Por mais de 30 anos, a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil de número 37769-RJ foi a principal identificação de Luís Roberto Barroso. Em 2013 ela foi cancelada, quando o constitucionalista mais badalado do país passaria a atender como ministro Roberto Barroso, o então mais novo integrante do Supremo Tribunal Federal — posto do qual só foi destituído em maio deste ano, com a nomeação do ministro Luiz Edson Fachin.
Fellipe Sampaio /SCO/STF
Barroso mudou de lado do balcão e perdeu o controle que tinha sobre a própria agenda e, principalmente, deixou de escolher os temas que vai estudar, como fazia quando advogado ou professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “É o único emprego em que se você diz para a sua mulher que vai trabalhar e ela pode confirmar pela televisão”, brinca.
Se perdeu o controle sobre a agenda, o ganhou sobre os rumos do país, como, por exemplo, no Recurso Extraordinário 580.252, no qual ele propôs que, em vez de uma indenização em dinheiro, os presos submetidos a condições degradantes em presídios superlotados sejam compensados com remição de suas penas. Ou ainda na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.081, quando o Plenário do Supremo seguiu seu voto para mudar entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral e declarar que a perda de mandato por infidelidade partidária não vale para quem ocupa cargos majoritários, como é o caso dos senadores.
Como advogado, Barroso era o defensor das grandes causas. Atuou no caso em que o STF declarou a constitucionalidade da união estável homoafetiva e autorizou a pesquisa com células-tronco. Já como ministro, parece ter feito do aprimoramento da corte sua principal meta. Foi dele a ideia de se transferir para as turmas a competência de julgar as ações penais e o recebimento de inquérito nos casos de réus com prerrogativa de foro. Na opinião de Barroso, um passo importante para que o Plenário siga no caminho de se transformar uma corte constitucional.
“As mudanças são elaboradas em conjunto”, comenta Barroso, para dizer que não se joga sozinho no Supremo. De toda forma, foi dele também a sugestão para que os ministros circulem seus votos antes da discussão do tema em Plenário.
Questionado sobre o próximo grande caso do Supremo, o ministro aponta, com brilho nos olhos, a ação em que um partido propõe a rearrumação do sistema penitenciário brasileiro. Segundo ele, será uma chance para o Supremo exercer “grande papel do Judiciário” de proteção dos direitos fundamentais e, sobretudo, dos direitos fundamentais das minorias. “Os presos são uma minoria invisível, inclusive porque não têm acesso ao processo político majoritário, pois não votam”.
O ministro recebeu a ConJur em seu gabinete na semana em que completou dois anos de Supremo — a mesma em que organizou sua primeira audiência pública como ministro, sobre ensino religioso em escolas públicas.
A entrevista será publicada em duas partes. A primeira, mais voltada para o papel da Justiça e do Supremo. A segunda, com foco em votos do ministro Barroso.
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Leia a segunda parte abaixo:
ConJur — Pensando nos seus votos tidos como mais relevantes na sua passagem pelo Supremo até agora, muitos não são necessariamente do vencedor, mas que trazem uma discussão nova para o centro do debate.
Luís Roberto Barroso — Você tem razão, mas houve votos em que eu talvez tenha trazido uma visão nova e que ela prevaleceu. O mais recente, no caso de inaplicabilidade da perda de mandato por infidelidade partidária nas eleições majoritárias, havia uma posição do Tribunal Superior Eleitoral aprovada por unanimidade com a participação de três ministros do Supremo. Mas, eu acho que a lógica que vale para as eleições proporcionais não se estende às eleições majoritárias e a decisão do TSE, nesse particular, ao estender a decisão, não havia sido boa. Trouxe essa matéria ao Plenário do Supremo para discutir e a mudança de entendimento passou por unanimidade. Mesmo com os ministros do Supremo que participaram do julgamento do TSE.
ConJur — Houve um caso importante e recente também dos planos de demissão incentivada. Como foi?
Luís Roberto Barroso — São planos que muitas empresas, privadas e estatais, aplicam no país. Elas dão um conjunto de vantagens aos empregados para, em algum momento de crise ou por outra circunstância, diante da demissão inevitável, ela seja feita em situação de mais vantagem para os empregados. Esse era um caso do Banco Santa Catarina, que foi sucedido pelo Banco do Brasil, em que houve indenizações de forma que gente que ganhava R$ 1 mil ou R$ 2 mil ganhasse indenizações de R$ 120 mil no plano de demissão incentivada, que exigia que o empregado firmasse uma quitação geral. Eram acordos coletivos entre o sindicato patronal e o sindicato dos empregados. Ele, individualmente, aceitava o acordo de rescisão, assinava o termo, dava a quitação geral, e, em seguida, entrava com uma reclamação trabalhista para cobrar hora extra, ou seja lá o que fosse.
