sexta-feira, 28 de novembro de 2014

STJ admite recurso e anula decisão de juizado especial considerada "teratológica"




STJ admite recurso e anula decisão de juizado especial considerada "teratológica"



Considerada "teratológica", uma decisão de juizado especial que condenou um banco a pagar danos sociais, sem que isso tivesse sido pedido na ação, foi anulada pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça. Por se tratar de uma ação de juizado especial, não cabe recursoao STJ. Entretanto, a corte aplicou pela primeira vez, por analogia, o rito dos recursos repetitivos (previsto no artigo 543-C do Código de Processo Civil).

Ajuizada pelo Bradesco, a reclamação contra acórdão de turma recursal dos juizados especiais traz uma controvérsia identificada em grande número de processos, principalmente nos juizados vinculados ao Tribunal de Justiça de Goiás. Por isso, a seção decidiu firmar sua posição conforme o artigo 543-C. Assim, as turmas recursais que tratarem do tema devem se alinhar ao entendimento do STJ.

No caso, a 2ª Seção firmou a tese de que, por configurar julgamento extra petita (além do pedido), é nula a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro que não faz parte do processo.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou que, somente no juizado especial contra o qual foi apresentada a reclamação, já foram proferidas cerca de 200 condenações ao pagamento de danos sociais em ações individuais nas quais havia sido pedida apenas indenização por dano moral. Para a Febraban, isso permite antever a multiplicação de condenações desse tipo contra os bancos.

Identificada a questão como repetitiva, a seção determinou a suspensão de todos os processos idênticos em trâmite nos juizados especiais e nas turmas recursais exclusivamente na parte em que fosse discutida a condenação de instituições financeiras, sem pedido da parte, ao pagamento de danos sociais em favor de terceiros estranhos à lide.

O caso
O processo julgado trata do caso de uma cliente que ajuizou ação no juizado especial pedindo indenização por danos morais e materiais em decorrência de débitos em sua conta corrente realizados pelo Bradesco em 2011. O valor se referia à cobrança de anuidade de cartão de crédito não solicitado por ela.

A sentença condenou o banco à devolução em dobro do valor cobrado indevidamente, ao pagamento de indenização de R$ 5 mil para a cliente, como reparação pelos danos morais. Além disso, deveria pagar R$ 10 mil para o Conselho da Comunidade de Minaçu (GO), município de residência da cliente, a título de reparação de danos sociais, ainda que a ação individual não trouxesse nenhum pedido expresso quanto a isso.

O Bradesco recorreu à turma recursal, que manteve a decisão de pagamento da indenização suplementar ao argumento de que “agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos dos consumidores geram danos à sociedade”, que configuram ato ilícito por exercício abusivo do direito.

Reclamação
Apesar de não caber recurso especial ao STJ, o banco apresentou reclamação para adequar a decisão da turma recursal à jurisprudência sobre o assunto. Alegou que houve violação dos limites objetivos da ação proposta pela cliente. Disse que o juiz decidiu além do que foi pedido ao dar uma indenização suplementar não requerida e por fatos que não embasaram a petição inicial, mas “decorrentes da experiência pessoal do magistrado em ações de natureza idêntica”.

Inicialmente, o ministro relator destacou que o caso não configura nenhuma das duas hipóteses de cabimento de reclamação contra decisão de turma recursal: violação a enunciado de súmula ou a tese definida em recurso repetitivo. No entanto, trata-se de “decisão teratológica”, o que justifica a análise pelo STJ.

Extra petita
O ministro Raul Araújo, relator, reconheceu que a doutrina moderna tem admitido, diante da ocorrência de ato ilícito, a possibilidade de condenação ao pagamento de indenização por dano social. Seria uma categoria inerente ao instituto da responsabilidade civil, uma espécie de dano reparável por conta de comportamentos socialmente reprováveis, a ser pedido pelos legitimados para propor ações coletivas.

No entanto, o ministro constatou que a indenização por dano social não poderia ser aplicada na hipótese. A comparação do pedido da ação com o provimento judicial deixa claro, para o ministro do STJ, que houve julgamento extra petita – quando a decisão proferida dá algo diferente daquilo que foi requerido pela parte. Seu voto foi seguido por unanimidade.

“Ao concluírem pela condenação do reclamante [o banco] ao pagamento de danos sociais à entidade que não figura como parte na lide, dissociaram-se dos pedidos formulados pela autora da ação, exarando provimento jurisdicional não requerido e sobre questão nem sequer levada a juízo por qualquer das partes envolvidas na demanda”, criticou o relator ao falar da decisão da turma recursal.

Ilegitimidade
Para Raul Araújo, a decisão extrapolou claramente os limites objetivos e subjetivos da demanda. Ele acrescentou que, mesmo que a cliente, autora da ação, falasse em condenação em danos sociais, o pedido não poderia ser julgado procedente, porque esbarraria em ausência de legitimidade para tanto.

“Os danos sociais são admitidos somente em demandas coletivas e, portanto, somente os legitimados para propositura de ações coletivas têm legitimidade para reclamar acerca de supostos danos sociais decorrentes de ato ilícito, motivo por que não poderiam ser objeto de ação individual”, explicou.

A 2ª Seção reconheceu a nulidade da decisão na parte em que condenou o banco ao pagamento de indenização por danos sociais à entidade que não participou do processo, mas manteve o restante, quanto aos danos materiais e morais. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o voto.
Rcl 12062


Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2014, 18h12

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Decisão que reduziu indenização a cantor sertanejo em 97% é mantida no TJ-GO


Decisão que reduziu indenização a cantor sertanejo em 97% é mantida no TJ-GO


Para que se altere o valor de uma indenização arbitrada pelo Judiciário, é preciso que se aponte o erro na decisão que definiu a quantia. Por entender que o cantor Marrone (foto) — da dupla Bruno e Marrone — e sua mulher, Natália Ferreira Porte, não conseguiram mostrar erros do desembargador que reduziu uma indenização por danos morais a ser recebida por ambos de R$ 1,5 milhão para R$ 50 mil, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás manteve o chamado quantum indenizatório.

