terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

NJ Especial: Rastreamento de dados e controle patronal do computador usado em serviço pelo empregado configuram invasão de privacidade?






Com a evolução da tecnologia da informação, muitas empresas passaram a exercer vigilância contínua sobre o que o empregado faz no computador utilizado no trabalho. As justificativas apresentadas para tanto são muitas, sendo as principais delas a defesa do patrimônio e questões de segurança. O respaldo para essa prática estaria na prerrogativa que a legislação confere ao empregador de conduzir o seu empreendimento.

De fato, o empregador possui o que se denomina "poder diretivo". São poderes inerentes à direção do negócio. Mas não se trata de um poder absoluto. O patrão não pode se esquecer de que suas ações devem se pautar pelo respeito aos direitos da personalidade do trabalhador, que são aqueles inerentes à pessoa ou personalidade humana, protegidos pela Constituição da República: honra, moral, integridade física e psíquica, nome, imagem, privacidade, intimidade, entre outros.

No que toca à questão específica da vigilância sobre computadores usados pelos empregados, em serviço, o assunto não é regulamentado e tem gerado polêmicas. Pouco a pouco, vai integrando a pauta da Justiça do Trabalho. Nesta NJ especial, veremos alguns casos envolvendo esse contexto e as soluções adotadas no âmbito do TRT da 3ª Região.Direito de fiscalização do empregador X direito à intimidade e privacidade do empregado

Sob alegação de desaparecimento de um software, uma empresa do ramo de informática registrou uma ocorrência policial e ainda instalou programas para rastrear dados e senhas dos usuários no computador em que o empregado trabalhava. Esta conduta foi detectada pelo próprio trabalhador, profissional da área de informática que, incomodado, ajuizou reclamação trabalhista pedindo a rescisão indireta do contrato de trabalho e o pagamento de indenização por danos morais.

A tese apresentada, de invasão de privacidade, foi acatada tanto pela juíza de 1º Grau quanto pelo TRT de Minas. Dois fatores pesaram para esse desfecho: a ré não negou os fatos alegados pelo trabalhador e uma perícia técnica confirmou a instalação dos programas de monitoramento no computador de trabalho logo após o registro da ocorrência policial. A condenação envolveu a declaração da rescisão indireta, por quebra da confiança entre as partes, e uma reparação por danos morais no valor de R$5 mil.

Em 1ª Instância, a reclamação foi examinada pela juíza Maritza Eliane Isidoro, na titularidade da 1ª Vara do Trabalho de Contagem. Com base nas informações prestadas pelo perito, a julgadora entendeu que a instalação de programas no computador usado pelo reclamante configurou invasão à privacidade dele. Na sentença, ponderou que a espionagem constatada só não durou mais tempo porque o reclamante é profissional da área e conseguiu identificar os fatos assim que ligou o computador no dia seguinte.

Para a magistrada, a conduta adotada, envolvendo o instrumento de trabalho do reclamante, foi considerada abuso do direito de fiscalização do empregador e um desrespeito à pessoa do trabalhador, além de invasão de privacidade.

Com base nesse contexto, o pedido de declaração da rescisão indireta do contrato de trabalho foi julgado procedente, sendo a reclamada condenada a cumprir obrigações próprias da dispensa sem justa causa. Consoante fundamentou a magistrada, "Deveras o liame de emprego entre as partes resta intolerável e insustentável, pois o ato de a reclamada instalar ou mandar instalar programas no microcomputador de trabalho do autor com o objetivo, que se não for no sentido de investigá-lo, no mínimo corresponde a ato de espionagem ou um meio de manter o empregado sob vigilância e às escondidas".

A juíza sentenciante também reconheceu que o reclamante sofreu dor e constrangimento pela invasão de sua privacidade e sensação de estar sendo vigiado, ¿espionado mesmo¿, conforme registrou. Por esta razão, a ré foi condenada a pagar indenização por danos morais no valor de R$5 mil ao ex-empregado.

A ré apresentou recurso, mas a 8ª Turma do TRT-MG manteve a sentença. Acompanhando o voto da juíza convocada Luciana Alves Viotti, os julgadores também reconheceram que o reclamante teve sua privacidade violada pela instalação furtiva/às escondidas de programas espiões na sua máquina de trabalho."Comprovado o ato antijurídico e o seu nexo de causalidade com a ofensa evidente ao patrimônio moral do Autor, sendo inquestionáveis, no caso, os danos (artigos 186 e 927 do CC c/c artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal)", foi registrado no acórdão. (Processo nº 02643-2011-029-03-00-4 - 18/12/2013)Monitoramento e chantagem

Em outro recurso examinado pela 8ª Turma, os julgadores confirmaram a sentença que condenou um sindicato a pagar indenização por danos morais no valor de R$10 mil a duas ex-empregadas. O caso também envolveu instalação pelo empregador de programa de monitoramento no computador utilizado pelas trabalhadoras no ambiente de trabalho. De posse de informações e conversas particulares obtidas, uma representante do sindicato chantageou as empregadas no sentido de pedirem demissão. Considerando ilícita a conduta, o juiz José Barbosa Neto Fonseca Suett, em atuação na 3ª Vara do Trabalho de Coronel Fabriciano, declarou a nulidade dos pedidos de demissão e converteu a dispensa em imotivada. Também nestes aspectos a sentença foi mantida, sendo o voto proferido pelo desembargador José Marlon de Freitas.

As provas revelaram que as reclamantes utilizavam o sistema disponibilizado pela empresa para travar conversas particulares, valendo-se de palavras inconvenientes ao se referirem às pessoas que compunham o ambiente de trabalho. Para o relator, contudo, esse comportamento não autoriza o empregador a constranger as empregadas a assinar um pedido de demissão. ¿A conduta patronal expôs as demandantes a situação degradante e vexatória incompatível com o momento atual vivenciado pela sociedade que prima pela proteção dos direitos da personalidade com destaque para a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho¿, destacou.