ConJur — Isso vem da visão que se tem da Justiça do Trabalho, em que o trabalhador vai sempre ganhar?
Luís Roberto Barroso — Exatamente. O que eu propus nesse voto, que também prevaleceu por unanimidade, é que em um acordo coletivo entre o sindicado patronal e o sindicato dos empregados, há uma negociação entre partes que estão mais ou menos no mesmo nível. Não é tipo uma relação de uma de poderosa empresa multinacional com o modesto operário, que era a lógica do Direito do Trabalho individual, de proteger o empregado, por ser o polo mais fraco. Em acordos coletivos entre sindicatos, os sindicatos têm poder — poder de barganha, de greve, com advogados qualificados. Portanto, eu sustentei que os planos de demissão incentivada acordados entre sindicatos não podem ser invalidados pela Justiça do Trabalho em ações individuais para ganhar mais indenização.
ConJur — A falta de representatividade dos sindicatos não seria um problema ao se declarar isso?
Luís Roberto Barroso — Neste caso, os sindicatos fizeram acordos impulsionados pelos empregados. Os empregados queriam se mobilizar e exigiram do sindicato que fizesse o acordo. O empregado, em muitas situações, precisa ser protegido, mas não tem o direito de ser incorreto. E essa foi a tese que prevaleceu também por unanimidade, superando uma jurisprudência, a meu ver, excessivamente paternalista em relação ao empregado. A Justiça não pode se mover ideologicamente. A Justiça evidentemente pode ter teorias que protejam o lado mais fraco da relação, mas, o sujeito que tem a ideologia de que o consumidor está sempre certo, o inquilino está sempre certo, o empregado está sempre certo vai produzir injustiças.
ConJur — O quanto o senhor acha que esse entendimento vai influenciar outros tribunais, principalmente na Justiça do Trabalho?
Luís Roberto Barroso — No caso do plano de demissão incentivada, era uma repercussão geral, então a decisão não é propriamente vinculante. Mas, uma coisa que propus aqui no tribunal e tem prevalecido com o apoio decisivo do presidente Ricardo Lewandowski e adesão de outros ministros, como o próprio ministro Marco Aurélio, é, ao final de todo julgamento o Plenário aprovar a tese jurídica que está sendo firmada pela maioria. Isso serve como uma importante orientação para todos os tribunais e juízes, para saberem qual a decisão que foi proferida pelo Supremo. Essa é uma mudança importante, afinal, este é um tribunal de teses. Na ADPF sobre a Lei de Imprensa, por exemplo, os votos não eram convergentes. Cada ministro achava uma coisa e não sabemos, em rigor, qual foi a tese jurídica definida.
ConJur — Mas os votos atingiam o mesmo fim?
Luís Roberto Barroso — Sim, o dispositivo continuava sendo o mesmo: julgar inconstitucional a Lei de Imprensa. Mas os fundamentos eram divergentes. Portanto, eu acho que o Supremo tem que ser capaz de produzir um denominador comum dos fundamentos, que é a tese jurídica. No recente caso das biografias, por exemplo, a tese aprovada foi: é inconstitucional interpretarem-se os artigos 20 e 21 do Código Civil no sentido de se exigir autorização prévia da pessoa retratada ou da sua família para a publicação de biografias. Isso é o que vai guiar os outros tribunais.
ConJur — No caso das biografias, a crítica que se faz é que o Judiciário é muito leniente à imprecisões jornalísticas, ou seja, as condenações são muito baixas quando há erros que implicam em lesões ao biografado. O senhor acha que isso é um problema a ser enfrentado?
Luís Roberto Barroso — Como regra quase absoluta, ninguém deve interferir previamente no exercício da liberdade de expressão. Quais são as reparações possíveis? Retificação da notícia e da informação equivocada; retratação; direito de resposta; e indenização. As pessoas dão muita importância à indenização, é um pouco de americanização da vida. As indenizações não precisam ser necessariamente patrimoniais. Na verdade, é melhor que não sejam em dinheiro. O ideal é que você indenize recompondo a o bem da vida que tenha sido lesado com uma prestação da mesma natureza. E, portanto, se o que causou o dano foi uma inverdade, a melhor reparação é você contar a verdade. É uma visão um pouco “patrimonializada” da vida, imaginar que tudo deva se resolver em indenização. Só deve se resolver em indenização quando não houver possibilidade de a pessoa obter uma reparação in natura, ou seja, uma reparação da mesma natureza da lesão que ele sofreu.
ConJur — Sobre as reparações possíveis, o senhor recentemente sugeriu que os presos em condições degradantes tivessem a pena remida por dia que passaram na cadeira, em vez de receberem reparação em dinheiro. É uma saída para essa “americanização”, de colocar o dinheiro como solução?
