quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Viúva de empregado que tinha outra família comprova legitimidade para propor ação trabalhista


Viúva de empregado que tinha outra família comprova legitimidade para propor ação trabalhista



O espólio de um motorista falecido que trabalhava para o Município de São José da Laje, em Alagoas, representado por sua ex-esposa, conseguiu demonstrar à Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho que detinha a legitimidade para propor reclamação requerendo verbas trabalhistas decorrentes do vínculo de emprego com o município. O empregado deixou ainda uma companheira e três filhos.

Na decisão anterior, o Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região (AL) havia extinguido o processo sem resolução do mérito, por entender que a ex-esposa do empregado não tinha legitimidade para propor a ação, porque não havia nos autos documento que comprovasse a sua qualidade de inventariante, ou seja, que representasse o espólio.

Ao examinar o recurso do espólio para o TST, o ministro Alberto Bresciani, relator, afirmou que a discussão acerca da legitimidade ativa para ajuizar ação pedindo parcelas trabalhistas devidas a empregado falecido "resolve-se à luz da Lei 6.858/1980, que trata especificamente do tema". O artigo 1º dessa lei estabelece que tanto os dependentes habilitados perante a Previdência Social como os sucessores previstos na lei civil podem requerer as verbas não recebidas em vida pelo empregado falecido, "independentemente de inventário ou arrolamento".

Segundo o relator, apesar da não comprovação da viúva na condição de inventariante, ficou demonstrado que ela é a sucessora legal do empregado morto, na "qualidade de cônjuge sobrevivente" (artigo 1.829 do Código Civil). Ela apresentou as certidões de casamento e de nascimento dos filhos do casal, para fins de comprovação da condição de herdeiros necessários do empregado falecido.

O magistrado destacou que o fato de outra pessoa ter comparecido à sessão de audiência como companheira e mãe de três filhos do empregado, dois deles menores, não afasta a legitimidade da representante do espólio para ajuizar a ação trabalhista. Concluindo ser inafastável esse entendimento, pois ficou devidamente configurada a sua legitimidade para compor o polo ativo da reclamação, o relator determinou o retorno do processo ao Tribunal Regional, para que prossiga no exame da ação.

A decisão foi unânime.

(Mário Correia/CF)


O TST possui oito Turmas julgadoras, cada uma composta por três ministros, com a atribuição de analisar recursos de revista, agravos, agravos de instrumento, agravos regimentais e recursos ordinários em ação cautelar. Das decisões das Turmas, a parte ainda pode, em alguns casos, recorrer à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1).

Empresas e sindicatos são condenados por usar comissão de conciliação prévia para fraudar direitos


Empresas e sindicatos são condenados por usar comissão de conciliação prévia para fraudar direitos





A Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho negou provimento a agravo de um sindicato de trabalhadores e de uma concessionária de transportes urbanos de São Paulo (SP) contra decisão que os condenou em R$ 50 mil por dano moral coletivo por utilizarem a comissão intersindical de conciliação prévia (CCP) como instrumento de violação dos direitos dos trabalhadores. Segundo o processo, nos acordos firmados na CCP, os trabalhadores abriam mão de direitos em troca de sua permanência no emprego.

O caso foi tratado em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) da 2ª Região (SP), ajuizada a partir de denúncias de irregularidades na sucessão de empresas concessionárias de transporte público de São Paulo. As empresas Via Norte, Viação São Paulo e Auto Viação Brasil Luxo, contratadas em 2002 em caráter emergencial, foram descredenciadas e sucedidas pela Sambaíba, vencedora de concorrência promovida pela Secretaria Municipal de Transportes do Município.

A fim de não assumir o passivo trabalhista das empresas descredenciadas, criou-se, segundo o MPT, "uma estratégia jurídica" para refutar a sucessão e, em seguida, dispensar os empregados das antecessoras sem grandes prejuízos financeiros, envolvendo as empresas, o Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano e o Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de São Paulo. Os empregados das empresas descredenciadas estariam sendo forçados a firmar acordos contrários aos seus direitos sociais e a simular lides na CCP para homologar as rescisões dos contratos. No entanto, os sócios das empresas descredenciadas e da sucessora eram os mesmos.

Na ação civil pública, o MPT requereu a declaração de sucessão trabalhista e a condenação da Sambaíba e dos sindicatos patronal e profissional por dano moral coletivo por desvirtuar o uso das CCPs.

Violação de direitos

O juízo da 10ª Vara do Trabalho de São Paulo constatou que, em diversos casos, as verbas rescisórias dos empregados das empresas descredenciadas não eram pagas em sua totalidade, e que após a homologação, para receber as diferenças, firmava-se termo de conciliação na CCP pelo qual o trabalhador dava quitação ampla e geral do extinto contrato. Quanto ao FGTS, o acordo previa que o trabalhador dava quitação pelo valor que estivesse depositado em sua conta, abrindo mão, assim, da multa de 40%.

Segundo a sentença, havia provas de que os empregados não compareciam espontaneamente perante a comissão: a quitação era condição para que fossem admitidos pela Sambaíba. Assim, concluiu que a CCP, prevista nos artigos 625-A a 625-H da CLT, estava sendo usada de forma indevida, e determinou que os dois sindicatos a organizassem dentro dos moldes legais.

Além de reconhecer a existência de sucessão entre as empresas, a sentença condenou os dois sindicatos e a Sambaíba por dano moral coletivo, fixando a indenização em R$ 50 mil, reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A condenação foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP).

Na tentativa de trazer o caso à discussão no TST, o sindicato dos trabalhadores e a empresa interpuseram agravo de instrumento no qual alegavam que a decisão, ao interferir na organização da CCP, afetaria a liberdade sindical. Sustentaram ainda que não cometeram nenhum ato ilícito que justificasse a condenação por dano moral coletivo.

O relator do agravo, ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, observou que o TRT-SP, "soberano no exame dos fatos e provas", reconheceu taxativamente a existência de conluio para fraudar e desvirtuar os preceitos trabalhistas. Nesse contexto, a jurisprudência apontada como violada pelos agravantes não serviam para tal finalidade, pois não tratavam da mesma situação, como exige a Súmula 296, item I, do TST. Por unanimidade, a Turma negou provimento ao agravo.