O relator repudiou veementemente a instalação pelo empregador de programa de monitoramento no computador que as reclamantes usavam, o qual permitia captar todas as informações digitadas. No seu modo de entender, a prática configura invasão de privacidade. "Considero que a Resolução nº 26/2007 do Conselho Estadual de Trabalho e Geração de Renda de Minas Gerais CETER não pode servir de escudo à pratica de monitoramento exercida pelo Sindicato, pois a adoção da Política de Segurança da Informática (PSI) vinculada à participação no Sistema de Gestão de Ações de Emprego - IGAE não pode representar autorização geral e irrestrita para a fiscalização perpetrada, inclusive de e-mails e bate papos particulares, sob pena de invasão de privacidade", destacou no voto, rebatendo argumentos do réu.

A decisão também levou em consideração o fato de não haver qualquer prova de que as reclamantes tivessem ciência da política praticada pelo réu, muito menos que tenham autorizado as gravações das conversas particulares (bate papo pelo Gmail, que é um serviço de correio eletrônico pessoal e não corporativo).

"A situação vivenciada pelas reclamantes foi passível de acarretar-lhes sofrimento de ordem moral, ficando, pois, configurados os elementos ensejadores da reparação, nos termos do artigo 186 do Código Civil", concluiu o julgador, confirmando o valor da indenização, fixada em R$10 mil. Para tanto, considerou não apenas o fato de ter havido monitoramento indiscriminado dos computadores e coação praticada pelo empregador, mas também a conduta antiprofissional praticada pelas autoras, ao travarem conversas particulares utilizando a ferramenta corporativa de trabalho. A decisão se referiu aos artigos 944, 953 e 884 do Código Civil". (Processo nº 00685-2013-089-03-00-6 - 04/02/2015).Bloqueio de e-mail corporativo e retenção de dados pessoais do empregado: conduta abusiva.

Outra situação que suscita muito ainda a pensar e discutir foi encontrada num caso julgado pela 1ª Turma do TRT de Minas. Uma empresa de fios esmaltados e produtos químicos dispensou um empregado, sem permitir que ele retirasse seus arquivos, fotos e documentos pessoais do notebook que utilizava no trabalho. O e-mail do trabalhador foi bloqueado, sendo solicitado que devolvesse o equipamento imediatamente. Ao analisar os pormenores do caso, a Turma considerou ilícita a conduta praticada pela ré. Dando provimento parcial ao recurso do reclamante, os julgadores modificaram a sentença para deferir indenização no valor de R$10 mil.

Atuando como relator, o desembargador José Eduardo de Resende Chaves Júnior reconheceu que a empregadora tem o direito de requisitar o notebook entregue para o desempenho das funções. Mas não poderia impedir o acesso do reclamante ao conteúdo ali depositado por vários anos. "A ré exerceu com excesso o seu direito de propriedade, configurando o abuso de direito passível, como tal, de indenização, na literalidade do artigo 187 do Código Civil, c/c art. 8° da CLT",concluiu.

A ré argumentou que seria ilógico o reclamante manter e-mails e arquivos pessoais no computador da empresa, por se tratar de ferramenta de trabalho. No entanto, o magistrado não viu nada de errado nessa conduta. É que o reclamante cumpria jornada estendida, trabalhando inclusive em feriados e fins de semana. Ele ficava com o notebook da empresa de forma contínua. O relator considerou muito natural que utilizasse o computador, bem como seu e-mail empresarial para fins pessoais.

"Não se vislumbra, aqui, motivo para que tal devolução e o bloqueio do e-mail fosse feita de forma abrupta, de molde a impedir que o autor pudesse retirar do equipamento suas informações pessoais", destacou, considerando abusiva e arbitrária a medida tomada pela empresa. Segundo ele, uma conduta que não pode ser tolerada pelo Judiciário, razão pela qual condenou a empresa a pagar ao reclamante indenização por dano moral, no valor de R$10 mil, tendo em vista a extensão do dano sofrido pelo reclamante, a culpa, o porte da reclamada e o caráter pedagógico da penalidade. (Processo nº 01466-2013-147-03-00-0 - 29/09/2014).Uso do PC para controle de pausas no trabalho: constrangimento e violação da intimidade.

Veja só essa história: depois de um tempo pré-fixado, o computador era bloqueado e os empregados tinham que se dirigir ao supervisor para desbloqueá-lo, informando o motivo da pausa. No programa havia campos para coffee break,treinamento, banheiro e reunião, que deveriam ser preenchidos pelo chefe. Esse foi o cenário que levou a 8ª Turma a dar provimento ao recurso de uma trabalhadora e condenar as duas empresas envolvidas ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 1 mil.

No entender da desembargadora Ana Maria Amorim Rebouças, a conduta violou a intimidade e privacidade da reclamante. "A limitação do tempo de uso do banheiro por meio do sistema de bloqueio dos computadores dos empregados, comprovado por prova documental e testemunhal, mesmo que tenha o objetivo de segurança para a empresa, caracteriza um constrangimento para a reclamante e para os demais funcionários, visto que, o simples fato de dar explicações pela demora na utilização dos sanitários deixa claro um objetivo de controle dos funcionários, além de violar direitos fundamentais como o da intimidade e o da privacidade", destacou no voto.

O valor da indenização foi fixado levando em consideração diversos aspectos, tendo como objetivo inclusive coibir práticas de constranger o empregado a explicar a demora na utilização dos sanitários. (Processo nº 0010435-82.2015.5.03.0039 - 29/07/2015).Violação pelo empregado de normas de segurança da informação: justa causa confirmada.

Uma situação diferente foi a constatada pela 8ª Turma do TRT-MG, ao julgar o recurso de uma reclamante que não se conformava com a decisão que manteve a sua dispensa por justa causa. Neste caso, o monitoramento das atividades dos computadores pela empresa de móveis reclamada foi acolhido como prova de que a empregada teria apagado e copiado arquivos. Após analisar as provas, o relator, desembargador Márcio Ribeiro do Valle, considerou correta a conduta e manteve a aplicação da pena.