No caso, o jornal Extra terá que indenizar o cantor (cujo nome de batismo é José Roberto Ferreira) por ter publicado uma reportagem em seu site afirmando que o casal estava falido financeiramente.

Na primeira instância, 18ª Vara Cível e Ambiental de Goiânia arbitrou a indenização em R$ 1,5 milhão. No entanto, o desembargador Carlos Alberto França (foto), do TJ-GO, em decisão monocrática, entendeu que a quantia era “demasiadamente elevada” e baixou o valor em aproximadamente 97%. Marrone, receberá R$ 30 mil e Natália, R$ 20 mil. O cantor ficou com a maior fatia porque, segundo França, ele “é pessoa pública, mais conhecida e, portanto, sujeita a maior exposição da mídia”. 

Os dois recorreram, pedindo que o valor fosse majorado. No entanto, a 2ª Câmara Cível apontou que não havia motivo para aumentar o valor da condenação, uma vez que não foi indicado nenhum erro na decisão do desembargador França.

Ao analisar a reportagem, o colegiado entendeu que o jornal "excedeu os limites legais à propagação da notícia", considerando que houve a intenção do jornalista de difamar ou injuriar.

Carlos Alberto França, relator do caso, ressaltou que o jornalismo não tem caráter apenas informativo, mas também investigativo. Segundo ele, o jornalista “precisa buscar informações e repassá-las aos leitores, porém de forma séria e responsável”, o que não teria acontecido no caso. O desembargador destacou, inclusive, que a notícia não era de interesse público e visava, somente, ofender a honra do casal. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-GO

Clique aqui para ler a decisão.

Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2014, 20h27

Lei Maria da Penha ainda não está sendo aplicada devidamente


Lei Maria da Penha ainda não está sendo aplicada devidamente




Têm sido objeto de polêmica os projetos da Câmara dos Deputados PL 6.433/2013 e PL 7.376/2014 que propõem alterações na Lei 11.340/96 — Lei Maria da Penha. O primeiro pretende dar mais efetividade à proteção da vítima de violência doméstica, ao facultar à autoridade policial aplicar de imediato, em ato fundamentado, as medidas protetivas de urgência, comunicando em seguida ao Ministério Público e ao juiz competente, que poderá mantê-las ou revê-las; propõe ainda o referido PL que a autoridade policial (no caso, o delegado) deverá ter acesso às informações referentes aos processos judiciais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive fora do horário de expediente forense, a fim de verificar a existência de medidas protetivas, as condições aplicadas e informações necessárias à efetiva proteção da vítima em situação de violência. O segundo projeto — PL 7.376/2014 — tipifica como crime o descumprimento de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha. 

Saliente-se que as medidas protetivas de urgência são de grande relevância na proteção dos direitos de mulheres, vítimas de violência doméstica, mas seu descumprimento apenas acarreta as previstas no artigo 22, parágrafos 3º e 4º e no Código de Processo Penal — vale dizer, auxílio de força policial, multa civil e prisão preventiva, visto não ter o legislador disposto expressamente sobre o crime de desobediência. Esse tem sido o reiterado entendimento de vários tribunais na hipótese de descumprimento da ordem judicial relativa à medida de urgência.

Com efeito, nas turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça, isso vem sendo consolidado no sentido de que há atipicidade da conduta, não se configurando crime de desobediência visto que, no dizer do próprio STJ “a previsão em lei de penalidade administrativa ou civil para a hipótese de desobediência à ordem legal afasta o crime previsto no art. 330 do Código Penal, salvo ressalva expressa de cumulação, inexistente no caso” ( HC 285620 / RS - 2013/0420568-1 T5 - Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE j.07/08/2014 p. 15/08/2014).

Para afastar este entendimento reiterado[1] de tribunais brasileiros, urge tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, como propõe o PL 7.376/2014, ou incluir ressalva expressa em parágrafo do próprio artigo 22 da Lei Maria da Penha, no sentido da aplicação cumulativa das penas do delito de desobediência.

Por outro lado, não podem continuar a prosperar aqueles argumentos tão repetitivos de que se deve aplicar nessa matéria o respeito ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Este argumento demonstra que ainda o Estado brasileiro não tomou plena consciência deste mal que assola insidiosamente a família, pois cuida-se, sim, de grave problema que vem afetando a sociedade brasileira de maneira dramática.

Os números, dados e pesquisas mostram a grave dimensão do problema: o Brasil ocupa a sétima posição em feminicídios, no contexto dos 84 países do mundo com dados homogêneos da OMS compreendidos entre 2006 e 2010; e, segundo o Mapa da Violência 2012[2], vemos que em todas as faixas etárias, a relação doméstica é o que decididamente prepondera nas situações de violência vividas pelas mulheres. Vale lembrar que, nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse último período representa um aumento maior de 200%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país (Fonte: SIM/SVS/MS). Por outro lado, estudos mostram que o percentual de reincidência nas violências contra a mulher é extremamente elevada, principalmente a partir dos 30 anos de idade das vítimas, o que está a configurar um tipo de “violência anunciada” e previsível que não é erradicada.