(Lourdes Côrtes e Carmem Feijó)


O TST possui oito Turmas julgadoras, cada uma composta por três ministros, com a atribuição de analisar recursos de revista, agravos, agravos de instrumento, agravos regimentais e recursos ordinários em ação cautelar. Das decisões das Turmas, a parte ainda pode, em alguns casos, recorrer à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1).

Seguro de acidentes pessoais não cobre morte por AVC

Seguro de acidentes pessoais não cobre morte por AVC
Apesar do nome, o acidente vascular cerebral – conhecido pela sigla AVC – enquadra-se no conceito de causa de morte natural, e não acidental, para fins de seguro. O entendimento é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao negar recurso dos beneficiários de um contrato de seguro de acidentes pessoais celebrado com a Santander Seguros S/A.

Os beneficiários ajuizaram ação contra a Santander Seguros pretendendo que a morte do segurado – causada por acidente vascular cerebral – fosse enquadrada como acidental, incluída, portanto, na cobertura do contrato.

O segurado havia contratado um seguro de acidentes pessoais que previa cobertura para os casos de morte acidental, invalidez permanente total ou parcial por acidente, assistência funeral e despesas médico-hospitalares.

Após a ocorrência do AVC, o contratante faleceu, e os beneficiários requereram o pagamento da indenização, a qual foi negada pela seguradora sob o argumento de que o sinistro morte natural não estava garantido no contrato.

Súbito e violento

A primeira instância entendeu que houve morte natural e que esse evento não tinha cobertura, decisão mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

No recurso ao STJ, os beneficiários afirmaram que o AVC que vitimou o segurado “é tido como um evento súbito, violento, inesperado, que trouxe como consequência certamente uma lesão física que ocasionou a morte do proponente". Sustentaram que, por isso, o evento deveria ser considerado morte acidental.

Alegaram ainda que, havendo dúvida, as cláusulas de contrato de adesão devem ser interpretadas em favor do consumidor. Também pediram a anulação do processo por cerceamento de defesa, pois houve julgamento antecipado, sem produção de provas.

Faculdade do juiz

Em seu voto, o relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que, quanto ao julgamento antecipado da ação, devem ser levados em consideração os princípios da livre admissibilidade da prova e do livre convencimento do juiz.

O ministro mencionou que, de acordo com o artigo 130 do Código de Processo Civil, cabe ao julgador determinar as provas que entender necessárias à instrução do processo, bem como indeferir as que considerar inúteis ou protelatórias.

“O acórdão impugnado pontificou que não havia necessidade da juntada das condições gerais do contrato de seguro, porquanto a existência da apólice já era suficiente para o deslinde da controvérsia. Rever os fundamentos que levaram a tal entendimento demandaria a reapreciação do conjunto probatório, o que é vedado em recurso especial, a teor da Súmula 7 do STJ”, disse o relator.

Patologia

Villas Bôas Cueva afirmou que é necessário distinguir o seguro de vida do seguro de acidentes pessoais. “No primeiro, a cobertura de morte abrange causas naturais e também causas acidentais; já no segundo, apenas os infortúnios causados por acidente pessoal, a exemplo da morte acidental, são garantidos”, explicou.

Quanto à morte acidental e à natural, o ministro concluiu que a primeira está evidenciada quando o falecimento da pessoa decorre de acidente pessoal, definido como um evento súbito, exclusivo e diretamente externo. Já a morte natural está configurada por exclusão, ou seja, por qualquer outra causa, como as doenças em geral.

“No caso dos autos, o segurado faleceu de acidente vascular cerebral. Apesar dessa denominação”, explicou Cueva, “o AVC é uma patologia, ou seja, não decorre de causa externa, mas de fatores internos e de risco da saúde da própria pessoa”.Como estava contratada apenas a garantia por morte acidental (seguro de acidentes pessoais), a Terceira Turma isentou a seguradora da obrigação de indenizar os beneficiários do segurado vitimado por AVC, evento de causa natural, desencadeado por fatores internos à pessoa.
Fonte: STJ

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Como seria o protótipo do professor ideal na esteira do aluno ideal?


Como seria o protótipo do professor ideal na esteira do aluno ideal?



Comprei na Argentina o livro La Lentitude como método, de Carl Honoré. É um libelo contra a falta de planejamento e contra as “soluções rápidas”, tipo “manualescas”. Diz ele: a solução rápida não é o cavalo ganhador. Por si só nenhum algoritmo resolveu um problema global de saúde. Nenhuma compra impulsiva transformou a vida de alguém. Nenhuma caixa de bombons consertou uma relação amorosa espatifada. Nenhum DVD educativo transformou, até hoje, uma criança em um pequeno Einstein. Nenhuma conferência TED (de 18 minutos) mudou o mundo. Nenhuma guerra relâmpago já acabou com grupos terroristas. Tudo sempre é mais complicado que isso.

Bingo, pensei. Nenhum DVD transforma uma criança em um gênio. Não há autoajuda em Direito. Como também nenhum resumo transforma a vida de alguém. Não há facilidade. Não dá para cair na gandaia e querer prosperar sem que tenha QI, paitrocínio ou um emprego público sem precisar trabalhar.

Um dos sintomas de que tudo deve ser compactado e que não devemos refletir são os debates da campanha eleitoral. Trinta segundos para formular uma pergunta, um minuto e meio para responder e 50 segundos para réplica e tréplica... Patético. Ora, como um candidato vai explicar o que pensa fazer na saúde em 90 ou 120 segundos? Resultado: tudo fica fast food.Um debate macdonaldizado, em que os marqueteiros tomam conta da vida e dos destinos da nação. Uma vergonha. Tudo vira narrativa. Já não há fatos. Tanto faz o que o candidato pergunte ou diga. Se a pergunta for “por que a saúde vai mal”, responda, primeiro, que a “sua mãe se tratou há uma semana”; na sequência, diga que “construiu tantos postos de saúde”. Se o adversário disser que você está mentindo, diga que “o irmão dele emitiu um cheque sem fundos há 20 anos”. Ou que a sua tia toca banjo. Tudo é imagem. Palavras ao vento. Você venceu o debate. E a realidade? Bom, azar dela.