Ouvido como testemunha, o responsável pelo monitoramento dos computadores da ré esclareceu como tudo aconteceu. Segundo ele, a cada minuto recebe um e-mail com um printdas operações realizadas pelo usuário. Em julho de 2014, percebeu pela via remota que vários arquivos estavam sendo deletados e copiados em um HD externo. Eram projetos e contratos, além de imagens.

A testemunha constatou que a reclamante figurava como usuária, sendo que a empresa não utiliza HD externo em seus computadores. O fato foi comunicado à administração da ré, que solicitou o bloqueio do usuário na respectiva máquina. Menos de 60% dos arquivos deletados foram recuperados. A testemunha esclareceu que os empregados eram advertidos de que seus arquivos pessoais salvos nos computadores da empresa não estavam submetidos a segurança.

Somado a isso, o julgador registrou que a própria reclamante deixou claro em seu depoimento que tinha interesse de deixar os quadros da reclamada. Ela contou que depois de tentar fazer, sem êxito, um acordo com a empresa ré para a sua saída, deletou arquivos de projetos de propriedade da empresa, sem autorização patronal. O relator constatou que este ato é expressamente proibido no Manual de Conduta Ética da empresa.

Também foram juntados ao processo um Termo de Ciência e Comprometimento e o contrato de trabalho assinados pela reclamante, todos no sentido de dar cumprimento ao Manual de Conduta Ética e Regulamento Interno da Empresa.

Portanto, o vasto acervo probatório levou o relator a reconhecer que a trabalhadora violou, direta e gravemente, as normas internas, bem como a propriedade intelectual da empresa, causando potenciais prejuízos comerciais a ela. A Turma reconheceu que a reclamante incidiu em grave ato de indisciplina e de desobediência, capaz de justificar, por si só, a aplicação da justa causa. (Proc. n. 02866-2014-186-03-00-7 - 14/10/2015).

Notícias jurídicas anteriores sobre o tema ou similares: 

28/08/2015 06:05h - NJ Especial: As redes sociais entram no processo 

19/08/2009 06:07h - Vigilância eletrônica abusiva gera indenização por danos morais 

14/01/2016 06:02h - Juiz mantém justa causa aplicada à empregada grávida que viajou durante período coberto por atestado médico 

28/12/2015 06:02h - Juíza desconsidera depoimento de testemunha ao constatar amizade íntima com a reclamante em fotos no Facebook 

10/07/2015 10:45h - NJ Especial: Liberdade de expressão no trabalho 

19/06/2015 08:40h - NJ Especial - Princípio da conexão liga o processo ao mundo de informações virtuais 

19/09/2014 06:06h - Relacionamento em Facebook não caracteriza amizade íntima capaz de invalidar depoimento de testemunha 


Fonte: TRT3

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Existe montinho artilheiro epistêmico na teoria da decisão jurídica?







A grande temática sobre a qual venho me debruçando é a teoria da decisão jurídica. Sou adepto de um tipo de tese que pretende, a partir de uma criteriologia e apostas na responsabilidade política dos juízes, controlar as decisões, diminuindo consideravelmente o grau de subjetivismo, discricionariedade, para não falar da arbitrariedade. Falo sobre isso em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (cinco princípios-padrões a serem obedecidos, seis hipóteses de [des]aplicação da lei, três perguntas iniciais, demais perguntas que estão no capítulo específico no JC&DJ, etc.). O rechaço de qualquer relativismo parece ser um bom início nessa caminhada. Falo de teoria da decisão e não de um agir estratégico reservado ao advogado.


Do mesmo modo que, no cotidiano, o juiz não pode chamar um copo d’agua de ônibus, igualmente não pode dizer que, onde está escrito x, leia-se y (isso independe de critérios; aqui entra a autoridade da tradição). Por isso aposto em uma criteriologia que tenha o condão de fazer certo controle dos e nos “inconscientes”, “dos e nos subjetivismos”, “da fome dos juízes que ainda não almoçaram”, etc.. Juiz tem subjetividade, óbvio (mas, atenção: pré-compreensão não é o mesmo que subjetividade, preconceitos, ideologia, vontade);[1] tem inconsciente, evidente; mas não pode dizer o que quer sobre o Direito.


Para mim, é nisso que reside o papel do “fator Julia Roberts”: constranger epistemicamente. Não podemos sufragar, em tempos de linguistic turn, teses pelas quais, ao fim e ao cabo, o Direito (só) se realiza na decisão. No fundo, isso é reforçar o privilégio cognitivo dos juízes (PCJ). Se o Direito só se realiza na decisão, só resta aos juristas voltarem para casa. E aos clientes... contratar legal coaches e personal trainers jurídicos.


E aqui chego no ponto de hoje. Esta coluna tem o intuito de fazer uma reflexão, com muito carinho e profundo respeito, para com o que disse o meu querido Alexandre Morais da Rosa na coluna No jogo processual, é importante conhecer o fator Julia Roberts (ler aqui). Transcrevo a parte mais incisiva e que vai “no rim” de minha concepção, porque inclui na decisão exatamente o que, para mim, deve ficar de fora:


“A Teoria da Tomada de Decisão precisa ser atualizada, justamente para inserir os mecanismos contingentes do contexto, do sujeito humano julgador (mapa mental e emoções), que podem mudar a decisão pelo detalhe (efeito borboleta)”.


Em um parágrafo, Morais da Rosa lança o desafio e faz a crítica da década à hermenêutica. A provocação é ótima. Isso me permite fazer um pequeno esclarecimento na perspectiva de marcar uma posição hermenêutica, para que se possa abrir um canal de discussão de posições que — como bem já disseram Aury Lopes Jr. e Claudio Melim — objetivam uma profunda democracia, só que os caminhos são distintos.


