessidade e utilidade da prova para a formação do seu livre convencimento motivado (...).

Ao contrário do defendido pelo autor no recurso, a prova dos autos foi objeto de minudente análise por parte do Juízo de Origem, o qual, em nome do princípio do livre convencimento motivado, externou o entendimento de que não houve prova do direito alegado pelo autor, ônus que lhe incumbia (artigo 373, I, do novo CPC).

Contradição e omissão na valoração da prova. A prova testemunhal foi valorada segundo a apreciação da Relatora, que expôs os motivos do seu convencimento, cumprindo a regra do artigo 489, § 1º, da novel legislação processual. Ademais, persiste, no novo diploma, o princípio da livre valoração da prova pelo julgador, desde que motivadamente, como se confere do artigo 371 do novo Código de Processo Civil: O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

Ainda: Embargos de declaração — Inexistência de omissão e contradição — Livre convencimento motivado do magistrado — Não há necessidade de se abordarem todos os argumentos apresentados pelas partes, desde que o julgado esteja devidamente fundamentado. Quantas violações há aqui?

E vejamos este julgamento do dia 4 de maio de 2016? “Faculdade atribuída ao magistrado, prendendo-se ao seu prudente arbítrio e livre convencimento, dependendo a concessão de prova inequívoca e convencimento da verossimilhança da alegação e dos requisitos legais”.

Julgamento de 27 de abril de 2016: “O julgador não é obrigado a exaurir todas as questões propostas, mas a dizer o direito (pretensão e resistência), conforme livre convencimento motivado, o que enseja concluir na aplicação de uma ou mais proposições, sem obrigação de exaurir todas, em razão do limite técnico do convencimento formado”.


E, quem sabe, este? É firme o entendimento desta Corte no sentido de que, sendo o juiz o destinatário da prova, cabe a ele, com base em seu livre convencimento, avaliar a necessidade desta, podendo determinar a sua produção até mesmo de ofício.... (julgado em 4 de maio de 2016).

Como canja, eis o que vem da primeira instância de Belo Horizonte, só que do processo penal. Um juiz tem “o costume” de marcar Audiência de Instrução e Julgamento antes de que a defesa apresente a resposta à acusação. Diz-se, por lá, que isso é praxe na “Vara do juiz”. Vamos ganhar o Nobel. Vamos para Estocolmo. Mas, então, para que (for what) serve a resposta à acusação e, no fim das contas, o advogado? O juiz irá acolher eventual tese de absolvição sumária ou de rejeição da denúncia e cancelar audiência já marcada? Mais um item para a CPI epistêmica do processo em Pindorama. Faço desta coluna a tribuna dos humilhados.


Precisa ser dito mais alguma coisa? Talvez apenas repisar uma citação da coluna passada. A das Ordenações Filipinas, que diz que [o juiz] tem que proferir

“... a sentença ‘definitiva’, segundo o que achar ‘alegado’ e comprovado de ‘uma’ parte e da outra, ainda que lhe a consciência ‘dite’ outra ‘coisa’, e ‘ele’ saiba a verdade ser em contrário do que no feito ‘for’ provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, ‘é’ outorgado ‘por’ Direito, que julgue segundo sua consciência”.

And I rest my case. It’s the law, diria o médico americano.

Aqui, perguntamos: Is it the law?

Resposta: For what?

Post scriptum: a coluna foi fechada antes da decisão do STF sobre a ação do governo para suspender o impeachment.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2016, 8h00

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Reflexos do novo Código de Processo Civil no Direito do Consumidor



Por Bruno Miragem


No próximo dia 18 de março entra em vigor o novo Código de Processo Civil. São muitos os estudos sobre sua repercussão nos vários domínios que perpassa o processo. Também no Direito do Consumidor — como não pode ser diferente — é sensível a importância das questões trazidas pela nova legislação processual. Por isso nesta e na próxima coluna, pensou-se em fazer um inventário das principais repercussões do novo CPC no direito do consumidor.

Note-se que o Direito do Consumidor, desde a origem, foi construído a partir de uma proximidade muito grande entre o direito material e as normas processuais. A efetividade do direito pari passu com a efetividade do processo, foi concebida originalmente, e depois desenvolvida pela jurisprudência, de modo a assegurar o cumprimento espontâneo ou coativo das regras estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor. Aliás, muitas das alterações depois incorporadas pelas reformas do Direito Processual Civil foram introduzidas no sistema jurídico brasileiro pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, por exemplo, a tutela específica da obrigação e a flexibilização do ônus da prova, sem prejuízo da verdadeira construção de um sistema de tutela coletiva de direitos, a partir da associação das regras do CDC e da Lei da Ação Civil Pública.

Agora, é momento de examinar as repercussões do novo Código de Processo Civil sobre o Direito do Consumidor. É sabido que o processo civil observa, nas últimas décadas, sensíveis transformações. Tradicionalmente, a separação dos planos do direito material e do processo teve por propósito assegurar às partes o acesso aos meios de defesa de seus interesses independentemente da razão que lhes assistia no plano do direito material. O valor em destaque era o da absoluta imparcialidade do juiz, restringindo, por isso, o poder de iniciativa. Cabia às partes instruir o processo, sob supervisão passiva do julgador. A decisão resultava daí, fortemente associada à melhor habilidade na demonstração dos fatos para conhecimento judicial. Gradualmente, contudo, o sistema processual clássico foi demonstrando suas dificuldades em relação às transformações de ordem social, política e econômica, e as novas exigências ao seu sistema de justiça, reclamando celeridade e efetividade das decisões judiciais.

Estas características, que transparecem no Código de Processo Civil de 2015, vão repercutir na decisão das demandas que envolvam relações de consumo.[1] As regras sobre a tutela coletiva de direitos não foram objeto de disciplina pelo CPC/2015, razão pela qual se preserva o sistema que associa as normas do CDC e da Lei da Ação Civil Pública. No mais, a renovação teórica e dogmática provocada pelo novo CPC, em parte, converge com os valores assentados pelo CDC. Porém, em relação a alguns institutos processuais específicos há de se ter atenção para que sua eficácia não contraste com a diretriz de efetividade dos direitos do consumidor, em conformidade com o direito fundamental que o assegura (artigo 5º, XXXII, da Constituição da República).