Consta que um dos segredos para que alguém se dê bem em frente às câmeras é não parar de falar. Em geral, ninguém está realmente prestando atenção ao conteúdo da fala. O importante é demonstrar segurança e não fazer pausas (a não ser, é claro, aquelas “dramáticas”, pré-programadas pelo pessoal do marketing). Se alguém fica quieto por alguns segundos, para refletir sobre o que se debate, dana-se. Demonstra insegurança. “Acusa o golpe”. É mais importante sacar um número ou um chavão do bolso do colete e meter bala do que reconhecer, por exemplo, que era o caso de “pensar melhor” sobre tal coisa.

Esse modelo é perceptível nos cursos-para-concursos públicos — em especial, aqueles ministrados via Educação a Distância (EAD). Deus nos livre de um professor que não saiba “de cor” as expressões utilizadas pelo Ministro Fulano no RE número tal. De um professor que levante problemas e suscite questões não enfrentadas em determinado caso, ou que aponte a penumbra por detrás do vaticínio de uma súmula. “E se cair na prova, professor, o que eu marco?” Alunos têm pânico de “mestres” que não cravem a resposta: “se for para a Defensoria, é tal!” — com aquela segurança bruta que, me desculpem, só os ignorantes têm.

Assim é o ensino jurídico. Pasteurizado. Embalado a vácuo. O resultado? Bom, o resultado pode ser visto em palestras e aulas (e na baixa sofisticação de nossa jurisprudência). O professor diz algo mais sofisticado e a expressiva maioria sequer sabe o significado das palavras. Um bom exercício é o professor pedir para os alunos lerem em voz alta um texto. Peguem dois textos: um escrito por um desses facilitadores; e depois peguem um texto de Hart ou Kelsen. No primeiro caso, eles conseguem gaguejar menos. No segundo, as pausas são constrangedoras. Feito isso, peça para interpretarem os dois textos. No primeiro caso, os textos são autoexplicativos (que é a pretensão isomórfica dos livros facilitadores-simplificadores-resumos, etc); no segundo caso, o resultado é desastroso. Em palestras, se o conferencista faz uma ironia usando filosofia, o silêncio é igualmente constrangedor. Mas, com certeza, um professor neopentescostal fará os alunos reagirem, contando um exemplo envolvendo crime sexual ou de direito do consumidor em que o sujeito foi ao motel e... Bom, tem de ser engraçado, certo? Mais ou menos como o humor de A Praça É Nossa ouZorra Total–autoexplicativo. Eis a fórmula “DVD para crianças se tornarem Einsteins”.

Minha tese: ganharás o pão com o suor do teu rosto. Não há intelectual bronzeado. A preparação de alunos passa pela pesquisa. Professor que não pesquisa e que não possui um projeto de pesquisa tem imensas dificuldades em passar para os alunos algo para além do trivial, da cultura fast food. Tenho lidado por décadas com alunos pesquisadores. Comecei como tutor do Programa Especial de Treinamento (PET), na década de 80 no mestrado da UFSC. Sempre acompanhei grupos de alunos da graduação, mestrado e doutorado no desenvolvimento da pesquisa. Hoje recebo também professores que fazem pós-doutorado comigo. Minha equipe hoje é formada por 14 pessoas, que se reúnem comigo às terças-feiras. Fora os que se relacionam comigo por e-mail. Todos têm tarefas a cumprir. Escrevem textos. Solo e em co-autoria comigo. Alunos de graduação, depois de dois anos, já possuem uma “unha enorme” e já estão em condições de debater com(o) “gente grande”. Todos alunos são obrigados a ler os clássicos. E devem conhecer a obra do professor. Somando e dividindo, quando terminam o mestrado e/ou o doutorado estão prontos para enfrentar a sala de aula. Entre esse conjunto de alunos, há profissionais militantes; portanto, ser lidadores do direito não afasta a pesquisa. Ao contrário: agrega. Na Unisinos (Capes-6) e na Unesa (Capes-5), tenho orientandos e co-orientandos de todos os cantos do país. Todos os alunos que fazem dissertações e teses comigo publicam seus textos. É garantia de qualidade. E de profundidade.

Não há fórmulas para o professor ideal. Professor não faz milagres com grades curriculares como as que vicejam nas centenas das faculdades de leis (e não de direito). Quem leu a coluna da semana passada (ler aqui), entenderá o que estou dizendo. Posso acrescentar ao protótipo do aluno ideal — e às necessárias mudanças curriculares — um conjunto de ideias para a formação de um professor que tenha condições de encarar um ensino jurídico de qualidade.

Com efeito, para começar, esse professor deve ter condições de “vender o seu peixe” sem a bengala dos resumos e do Bacharel Google. Esse é o desafio, no mínimo no plano simbólico. Uma aula sem livros de direitos facilitados, simplificados, resumos, resumões, manuaizinhos de baixo teor epistêmico: nem o professor pode usá-los, nem os alunos. Pronto. Vamos construir novos conhecimentos (isso é diferente de, atenção!, associar ideias livremente, de querer substituir suor por “criatividade”). Vamos pegar um acórdão do Supremo Tribunal e fazer uma anamnese? Quais os pressupostos teóricos que a Corte lançou mão? Eles são consistentes? O julgado obedeceu a coerência e a integridade ou foi um caso decidido ad hoc? Se o Tribunal (pode ser usado acórdão de qualquer tribunal) lançou mão dos métodos de Savigny, eis aí a oportunidade de o professor falar sobre esse autor e mostrar o que foi o positivismo alemão do século XIX. Na sequência, compará-lo com o que veio depois. Quem foi Ihering? O que ele tem a ver com Savigny? Quem foi Philipe Heck? Um tema puxa o outro, devendo a coordenação do curso fazer esse esquema tático. Isso tem de ser capilarizado por todo o curso de direito.

Vamos comparar, neste semestre, as diferentes visões sobre o direito penal desde o império? O que se entende por bem jurídico desde o Código de 1830? Quem foi Teixeira de Freitas? Qual é a relação do Código Civil brasileiro com o Code francês e o BGB alemão?