Como demarco minha posição para diferenciar dessa tese de Morais da Rosa? Vamos lá. Parece-me claro que Morais da Rosa está propugnando por uma retomada do subjetivismo para compor um quadro de análise do processo decisional. O trecho ressalta uma dimensão quase personalista, que, ao fim e ao cabo, se sobrepõe aos instrumentos “exteriores” de limitação do poder decisório. É nisso que ocorre uma bifurcação em nossos caminhos.[2] E esse retorno de Morais da Rosa ao esquema sujeito-objeto fica mais nítido ainda quando fala sobre a importância dos gestos e atitudes das testemunhas, na sua coluna Engane-me se puder: a linguagem corporal entra no jogo processual? (ler aqui). Essa volta ao paradigma da subjetividade é tão flagrante que ele chega a sugerir, ao se referir à decisão do juiz do trabalho de Porto Alegre que anulou um testemunho por causa dos seus gestos (ler aqui), que, diante disso, o advogado deveria levar isso em conta e se preparar para a próxima audiência. Se entendi bem, Morais da Rosa quis dizer: o juiz não está errado. Isso é assim mesmo. O advogado é que deve se adaptar ao “jogo”. E montar uma estratégia. Logo, processo é um jogo. Mas, permito-me indagar: esse não é um jogo antidemocrático, em que a regra é feita pelo juiz (por sua intuição/cognição)? Particularmente, para enfrentar esse juiz, eu tomaria uma medida judicial para afastá-lo por pré-julgamento e total ausência de imparcialidade (entendida comofairness). Não vai funcionar? Bom, para isso que luto. Para mudar isso. Por isso tanto lutei para colocar coerência e integridade no novo Código de Processo Civil, tirar o “livre” do convencimento e ajudei no artigo 489.


Explico, no pequeno espaço da coluna, as razões pelas quais essa questão dos “mecanismos contingentes” (o aleatório), as emoções do sujeito-julgador, etc. é vista de outro modo pela hermenêutica. Heidegger e Gadamer levam o pensamento para uma dimensão na qual não se tenha como ponto de partida a subjetividade assujeitadora do mundo. A propalada contingência decisional está assentada nos elementos volitivos do agente decisor. É o velho problema que ocupa os filósofos desde o medievo: afinal, a Razão controla a vontade ou, ao contrário, a Razão está sempre assujeitada pela vontade? A hermenêutica (fenomenologia hermenêutica e a CHD dela derivada) que ir além desse dualismo, buscando colocar o problema retratado para além (ou fora) do sujeito, num espaço em que os projetos de sentido são controlados pela linguagem. Não se mata o sujeito da relação de objetos, como bem já explicou tantas vezes Ernildo Stein. Mas nos obrigamos a retirar essa subjetividade que assujeita os objetos. Como afirma Gadamer, na modernidade emerge uma espécie de “cegueira da vontade” (“diabolia da vontade”, nas palavras de Heidegger). É preciso se contrapor a essa “compulsividade” da vontade, sempre sujeita às contingências. E isso se faz em uma abertura com a linguagem pública, intersubjetiva, em um mundo que não é meu, é sempre compartilhado.[3] Ou seja, trazendo isso para a decisão jurídica, em vez de nos perdemos no universo particularista das vontades individuais e emoções do sujeito julgador, deve(ría)mos investir na prospecção e descrição fenomenológica do sentido publicamente compartilhado e que deve(ria) sustentar/legitimar as decisões judiciais.


Voltando para o belo, sedutor e erudito — como é do seu feitio — texto de Morais da Rosa: o paradoxo está no fato de que, se ele tem razão — pode ter, mas espero que não tenha — não haverá propriamente uma teoria da tomada da decisão. De que modo posso teorizar algo se o imponderável (fazendo uma alegoria com o futebol, uma espécie de montinho artilheiro epistêmico) pode mudar a decisão? Morais da Rosa diz que a decisão exige um certo jogo. Mas, permito-me indagar: mas algo há de sustentar o jogo que, por sua vez, sempre tem regras, pois não?


Como “teorizar” os gestos, o detalhe ou o efeito do efeito borboleta, que pode ser um tropeço em uma pedra que o juiz deu pela manhã ou qualquer outra coisa? Lembro-me que, quando menino — meu pai era uma fera — fui encarregado por minha irmã para pedir a ele para que a deixasse ir ao baile no salão da vila. Com meu jeito brincalhão e fazendo os pedidos no estilo de narração de futebol, por vezes obtinha sucesso. Lembro que, no momento em que havia terminado a narração (usava o “abrem-se as cortinas” do Fiori Giuliotti), meu pai, que estava carregando uma tábua em direção ao estábulo, tropeçou violentamente em uma pedra. E, em vez de dar a permissão à minha irmã, deu-me um tabefe. Sim, contingencias. Efeito borboleta.[4] Só que meu pai não era juiz. Nem havia regras ou Constituição que lhe pudessem constranger a agir de modo correto. E não havia, para mim e minha irmã, uma corregedoria ou instância recursal. Não havia um duty, um dever, que impusesse ao meu pai agir de outro modo” — meu pai não tinha esse dever — ao contrário dos juízes, que detém responsabilidade política e que, portanto, have a duty to, ou seja, têm o dever de aplicar o Direito corretamente. Por isso, minha insistência em uma teoria da decisão com “objetividades hermenêuticas” (texto-evento, tradição, etc.) que consigam amarrar “as emoções” do sujeito-julgador. Afinal, o esquema sujeito-objeto já foi superado. Ou não?


Por isso, uma teoria da decisão deve procurar criar condições de previsibilidade. Garantir que uma coisa simples do direito seja cumprido: as regras do jogo (ah, como isso está faltando atualmente, pois não?). Deve procurar criar condições para que o direito seja aplicado de forma equânime. E que, mesmo que o juiz esteja “p” da vida com o mundo, tenha brigado com sua mulher, ele tem de suspender isso tudo e decidir de acordo com as regras. Decisão não é escolha, como muito bem diz Heinrich Rombach, conforme explico detalhadamente nos Comentários ao artigo 489 do CPC (Comentários ao Código de Processo Civil, no prelo, Saraiva, 2016).