Algumas regras essenciais do novo CPC evidenciam sua convergência com o disposto no Código de Defesa do Consumidor. Assim, por exemplo, o artigo 7º do CPC, ao assegurar às partes a paridade de tratamento (ou paridade de armas), visa assegurar a igualdade material no processo, zelando pelo contraditório, e assegurando ao juiz poderes para flexibilizar o procedimento no tocante, entre outros aspectos, à dilação de prazos, distribuição do ônus da prova e determiná-las de ofício (artigo 370).[2] Esta diretriz do CPC/2015 associa-se aos direitos assegurados ao consumidor no processo, de modo a promover o acesso efetivo à justiça como acesso à tutela satisfativa do seu direito.

Examinemos alguns aspectos que mais diretamente relacionam-se com o Direito do Consumidor.

1) Jurisdição internacional e foro do domicílio do consumidor
A expansão do consumo de produtos e serviços para além das fronteiras nacionais, cujo estímulo pelo desenvolvimento e acesso pela internet é crescente, coloca em destaque a competência para julgamento das demandas de consumo como um dos desafios principais à efetividade dos direitos do consumidor. Neste sentido, não faltam exemplos nos contratos internacionais em geral, em que a imposição de cláusula de eleição de foro seja utilizada para beneficiar um dos contratantes com a submissão de eventual litígio ao país cujas regras lhes sejam mais favoráveis.

A efetividade dos direitos dos consumidores em relações de consumo internacionais, então, será desafiada pelas regras de determinação de competência para processar e julgar eventuais litígios daí decorrentes. Neste aspecto, o Código de Processo Civil de 2015 inovou com regra relativa à jurisdição competente para processar e julgar questões decorrentes de relações de consumo.

Estabelece o artigo 22, inciso II, do novo CPC: “Art. 22. Compete, ainda, à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações: (...) II - decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil”. Trata-se de disposição que se encontra em acordo com o direito fundamental de defesa do consumidor, e seu acesso à justiça, independentemente do local onde tenha sido celebrado o contrato de consumo, assim como o local de cumprimento de suas prestações, que em ambos os casos poderá se dar fora do Brasil. O que atrai a jurisdição nacional, neste caso, é o domicílio ou residência do consumidor.

Trata-se de tendência internacional, já prevista na União Europeia pelo artigo 18 do Regulamento 1.215/2012 (Regulamento Bruxelas Reformulado). Porém, como assinala a doutrina, avança em relação à disposição europeia, uma vez que “não a restringe aos contratos internacionais de consumo dirigidos ao mercado brasileiro: basta a relação consumerista, não importando se o consumidor domiciliado ou residente no Brasil tenha aceito proposta dirigida ao nosso mercado ou procurou voluntariamente celebrar o contrato no exterior (consumidor turista, por exemplo).”[3] No caso de concorrência de ações no Brasil e em país estrangeiro, incide a regra do artigo 24 do novo CPC. Se formar coisa julgada a ação no Brasil, poder-se-á proceder ao juízo de delibação, deixando-se de homologar a decisão estrangeira.

Contudo, em relação à possibilidade de derrogação da jurisdição nacional, de que trata o artigo 25 do novo CPC, parece que a valorização do princípio da autonomia da vontade conflita com a indisponibilidade do direito básico do consumidor de acesso à justiça. Sabe-se que a cláusula de eleição de foro, nos contratos de consumo é considerada abusiva quando restrinja o acesso do consumidor à justiça, o que ocorre no caso em que se retire a possibilidade de demandar em seu lugar de domicílio ou residência. A possibilidade de eleição de foro diverso do estabelecido pela lei só será admitido pelo novo CPC através de disposição em instrumento escrito (artigo 63, §1º). Sendo reputada abusiva, pode ser reconhecida como tal, de ofício, pelo juiz, antes da citação, “que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu.” A interpretação sistemática da regra em questão, no tocante ao consumidor, deve envolver tanto as situações em que ele for réu, quanto autor da ação. Por outro lado, tratando-se de contrato internacional, eventual reconhecimento da abusividade da cláusula de eleição de foro será causa para impedir a homologação da sentença estrangeira no Brasil.

2) Decisões de ofício e contraditório
Um segundo aspecto relevante diz respeito às condições de validade para as decisões de ofício pelo juiz. Como é sabido, o Direito do Consumidor revela-se a partir de normas de ordem pública, muitas das quais devem ser aplicadas de ofício. Caso mais conhecido é o da decretação de nulidade das cláusulas abusivas (artigo 51 do CDC). Muito se discutiu sobre a possibilidade de decretação de ofício, sem oportunidade de oitiva do réu nas ações envolvendo revisão de cláusulas abusivas, dar causa à violação do contraditório, especialmente quando se trate de decisão adotada pelos tribunais, em grau de recurso. Destes debates, inclusive, originou-se a Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, que sob o fundamento de preservar o contraditório, definiu entendimento de duvidosa legalidade, e mesmo constitucionalidade (em face do que foi decidido pela ADI 2.591, pelo STF, julgando constitucional a aplicação do CDC aos serviços bancários, financeiros e securitários), ao indicar que nos contratos bancários (e somente nestes!) não poderia a abusividade das cláusulas ser conhecida de ofício pelo julgador.

O novo CPC traz, neste aspecto, uma regra geral importante em seu artigo 10, afirmando que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.” Trata-se de regra razoável, que compatibiliza o exercício do poder-dever do julgador com os direitos das partes no processo. Não por acaso, fundamenta a proposta de revisão da mencionada Súmula 381 do STJ, provocada pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino ao afetar aos recursos repetitivos o Recurso Especial 1465832/RS. Nas demandas de consumo, é indiscutível que trará mais conforto ao julgador que, ao realizar as determinações do Código de Defesa do Consumidor, conta com fundamento legal expresso com a finalidade de preservação do direito ao contraditório das partes.

3) Ônus da prova
Desde sua origem, o Direito do Consumidor foi objeto de atenção e críticas apressadas quando assegurou ao consumidor o direito de facilitação do exercício de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, nos casos de hipossuficiência ou verossimilhança (artigo 6º, VIII). Embora bem delimitada e submetida ao escrutínio judicial, não faltou quem criticasse a disposição como espécie de excesso de proteção ao consumidor, violando princípios básicos do processo civil sobre o tema. O tempo tratou de fazer desta regra um dos instrumentos mais importantes para a efetividade do direito dos consumidores, e mais do que isso, para a própria solução adequada do processo.