O que é isto — a teoria do Estado? O que o absolutismo tem a ver com o Estado Moderno? O que quer dizer a palavra “modernidade”? E pós-modernidade? Quais os paradigmas filosóficos que estão por trás dos CPCs de 1939, 1973 e o atual em gestação? O CPP foi inspirado em quais pressupostos filosóficos no que tange à formação da prova e o papel do juiz? O que é isto — o inquisitorialismo? É correto um autor de processo penal dizer que o CPP tem um modelo (inquisitorial) e a Constituição, outro (acusatório)? O que é uma teoria das fontes para esse tipo de autor? O que tem a ver as questões dos “sistemas de produção de prova” com as mudanças ocorridas na Constituição de 1988? O que é a teoria da recepção das leis? Quantas vezes até hoje o STF fez nulidade parcial sem redução de texto? Está correto o STF equiparar os conceitos de validade, vigência e eficácia? Qual é a consequência disso?

O juiz do Tocantins deu uma decisão invocando o princípio da felicidade ou da afetividade? Muito bem. Vamos discutir neste semestre o que é isto — o princípio? Qual é a relação dos princípios gerais do direito com os princípios constitucionais? O que é isto — um axioma do século XIX? O que é isto — a relação direito-moral do século XX? Houve uma continuidade ou descontinuidade no conceito de princípio? Princípios são valores? Então não são normas, certo? Ou são? Por quê? Quem foi Kant? E o neokantismo? Qual é o papel da autonomia do direito nessa relação direito-moral-economia-política? O direito pode ser corrigido pela moral? Ainda hoje podemos falar em injustiças? O que é isto — o ideal de vida boa escrito na Constituição? O que é ética? O que é moral?

Cognotivismo ético? Cognotivismo moral? O que isto tem a ver com o constitucionalismo do segundo pós-guerra? Em termos filosóficos, é possível sustentar cognotivismos? Recasens Siches e o positivismo jurídico... Uma boa aula pode sair de um confronto Siches-Kelsen... Siches, ao sustentar a lógica do razoável, é um pós-positivista? Mas não tem uma certa ontologia clássica por trás de Siches? Quem é Friedrich Müller? Palavras e coisas... Qual é a relação da questão palavra e coisas constantes no Crátilo com a tese de Müller sobre texto e norma? E o que isso tem a ver com a hermenêutica? Quais os autores brasileiros que tratam dessa temática de forma aprofundada?

Quem trata dos TCCs? O que o professor está dizendo sobre a metodologia? Ele ensina que há indutivismo? Ou ele diz que o método é o dedutivo? O professor está indicando livros que dizem isso? Então peça para ele demonstrar isso empiricamente. E com uma boa literatura jurídica.

O que é isto — o instrumentalismo? Podemos falar em escopos processuais? Mas o que isto tem a ver com o livre convencimento? E os embargos são compatíveis com a exigência de fundamentação do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal? Processo de conhecimento: como sobrevive? O que é a prova? Taruffo tem razão ao sustentar o conceito de verdade comoadeaquatio intelectum et rei? Ou ele está defasado? Mas, se está, porque faz tanto sucesso? Quais as condições de possibilidade de trabalharmos conceitos como verdade,[1] cognição, pré-compreensão na teoria do processo e nos respectivos processos? Pré-compreensão é igual a subjetividade? Por que “Direito civil constitucional” e não “direito tributário constitucional”, “Direito penal constitucional”? Existem hermenêuticas regionais para interpretar os diversos ramos do direito? O que é hermenêutica? E o que são paradigmas? 

A prova de ofício: Justifica-se constitucionalmente? O que é isto — os poderes instrutórios do juiz? Será que o juiz que concede pedido liminar não se torna parcial para julgar o feito? É adequado permitir que o juiz responsável pela concessão de prisão cautelar também sentencie? Juiz que determina prova de ofício pode mesmo julgar? Aquele juiz que tem sua sentença anulada está constitucionalmente autorizado a reapreciar a causa?

Súmulas vinculantes e jurisprudência defensiva: por que esta tem lugar no nosso sistema? Ela é constitucional? Se a Constituição diz que o STF e o STJ julgam causas, porque hoje eles só julgam teses? O professor tem de promover um debate sobre isso. Repercussão geral: por que existem inconstitucionalidades de primeira divisão e inconstitucionalidades de segunda divisão? O que é decidir? É o mesmo que escolher? Mas, se é o mesmo, para que necessitamos de doutrina? Holmes tinha razão quando disse que o direito é o que os tribunais dizem que é? Peça para os alunos levantarem todos os julgamentos do Tribunal local utilizando a “ponderação”. E depois, cotejam os argumentos com o conceito de ponderação. Mais: testem a(s) fórmula(s) de Alexy, empiricamente, para ver se tem sentido...

O que é isto — o ativismo judicial? Isso é bom para a democracia? Posicione-se, professor. Mostre dados empíricos. Demonstre o que fala. Quais são as raízes de quem pratica ativismo? Isso tem raiz filosófica? Ou foi parido por uma chocadeira-epistêmica?

Três aulas para falar sobre o papel da doutrina. Que não mais doutrina. Que é caudatária dos tribunais. O que a frase de Holmes tem a ver com o realismo jurídico? O que é isto — a relação realismo filosófico e o positivismo? Aplicar a “letra da lei” é positivismo?

Meio semestre para ler Kelsen. Para entender de vez o criptograma do positivismo. Qual é a relação do positivismo com o relativismo e o pragmatismo? E paremos com esse negócio do professor pegar o Código Penal e ficar discutindo artigo por artigo com os alunos. Ou qualquer outro Código ou lei. Qualquer aluno, em trinta segundos, pesquisa isso em qualquer site. Por que pagar para o professor contar coisas que estão em qualquer lugar, inclusive à venda nas gondolas de supermercados? Comunicação tautológica: é nisso que se transformaram as salas de aula. O professor diz ou usa um livro que qualquer um — mas qualquer um mesmo — poderia ter dito ou escrito. Mas, então, para que necessitamos de um professor?

Eis, portanto, algumas reflexões que deixo com os alunos e professores. Comecemos logo. Na entrada da sala de aula, coloquemos uma mesa para depositar os livros que não devem ser usados durante as aulas e no aprendizado dos alunos. E o professor será desafiado a, de fato, no gogó, ministrar aulas. Esse é o seu mister. Vamos ler um capitulo de um bom livro de teoria do direito ou de dogmática jurídica e dele retirar o cerne, com críticas internas e externas. E as provas? Provas objetivas se justificam em concursos públicos, onde milhares se inscrevem e, na primeira fase, há que fazer uma triagem. Mas, na faculdade, é justificável, tendo a sala de aula tem em média 60 alunos? Há que remunerar os docentes por correção de provas. E as provas devem ser dissertativas. Os alunos devem saber escrever. E pensar. Resolver grandes casos jurídicos. 