Constata-se que esses projetos de lei buscam a necessária efetividade e celeridade quando em risco um bem jurídico maior a ser tutelado: a vida e integridade da saúde de mulheres, vítimas diuturnas do formalismo estéril de muitas de nossas instituições jurídicas, que se comprazem em “espiolhar” inconstitucionalidades, como se deu nos primeiros tempos da vigência da Lei Maria da Penha, em que a polêmica inicial sobre suas inúmeras inconstitucionalidades só foi superada com o julgamento pelo STF da ADC 19 e da ADI 4.424, quando os ministros consideraram que todos os artigos da lei que vinham “tendo interpretações divergentes nas primeira e segunda instâncias estavam de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural”.

A sujeição, discriminação e violência de milênios não se superam com facilidade. A abordagem da questão da violência nas relações domésticas como um fenômeno social que exige ações públicas enfrenta diversas resistências. Sem dúvida, “naturalizou-se” a violência contra a mulher. Primeiramente é importante considerar a ideia, ainda presente em nossa cultura, de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Além disso, ainda persistem compreensões limitadas na conceituação “das violências”: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como “violência”? O que os “outros” entendem como “violência”? Qual o seu limite em uma relação familiar?

É urgente desconstruir mitos e estereótipos que ainda permeiam a nossa sociedade, inclusive entre os operadores de direito. Vale observar que negligências e omissões das instituições, muitas vezes são justificadas com base nesses mitos. Ressalte-se ainda a legitimação das agressões que, muitas vezes, são atribuídas ao comportamento provocativo e sedutor da mulher. Todos nós conhecemos frases do tipo “mereceu o abuso”; “você não sabia que ele era assim?”; “isso é normal”, “foi assim também comigo e eu suportei, pois Deus é mais”. Precisamos entender que mitos geram distorções, silêncios e preconceitos...

Alguns desafios precisam ser superados para a efetivação do enfrentamento à violência de gênero, por exemplo, a dificuldade e instabilidade das mulheres, em situação de violência, para denunciar e manter a denúncia; a incompreensão e a resistência dos agentes sociais responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos; a falta de apoio efetivo para as mulheres em situação de violência, no âmbito privado e público; a falta de programa de atendimento ao homem autor da agressão, com medidas eficazes de intervenção socioterapêuticas.

Sem dúvida, faltam políticas públicas — a Lei Maria da Penha não está sendo aplicada devidamente, pois, de seu texto resulta claro que a violência doméstica contra a mulher não pode ser tratada apenas como problema de justiça criminal, pois é uma questão de múltiplas dimensões[3]. É preciso sempre repetir: as leis não bastam.

Entretanto, essa violência doméstica que, durante séculos, o espaço da casa privatizou, não pode ser ignorada pelo estado. Essas mortes anunciadas em vários pontos do Brasil, dão uma medida do que vem ocorrendo: são necessárias medidas eficazes para o enfrentamento adequado, inclusive de natureza penal, se necessárias. É urgente agilizar e garantir a eficácia das medidas protetivas. O Brasil ratificou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW)[4] e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — Convenção de Belém do Pará[5] —, incluindo tais preceitos em seu ordenamento jurídico. Esta última Convenção, em seu artigo 7º estabelece que os Estados-Partes condenem todas as formas de violência contra a mulher e concordem em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar a dita violência e empenhar-se em “incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”, entre outras medidas.

Acrescente-se que a CF, em seu artigo 226, parágrafo 8º, estabelece que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

É preciso ter sempre presente que as intervenções do estado precisam ir muito além da responsabilização criminal do autor, enfatizando-se o exercício da cidadania das mulheres, as possibilidades de acesso à rede de serviços e à Justiça, buscando-se a implementação de ações educativas de prevenção, o fortalecimento das redes de atendimento e a capacitação de seus profissionais.

Entretanto, há de se buscar alternativas para que a efetivação plena da Lei Maria da Penha e, quando necessário, seu aprimoramento, com mecanismos que possam enfrentar a violência presente no cotidiano de milhares de mulheres brasileiras garantindo o estado, de modo eficaz, um bem jurídico altamente relevante: a vida e a integridade da saúde dessas vítimas, que continuam a morrer, muitas vezes, com a medida protetiva de urgência reduzida a um “mero pedaço de papel”.



[1] Dentre inúmeras decisões: STJ - AgRg no HC 292730 RS 2014/0086551-1; publicação: 05/06/2014; REsp 1477714/ 2014/0218656-0- j.23/10/2014; HC 298138 / RS HABEAS CORPUS 2014/0159212-3 (Processo T5 - QUINTA TURMA J.06/11/2014)


[2] Mapa da Violência 2012 Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil ; Coordenação: Julio Jacobo Waiselfisz- Centro Brasileiro de Estudos Latino--Americanos (CEBELA)/ Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais(FLACSO)-Brasil).


[3] Fixa a lei normas diretivas de políticas públicas em três eixos básicos: Proteção e assistência; Prevenção e educação; Combate e Responsabilização. Prevê a lei medidas multidisciplinares, com a adoção de políticas públicas necessárias para prevenir a violência contra as mulheres como ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas (educação como caminho indispensável para mudar comportamentos); planejamento adequado das ações, com base em dados e pesquisas ordenadas e racionais; Capacitação de profissionais envolvidos com a temática; assistência à mulher e à família em situação de violência e programas de intervenções socioterapêuticas em relação ao autor da agressão.


[4] A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women) foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da Resolução 34/180, em 18 de dezembro de 1979. Foi assinada pelo Brasil, com reservas na parte relativa à família, em 31 de março de 1981, e ratificada pelo Congresso Nacional, com a manutenção das reservas, em 1º de fevereiro de 1984. Em 1994, tendo em vista o reconhecimento pela Constituição Federal brasileira de 1988 da igualdade entre homens e mulheres na vida pública e privada, em particular na relação conjugal, o governo brasileiro retirou as reservas, ratificando plenamente toda a Convenção.