O novo Código de Processo Civil amplia o alcance dos poderes do juiz em matéria de iniciativa probatória. Estabelece, em seu artigo 373, a regra geral de que “o ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”. Contudo, prevê que “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.” (artigo 373, §1º). Consagra-se a flexibilização da regra de imputação do ônus da prova para o processo civil em geral, mediante a possibilidade de sua distribuição pelo juiz entre as partes, conforme a impossibilidade de sua produção por uma delas ou maior facilidade pela outra. Note-se que a sistemática do Código embora se articule como regra (artigo 373, caput) e exceção (artigo 373, §1º), pode indicar, em relação à segunda hipótese, não propriamente inversão, mas regra de atribuição do ônus da prova, segundo premissas fáticas distintas (impossibilidade ou maior facilidade na produção da prova). Não se confundem, portanto, inversão e regra de atribuição (ou distribuição) do ônus da prova, hipóteses tecnicamente distintas.[4]

Há moderação desta regra de distribuição do ônus da prova no § 2º do artigo 373 do novo CPC, ao dispor que “a decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.” Toma-se clara referência na norma à restrição de que se imponha a qualquer das partes a obrigação de produção da denominada prova diabólica.

O CDC trata do tema desde a perspectiva tutelar do consumidor. Suas normas especiais visam assegurar a efetividade da proteção do consumidor. Há situações mesmo que a atribuição do ônus da prova ope legis imputa a responsabilidade do fornecedor, afastada apenas se produzir prova de fatos específicos (caso da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, prevista nos artigos 12, §3º e 14, §3º do CDC) Pergunta-se então: haveria limitação imposta à inversão do ônus da prova pelo juiz, com fundamento nas regras do novo CPC, que possa tornar inefetiva a tutela dos direitos dos consumidores definidos em lei? Quer parecer que as situações do artigo 373, §2º do CPC/2015, e do artigo 6º, VIII, do CDC, são substancialmente distintas. A limitação à imposição do encargo de produzir prova impossível ou excessivamente difícil relaciona-se com a regra de distribuição pelo juiz no interesse do processo e visando à cooperação das partes com a busca da verdade (artigo 378 do novo CPC). Neste cenário, a impossibilidade ou dificuldade extrema de produção da prova não devem prejudicar a parte, mediante definição de critério para distribuição do ônus da prova. Situação distinta é a de inversão que realiza direito subjetivo de uma das partes, caso daquela que beneficia o consumidor em ações das quais seja parte. No primeiro caso, a distribuição do ônus da prova se dá no interesse do processo, no segundo, no interesse na realização de um direito fundamental de proteção. As situações não parecem se confundir.

Ainda sobre o tema da prova, o novo CPC inova em alguns aspectos gerais, relevantes também para demandas envolvendo relações de consumo. Seu artigo 464 define que o juiz indeferirá a perícia quando: “I - a prova do fato não depender de conhecimento especial de técnico; II - for desnecessária em vista de outras provas produzidas; III - a verificação for impraticável.” Por outro lado, prevê a possibilidade de que o juiz possa, de ofício ou a requerimento da parte, substituir a perícia por prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade (artigo 464, § 2º). Consistirá a prova “na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico.” (artigo 464, §3º). Trata-se de relativa inovação trazida para o sistema geral do CPC, embora já prevista no artigo 35 da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/1995). Trazer o depoimento pessoal de um expert perante o juízo pode superar, em muitos casos, as dificuldades em relação ao custeio da prova pericial e sua interpretação. Permite, assim, maior flexibilidade e simplificação na coleta das informações relevantes para decisão.

Na próxima coluna examinaremos outros aspectos do novo CPC de grande relevância para o Direito do Consumidor, em especial no tocante ao incidente de desconsideração de personalidade jurídica, às regras para a antecipação de tutela, e a nova disciplina de resolução de demandas repetitivas.



[1] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6ª ed. São Paulo: RT, 2016, no prelo.
[2] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Comentários ao art. 1º. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR. Fredie. TALAMINI, Eduardo. DANTAS, Bruno. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 73.
[3] RAMOS, André de Carvalho. Jurisdição internacional sobre relações de consumo no novo Código de Processo Civil. Avanços e desafios. In: MARQUES, Claudia Lima. GSELL, Beate (Org.). Novas tendências internacionais do consumidor. São Paulo: RT, 2015, p. 569.
[4] Para a distinção, veja-se, dentre outros, os trabalhos de CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição dinâmica do ônus da prova. Rio de Janeiro: GZ, 2009; CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Ed. RT, 2006. Para a exegese da regra do CPC/2015: GAGNO, Luciano Picoli. O novo Código de Processo Civil e a inversão ou distribuição dinâmica do ônus da prova. Revista de Processo, v. 249, São Paulo: RT, novembro/2015, p. 117-139.



Bruno Miragem é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

Revista Consultor Jurídico, 16 de março de 2016, 11h29

Reflexos do novo Código de Processo Civil no Direito do Consumidor (2ª parte)




Por Bruno Miragem


Na coluna de 16 de março, iniciamos o exame das repercussões do novo Código de Processo Civil no Direito do Consumidor. Continuamos, agora, a destacar alguns aspectos que merecem atenção, não sem antes registrar que o exato sentido e o alcance de suas normas devem passar — como é próprio das novidades legislativas — por um razoável período de maturação doutrinária e jurisprudencial.

As demandas judiciais que envolvem relações de consumo respondem por significativo contingente dos processos em curso no país. As razões para isso se pode identificar em várias frentes. Não falta quem se refira a certa facilidade de litigar no Brasil. Em termos de Direito Comparado, isso não é falso. Entretanto, é evidente que a realidade de demandantes contumazes — no Direito do Consumidor identificados por conhecidos fornecedores habitués do foro — faz com que a pouca efetividade das decisões ou a demora na solução dos casos sejam ponderadas na estratégia empresarial, como alternativa espúria à devida elevação dos padrões de qualidade e atendimento oferecidos, evitando a necessidade de recurso ao Poder Judiciário.

Toda nova legislação processual é vocacionada à racionalização das situações de conflito. O novo Código de Processo Civil orienta-se para além, confessando um projeto também para evitá-los. Daí a atenção aos instrumentos de conciliação ou mediação, e mesmo os instrumentos de resolução de demandas repetitivas. Também assim a pretensão de oferecer segurança e previsibilidade sobre o modo como serão tomadas as decisões. Como é próprio de legislação original, já agora se multiplicam as críticas ao texto normativo. Algumas já bastante divulgadas, como no caso da previsão de ponderação prevista no artigo 489, parágrafo 2º, do novo CPC. Outras são mais advertências para o intérprete, que precisará determinar suas possibilidades e limites, como é o caso do exato significado que se pretenda dar à ideia de colaboração processual (artigo 6º), ou ainda sobre o onipresente princípio da boa-fé (artigo 5º e 489, parágrafo 3º), agora também nos domínios do processo.