A formação mínima de um jurista

Não quero fazer aqui “terra arrasada”. Meu objetivo não é o de que vocês digam “ah, assim seria se assim fosse, mas... não é”. Sei que é importante ter na “ponta da língua” boa parte do conhecimento jurídico, digamos, mais “dogmático”. Afinal, também nos movemos em uma “dogmática do cotidiano”. É necessário saber, sim, o conceito de legítima defesa ou quais os requisitos necessários para que alguém responda pelo dano que causou a outrem. Ou os pressupostos da antecipação dos efeitos da tutela, ou o que se entende por “direito líquido e certo” (sic), ou qualquer outra destas chaves com que abrimos as portas todos os dias. O erro não está aqui (quando não me pergunto mais por alguma coisa, é porque já a compreendi, pois não?), mas, sim, em acreditar que nada há além disso. As respostas só estão prontas para as perguntas que já foram feitas. Devemos estar preparados para novas perguntas.

Não queria ter uma causa patrocinada por um “jurista” que ficasse paralisado, num exercício de dúvida socrática, diante de uma dessas questões já respondidas pelo Direito. Ou assistir aula com um professor que não me desse respostas diretas e objetivas, quando estas forem possíveis ou necessárias para a construção do saber. Também não quero que o neobacharel saia da faculdade acreditando que deve “reinventar a roda” diante de cada ação de alimentos.

Quero, sim, numa palavra final, formar pessoas que saibam distinguir umcaso fácil de um caso difícil — mas isso só se faz, devidamente, quando se sabe que não há uma distinção ontológica (clássica) entre um e outro. Quando se está preparado para a possibilidade de tornar fácil um caso difícil (pela sua compreensão); e de se abrir para a possibilidade de que um casofácil seja, quando bem compreendido, mais complexo e difícil do que antes de imaginava.

Sei que é um trabalho de longo prazo. Talvez o ideal seria a lentidão como método (La lentitud como método). Fast food só é bom na fotografia. O gosto é horrível. Mas sempre há o primeiro passo. Professores: formem grupos de pesquisa. Alunos: adiram a esses grupos. E a pós-graduação deve se ajudar: não dá para fazer dissertação ou tese sobre agravo de instrumento ou sobre o papel do oficial de justiça ou sobre a união homoafetiva em um programa de meio-ambiente ou sobre o cheque em um programa de direitos fundamentais. E paremos de escrever que “regras é no tudo ou nada e princípios é na ponderação”. Isso ainda vai dar prisão em flagrante por crime epistêmico. E as agências de fomento devem investir melhor o dinheiro público, não mais concedendo bolsa para estudar a violência infantil do Brasil em doutorado no interior da Espanha. Ou o Banco Central do Mercosul a ser estudado...em Paris. Ou o MST brasileiro em Faculdade... da Argentina. Algumas concedidas, outras não. Pelos menos com parecer contrário meu. E pensemos bem antes de financiar a vinda de professores medíocres do exterior para vender espelhos e miçangas para os pindoramenses-impregnados-do-complexo-de-vira-lata.

Sou um otimista metodológico, do estilo “como se” (als ob, de H. Vahinger). É como se um dia isso pudesse acontecer. É como se um dia fosse possível defender grandes teses, profundas e sofisticadas, junto ao judiciário (lato sensu). E que nas bancadas dos fóruns e tribunais não mais fossem vistos livros e compêndios de baixa ou baixíssima densidade teórica, nos quais deveriam ter sido colocados, de há muito, uma tarja com a advertência “o uso constante deste material faz mal à sua saúde mental”. E na quarta capa a fotografia de um aluno ou um bacharel com cara de imbecil, dizendo: “— Li e fiquei assim”!

Quem teve paciência para ler até o final já ganhou vários pontos! Saludo e obrigado!



[1] Caro aluno: você já pensou em fugir para as montanhas quando o professor disse que “tudo é relativo no direito”? Não? Então pense seriamente. Ou use o Código do Consumidor.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 30 de outubro de 2014, 8h00

O protótipo do estudante de direito ideal e o "fator olheiras"


O protótipo do estudante de direito ideal e o “fator olheiras”



O estudante de direito Edilson Silva do Nascimento (Faculdades Integradas de Aracruz-ES), do segundo período, mandou-me e-mail, instando-me a escrever sobre como seria o “acadêmico de direito ideal” ou o que seria um ensino jurídico adequado nestes tempos bicudos de pauperização do conhecimento. Contou que muitos de seus colegas preferem brincar no facebook ou no smartfone em vez de prestarem atenção ao que o professor fala. O que fazer? E como deve ser uma aula, pergunta. Os alunos devem ser submetidos a um regime tal qual o contado no livro de Scott Turrow, O Primeiro Ano, em que relata como tinha de estudar e pesquisar?

Quanto à essa pós-modernidade, digo que, em minhas aulas (mestrado e doutorado) não admito — a não ser sob meu comando — a utilização, concomitante às minhas falas e aos seminários dos alunos, o uso dos instrumentos pós-chatos. Isso é para início de conversa. Se não é por outra coisa, trata-se de respeito ao espaço da sala de aula. Quer telefonar ou ver msn? Sai da aula.

Mas este é apenas um dos problemas. O ensino jurídico não vai mal porque os alunos ficam grudados no feicibuqui. Também por isso. Mas vai mal porque não há pedagogia sem dor. Não há intelectual bronzeado (é uma metáfora). Nem intelectuais-periguetes (os e as). No Direito, “pireguetear” não é preciso (apesar da paráfrase, permaneço aqui no nível apofântico — e a palavra “preciso” deve ser entendida em sua ambiguidade). E, fundamentalmente, não há a mínima possibilidade de avançarmos na melhoria do ensino jurídico enquanto a literatura utilizada for composta por um produto pret-à-porter, pret-à-parler e pret-à-penser.