Isto porque o Direito não está à disposição do julgador. O jurisdicionado não pode ficar à mercê justamente das contingências, do tropeço na pedra, da “sede de ser justiceiro” ou da vontade de ser um “juiz Magnaud”. Não há sorte ou azar nisso, como no filme Match Point, de Wooddy Allen. Ora, se alguém vai arrogante para a audiência e com a camisa para fora da calça, isso significa que é culpado? Ou que é inocente? Diz o estimado Morais da Rosa que “sabemos, todavia, a diferença entre um sorriso sincero e um falso/forçado”. Desculpem, mas eu não sei, até porque, pergunto, quais seriam os critérios de diferenciação? De novo: se o processo é um jogo e você precisa estar preparado para isso, uma coisa é certa: não é de Direito que se trata. Técnicas de valoração probatória podem ser úteis, mas não são teoria da decisão, convenhamos. Talvez Morais da Rosa e eu tenhamos apenas que acertar os termos de diferenciação daquilo que ambos queremos.


É evidente que todos os dias acontece esse tipo de fenômeno do qual fala Morais da Rosa (a decisão do juiz do trabalho de Porto Alegre é um bom exemplo). Só que isso está fora do Direito. Por exemplo, se você passa a perna e engana um juiz, isso é uma coisa que pode ocorrer e, como resultado, você “ganha a causa”. Mas “ganhou” fora das regras do jogo (já que se quer usar a palavra “jogo”). Ora, o Direito deve servir justamente para que isso não aconteça. O Direito não pode ser compatível com algo que se não possa prever e escape de uma racionalidade (chamemo-la de discursiva, comunicativa, hermenêutica, etc.).


O irônico nessa história de gestos, atitudes corporais, etc., é que mesmo eles são sintomas que exigem interpretação. Não há ontologia que permita acessar a uma “essência dessas coisas”. Ainda que esses comportamentos e atitudes pudessem contar para efeito da decisão, eles mesmos não estão à disposição do juiz. Se são sintomas, expressam uma "linguagem corporal" que, como tal, remetem-se a uma vivência ou experiência intersubjetivamente compartilhada sem a qual seriam completamente destituídos de sentido. Em outras palavras, nada disso é meramente subjetivo e o juiz não tem acesso privilegiado à "verdade corporal". Afinal, quer o juiz dizer "a" verdade dos corpos dos outros? Como diz R. Palmer: quando o subjetivismo se coloca na base da situação interpretativa, o que é interpretado senão uma objetificação?


Proponho, pois, a partir da CHD, contestar isso com elementos exógenos, já que sobre os endógenos não tenho controle. Se no futebol existe o montinho artilheiro como contingência ou “o imponderável”, a solução é passar uma máquina roçadeira para reduzir a sua incidência. A questão é saber se podemos admitir que, no Direito, na hora de decidir, a decisão possa ser produto de um montinho epistêmico contingente.


Em síntese: teoria jurídica, como diz Dworkin, é teoria normativa, prescritiva de critérios para a decisão. E estes critérios devem estar radicados em boas justificativas para o uso da coerção oficial. Não me bastadescrever o fenômeno; quero é fornecer critérios para que se decida corretamente. Boa parte do debate Hart v. Dworkin, como sabem, gira em torno desta discussão.[5] O que me interessa investigar é: sob quais condições as pessoas adquirem direitos e obrigações genuínas, a serem reconhecidos diretamente numa demanda judicial?


Poder-se-á alegar que essa “questão da análise de gestos, sorrisos com o canto da boca, etc.” deve ser feita mesmo a partir do PCJ, porque, afinal, é ele quem está vendo tudo. Neste caso, o juiz usaria a psicologia cognitiva ou qualquer outra teoria behaviorista. Mas, na hora da sentença, “funcionará” a intersubjetividade? Haveria, assim, dois juízes: o que usa a psicologia cognitiva, com o aproveitamento de esquemas mentais, efeito borboleta, etc. e o que elabora a decisão? Bem, não creio nisso. Essa cisão (bipolaridade) é impossível. Não há essa figura que, a um tempo é subjetivista na audiência e, ao depois, transforma-se em intersubjetivo na elaboração da decisão propriamente dita. Não é possível ter uma padrão confiável sobre o comportamento gestual, etc., de uma pessoa em dado ambiente, pela simples razão de que não é possível teorizar ou criar padrões sobre essa imponderabilidade do comportamento humano. Mas sobre o que diz a jurisprudência e a lei, sim, podemos teorizar. Sobre o imponderável e o efeito borboleta, não.


Claro que isso que acabei de dizer vem de um lugar de fala: a hermenêutica. E ela, como diz Gadamer, não quer ter a última palavra. Nem pode. O papel das teorias em geral (teorias da argumentação, teorias sistêmicas, discursivas em geral) e da inovadora tese desenvolvida por Morais da Rosa é de suma importância. Todos queremos aprimorar a democracia. E queremos mais justiça. Os caminhos para lá chegar é que são diferentes.


Só uma coisa a mais: se tudo o que Morais da Rosa falou está certo, como vamos explicar nossa contundente crítica à condenação de Meursault, em oEstrangeiro de Camus? Ele foi condenado... porque não chorou no enterro da mãe.


Post scriptum. Quase esqueci: como vamos explicar nossas críticas ao clássico sentença vem de sentire? Teremos que dar razão a quem diz isso? Afinal, interpretar gestos, piscadelas e esfregação de mãos não põe à prova um-juiz-que-sente?[6] Leiamos o que diz Morais da Rosa:


“pois basta um único sinal, certa arrogância, risinho de canto de boca, roupa fora do contexto, postura, contato visual, para que tenhamos um julgamento sobre o sujeito, naquilo que a psicologia cognitiva denomina de heurística e vieses, com os quais diminuímos a carga de trabalho mental e manejamos melhor o dia a dia. São atalhos mentais pelos quais o complexo processo de decisão é facilitado”.


Tenho apenas uma pergunta sobre isso: Quem deu esse poder ao juiz?