[5] Adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 06 de junho de 1994 - ratificada pelo Brasil em 27.11.1995.


Adélia Moreira Pessoa é advogada, professora, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da OAB-SE. Presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM.



Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2014, 6h37

terça-feira, 25 de novembro de 2014

STJ decidirá futuro de milhões de execuções fiscais

Julgamento sobre prescrição nesta quarta (26) afetará milhões de execuções fiscais
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará nesta quarta-feira (26) um recurso especial que terá importante reflexo sobre o andamento das execuções fiscais no Brasil – um universo de 27 milhões de processos, segundo o último relatório “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Só no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a decisão a ser tomada pelos dez ministros do colegiado impactará 1,81 milhão de execuções fiscais atualmente suspensas.

No recurso, submetido ao rito dos repetitivos, o STJ vai definir a correta aplicação do artigo 40 e parágrafos da Lei de Execução Fiscal – LEF (Lei 6.830/80) e a sistemática para a contagem da prescrição intercorrente (prescrição após a propositura da ação). O entendimento a ser firmado abrangerá as execuções fiscais propostas por municípios, estados e pela União.

As execuções fiscais, segundo o CNJ, correspondem à maior fatia dos 95 milhões de processos que tramitavam no país no ano passado. O volume é tão expressivo que os próprios tribunais de segunda instância têm dificuldade em identificar a quantidade de ações atualmente suspensas em razão de previsão da LEF e que serão afetadas direta e imediatamente pelo julgamento do repetitivo.

Os Tribunais Regionais Federais da 4ª Região, sediado em Porto Alegre, e da 5ª Região, em Recife, fizeram esse levantamento e apontaram, respectivamente, 111 mil e 171 mil execuções suspensas. Somado o TJSP, chega-se a 2,092 milhões em apenas três dos 32 tribunais sob jurisdição do STJ.

Quatro pontos

O recurso sobre a LEF (REsp 1.340.553) foi afetado à Primeira Seção como representativo de controvérsia repetitiva (artigo 543-C do Código de Processo Civil) pelo ministro Mauro Campbell Marques, tendo em vista a alta repercussão da matéria e o grande número de recursos que chegam ao tribunal para discussão do tema.

O colegiado definirá quatro pontos controversos: qual o pedido de suspensão por parte da Fazenda Pública que inaugura o prazo de um ano previsto no artigo 40, parágrafo 2º, da LEF; se o prazo de um ano de suspensão somado aos outros cinco anos de arquivamento pode ser contado em seis anos por inteiro para fins de decretar a prescrição intercorrente; quais são os obstáculos ao curso do prazo prescricional da prescrição prevista no artigo 40 da LEF; e se a ausência de intimação da Fazenda quanto ao despacho que determina a suspensão da execução fiscal (artigo 40, parágrafo 1º), ou o arquivamento (artigo 40, parágrafo 2º), ou para sua manifestação antes da decisão que decreta a prescrição intercorrente (artigo 40, parágrafo 4º) ilide a decretação da prescrição.

As teses firmadas pelo colegiado servirão de orientação às demais instâncias, e não mais serão admitidos recursos para o STJ quando os tribunais de segundo grau tiverem adotado esse mesmo entendimento.

O caso

No processo destacado pelo relator, a Fazenda Nacional recorreu contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que reconheceu de ofício a prescrição intercorrente e extinguiu a execução fiscal com base no artigo 40, parágrafo 4º, da LEF.

No recurso, a Fazenda Nacional alega que houve violação desse artigo, uma vez que não transcorreu o prazo de cinco anos exigido para a configuração da prescrição intercorrente, já que o TRF4 considerou como data para início da prescrição o momento em que foi determinada a suspensão do processo por 90 dias.

Sustenta que a falta de intimação da Fazenda quanto ao despacho que determina suspensão da execução fiscal (parágrafo 1º), ou arquivamento (parágrafo 2º), bem como a falta de intimação para sua manifestação antes da decisão que decreta a prescrição intercorrente (parágrafo 4º) não acarreta nenhum prejuízo à exequente, tendo em vista que ela pode alegar possíveis causas suspensivas ou interruptivas do prazo prescricional a qualquer tempo.

Na decisão que afetou o recurso repetitivo, o ministro Mauro Campbell abriu oportunidade para manifestação das Procuradorias dos Estados, da Associação Brasileira de Secretarias de Finanças (Abrasf), da Confederação Nacional dos Municípios e do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal.

Imposto sobre férias

Também está na pauta da Primeira Seção para esta quarta-feira o julgamento, como repetitivo, do REsp 1.459.779, que trata da incidência do Imposto de Renda (IR) sobre o adicional de um terço de férias gozadas.

Nesse caso, o estado do Maranhão questiona acórdão do Tribunal de Justiça local que decidiu que o abono, no caso de férias gozadas, não está sujeito ao IR por ter natureza indenizatória.

O estado recorreu ao STJ, sustentando que o IR incide sobre o adicional por se tratar de verba remuneratória e enfatizando a necessidade de distinguir entre férias gozadas e indenizadas.

O ministro Mauro Campbell ressaltou que o caso é diferente do já enfrentado em julgamento anterior pela Primeira Seção, também em recurso repetitivo, quando foi firmada a tese de que não incide IR sobre adicional de um terço de férias não gozadas.