Sobre as linhas em que se tocam o novo CPC e o Direito do Consumidor, merecem atenção o incidente de desconsideração da personalidade jurídica e a disciplina da resolução de demandas repetitivas, tanto por intermédio do incidente específico criado para esse fim, quanto pelas regras relativas aos recursos especial e extraordinário repetitivos.

Incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Um dos temas mais controvertidos no plano da responsabilidade patrimonial diz respeito à extensão dos efeitos das obrigações da pessoa jurídica a seus sócios ou administradores. A desconsideração da personalidade jurídica foi recebida pelo Direito brasileiro por intermédio da doutrina especializada, com posterior consagração legislativa (artigo 50 do Código Civil). Recebeu, entretanto, do Direito do Consumidor, disciplina específica, tornando mais abrangente as hipóteses que a autorizam, conforme previsto no artigo 28 do CDC. Atenção merece também o parágrafo 5º do artigo 28 do CDC, que dispõe: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

As discussões sobre a aplicação da norma do CDC sempre tiveram presente o reclamo por maior previsibilidade quanto ao deferimento da desconsideração e extensão dos efeitos das obrigações sobre o patrimônio dos sócios ou administradores. A definição de um procedimento específico para a desconsideração da personalidade jurídica, como faz CPC/2015, a rigor está de acordo com a diretriz de proteção da confiança das partes (não surpresa), prevista nos seus artigos 9º e 10 da nova lei processual.

O artigo 133 do CPC/2015 refere: “O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo”. De sua interpretação resulta que não poderá ser decretada de ofício pelo juiz. Segundo essa visão, apenas quando houver pedido da parte interessada ou do Ministério Público poderá ser deferida a desconsideração, o que também se aplica à desconsideração inversa, pela qual a pessoa jurídica possa vir a responder por obrigações contraídas pelos sócios (artigo 133, parágrafo 2º). Registre-se, contudo, que é dispensada a instauração do incidente se houver pedido com este fim já na petição inicial, hipótese em que o sócio ou a pessoa jurídica serão citados para participar da ação (artigo 134, parágrafo 2º, CPC/2015).

Nas causas que tenham por objeto relação de consumo, pode, eventualmente, se estabelecer controvérsia sobre a aplicação do artigo 133 do CPC/2015, no ponto em que ele impede a decretação ex officio da desconsideração da personalidade jurídica[1], em especial, com o fundamento da ordem pública constitucional de que se reveste o CDC[2]. Tenha-se em conta, no entanto, que o propósito da norma é o de assegurar o direito ao contraditório e à ampla defesa de quem possa vir a responder com seu patrimônio pelas obrigações contraídas por outrem. A locução “o juiz poderá”, definida no artigo 28 do CDC, milita em favor da possibilidade da decretação de ofício. Contudo, por mais discutível que seja a solução processual, o fato é que, ao definir, a norma processual, dado procedimento, este deverá ser observado na aplicação do direito material. De qualquer sorte, note-se que, mesmo se admitindo a decretação de ofício da desconsideração, isso não elimina o dever de assegurar a manifestação prévia à decisão, das partes que venham a sofrer seus efeitos. É o que resulta do artigo 10 do CPC/2015 (“O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”).

O efeito da instauração do incidente será a suspensão do processo e citação do sócio ou da pessoa jurídica para se manifestar e requerer provas. Concluída a instrução do incidente, será proferida decisão interlocutória, da qual cabe recurso (artigo 136 CPC/2015). Acolhido o pedido de desconsideração, define o artigo 137 do CPC/2015 que “a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”.

Instrumentos de resolução de demandas repetitivas
São essencialmente dois os instrumentos previstos pelo novo CPC para a resolução de demandas repetitivas: o incidente de resolução de demandas repetitivas e a disciplina dos recursos especial e extraordinário repetitivos. Ambos têm larga repercussão nas demandas relativas ao Direito do Consumidor.

O incidente de resolução de demandas repetitivas, com notada inspiração em solução do Direito alemão (Musterverfahren), mas também presente em outros sistemas (como a Inglaterra), caracteriza-se pela cisão da competência sobre a causa, de modo que o tribunal em que instaurado o incidente decide a tese prevalente. Pressupõe a existência de repetição de processos em curso, com risco de ofensa à isonomia em face de decisões contraditórias. E, deste modo, oferece aos tribunais em geral (tribunais de Justiça dos estados e tribunais regionais federais, entre outros) a possibilidade de uniformizar seu entendimento sobre causas controvertidas, permitindo maior estabilidade e eficiência na solução das demandas que lhe são submetidas.

Estabelece o artigo 976 do Código de Processo Civil de 2015: “Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”.

Exige-se que haja processos repetitivos com uma mesma questão de direito controvertida[3], não mera expectativa quanto à multiplicação de demandas. Por outro lado, não cabe o incidente de resolução de demandas repetitivas quando já houver sido afetado, por um dos tribunais superiores, recurso para definição da tese sobre mesma questão de direito repetitiva, caso do recurso especial e do recurso extraordinário repetitivos (artigo 976, parágrafo 4º).

A admissão do incidente determina a suspensão, pelo relator, dos processos pendentes que tramitem no âmbito de competência do tribunal que o instaurar. Admite a intervenção de amicus curiae e de assistente simples (artigo 983), devendo se manifestar também o Ministério Público, e deverá ser julgado no prazo de um ano, após o qual deixam de estar suspensos os processos relacionados (artigo 980).

Como efeito do julgamento do incidente de recursos repetitivos, a tese jurídica a qual se refira será aplicada “a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo estado ou região”; e “aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal” (artigo 985). A decisão, contudo, poderá ser revista, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública (artigo 986). Note-se que o precedente que resulta da decisão torna-se obrigatório, inclusive para os órgãos do próprio tribunal que prolatou a decisão (vinculação horizontal). Da decisão do incidente, cabe recurso especial e extraordinário, o qual terá efeito suspensivo, e cuja decisão pelo STJ ou pelo STF, será aplicada a todos os processos individuais e coletivos que tenham por objeto a mesma questão de direito (artigo 987). O recurso extraordinário, de sua vez, terá presumida a repercussão geral da questão constitucional discutida (artigo 987, parágrafo 2º).

Já em relação aos recursos especiais e extraordinários repetitivos, o CPC/2015 unifica o procedimento para afetação e julgamento, feitos sob a égide do CPC revogado, a partir do que estabeleciam os artigos 543-B e 543-C, e detalhado por resoluções dos respectivos tribunais.