[1] Em Verdade e Consenso deixo isso bem claro, mormente na crítica à Daniel Sarmento, que, em uma crítica a mim, confundiu os conceitos.




[2] Para registro: 1. Não ignoro a importância da Psicologia Cognitiva e seus estudos; 2. Não ignoro que o corpo fala; 3. O que questiono é a transposição para o direito, cuja pretensão é regular condutas, preservar liberdades e impor regras que sejam aplicadas de forma equânime; 4. Sim, sei que advogado faz um agir estratégico; sua defesa deve ser feita levando em conta milhares de variáveis, nem mesmo importando se seu cliente tem ou não razão (lembremos do filme The Bridge of Spies - ver aqui); 5. Ocorre que uma teoria da decisão não trata do agir estratégico das partes; trata, sim, do agir por princípio e com responsabilidade política do juiz.




[3] GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Vol. I Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 37.




[4] Vejam o problema do efeito borboleta: vamos supor que meu pai tenha desviado seu caminho porque uma galinha atravessou e, assim, não tropeçou. Assim, em vez de me dar um tabefe, deixou minha irmã ir ao baile. Ela conheceu uma pessoa que não o meu cunhado e com ele se casou. Com isso, não saio do meio do mato e não vou morar com ela na cidade. E não continuo meus estudos. Não faço faculdade de Direito, mestrado, doutorado, etc e nem tenho esta coluna no ConJur. Neste caso, o paradoxo: eu não estaria escrevendo este texto e nem teria conhecido pessoas tão queridas como Alexandre Morais da Rosa e tantos outros Amigos por esse mundão de Deus. Ou escrevi esta Coluna justamente por causa do efeito borboleta? Quem vai saber...




[5] Aqui remeto o leitor à excelente tese de doutorado (UNISINOS) de Francisco José Borges Motta. Ronald Dworkin e a decisão jurídica, que está no prelo pela Juspodivm. 




[6] Sem entrar na discussão da tradução e do sentido correto da palavra “sentire”.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.






Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2016, 8h00

Operadora deverá pagar mais de R$ 863 mil para reparar danos morais coletivos


RIO — A TIM Celular S.A. foi condenada pelo Poder Judiciário a pagar R$ 863.612,77 para reparar danos morais coletivos devido à prática abusiva de venda casada, que obrigava consumidores a adquirir um aparelho telefônico ao contratar um serviço de telefonia fixa.

A sentença condenatória, que não admite mais a interposição de recursos, é resultado definitivo da ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio da 14ª Promotoria de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte, em 2010.

O Ministério Público pleiteou junto ao Poder Judiciário o imediato pagamento do dano moral coletivo em favor do Fundo Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (FEPDC).

De acordo com a sentença condenatória, a operadora também deverá comprovar, dentro de 30 dias, a venda isolada aos consumidores do serviço de telefonia e do aparelho telefônico, com a demonstração de preços na forma de aquisição isolada e conjunta.

Na avaliação do promotor de Justiça de defesa do consumidor, Rodrigo Filgueira de Oliveira, trata-se de uma vitória do consumidor que, recorrentemente, tem seus direitos violados por operadoras de telefonia. Além disso, a decisão estabelece parâmetro quantitativo para danos morais coletivos nesses tipos de ação. A venda casada é considerada prática abusiva conforme art. 39, I e V, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Procurada, a TIM informa que ainda não foi intimada para se pronunciar a respeito da manifestação do Ministério Público.

Fonte Brasilcon

Pedido de vista suspende julgamento sobre uso da expressão “sem álcool” em rótulo de cerveja




Um pedido de vista suspendeu nesta quarta-feira (17) um julgamento na Corte Especial, órgão máximo que reúne os 15 ministros mais antigos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de um caso envolvendo o uso da expressão “sem álcool” em rótulos de cerveja com graduação alcoólica inferior a 0,5%.

O julgamento foi de um embargo proposto pelo Ministério Público Federal (MPF) à decisão da Quarta Turma do STJ que considerou o uso da expressão “sem álcool” de acordo com a legislação que trata da classificação, produção e fiscalização de bebidas. 

A defesa da fabricante de cerveja salientou que o uso da expressão “sem álcool” no rótulo de cerveja com graduação alcóolica inferior a 0,5% “não é uma opção comercial, mas o cumprimento de uma legislação específica”.

Relatora do caso na Corte Especial, a ministra Laurita Vaz defendeu que o uso da informação “sem álcool” não está em conformidade com o Código de Defesa do Consumidor (CDC). 

A ministra ressaltou que o CDC traz “diversos preceitos que evidenciam a proibição de oferta de produto com informação inverídica, capaz de levar o consumidor a erro, ou mesmo oferecer risco à saúde e segurança”.

“O direito à informação clara e adequada nas relações de consumo tem sido assegurado pela jurisprudência desta corte", afirmou a ministra.

Durante o julgamento, o ministro Herman Benjamin disse tratar-se de uma “questão paradigmática” para que o tribunal reafirme que a “lei é para valer”.

“Temos uma cerveja com 0,5% de teor alcoólico, em que se diz que, por classificação, se chama cerveja sem álcool. Não é informação. É contrainformação”, observou.

Herman Benjamin ressaltou que o uso da expressão “sem álcool” pode enganar consumidores que não querem consumir cerveja com graduação alcoólica.

O ministro Raul Araújo apresentou pedido de vista, de modo a suspender o julgamento do caso na Corte Especial.

Fonte: STJ

Indústria de metais que impediu implementação de condição que beneficiaria empregados terá de pagar o prêmio fidelidade



A teor do artigo 129 do Código Civil, se um dos contratantes, maliciosamente, impede a ocorrência de uma das condições que lhe seria desfavorável ou beneficiaria a parte contrária, considera-se verificada essa condição, quanto aos seus efeitos jurídicos. Ou seja, para fins legais, passa-se a considerar como realizada a condição se seu implemento for intencionalmente impedido por quem tirar vantagem com sua não realização. E foi por esse fundamento que a juíza Adriana Farnesi e Silva, em atuação na Vara do Trabalho de São Sebastião do Paraíso, deu razão aos empregados de uma indústria de metal extrativista que buscaram na Justiça do Trabalho o pagamento do prêmio fidelidade.