Neste novo julgamento, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) atuará na condição de amicus curiae com a possibilidade de fazer sustentação oral. Segundo o relator, a participação da PGFN é relevante diante do evidente interesse da Fazenda Nacional no caso, por envolver um tributo de competência da União e que vem incidindo sobre o adicional de férias gozadas dos servidores públicos federais.Por causa da afetação desse tema como repetitivo, 750 recursos especiais estão sobrestados nas cortes de segunda instância aguardando a decisão do STJ.
Fonte: STJ

Seara é condenada em R$10 milhões por irregularidades trabalhistas


Seara é condenada em R$ 10 milhões por irregularidades trabalhistas





A unidade da Seara Alimentos S.A. em Forquilhinha (SC) foi condenada pela Justiça do Trabalho por danos morais coletivos devido a práticas consideradas atentatórias à dignidade humana de seus empregados. Entre elas, submetê-los a jornadas exaustivas e temperaturas extremamente baixas. A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho arbitrou o valor da indenização em R$ 10 milhões, que reverterão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

A condenação resultou de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) da 12ª Região (SC) a partir de denúncias de que a empresa teria demitido por justa causa, em maio de 2006, nove empregadas que se recusaram a prestar serviços no setor de corte de frangos, onde a temperatura ficava abaixo de 10°C.

O MPT instaurou procedimento investigatório, no qual representantes do Sindicato dos Trabalhadores da Alimentação de Criciúma e Região (SINTIACR) afirmaram que eram comuns as queixas dos trabalhadores sobre a baixa temperatura do ambiente e dos produtos, "chegando, às vezes, a 1ºC".

Mas a apuração acabou revelando diversas outras queixas, como uniformes inadequados para o frio e o ritmo excessivo de trabalho. Segundo depoimentos, a máquina de transporte aéreo de aves (nória) levava para a sala de corte cerca de nove mil frangos por hora e, muitas vezes, o intervalo de almoço era reduzido para "desencalhar" o produto.

Na ação, o MPT chama a atenção para o porte econômico da Seara, que segundo o órgão figura entre as líderes de exportação de cortes de frango no mercado mundial. O lucro líquido da empresa, de R$ 115 milhões, e a receita livre de impostos, de R$ 1,1 bilhão, no primeiro semestre de 2007, justificariam, na avaliação do MPT, um valor de indenização de R$ 150 milhões.

Condenação

A 4ª Vara do Trabalho de Criciúma (SC) julgou procedente a ação civil pública e condenou a Seara ao pagamento de indenização de R$ 14,6 milhões. Além da determinação para o fim das horas extras na área de produção, o juízo determinou que a empresa concedesse aos trabalhadores pausas para recuperação térmica (20 minutos a cada 1h40min trabalhadas) sempre que a temperatura no local fosse inferior a 10°, limite estabelecido no parágrafo 253 da CLT. Já o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC), entendeu que "o valor fixado não merecia ser reduzido, mas ao contrário, majorado", e arbitrou a indenização em R$ 25 milhões.

TST

No julgamento de recurso da Seara contra a condenação, o relator, ministro Alexandre Agra Belmonte, assinalou que, embora os números indicados pelo TRT-SC em relação à empresa sejam expressivos, os valores fixados foram excessivos. Ressaltou ainda que, apesar de o grupo econômico do qual faz parte a empresa (A Seara pertencia ao grupo Marfrig, e foi posteriormente vendida à JBS-Friboi) ter "aproximadamente 90 mil funcionários", a apuração na ação civil pública atingiu apenas os trabalhadores de Forquilhinha, "pelo que é preciso reavaliar o valor imposto, que não é razoável, porque desproporcional nas circunstâncias".

Parâmetros

Agra Belmonte disse que para chegar ao valor de R$ 10 milhões aprovado pela Terceira Turma foram utilizados alguns parâmetros, como a extensão do dano imposto à coletividade. "É incontroversa a adoção de condutas que violaram as condições de trabalho dos empregados da Seara", assinalou.

Outro critério foi a avaliação do grau de culpa em relação ao dano (artigo 944 do Código Civil). A prova de ritmo frenético de trabalho, sem pausas regulamentares, em condições climáticas absolutamente desfavoráveis demonstram, segundo o magistrado, que não houve descuido e sim intenção deliberada quanto ao modo de desenvolver a atividade, sem preocupação com as consequências.

Quanto ao valor fixado, Agra Belmonte disse que o capital social da empresa, que em maio de 2014 era de R$ 4 bilhões, representa um valor proporcional ao capital social, "critério objetivo que atende o princípio da razoabilidade", afirmou. "Não se vislumbra valor em patamar inferior que possa compensar a coletividade pelos danos e ao mesmo tempo sensibilizar a empresa à revisão dos métodos de trabalho", concluiu.

A adequação do valor da indenização foi a única parte provida do recurso da Seara. A Turma, por unanimidade, não conheceu do apelo nos demais temas, mantendo a condenação.

(Carmem Feijó/RR)


Fonte: TST

Turma entende que ação não pode ser ajuizada no domicilio de empregado que foi contratado e prestou serviços em outro local




Turma entende que ação não pode ser ajuizada no domicilio de empregado que foi contratado e prestou serviços em outro local  


Inconformada com a decisão de 1º Grau que julgou improcedente a exceção de incompetência em razão do lugar arguída em defesa, uma empresa de geologia e sondagem interpôs recurso alegando que o reclamante foi contratado em Belo Horizonte e trabalhou em diversas localidades. No caso, a competência do Juízo havia sido fixada a partir do domicílio do trabalhador, em Riacho de Macacos, pertencente à jurisdição da Vara do Trabalho de Monte Azul. Mas o entendimento não foi mantido pela 9ª Turma do TRT-MG. Dando razão à empresa, os julgadores determinaram a remessa dos autos para uma das Varas do Trabalho da cidade de Belo Horizonte.