As preocupações já existentes no sistema do código revogado se renovam. A principal diz respeito à escolha do recurso a ser afetado e sua capacidade de demonstrar todos os aspectos que envolvem o objeto da discussão. Há também preocupação com a própria qualidade da representação das partes. Quando se trata de relações de consumo, muitas vezes estão envolvidos fornecedores litigantes habituais, assistido por especialistas na controvérsia em questão, e de outro lado centenas ou milhares de consumidores, em causas das quais apenas um recurso será selecionado e afetado para decisão. Isso pode prejudicar sensivelmente a paridade de armas (artigo 7º CPC/2015), considerando que a defesa do contingente de consumidores estará confiada, no caso, ao advogado do consumidor no recurso selecionado e aos amici curiae, que apenas tratarão dos aspectos controvertidos indicados pela corte.

O artigo 1.037 do CPC/2015 define que o relator, na decisão que afetar o recurso, dentre outras providências “identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento” e “determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”. A preocupação do legislador ao determinar que a decisão de afetação deva identificar com precisão a questão submetida a julgamento, veda ao órgão jurisdicional deliberar sobre questão não delimitada nessa decisão (artigo 1.037, parágrafo 2º, CPC/2015). Há na regra o sentido de proteção da confiança em relação à estabilidade da jurisprudência, evitando surpreender aquele que — confiando na decisão de afetação — deixa de mobilizar-se na defesa de seu interesse, sendo surpreendido pelo tribunal. É o que fundamenta, em parte, as críticas eloquentes em relação à decisão do Recurso Especial 1061530/RS, que deu origem à Súmula 381 do STJ, definido que, “nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”[4].

Porém, como afirmei no princípio, a exata dimensão das normas do novo CPC não decorrerá exclusivamente do seu texto, senão da interpretação e aplicação que se fizer dele. Em especial, tendo em conta a concordância de suas regras, e os justos reclamos de previsibilidade e segurança das decisões judiciais, com a necessária efetividade dos direitos do consumidor, conforme assegurado pela Constituição da República.

Post scriptum: De 1º a 4 de maio, haverá o XIII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em Foz do Iguaçu (PR), organizado pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). O evento reunirá cerca de cem palestrantes, especialistas nos vários temas do Direito do Consumidor, oriundos de mais de dez países, naquele que já é reconhecido com um dos principais eventos acadêmicos sobre o tema no mundo. Faço o convite aos leitores da coluna para que participem. Mais informações no site do Brasilcon: www.brasilcon.org.br.



[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. Comentário ao art. 134. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 426-427. Da mesma forma: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 252.
[2] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 5ª ed. São Paulo: RT, 2014.
[3] Veja-se: MARINONI, Luiz Guilherme. Uma nova realidade diante do projeto do CPC: a ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. In: DIDIER JR., Fredie; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; NUNES, Dierle; MEDINA, José Miguel Garcia; Fux, Luiz; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Novas tendências do processo civil. Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 809-871.
[4] STJ, 2ª Seção, j. 22.4.2009 DJe 5.5.2009.


Bruno Miragem é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2016, 8h05

Código de Defesa do Consumidor não é expressão de paternalismo jurídico




Por Amanda Flávio de Oliveira


De tempos em tempos, retorna à discussão o argumento de que os direitos do consumidor positivados em nosso ordenamento jurídico seriam expressão do “paternalismo jurídico”. Em muitas dessas ocasiões, identifica-se uma clara “atecnia” no emprego da expressão “ paternalismo jurídico”, revelando claro desconhecimento de seu significado. Em muitas das ocasiões, o termo é utilizado de forma pejorativa, para assim identificar ações com as quais o sujeito discorda e que tenham elementos de ação protetiva.

Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, já identificava os elementos com os quais o termo é confundido: paternalismo, na linguagem vulgar, é uma manifestação de autoritarismo, mesmo que benevolente[1]. O mesmo autor, em outra passagem de sua obra, igualmente adverte para a ausência de neutralidade de todos os termos da linguagem política: “cada um deles pode ser usado com base na orientação política do usuário para gerar reações emocionais, para obter aprovação ou desaprovação de um certo comportamento, para provocar, enfim, consenso ou dissenso”[2].

Bobbio também menciona a “ameaça” que o pensamento liberal historicamente identificou no Estado paternal e discorre sobre os inúmeros pensadores responsáveis por relacionar o poder paterno com o poder divino dos reis combatido pelos liberais[3]. Se a Monarquia era a manifestação de um Estado paternal, combatê-lo era a missão dos defensores do Liberalismo.

O paternalismo também representou, na história da humanidade, uma ameaça real ao modelo capitalista que se buscou implantar no conjunto das bases do Estado Liberal. Mesmo quando já instalado o sistema capitalista, o paternalismo foi constantemente identificado como “a ameaça socialista”. Sobre o tema, Otto H. Kahn publicou, nos EUA, em 1919, a obra The Menace of Paternalism (A Ameaça do Paternalismo), em que afirmava, de forma contundente: “From governmental paternalism to socialism is not a very long step” e “Nor, indeed, can paternalism and liberty exist side by side”[4] (ou, em tradução livre: "Do paternalismo governamental ao socialismo não é um passo muito longo" e "Nem, de fato, o paternalismo e a liberdade podem existir lado a lado"). Kahn afirmava que as ideias paternalistas teriam sempre o apoio dos que buscam popularidade, dos oportunistas, dos invejosos e até mesmo daqueles desejosos de uma Justiça social, mas que não examinam criticamente e à luz da razão a experiência que demonstra que por essa via se causará mais dano que bem à sociedade[5].

É de se reconhecer, porém, padecer Kahn do mesmo mal que aponta nos defensores do socialismo: a utilização de argumentos muito subjetivos, quase emotivos, para sustentar suas ideias. A contradição de seu discurso contra a ausência de embasamento racional das convicções paternalistas fica evidente no fundamento por ele utilizado para embasar as ideias liberais: “I have complete confidence in the sober common sense of the American people”[6] ("Eu tenho completa confiança no senso comum sóbrio do povo americano").

Seja qual for a convicção ideológica do pesquisador, é seu dever contextualizar o problema sobre o qual pretende refletir no estágio mais contemporâneo de evolução das Ciências. Especificamente em relação ao Direito do Consumidor brasileiro, não é correto do ponto de vista científico proceder-se a uma avaliação sobre seu enquadramento em um modelo liberal ou paternalista de Estado desconsiderando-se tudo o que já se construiu desde Adam Smith e Stuart Mill sobre o comportamento humano no mercado. Tampouco se pode encarar a “ameaça socialista” com os mesmos olhos e os mesmos argumentos, tendo a experiência histórica fornecido tantos outros elementos para formação de uma crítica séria.