Se a medicina for ensinada com livros “facilitados” como no direito, a ciência hipocrática vai morro abaixo. Espero, sinceramente, que os esculápios terra brasiliensis tenham uma formação melhor na graduação que nossos bacharéis em direito. Para exercitar minha LEER, pergunto (de novo): quem se operaria com um esculápio que tivesse escrito um livro com o título de “Operação cardíaca facilitada” ou “A fibrilação atrial em palavras cruzadas”? Ou quem se submeteria a tratamento com esculápios que tivessem estudado com professores que utilizaram livros tipo resumo-do-resumo?

Rafael Tomaz de Oliveira escreveu recentemente coluna (ler aqui) falando sobre o dilema dos livros mínimos que o aluno deve ler ou que o professor deve cobrar na faculdade de Direito. Não vou, aqui, delinear os livros que deveriam ser utilizados. Mas, por favor: hoje há professores de direito civil que não conhecem a história do direito civil alemão ou o brasileiro... Já fiz testes sobre isso, perguntando aquando surgiu — stricto sensu — o direito de propriedade em terrae brasilis. Aliás: o leitor sabe? E qual a diferença entre o tratamento da posse e da propriedade no século XIX em relação ao Código de 1916? No que isso influenciou a questão da terra?

Os alunos sabem como funcionava o controle de constitucionalidade no Império? Os alunos leram a Teoria Pura do Direito? Sabem que Kelsen nãoseparou o direito da moral? Se seu professor diz que Kelsen separou o direito da moral, fuja enquanto é tempo. Se o seu professor de Introdução ou filosofia do direito não sabe o que é neopositivismo lógico e sua importância para a construção da TPD, tome o mesmo rumo.

Se o seu professor de processo penal acha que a livre apreciação da prova é “assim mesmo” por ser uma fatalidade ou que o tal princípio (sic) da verdade real existe mesmo ou o seu professor de processo civil não sabe quem foi Büllow... (e sua relação com as escolas instrumentalistas) é porque você deve estar cursando outra coisa que não o “direito”. Talvez administração de empresas ou outra coisa.

Seu professor de direito do trabalho trabalha o “principio da primazia da realidade”? Ele não sabe que o socialismo processual acabou há mais de cem anos? Procure asilo na primeira embaixada (sugiro a embaixada da RECHD – República Epistêmica da Crítica Hermenêutica do Direito). E nem vou falar, aqui, da complexidade acerca do positivismo jurídico, incrivelmente simplificado nas salas de aula. É de chorar o que vem sendo ensinado sobre essa que é a mais importante temática do direito desde que o direito é direito positivo. E a tal “ponderação”? Palavra anêmica e vazia semanticamente... Do modo como vem sendo utilizada, não passa de uma fraude.

Isto só para começar a dizer para o aluno Edilson o que de mínimo um curso de Direito precisa propiciar ao aluno. O que falei é menos de um por cento. Assim como para estudar física, engenharia ou filosofia há um “kit” mínimo para começar, também no direito deveríamos fazer uma “cesta jurídico-epistêmico-básica”, algo como a garantia do mínimo existencial na cultura jurídica (MECJ). Em colunas próximas procurarei elaborar essa cesta básica.

De todo modo, o estudante ideal não deveria cursar tantas disciplinas. Muitas delas são absolutamente inúteis. Não é necessário oito ou dez semestres de direito civil. Estudar o(s) Código(s) — do modo como fazem — é mera técnica. O que o aluno deve saber é a matriz que sustenta o(s) Código(s) e a necessária matriz de interpretação da legislação. E assim por diante. Duvide desse negócio de “especialista em....”. Um jurista bem preparado — com estofo teórico — pega uma lei e faz um estudo sobre ela e dá um nó no neoespecialista.

Fico impressionado com os professores que aparecem na TV “explicando” obviedades que... estão escritas na(s) lei(s). Ora, ora. E precisa frequentar a faculdade para ter um professor lendo aquilo que ele mesmo escreveu — em uma linguagem tautológica — o que diz (n)a legislação? Mas, então, o que temos é um curso de legislação? Achei que deveríamos ter Faculdades de Direito e não meros cursinhos de leis (que repetem, pelas palavras dos professores, o que a lei diz e às vezes dela fazem uma vulgata por interesses subjetivo-ideológicos). Roberto Lyra Filho dizia: precisamos urgentemente criar faculdades... de Direito!

Por que frequentar uma disciplina onde o professor pega um resumo ou livro de facilitação para “descobrir” que agressão atual é a que está acontecendo? Ou que escalada é subir em alguma coisa? Ou discutir o assalto de Caio? Ou a solução para o problema dos gêmeos xipófagos? Ou ficar decorando verbetes (enunciados) provenientes de julgados extraídosad hoc? Não há como aprender direito sem que os alunos leiam... livros. Sim, livros e não resumos de livros ou livros orelhados. O que se está fazendo hoje é um processo de violência simbólica, para recordar um famoso livro dos anos 80 chamado A Reprodução, de Bourdieu e Passeron. Direito não se aprende por jogral. E nem por decoreba.

Há vinte anos que, em vários artigos e livros, refiro um trabalho de um aluno de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, do longínquo ano de 1981 — sim, 1981 — , que já então denunciava, verbis:

“O ensino do Direito como está posto favorece o imobilismo de alunos e professores. No esforço de renovação, uns atingem o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os outros, além do mítico título de ‘doutor’, obtêm a habilitação profissional que lhes permite viver de um trabalho não braçal (white collar). A tarefa do ensino para o aluno é cumprida nestes termos: aprendido o abc do Processo e do Direito Civil, já está habilitado a viver de inventários e cobranças sem maior indagação. [...]”

Diz ainda a pesquisa:

“É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser inconsciente? [...] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no processo de tomada de decisão e no planejamento.”

Mais: 

“O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do Estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar”.[1]

Pergunto: o que mudou de lá para cá?