O juiz de 1º Grau havia reconhecido a competência da Vara do Trabalho de Monte Azul, onde foi ajuizada a reclamação, ressaltando que os encargos impostos à ré, em decorrência do deslocamento da competência territorial, são ínfimos, se comparados ao enorme prejuízo que seria causado ao trabalhador. No entanto, para o relator do recurso, juiz convocado João Bosco de Barcelos Coura, não há como estabelecer exceções diversas daquelas já expressamente previstas na lei, uma vez que as regras de competência são de ordem pública.

Ele se referia ao artigo 651 da CLT, pelo qual, regra geral, a ação trabalhista deve ser ajuizada no local onde ocorreu a prestação de serviços, ainda que o empregado tenha sido contratado em outro local ou no estrangeiro. O dispositivo abre algumas exceções, quais sejam: empregado agente viajante, empregado brasileiro que trabalhe no estrangeiro e na hipótese de empresa que promova atividade fora do lugar da celebração do contrato. Nesse último caso, é assegurado ao empregado apresentar reclamação trabalhista no local da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços.



Conforme explicou o relator, o legislador previu essas exceções, buscando amoldar a lei à hipossuficiência do trabalhador, ou seja, considerando se tratar a parte mais fraca da relação. "Na verdade, a intenção do regramento acima delineado foi ampliar ao máximo o acesso do trabalhador ao Judiciário, facilitando, sobretudo, a produção da prova, com o objetivo de se concretizar a verdade real e inclusive a Justiça Social", ressaltou no voto.



Mas, para ele, isso não significa que a ação possa ser ajuizada no local do domicílio do empregado se assim não prevê expressamente a lei. No caso, as provas revelaram que ele foi contratado em Belo Horizonte e trabalhou em vários estados do Brasil e cidades do interior de Minas Gerais. "As regras de competência são de ordem pública, não cabendo ao Julgador estabelecer exceções diversas daquelas já expressamente previstas no texto legal. Assim, a tutela de acesso do hipossuficiente ao Judiciário deve ser interpretada em consonância com tais normas, não comportando interpretações que levem à escolha arbitrária do local de ajuizamento de ação pelo trabalhador", registrou o relator, rejeitando a pretensão do reclamante de fazer prevalecer o foro de seu domicílio, como se gozasse de privilégio processual. O magistrado citou decisão recente da Turma de julgadores no mesmo sentido.



Tendo em vista que a ação foi ajuizada fora do local da contratação ou da prestação da atividade, a Turma de julgadores acolheu a preliminar de incompetência territorial para, cassando a sentença proferida, determinar a remessa dos autos para uma das Varas do Trabalho da cidade de Belo Horizonte. A apreciação das demais matérias discutidas no recurso ficou prejudicada em razão do entendimento adotado.

Fonte: TRT3ª

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Ok. Juiz não é Deus (juge n'est pas Dieu!). Mas, há(via) dúvida?


OK, Juiz não é Deus (Juge n'est pas Dieu!). Mas, há(via) dúvida?



No princípio era o verbo (judicial)? Quem diz o direito?
Kelsen e sua maldição... Poderia simplesmente continuar a coluna da semana passada. Mas, não. A segunda e a terceira parte ainda virão. Na verdade, esta reflexão é apenas um efeito colateral da temática. Como sabemos, Kelsen disse, de forma pessimista, derivada de seu relativismo moral, que a interpretação feita pelos juízes na sentença é um ato de vontade. Mas, qual é a consequência disso? Simples: ao fim e ao cabo, se a sentença judicial é um ato de vontade, produzindo o juiz uma norma individual, então o direito acaba sendo aquilo que os juízes dizem que é. Embora muito discutível, autores como Michel Troper chegam a dizer que, aqui, haveria um ponto de aproximação de Kelsen com o realismo jurídico. Exageros à parte, é inegável que, no resultado final de sua proposta interpretativa, Kelsen acaba por aceitar ao menos parte dessa premissa. Principalmente se tivermos em conta a obra escrita por ele nos tempos em que vivenciou diretamente a experiência do common law.[1]

Neste momento, quero ficar mesmo com a famosa frase que se ouve — e se lê — a todo momento na doutrina e na jurisprudência de Pindorama: o direito é aquilo que os tribunais dizem que é (ou o direito é aquilo que o STF diz que é). Protótipo disso é a Recl 4335-AC, em que há dois votos de ministros repetindo essa máxima, literal ou explicitamente. Poderia também trazer à baila outros acórdãos de vários tribunais da República.

Por amor ao debate, penso que devemos discutir e refletir sobre os efeitos desse enunciado (o direito é aquilo que os tribunais dizem que é). Afinal, o que é o direito? Seria ele, efetivamente, o que o Judiciário diz que é? Kelsen tinha razão ao dizer que a decisão judicial provém de um ato de vontade?

Por trás dessa famosa frase “o direito é o que os tribunais dizem que é” está o velho realismo jurídico (na verdade, não só ele, porque qualquer postura voluntarista acaba produzindo o mesmo resultado). Falemos, então, um pouquinho sobre a frase de Holmes (the law is what the courts say it is[2]). Ela deve ser contextualizada. Na verdade, cuidadosamente contextualizada. Vendo-a repetida por aí, tem-se a impressão que a postura realista de Holmes poderia proporcionar algo de novo no direito de terrae brasilis. Penso, entretanto, que isso nada tem de novo. Peço uma pequena licença para exercitar minha LEER e aqui me repetir: o realismo jurídico (escandinavo e norte-americano) foi uma reação à jurisprudência analítica, forma de positivismo exegético de um Direito produzido pelos juízes no século XIX e no início do século XX. O século XIX teve três formas de positivismo (cfe. Hermenêutica Jurídica e[m] Crise, 11ª. Ed.). Cada um deles gerou a sua antítese, por assim dizer. Holmes foi o precursor do realismo norte-americano, uma forma de antítese a uma das formas de positivismo. E disse o que disse ainda no século XIX.