Fato é que no Brasil, não raro, verifica-se o emprego de forma atécnica da expressão “paternalismo jurídico” para se referir ao Direito do Consumidor aqui desenvolvido, ou a aspectos pontuais da efetividade da lei. O emprego é totalmente inadequado. Fruto de mandamento constitucional, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro consiste em lei criada segundo um processo legislativo democrático e busca dar eficácia a um direito fundamental reconhecido em nível global. Sua aplicação sempre ocorre por meio de autoridades expressamente identificadas com essa competência. As decisões dessas autoridades sempre estarão sujeitas a recursos processuais, que asseguram a garantia de um novo olhar sobre o caso e permitem a correção de eventuais excessos praticados pelo julgador que, de forma condenável, tenha extrapolado os limites de proteção autorizados pela lei.

Do ponto de vista do fundamento para a proteção do sujeito de direitos, a lei informa textualmente ser a “vulnerabilidade do consumidor” a razão do tratamento protetivo conferido. De forma objetiva, deve-se registrar: i) consumidores são todos, indistintamente, que se encontrem em uma relação econômica em posição de adquirente ou vítima de um produto ou serviço, o que torna a categoria universal e não discriminatória; ii) a circunstância da “vulnerabilidade”, que torna uma parte merecedora de proteção em detrimento da outra, aplica-se a todos os que se encontram na posição de consumidores, indistintamente; e iii) outras áreas do saber, na contemporaneidade, já identificaram, testaram e produziram robustas pesquisas que comprovam a condição de vulnerabilidade em que as pessoas humanas se encontram, em diferentes circunstâncias de sua vida, mesmo que, por vezes, elas acreditem honestamente estarem tomando decisões racionais. A circunstância da vulnerabilidade não pode mais ser referida como mera “alegação”, sem embasamento empírico. Estudos contundentes demonstram a limitada racionalidade humana e seu comportamento “enviesado” no mercado[7].

Soma-se a isso a constatação de que, se a Constituição de 1988 consagrou o capitalismo em nosso país, ela não consagrou o Estado Liberal clássico, haja vista as disposições que regem a atividade econômica no país. Exemplo disso encontra-se no Título VII, destinado a disciplinar a Ordem Econômica (artigos 170 a 192), que estabelece como princípios norteadores a soberania nacional, a propriedade privada, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas pelas leis brasileiras que tenham sua sede e administração no país, numa perfeita convivência entre ideais liberais e sociais. Se capitalismo e liberalismo são ideias unidas por uma mesma gênese histórica, elas não se confundem.

Por outro lado, o reconhecimento dos direitos humanos pelas Constituições nacionais representa a maior revolução já experimentada pelo direito positivo[8]. No evoluir da história da Humanidade e das instituições internacionais, os direitos de liberdade (também conhecidos como civis e políticos) foram os primeiros a merecer atenção. Entretanto, o mesmo evoluir dos fatos históricos conduziu à imperiosidade de se reconhecer uma outra espécie de direitos humanos, os chamados direitos econômicos e sociais, uma vez que, vivenciado o exercício dos direitos à liberdade, restaram evidenciadas as suas limitações e insuficiências. Os direitos econômicos e sociais resultaram, portanto, do exercício dos direitos políticos e civis, e significam a busca por um humanismo real, não ficcional.

Os direitos sociais e econômicos são compatíveis com o novo Estado que surgiu pós-crença no Estado Liberal clássico. Para sua realização, necessitam de prestação por parte do Estado e, por isso, pressupõem alguma forma de regulação ou regulamentação da liberdade. São eles, portanto, uma manifestação da superação do Liberalismo clássico, mas não podem ser referidos como uma política anticapitalista[9]. Mesmo com a consagração desses direitos no ordenamento jurídico de um país que optou pelo capitalismo como sistema econômico, restam preservados a propriedade privada, o trabalho assalariado, a apropriação privada dos meios de produção e seu exercício com vistas ao lucro.

É aí que se enquadram os direitos do consumidor, no Brasil, codificados na Lei n. 8.078/90. São eles expressões de direitos humanos, constitucionalizados, disciplinados por lei, aplicados segundo um procedimento legal. Estão muito longe de representarem o autoritarismo, a opressão característicos dos tempos dos reis despóticos. Estão muito longe de representarem o retorno da ameaça socialista. São manifestações de direitos. Como bem adverte o professor português Cabral de Moncada: “Um nível adequado de prestações não é caridade. É um verdadeiro direito subjetivo”.



[1] Essa situação não causa estranhamento a Bobbio, para quem: “A linguagem política é notoriamente ambígua. A maior parte dos termos usados no discurso político tem significados diversos. Esta variedade depende tanto do fato de muitos termos terem passado por longa série de mutações históricas (…) A maior parte desses termos é derivada da linguagem comum.” BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora UNB, 1998, p. V.
[2] Id. ibid., p. V-VI.
[3] Id. ibid., p. 908.
[4] KAHN, Otto H. The menace of paternalism. The Constitution Review, 1919, v. 3, n. 114, p. 6-9.
[5] Id. ibid., p. 13.
[6] Id. ibid., p. 6.
[7] Recomenda-se, a esse respeito, fortemente, o estudo da Escola da Economia Comportamental (Behavioral Economics).
[8] Para Lorenzetti, os direitos humanos têm sido responsáveis por transformar totalmente o Direito. LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoría de la decision judicial. Fundamentos de derecho. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 320.
[9] No mesmo sentido, CABRAL DE MONCADA, op. cit., p. 184.



Amanda Flávio de Oliveira é professora decana de Direito Econômico da UFMG e vice-presidente do Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor).

Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2016, 16h45

Publicidade infantil deve respeitar direitos do consumidor e da criança




Por Adalberto Pasqualotto


Nos últimos tempos, a publicidade infantil (ou melhor, a publicidade dirigida às crianças) vem ganhando espaço no debate. O primeiro ingrediente talvez tenha sido a Resolução 163/2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que dispôs sobre formas de abusividade na publicidade e na comunicação mercadológica direcionadas às crianças e aos adolescentes. Houve uma polarização em torno da legalidade do ato administrativo: enquanto para alguns se tratava de invasão de competência legislativa (essa foi a posição do Conar e de entidades empresariais), outros sustentaram que apenas foram explicitadas formas de abusividade que preenchem a fórmula abstrata de “se aproveitar da deficiência de julgamento e experiência da criança”, conforme a locução do artigo 37, parágrafo 2º, do Código de Defesa do Consumidor (nesse sentido, Bruno Miragem).