Como esclarecido pela julgadora, o pagamento desse prêmio foi previsto no Termo de Compromisso de Fidelidade, termo esse firmado entre a indústria e seus empregados, com o objetivo de evitar a evasão dos empregados, diante da notícia da possibilidade de encerramento das atividades de extração da mina. O direito ao recebimento da verba dependia de dois requisitos: a permanência ativa, ininterrupta e sem apontamentos, registros ou faltas quaisquer de natureza disciplinar e a ocorrência da situação especialíssima, qual seja, o encerramento das atividades.

Mas, no caso analisado, a dispensa sem justa causa dos empregados impediu que eles continuassem prestando serviços, frustrando a realização da segunda condição, sem que os empregados nada pudessem fazer quanto a isso. Diante dessa constatação, a juíza concluiu que os empregados, obviamente, têm direito ao prêmio instituído. "Entender o contrário é fazer do Termo de Compromisso de Fidelidade letra morta" destacou a magistrada, condenando a empresa a pagar o prêmio de fidelidade a todos os empregados que aderiram ao termo e foram dispensados sem justa causa. A empresa recorreu da decisão, que ficou mantida à unanimidade pela 5ª Turma do TRT-MG.
PJe: Processo nº 0010218-28.2014.503.0151. Data de publicação da sentença: 07/08/2015
Fonte: TRT3

Não pode haver diferença salarial entre vendedores que trabalham em lojas diferentes da mesma empresa



Não importa se o vendedor trabalha em shopping center (que vende produtos de lançamento) ou em loja de outlet (que comercializa mercadorias com desconto). Se as lojas pertencem à mesma empresa, ela não pode pagar comissões aos vendedores somente no primeiro caso, uma vez que o tratamento diferenciado fere o princípio da isonomia salarial. Assim se pronunciou a 1ª Turma do TRT-MG ao modificar a decisão de 1º grau que indeferiu o pedido de comissões formulado por um vendedor que trabalha em outlet.

Na petição inicial, o reclamante alegou que passou a ser vendedor em junho de 2013, recebendo a remuneração de R$785,00 mensais fixos, sem o incremento das comissões sobre vendas, apesar da previsão convencional. Acrescentou ainda que os vendedores que trabalham em outras lojas da ré recebem salário fixo mais as comissões de 4% sobre as vendas. O juiz sentenciante julgou improcedentes os pedidos, ao fundamento de que o autor não demonstrou a identidade de funções com os modelos indicados e de que o salário contratual era na modalidade fixa, não havendo obrigação de o empregador pagar comissões.

Entretanto, o relator do recurso do vendedor, desembargador Emerson José Alves Lage, discordou desse posicionamento. Ele concluiu que, apesar de o vendedor ter mencionado a expressão "equiparação salarial", o que ele pretendia, na verdade, era ver reconhecido o direito de receber, além do salário fixo, uma parte variável, composta de comissão individual sobre vendas, como recebem os demais vendedores da empresa que trabalham em outras lojas, o que não configura pedido de equiparação salarial propriamente dito, mas sim, de isonomia salarial. Em outras palavras, o vendedor pleiteou comissões no mesmo percentual que a reclamada paga aos demais vendedores.

Ao examinar o conjunto de provas, o desembargador entendeu comprovado, pela ficha de registro de empregados e pela confissão da própria empresa, que outros vendedores recebiam comissão no percentual de 4% sobre as vendas individuais realizadas. Nesse ponto, o relator pontuou que a diferença remuneratória consiste, segundo a tese da defesa, na diferença do local de trabalho: o reclamante trabalha em loja de outlet e não recebe comissão por isso. Já os colegas do autor, que também são vendedores, trabalham em shoppings centers e recebem comissões de 4% sobre as vendas.

Para o desembargador, a prova testemunhal foi reveladora, confirmando o que já havia sido admitido pela própria defesa, ou seja, o fato de que havia diferenciação na forma de pagamento de salários entre os vendedores das lojas "outlets" e das lojas "Conceito". As testemunhas declararam que o reclamante realizava uma média de vendas por mês no valor de R$50.000/R$60.000,00, sendo que não havia distinção entre o vendedor e o vendedor avançado. Acrescentaram que as lojas "Conceito" e "Out Let" funcionam com a mesma estrutura, sendo a distinção exclusivamente quanto ao pagamento de comissões para os vendedores da loja "Conceito". Segundo as testemunhas, os produtos da loja "Conceito" não são diferenciados e o volume de vendas do "Out Let" é maior que o da loja "Conceito".

"Não obstante, o fato de a empresa possuir lojas que vendem produtos de lançamento e outras que são exclusivas de mercadorias com desconto, conhecidas também como outlets ou pontas de estoque, não legitima o procedimento da empresa de tratar de forma desigual empregados que estejam em situação de igualdade, isto é, quando todos se ocupam de vender produtos da empresa",acentuou o desembargador. Ele destacou que é a força de trabalho do vendedor que determina o pagamento das comissões e não o tipo de loja ou de produto vendido: "Se há no segmento do comércio praticado em outlets algo que perde o valor agregado é o produto colocado à venda, mas não a força de trabalho do empregado, utilizada em prol do patrimônio do empregador, em condições de igualdade com os demais vendedores que trabalham nas lojas que vendem produtos de lançamento".

De acordo com as ponderações do magistrado, se o produto vendido nas lojasoutlets tem preço inferior aos produtos novos, o valor das comissões também será menor, o que torna injusto (e porque não dizer ilegal, uma vez que fere o princípio da isonomia consagrado na Constituição) que alguns vendedores recebam comissão pelas vendas realizadas e outros não recebam.