Interessa-me, apenas — mas, sobretudo — mostrar que a postura realista, nos moldes propagados por Holmes, foi um modo de superar a forma dedutiva de aplicação dos precedentes no common law, que, para usar uma linguagem simples, era tão “dura” quanto o positivismo francês. Logo, ao invés de o juiz ficar vinculado automaticamente aos precedentes, com o realismo jurídico a validade do direito foi transferida para a decisão, ou seja, criou-se uma nova forma de positivismo, o “fático”. Apenas inverteu-se a “pirâmide”: da dedução para a indução. Pode-se chamar a isso também de sociologismo jurídico (no velho direito alternativo também tratava o tema desse modo).

Mas, então, se isso que falei acima tem algum sentido — e penso que tem — qual é a razão pela qual se continua por aqui a sustentar tais teses alienígenas de forma descontextualizada? Essa é que deve ser a indagação dos juristas brasileiros. Não se trata de implicância teórica minha. Trata-se, sim, de discutir as tão importantes condições pelas quais são construídos os discursos de validade do Direito.

Há várias razões para que nos preocupemos. Por exemplo, por trás dessa tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é está um livre-atribuir-de-sentido, que aproxima esse tardio realismo à Escola de Direito Livre e seus sucedâneos (sociologistas, voluntaristas, etc). Sim, isso deve ser dito. E devemos debater isso.

De minha parte, não concordo com a tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é. Fosse isso verdadeiro, não precisaríamos estudar e nem escrever. O direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador (e tampouco na vontade coletiva de um tribunal).

Por tudo isso, a doutrina brasileira deveria estar (mais) atenta. Sejamos claros. Se é verdade que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é e se é verdade que os juízes possuem livre apreciação da prova (sic) ou “livre convencimento” (sic), então para que serve a doutrina? Ela só serve para “copiar” ementas e reproduzir alguns “obter dictum”? Para que serve o “bordão” da “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”?

Pensar que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é constitui uma carta branca ao judiciário. Pensar assim é o mesmo que apostar em uma espécie de “hermenêutica de resultados”, algo do tipo “decido-e-depois-busco-o-fundamento”. É claro que isso pode, por vezes, dar resultados. Afinal, um relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia. O grande problema é que ficamos na dependência não de uma estrutura jurídica de pensamento apta a fornecer sustentáculos à construção de decisões adequadas, mas, sim, de posturas individualistas (ou, se quiserem, solipsistas, para usar uma palavra chata).

Numa palavra: penso que o debate sobre os diferentes modelos de interpretação e de decisão é absolutamente necessário. A questão é sabermos que tipo de direito queremos para o futuro do Brasil. Você gosta de chegar no tribunal e ouvir o funcionário dizer que o processo já está julgado uma semana antes ou dias antes e que a sessão pública é uma espécie de simulacro? Ou gosta de ouvir do julgador algo como “não adianta nada o seu memorial; não mudarei de ideia; tenho a minha convicção pessoal sobre esse assunto”...

Nossa formação jurídica, nosso ensino, nossas práticas, encontram-se arraigadas a um paradigma filosófico ultrapassado. Sei que é difícil — e até antipático — dizer isso, mas falta filosofia. Falta compreensão. Nosso imaginário jurídico está mergulhado na filosofia da consciência (na verdade, na sua vulgata). Nele, cada juiz é o “proprietário dos sentidos”. É um equívoco dizer que sentença vem de sentire. Essa é uma das grandes falácias construídas no Direito.

O direito depende de uma estrutura, de uma intersubjetividade, de padrões interpretativos e não da “vontade”. Por isso, vai aqui a minha contestação à frase famosa de Holmes! De Holmes para cá, já se passaram mais de 100 anos...

Li dia desses uma pesquisa feita no judiciário do Paraná, onde um desembargador disse que não dá para esperar que o juiz se separe de seus conceitos políticos e religiosos, etc. Fiquei pensando: como assim, Excelência? Quer dizer que a causa do cidadão depende do que o juiz pensa sobre o direito? Minha LEER me insta a dizer de novo que: a) juiz tem responsabilidade política; b) ele decide e não escolhe;[3] c) a consciência do juiz não é um ponto cego ou isolado da cultura. Portanto, a frase do desembargador paranaense tem um problema: Ninguém nessa altura do campeonato acha que o juiz é uma alface ou que esteja amarrado aos textos como no iluminismo. Desde há muito que a hermenêutica superou isso, na medida em que a carga de pré-conceitos não é um mal em si, mas é uma aliada. Interpretar não é atribuir sentidos de forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição, que depende da suspensão dos pré-conceitos. Se o juiz não consegue fazer isso, não pode e não deve ser juiz. São os dois corpos do rei, como diria Kantorowicz. As decisões devem obedecer a integridade e a coerência do Direito.

Numa palavra: os dois modos de ver tudo isso
Claro que há dois modos de ver tudo isso: há o ponto de vista interno, do participante, e o ponto de vista externo, do observador. Do ponto de vista endógeno, alguém pode dizer: bobagem isso tudo; isso é assim mesmo; não há o que fazer. Mas, do ponto de vista externo, há o compromisso científico em dizer que “isso não deve ser assim”. O direito não é o que o judiciário diz que é. Se não for por outro motivo, o jurista deve pensar de forma utilitarista: para a sobrevivência do direito e dele mesmo, o direito não pode ser o que o judiciário diz que é. Há mais gente produzindo o direito. Até mesmo o legislador produz direito, se me entendem a fina ironia.