Mais recentemente, dois acórdãos alimentaram esse debate. O primeiro foi proferido em 23/11/2015 pela 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível 0018234-17.2013.8.26.0053). Tratava-se de multa aplicada pelo Procon-SP a uma franquia do McDonald’s por venda em forma de kit de lanche e brinquedo (McLanche Feliz). O relator, desembargador Fermino Magnani Filho, fundou sua decisão no modelo capitalista da economia brasileira, cabendo à família o dever de educar os filhos, de modo a afastar o Estado de estabelecer um “paternalismo sufocante”. Acrescenta que a resolução do Conanda não deve ser interpretada literalmente, a menos que se demonstre “prejuízo evidente, que atravesse de modo direto (não oblíquo ou idealizado) a formação moral, intelectual, familiar e social do infante”.

O segundo acórdão (ainda não publicado) é da 2ª Turma do STJ, de 10/3/2016, mantendo condenação do TJ-SP por venda casada promovida por publicidade dirigida às crianças. A campanha oferecia relógios com personagens infantis, que eram adquiridos mediante a entrega de embalagens de bolachas, mais o pagamento de R$ 5. Foi relator o ministro Humberto Martins, seguido no voto pelos ministros Herman Benjamin e Assusete Magalhães. O caso foi considerado “paradigmático”. Os dois acórdãos parecem estar em rota de colisão, o que deverá ocorrer se chegar ao STJ a primeira decisão aqui referida.

Trata-se de um debate oportuno, que traz à baila a necessidade de uma adequada regulamentação nessa matéria. Os parâmetros são bem conhecidos. De um lado, há o argumento de que a publicidade é uma forma de liberdade de expressão e essencial ao desenvolvimento da livre iniciativa. De outro lado, embora sem arredar completamente tais argumentos, levam-se em consideração a hipervulnerabilidade da criança e o princípio da proteção integral da infância (artigo 227, da Constituição Federal). Soma-se a isso a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso V, CF) e a fórmula já transcrita acima que traduz o conceito de publicidade abusiva para crianças no artigo 37, parágrafo 2º, do CDC.

A hipervulnerabilidade da criança frente à publicidade não é um conceito abstrato nem retórico. Jaderson Costa da Costa, médico neurologista que dirige o Instituto do Cérebro da PUC-RS, demonstra que o cérebro da criança se desenvolve por etapas e que, até a adolescência, nele se fazem presentes apenas estímulos excitatórios. As sinapses inibitórias aparecem apenas na faixa de 14 a 16 anos (vide Publicidade e Proteção da Infância, Livraria do Advogado, 2014). Até essa idade, o cérebro da criança é um campo fértil para plantar ideias, sem maior capacidade de crítica de sua parte. Não há dúvida de que cabe um importante papel à família na contenção dos impulsos infantis, mas não se pode carimbar como paternalismo políticas de contenção de excessos.

Sempre que se debate a proteção das crianças frente à publicidade, convém lembrar das nossas desigualdades sociais: nem todas as crianças encontram na família um suporte suficiente de educação. A esse propósito, é sempre oportuno lembrar da sentença proferida em 1991 pelo juiz Wilson Carlos Rodycz, em ação civil pública ajuizada em Porto Alegre. O magistrado frisou que crianças de classe média mostradas em filme publicitário entrando à noite em um supermercado fechado para conseguir potinhos de sobremesa serviam de modelo para outras que passavam fome e que poderiam sentir-se autorizadas a terem o mesmo comportamento. A sentença determinou a suspensão da exibição do filme na televisão e não foi apelada (texto publicado pela revista Direito do Consumidor, nº 1).

Por outro lado, as técnicas de comunicação e comercialização sofisticaram-se muito. Veja-se o exemplo do unboxing, viralizado no YouTube, que mostra crianças desembalando brinquedos como forma de exibi-los para outras crianças. Técnicas como essa não são publicidade convencional, mas certamente cumprem a mesma função, provavelmente com mais eficácia. Podem ser consideradas comunicação mercadológica, como oportunamente referiu a resolução do Conanda.

É oportuno que a jurisprudência trace os contornos da abusividade da publicidade dirigida às crianças, mas seria desejável que uma madura regulação entrasse em cena, feita por um órgão com representação ampla de todos os interessados e adequada legitimação social.


Adalberto Pasqualotto é professor de Direito do Consumidor na Faculdade de Direito da PUC-RS e ex-presidente do Brasilcon – Instituto de Política e Direito do Consumidor.

Revista Consultor Jurídico, 11 de maio de 2016, 8h00

Se não for revisada, Súmula 555 do STJ sepulta trecho do artigo 150 do CTN





Por Paulo Roberto Andrade


O Código Tributário Nacional (CTN) dedica duas conhecidas normas ao prazo decadencial do direito de lançar o crédito tributário, distribuindo-as conforme a modalidade de lançamento a que se sujeite o tributo: (a) a norma do artigo 173, I, merecedora da condição de “regra geral” da matéria, aplicável aos tributos lançáveis de ofício ou por declaração; e (b) a norma do artigo 150, §4º, aplicável aos tributos lançáveis por homologação.

Ambas, como se sabe, prescrevem um mesmo prazo quinquenal; a diferença está nos respectivos dies a quo, quais sejam, (a) o primeiro dia do exercício seguinte ao da ocorrência do fato gerador e (b) o dia da ocorrência do fato gerador.

A jurisprudência vem há muito lapidando tais normas. A primeira grande contribuição pretoriana à sua hermenêutica consistiu em rechaçar a marota tese dos “cinco+cinco”, que postulava-lhes uma incidência concomitante, de modo que o quinquênio do artigo 173, I se iniciasse após o termo do quinquênio do artigo 150, §4º. Fixou-se no Superior Tribunal de Justiça (EREsps 276.142[1] e 432.984), em boa hora, o entendimento de que as normas têm hipóteses de incidência autônomas, vinculadas cada qual, como se viu, à modalidade de lançamento aplicável ao tributo.

Ato contínuo, amadureceu no seio do STJ a compreensão de que, no lançamento por homologação, o objeto da chancela fiscal superveniente não é propriamente o “lançamento”[2] efetuado pelo contribuinte, mas o pagamento por este realizado; forte nessa premissa, concluiu o tribunal que, inexistindo pagamento sequer parcial do tributo pelo contribuinte, o fisco simplesmente não teria o que homologar, fato que deslocaria a disciplina decadencial para o artigo 173, I, mesmo em se tratando de tributo lançável por homologação.