Assim, como pontuou o relator, o que se discute é o direito de o reclamante receber comissões, conforme condição de trabalho observada em relação aos vendedores que trabalham em lojas distintas (em outros shoppings centers da Capital), não cabendo qualquer discussão em relação ao fato de o produto ser "Originals", "Performance" ou "Factory/Outlet".

Acompanhando esse entendimento, a Turma julgadora deu provimento ao recurso nesse aspecto para reconhecer o direito do reclamante a receber comissões sobre vendas pagas aos vendedores comissionistas da ré e, por consequência, condenar a empresa ao pagamento desse salário variável, à razão de 4% sobre as vendas realizadas pelo reclamante, com reflexos em aviso prévio, férias com 1/3, 13º salário e FGTS com multa de 40%.( 0003023-81.2014.5.03.0186 ED )
Fonte: TRT3

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Direito ao conhecimento da origem genética difere do direito à filiação





Em diversos trabalhos, desde 1999, procuramos salientar a distinção necessária que se há de fazer entre o direito ao reconhecimento à parentalidade (paternidade, maternidade, filiação e demais relações de parentesco) e direito ao conhecimento da origem genética ou biológica. O primeiro diz respeito ao direito da personalidade, de caráter absoluto e oponível a todas as demais pessoas. O segundo emerge das relações de família.

Os direitos da personalidade integram o núcleo intangível e indisponível da qualificação jurídica da pessoa, que destaca sua singularidade. Compõem a qualificação jurídica da pessoa em si. Por essa razão, o Código Civil (artigo 11) confere-lhes os requisitos de intransmissibilidade e irrenunciabilidade. Deles podem resultar consequências patrimoniais em virtude de sua lesão por outrem, mas não de relação jurídica originária com este. Entre eles, está o direito à identificação pessoal, que não se resume aos aspectos formais e registrais, tais como a nacionalidade, a data e o local de nascimento, a filiação e outras características exigíveis. Nele se inclui, igualmente, a identificação que brota da natureza humana, com as características irredutíveis do corpo, da mente, dos modos de expressão, natos ou adquiridos, além de, no ponto que agora nos interessa, a origem genética de cada pessoa.

Diferentemente, o direito à parentalidade, inclusive o da filiação, não resulta da natureza humana. Sua natureza é cultural. Seu objeto é certificar a integração de uma pessoa em determinado grupo familiar. Cada povo, cada ordenamento jurídico, refletindo seus graus de cultura, tradição e história, vão definindo e alterando o que consideram parentes (pai, mãe, filho e demais parentes). Não é um dado da natureza, mas uma construção cultural. Em nosso direito atual, a filiação resultante da adoção é plena e imutável, mas nem sempre foi assim, pois admitia certos graus, com limitações de direitos parentais e sucessórios. Em nosso Direito, já houve proibição de reconhecimento de filhos biológicos, quando prevaleceu a filiação dita ilegítima (extraconjugal). A partir do Código Civil de 2002, na sequência da eliminação das desigualdades jurídicas pela Constituição de 1988, há quatro espécies de filiação: a de origem biológica e as que resultam da adoção, da inseminação artificial heteróloga (técnica de reprodução assistida) e da posse de estado de filiação.

Portanto, nem sempre a parentalidade e a filiação têm origem biológica. Porém, qualquer pessoa tem direito a conhecer sua origem biológica, ainda que não implique atribuição de parentalidade. Pouco importa sua motivação, seja para satisfazer o anseio humano de saber de quem veio, seja para assegurar o direito à saúde (e a vida), para prevenção de doenças geneticamente transmissíveis.

No tocante à adoção, a Lei 12.010/2009, ao dar nova redação ao artigo 48 do ECA, introduziu na legislação o “direito [do adotado] de conhecer sua origem biológica”, mediante acesso ao processo de adoção, após completar 18 anos, ou quando menor com assistência jurídica e psicológica. A norma assegura o exercício do direito da personalidade do adotado, mas sem qualquer reflexo na relação de parentesco. O conhecimento da origem biológica não importa desfazimento da adoção, que é irreversível.

Se são distintos os direitos (direito da personalidade e direito de família), então não se pode pretender a obtenção do conhecimento da origem genética mediante ação de investigação de paternidade. O que se busca é esclarecer a origem genética, mas não a atribuição de paternidade ou maternidade, ou a negação da parentalidade já constituída. Quando uma pessoa que foi adotada pugna por conhecer sua origem genética e consegue seu intento, disso não resulta o desfazimento da relação parental/filial. Do mesmo modo, se tiver sido concebido a partir de sêmen de homem que não é seu pai. Pode-se afirmar que as situações de genitor biológico e de pai nem sempre estão reunidas.

As questões que frequentemente demandam decisões judiciais são relativas à posse de estado de filiação, cuja relação de parentalidade, emergente de fatos, não ostentam o mesmo grau de cognoscibilidade da adoção ou da inseminação artificial heteróloga. Quando o Judiciário confirma a existência da posse de estado de filiação e sua consequente imutabilidade, emergem insatisfações acerca das pretensões econômicas que normalmente estavam subjacentes, notadamente alimentos e sucessão hereditária.

Pensamos que, para harmonizar o princípio da imutabilidade do estado de filiação, decorrente da posse de estado, com a possível pretensão patrimonial, pode-se encontrar solução dentro do sistema jurídico existente, máxime com recurso à reparação civil. Com efeito, a Constituição (artigo 229) estabelece que os pais têm o dever de criar, educar e assistir os filhos menores. A não assunção da paternidade (ou maternidade) do descendente biológico (salvo no caso de dação de sêmen), cuja filiação foi assumida apenas pela mãe e, depois, pelo pai socioafetivo, implica inadimplemento de dever jurídico, que se resolve com a reparação civil correspondente. Se o genitor biológico for vivo, deve responder pelo equivalente ao valor que teria de arcar com a criação, educação e assistência do filho não reconhecido, de acordo com suas condições econômicas, até a maioridade deste. Se morto for, o mesmo valor pode consistir em crédito contra a herança, pois significa dívida deixada pelo de cujus.



Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.



Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2016, 8h00

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...