Post scriptum: Afinal, juízes (não) são deuses?
Tudo o que escrevi acima tem a ver com a discussão sobre “se juízes são deuses” (sic). Já se diz por aí que “não, juízes não são deuses”. Portanto, acrescento eu: então, no princípio... não é(ra) o verbo judicial. Bingo. E aleluia, irmãos! Consequentemente, o direito não é o que os tribunais dizem que é. Então minha coluna está coberta de razão. Meu Amigo Néviton Guedes (ler aqui) — com muito mais contundência que eu — diz que “é óbvio que juiz não é Deus”. Mas, indago com meus botões não-divinos: se é (tão) óbvio, por que precisa dizer a todo momento isso? Parece meio freudiano isso. Tem um amigo meu que é juiz e a todo momento diz: “— sou uma pessoa normal, como qualquer outra”. Até já escalei um estagiário para andar ao seu lado para dizer: “— é isso mesmo, Excelência”, tal qual um escravo que andava ao lado dos Césares, quando, depois das batalhas, voltavam e eram saudados como deuses, sendo a tarefa do fâmulo a de dizer, ao pé do ouvido: “— lembra-te que és mortal”. Bem assim. Penso que meu outro amigo, o leitor Sérgio Niemeyer, fez uma excelente apreciação (no bojo da coluna do Néviton) dessa espécie de “ato falho” quando se “confirma”-que-juiz-não-é- deus”.

De minha parte, fazendo uma brincadeira com um famoso quadro de René Magritte (ver aqui), em que, embora retrate fielmente um cachimbo, o enunciado abaixo diz: Ceci n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), permito-me dizer para os meus leitores: Juge n'est pas Dieu. Quer dizer: é, mas não é; ou não é, mas é. Ou, mesmo dizendo que não é... lá no fundinho, sabe como é... vá que Deus exista e tenha delegado parte de sua função. Com efeito. Nestes tempos bicudos, o juiz vem sendo alçado a um protagonismo maior do que aquele que bradava Büllow frente ao Imperador no século XIX; então, quando chegam pedidos ao judiciário “tipo multiplicação dos pães e peixes” (a frase é do desembargador Néviton) e pretendentes a aposentadoria rural que não diferenciam um bovino de um equino (conforme bem denuncia o mesmo Néviton), minha pergunta é: por que os juízes não dizem simplesmente não a isso? Afinal, só quem multiplica pão e peixe[4] é Deus (ou seu filho, que, afinal, também é Deus), se me entendem a ironia. De todo modo, essa controvérsia sobre a “divindade do juiz” (sic) já está ficando deveras chata. Ah: no tempo do regime militar, antes das eleições sempre aparecia alguma autoridade para dizer que “a posse dos vencedores estava garantida”. Pois é. Mas, se estava mesmo, por que precisava dizer? Eu e meus amigos do diretório acadêmico dizíamos: “— hum, aí tem coisa. Se eles estão dizendo é porque...”. Dizendo de outro modo e bem simplesinho: se juiz não é deus, por que precisamos dizer que não é?

Falta só aparecer no twitter a seguinte “rechtegui”: #juiz não é Deus. Ou em francês, mais chique! # Juge n'est pas Dieu!



[1] Refiro-me ao livro Teoria Geral do Direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Por certo, não seria possível aproximar Kelsen do realismo jurídico se tivéssemos como horizonte o problema do método de investigação do direito sugerido por cada uma dessas vertentes teóricas. Certamente, Kelsen acharia o método do realismo naturalista demais; sociologista demais; pouco adequado para os propósitos do seu normativismo. Porém, quando o jusfilósofo procura descrever o modo como o ordenamento funciona em sua estrutura dinâmica, ele acaba por aceitar, em alguns aspectos, teses que possuem alguma vinculação com o realismo jurídico. Exemplo típico seria o caso em que ele aceita uma decisão judicial tomada sem amparo em nenhuma norma geral anterior mas que se encontre já imunizada pela coisa julgada. Para Kelsen, esse caso já não seria uma problema ou, nos suas palavras, “passa a não ter importância jurídica” (Teoria Geral do Direito e do Estado. op., cit., p. 224). Mais adiante, contudo, apresenta ele a seguinte ressalva: “mas esse fato não justifica a suposição de que não existem normas jurídicas gerais determinando as decisões dos tribunais, de que o Direito consiste apenas em decisões de tribunal”. De todo modo, é importante frisar que, ao mesmo tempo em que Kelsen rechaça a tese de que o Direito não pode ser descrito apenas como o resultado de decisões dos tribunais, ele afirma que, entre a norma geral a ser aplicada e a norma individual a ser criada pela sentença, existe um espaço semântico a ser preenchido pela discricionariedade do órgão aplicador. Aqui está o ovo da serpente! A disputa conceitual, sobre ser ou não o direito “apenas aquilo que os tribunais dizem que é” acaba sendo, ao final, uma questão menor.


[2] "One Nation Indivisible, With Liberty And Justice For All": Lessons From The American Experience For New Democracies. WALD, Patricia M., Fordham Law Review, Volume 59; Issue 2; Article 3.


[3] Antes que alguém venha de novo com a ladainha de que “ele critica, mas não apresenta soluções”, sugiro a leitura no mínimo do capitulo 6º. Do livroJurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, RT, 2014.


[4] Já o dinheiro da Viúva para pagar as aposentadorias rurais e outras tantas despesas decorrentes de decisões judiciais é impossível de ser multiplicado como na parábola da multiplicação dos peixes e dos pães. 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2014, 8h00

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...