A ausência total de pagamento foi, pois, erigida a critério definidor da regra decadencial, somando-se à existência fraude, dolo ou simulação — já prevista expressamente no texto legal — como fator inibidor de incidência do artigo 150, §4º.

Ficaram, em resumo, assim definidas as hipóteses de aplicação das duas normas:

(a) se o lançamento é de ofício, aplica-se o artigo 173, I;

(b) se o lançamento é por homologação, mas o contribuinte atua com fraude, dolo ou simulação, aplica-se o artigo 173, I;

(c) se o lançamento é por homologação, o contribuinte atua sem fraude, dolo ou simulação, mas incorre na inadimplência integral do tributo, aplica-se o artigo 173, I; e

(d) se o lançamento é por homologação, o contribuinte atua sem fraude, dolo ou simulação, mas paga parcialmente tributo, aplica-se o artigo 150, §4º.

Rendeu acirrado debate doutrinário a exegese do STJ sobre os efeitos do inadimplemento total/parcial do tributo sobre o prazo decadencial. Não pretenderemos aqui, contudo, investigar nem firmar posição dogmática a respeito. Importa apenas constatar que foi esse o entendimento afinal consolidado no célebre REsp 973.733, julgado em 2009 sob o rito dos recursos repetitivos (antigo CPC, artigo 543-C).

Desde então — e nem poderia ser diferente — a jurisprudência do STJ estabilizou-se nesse sentido. Pela clareza e concisão, fiquemos com a seguinte ementa de 2012:

“1. A Primeira Seção, conforme entendimento exarado por ocasião do julgamento do Recurso Especial repetitivo 973.733/SC, Rel. Min; Luiz Fux, considera, para a contagem do prazo decadencial de tributo sujeito a lançamento por homologação, a existência, ou não, de pagamento antecipado, pois é esse o ato que está sujeito à homologação pela Fazenda Pública, nos termos do art. 150 e parágrafos do CTN.

2. Havendo pagamento, ainda que não seja integral, estará ele sujeito à homologação, daí porque deve ser aplicado para o lançamento suplementar o prazo previsto no § 4º desse artigo (de cinco anos a contar do fato gerador). Todavia, não havendo pagamento algum, não há o que homologar, motivo porque deverá ser adotado o prazo previsto no art. 173, I, do CTN”[3].

Após anos de uníssono jurisprudencial, era então chegado o momento de consolidá-lo mediante edição de súmula, seguindo a inexorável e elogiável tendência de uniformizar e espraiar o entendimento dos nossos tribunais superiores.

O enunciado foi finalmente aprovado pela 1ª Seção no final de 2015, com a seguinte redação:

“Súmula nº 555. Quando não houver declaração do débito, o prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário conta-se exclusivamente na forma do art. 173, I, do CTN, nos casos em que a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa”.

Pois bem. O verbete inicia-se com a passagem “quando não houver declaração do débito”. A ressalva tem origem na anterior Súmula STJ 436, segundo a qual “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.

É dizer, a confissão do débito pelo contribuinte (em DCTF, GIA, NFe etc.) tem efeitos constitutivos do crédito tributário; portanto, uma vez confessado o crédito, não será mais necessário lançá-lo de ofício, o que faz impertinente qualquer especulação sobre prazos decadenciais de lançamento.

Essa primeira parte do verbete equivale, pois, a dizer “sempre que for necessário o lançamento, o prazo decadencial para o lançamento será de...”. Trata-se, já se vê, de aparte completamente desnecessário. Ora, é evidente que o prazo decadencial de lançamento (objeto regulado pela súmula) só se aplica quando for o caso de se realizar um lançamento. Enfim, embora não prejudique, a primeira parte em nada agrega à compreensão do alcance da norma sumulada.

Na sequência, diz a súmula que o quinquênio decadencial conta-se “exclusivamente na forma do artigo 173, I” sempre que “a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa”.

A hipótese aí aludida — a saber, a de antecipação do pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa — é, nada mais, nada menos, que a do lançamento por homologação.

E cessa assim o verbete, sem qualquer ressalva complementar, sem qualquer menção à relevância e influência do pagamento parcial sobre o prazo decadencial. Trocando em miúdos, fica assim a norma sumulada: “O prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário conta-se exclusivamente na forma do artigo 173, I, do CTN, nos casos de tributos sujeitos a lançamento por homologação”.

A súmula sugere, pois, que a decadência dos tributos lançáveis por homologação rege-se exclusivamente (isto é, sempre, em todo e qualquer caso) pelo artigo 173, I do CTN.

Isso é tudo o que nunca disse o STJ!

Em sua literalidade, a súmula sepulta o artigo 150, §4º do CTN, retirando-lhe todo e qualquer campo de incidência, e dissocia-se completamente da diretriz jurisprudencial que se propõe justamente a resumir e representar.

Com o tempo, toda súmula tende a ser aplicada cada vez mais acriticamente pelos tribunais país afora. É, aliás, para isso mesmo que servem. Tal como está, a Súmula 555 poderá tornar-se a “verdade” na disciplina da matéria, induzindo toda a jurisprudência, inclusive a do próprio STJ, ao erro grave de aplicar o artigo 173, I do CTN aos tributos sujeitos a lançamento por homologação, em toda e qualquer hipótese.

Daí a urgência na revisão de sua redação. Eis a sugestão deste autor:

“Súmula STJ nº 555. Em caso de inadimplemento integral do tributo sujeito a lançamento por homologação, a decadência do direito ao lançamento rege-se pelo art. 173, I do CTN”.


1 “As normas dos artigos 150, §4º e 173 não são de aplicação cumulativa ou concorrente, antes são reciprocamente excludentes, tendo em vista a diversidade dos pressupostos da respectiva aplicação: o art. 150, §4º aplica-se exclusivamente aos tributos ‘cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa’: o art. 173, ao revés, aplica-se aos tributos em que o lançamento, em princípio, antecede o pagamento” (1ª Seção. Rel. Min. Luiz Fux. j. 13.12.2004).


2 Até porque, na lógica concebida pelo CTN, quem lança o tributo é, sempre e necessariamente, a autoridade administrativa (art. 142).


3 2ª Turma. AgRg no REsp nº 1.277.854. Rel. Min. Humberto Martins. j. 12.6.2012.



Paulo Roberto Andrade é advogado, mestre em direito tributário pela USP e sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia. Conselheiro da 4ª Câmara do Conselho Municipal de Tributos da Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 11 de maio de 2016, 8h38

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...