De todo modo, eis algumas observações sobre o que é e como pode(ria) ser o ensino jurídico. Por exemplo:

a) reformular as grades curriculares, dando ênfase às disciplinas formativas e não às meramente informativas;

b) quando me refiro à formação, quero dizer que, inclusive nas cadeiras de processo, deve o aluno compreender os acessos filosóficos ao processo de formação da prova; e estudar os paradigmas filosóficos que estão por trás dos procedimentos;

c) disciplinas formativas — filosofia do direito, introdução, etc — devem ser ministradas por professores com formação na área e não como biqueiros (quebradores de galho), que chegam na aula dizendo: “regras é no tudo ou nada, princípios é na ponderação”, achando que sabe alguma coisa; pior é utilizar, em sala de aula, manuais que resumem Aristóteles em meia página;

d) as faculdades devem fazer um processo de seleção acerca de que tipo de bibliografia está sendo indicada pelo professor. Não estou aqui a pregar uma espécie de index sobre o que não deve ser lido; mas a coordenação ou os órgãos deliberativos do curso (colegiados de curso e núcleos docentes estruturantes) deveriam, no mínimo, estimular os professores das respectivas áreas a debater a literatura utilizada em aula. É comum, nos dias atuais, mencionar a falta de “espírito crítico” (sic) por parte dos alunos. Mas, cabe perguntar: como cobrar algum tipo de postura investigativa por parte do discente se, na maioria dos casos, os professores colocam-se passivamente diante dos conteúdos que existem na literatura standard sobre o direito? Deve haver, no mínimo, uma recomendação por parte dos órgãos deliberativos no sentido de serem evitados compêndios pequeno-gnosiológicos, resumos, resumões, plastificações, livros lato sensu “tipo” direito tal facilitado;

e) direito constitucional deve tomar maior espaço na formação, incluída nocurriculum a correlação do direito constitucional com a jurisdição constitucional e com a teoria do Estado;

f) de sua parte, o acadêmico de direito precisa também operar um processo de autoanálise para colocar em questão o tipo de atitude por ele assumida com relação à própria formação. Nesse aspecto algumas questões são fundamentais:

f.1.) deve-se abandonar a postura do acadêmico-consumidor que se relaciona com a faculdade do mesmo modo que cuida de seus interesses nos supermercados ou no âmbito de uma mega store. Ora, a educação não é um bem de consumo. O que está em jogo aqui não é um produto estragado ou com mal funcionamento. É da própria formação que estamos falando.

f.2.) é preciso livrar-se das “muletas” utilizadas para apoiar algum tipo de deficiência na própria formação em algum elemento institucional. De se registrar: é claro que as demandas dos discentes por melhoras na infraestrutura do curso são salutares. Todavia, deficiências ou falhas institucionais não são motivos para, a priori, justificar gaps formativos. Exemplos: se na sua faculdade não existe pesquisa institucionalizada, procure um professor doutor que possa lhe orientar e busque financiamento de sua pesquisa em algum órgão de fomento à pesquisa; se sua faculdade não produz eventos científicos interessantes, tente viabilizá-los juntos aos órgãos de representação acadêmica (DA’s; CA’s, etc..). Não incentive showmícios pequeno-epistêmicos feitos por professores mais preocupados em vender seu “peixe” de cursinho. E incentive os alunos a, antes de frequentarem congressos, pesquisarem acerca do curriculum dos palestrantes.

f.3.) aprenda a usar a biblioteca; faça o uso devido de sua autonomia intelectual. Ali você vai descobrir um universo muito além da sala de aula e de seu professor. Faça um exercício consigo mesmo e se pergunte: quantas vezes você, desde que começou a frequentar o curso de direito, foi até a biblioteca despido de alguma obrigação institucional? Quantos livros você tomou emprestado que não foram indicados pelo professor? É importante ir a uma biblioteca e não simplesmente requerer ao bibliotecário ou a quem responda por ele o exemplar que você procura. É importante vagar pelas prateleiras à esmo e deixar que um livro caia nas suas mãos e desperte o seu interesse pelo mero acaso. Pode-se descobrir excelentes livros assim.

f.4) e por fim, mas não menos importante, leia livros de literatura. Leia aos montes... leia-os o máximo que você puder. Especialmente os romances. Neles você terá, além de um contato com a língua na sua forma mais emblemática, a possibilidade de se deparar com personagens fictícios que enfrentam dramas da vida próximos daqueles que os cientistas sociais enfrentam; próximo daqueles que os juristas enfrentam. Frustrações, paixões, um desfile de dilemas morais tudo que nos leva a sentirmos mais humanos, menos bestializados (ver aqui vídeo em que trato desse assunto). Não é a toa que as grandes utopias humanistas queriam formar uma espécie de comunidade universal de leitores. Na literatura temos a representação maior do modo com as relações humanas se desdobram e produzem sentido no mundo prático. Basta relembrar a operacionalidade geométrica do Direito[2]para percebermos que a realidade não sensibiliza os juristas; as ficções, sim. Com isso, seguimos confundindo as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos.

Desse modo, podemos dizer, como uma palavra final, que o acadêmico ideal representa um arquétipo que só pode ser reproduzido em termos práticos se for possível observarmos duas transformações:

- uma de ordem estrutural institucional: cursos que apresentem currículos mais consistentes e que busquem um material adequado para trabalhar os conteúdos. Há coisas que necessariamente devem ser abordadas e há livros que fazem isto melhor do que outros;

- por outro lado, é necessário que os discentes deixem a passividade de lado e passem a ser mais ativos com relação à própria formação. Não para simplesmente reivindicar “os seus direitos” (sic), mas, muito além, por estar conscientes dos deveres que possuem para com a sua própria formação.

Por fim, quanto à questão relacionada a Scott Turow, a resposta é não. Em um país de modernidade tardia, os alunos não possuem tempo integral como em Harvard, a não ser os que tem paitrocínio ou que podem frequentar faculdades públicas sem trabalhar. A maioria dos acadêmicos se esfalfela trabalhando oito horas por dia e, à noite, vai à faculdade. Por isso, temos que ser darwinianos. Adaptarmo-nos às adversidades. E nos esforçarmos. Um estudante de filosofia, se tem uma prova sobre o sujeito da modernidade em Kant, não faz festa até as quatro da manhã (é uma metáfora). Em regra, os cursos de filosofia exigem olheiras dos alunos, se me entendem a alegoria (ou a brincadeira). O aluno de direito, regra geral, consegue fazer festa até as quatro e responder, no dia seguinte, a prova de direito civil objetiva e tirar sete. Até porque só chumba na faculdade de direito quem tem pistolão (é uma ironia).

Sugiro, pois, o “fator olheiras”. Como disse, não existe intelectual bronzeado. Ou, para ser mais leve, ninguém se torna um bom estudante de direito se ficar lendo resuminhos ou fazendo festa até a madrugada. A vida é bela. Mas é dura. O resto é churumela e autoajuda. Que não resolve nada. Não se pode fazer como o Barão de Münchausen: afogado no pântano com seu cavalo, puxou-se a si mesmo pelos cabelos...



[1] FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre, Fabris, 1987.


[2] CALVO GONZÁLEZ, José. Direito curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013

Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2014, 8h00

Se não prejudicar o processo, atraso em audiência não é revelia


Se não prejudicar o processo, atraso em audiência não é revelia

Se o atraso não causar prejuízo à instrução processual, não se justifica a declaração de revelia da parte atrasada. Assim entendeu a 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho ao não conhecer Recurso de Revista de um eletricista que pretendia que fosse reconhecida a revelia da empresa ANV Serviços e Gestão de Negócios, cujo representante chegou mais de meia hora após o início de uma audiência.

A ação foi ajuizada contra a ANV e a Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo. De acordo com a ata, durante a audiência de conciliação, apenas o representante da Eletropaulo compareceu. Após 15 minutos do início da instrução, a advogada da ANV chegou com a informação de que ela e o preposto da empresa estariam participando de outra audiência, em outra Vara do Trabalho, e que estariam presentes assim que esta acabasse.

O juiz de origem julgou que, como a peça de defesa da Eletropaulo ainda não havia sido juntada, não caberia a aplicação da revelia. Na avaliação do juiz, a pena de confissão ficta — pela qual se toma como verdadeiras as alegações de uma das partes, pela ausência da parte contrária — somente poderia ser aplicada após a oitiva do trabalhador. O preposto da ANV conseguiu chegar a tempo de ser tomado o seu depoimento, apesar do atraso.

O eletricista recorreu alegando que não há previsão legal quanto à tolerância de atraso no horário de comparecimento à audiência, mas o Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região manteve o entendimento de primeiro grau. Para o Tribunal Regional, pequenos atrasos em audiências são tolerados, e o preposto da ANS chegou a tempo de ser colhido o seu depoimento.

Em Recurso de Revista ao TST, o trabalhador apontou violação do artigo 844 da Consolidação das Leis do Trabalho e contrariedade à Orientação Jurisprudencial 245 da Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais do TST.

Entretanto, o relator, ministro Fernando Eizo Ono, afirmou que apesar da OJ 245 tratar da ausência de previsão legal quanto ao atraso, o TST tem diversos precedentes no sentido de que atrasos diminutos que não impliquem prejuízo à instrução não justificam a aplicação da revelia. O acolhimento da tese do eletricista de que a decisão violou o artigo 844 da CLT, que trata do não comparecimento do preposto, exigiria o reexame de provas, vedado pela Súmula 126 do TST, e as decisões apontadas como divergentes não tratavam do caso específico. Assim, o recurso não foi conhecido. O ministro João Oreste Dalazen, que votou pelo conhecimento, ficou vencido.

Após a publicação do acórdão, o trabalhador opôs embargos declaratórios, ainda não examinados pela turma. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.

RR 265500-36.2005.5.02.0046


Revista Consultor Jurídico, 4 de novembro de 2014, 12h08

Oi é condenada por divulgar ostensivamente "dez mandamentos da telefonia"


Oi é condenada por divulgar ostensivamente “dez mandamentos da telefonia”
 

A Oi S.A. foi condenada a pagar solidariamente com a Telecomunicações e Engenharia Ltda. (Telenge) indenização de R$ 5 mil a um instalador/reparador de linhas que se sentiu assediado moralmente porque a empresa fixou várias vezes, em mural, os "dez mandamentos da telefonia", com frases como "não terás vida pessoal, familiar ou sentimental" e "não verás teu filho crescer". Condenada na instância regional, a Oi recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, em decisão da Segunda Turma, rejeitou o exame do mérito do recurso de revista.

Segundo o instalador, contratado pela Telenge para prestar serviços à Brasil Telecom S.A. (hoje Oi), um e-mail impresso com os "mandamentos da telefonia" foi afixado no mural do ambiente de trabalho frequentemente durante os dois anos e meio de contrato. Por diversas vezes o documento foi retirado do mural pelos empregados, inclusive ele mesmo, porque se sentiram ofendidos pelo seu conteúdo e com a prática da empresa. No entanto, ela "insistia em manter o e-mail ao alcance dos olhos de seus empregados", afirmou o trabalhador.

Os "mandamentos" prosseguiam com "não terás feriado, fins de semana ou qualquer outro tipo de folga" e "a pressa será teu único amigo e as tuas refeições principais serão os lanches, as pizzas e o china in box". Havia ainda "dormir será considerado período de folga, logo, não dormirás".

Embora a Oi tenha negado a prática, os fatos narrados pelo empregado foram ratificados por testemunhas. A Telenge, por sua vez, alegou que se tratava de "uma piada, uma história, não para ofender os funcionários e, sim, para a empresa ter um clima de descontração e amizade". Sustentou também que circulam na internet textos semelhantes.

O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (TRT-PR) considerou que a divulgação do texto em "rodas de amigos" ou na internet é diferente de se buscar institucionalizar os "mandamentos". Para o TRT, a realização desses atos incutia no empregado "a sensação de que o conteúdo da mensagem era o correto e o esperado".

No recurso ao TST, a Oi alegou que não foram demonstrados os requisitos que caracterizam o dano moral. Para o ministro José Roberto Freire Pimenta, relator do recurso, houve "evidente afronta à imagem e à dignidade da pessoa humana". Ele frisou que o trabalhador foi submetido a pressão por parte da empresa com a fixação do texto no mural pois, segundo o ministro, era uma forma de "manifestar o comportamento esperado dos seus empregados".

O relator destacou que, para se concluir de maneira diversa da do Regional, seria necessário reexaminar o conjunto fático-probatório, procedimento que é vedado na fase recursal de natureza extraordinária, nos termos da Súmula 126 do TST.

(Lourdes Tavares/CF)


O TST possui oito Turmas julgadoras, cada uma composta por três ministros, com a atribuição de analisar recursos de revista, agravos, agravos de instrumento, agravos regimentais e recursos ordinários em ação cautelar. Das decisões das Turmas, a parte ainda pode, em alguns casos, recorrer à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1).

Fonte: TST

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...