Luís Roberto Barroso — É uma tese um tanto ousada, mas que me parece a única solução plausível para indenização a presos submetidos a condições degradantes, indignas, em determinados presídios brasileiros. No caso que chegou ao Supremo tinha uma condenação em primeiro grau, em que o sujeito ficou preso em regime fechado cinco anos e depois em regime semiaberto, outros tantos anos. O juiz de primeiro grau deu a ele uma indenização de R$ 2 mil. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul reformou a decisão, para dizer que embora as condições de fato fossem degradantes, de fato houvesse dano moral, não havia dever de indenizar, em razão, do princípio da reserva do possível — o Estado não tem recursos para tudo o que é preciso fazer. Ele entrou, então, com recurso extraordinário no Supremo, cujo relator é o ministro Teori Zavascki, que votou no sentido de restabelecer a decisão de primeiro grau. Eu concordo plenamente com as premissas do ministro Teori de que há dano moral e há dever de indenizar, mas não posso concordar em indenizar com R$ 2 mil alguém que passou mais de cinco anos preso em condições degradantes. Propus, então, afastar essa tese da reserva do possível. Mas dar a indenização pecuniária justa para um indivíduo sujeito àquelas condições quebraria os estados. Se multiplicar a quantia devida pelo número de presos do sistema, que são mais de 600 mil, boa parte em condições degradantes, quebra os estados. Então, o dinheiro que os estados já não gastam para melhorar os presídios ia ser gasto em indenização, com um detalhe: vai pagar indenização para o sujeito continuar nas mesmas condições degradantes em que já estava, criando um círculo vicioso. A indenização pecuniária não faz sentido neste caso. Estudei todas as possibilidades que havia, os diferentes modelos praticados no mundo, em diferentes países. Aí cheguei a esta solução de indenização em abreviação da pena. A cada sete dias, no mínimo, ou três dias, no máximo, de cumprimento de pena em regime degradante, o preso ganha a remissão de um dia na sua pena.
ConJur — Isso não afeta a obrigação do Estado de melhorar as condições do presídio, certo?
Luís Roberto Barroso — Certo. Mas, neste caso só se discutia a indenização do preso, portanto eu só podia resolver este problema. Agora, há uma ação nova, que era um pouco o projeto da minha vida antes de vir para cá, que era propor perante o Supremo uma ação de rearrumação do sistema penitenciário brasileiro. Quem entrou foi o PSOL, mas quem estruturou a ação foi a Clínica de Direitos Fundamentais da Uerj. É integrada, em sua maioria, por ex-alunos meus, liderados pelo Daniel Sarmento, mas eu não participei de nada na discussão para, evidentemente, não ficar impedido. A iniciativa vai permitir que o Judiciário intervenha na medida das suas possibilidades para a rearrumação do sistema. O grande papel do Judiciário é a proteção dos direitos fundamentais e, sobretudo dos direitos fundamentais das minorias. Os presos são uma minoria invisível, inclusive porque não têm acesso ao processo político majoritário — não votam.
ConJur —Então é o Judiciário como fiscal da atuação do Estado?
Luís Roberto Barroso — O Judiciário como garantidor dos direitos fundamentais. Indiretamente a minha proposta da remissão de pena produz um certo efeito sistêmico. Por duas razões: vão se produzir vagas mais rapidamente no sistema, pois o sujeito vai sair mais rápido; e como a sociedade vive um momento punitivo, se o Estado não alocar recursos para melhorar as cadeias, abreviar a pena dessas pessoas pode fazer com que a sociedade pressione para que haja uma melhoria do sistema.
ConJur — Temos visto o reflexo claro desse clamor punitivista no Legislativo? Ele se traduz em aumento de penas, tipificação de novos crimes como hediondos, ou seja, aumentar a pena para inibir o crime. Parece uma escalada de aumento de penas, como se isso fosse a resposta para o não cumprimento das penas.
Luís Roberto Barroso — Há uma frase famosa do Cesare Beccaria cuja ideia central é a seguinte: "Não é a intensidade da punição, é a certeza da punição que produz um efeito inibitório sobre o crime". É natural em qualquer sociedade que havendo um recrudescimento da criminalidade e da violência, se especule sobre endurecimento do Direito Penal. É importante que a sociedade e o Congresso discutam essa matéria. Numa democracia, nenhum tema é tabu. Agora, é preciso debater com informação adequada e de modo esclarecido. Por exemplo: em relação ao tema da maioridade penal, independentemente de outras considerações, não é possível produzir uma mudança assim drástica na legislação sem um mínimo de estudos empíricos. Saber qual impacto isto vai produzir sobre a realidade do sistema penal.
ConJur — O tabu é o gancho perfeito para falarmos sobre seu posicionamento em relação à maconha.
Luís Roberto Barroso — Eu tenho uma posição firmada da conveniência de se descriminalizar completamente o consumo de maconha e descriminalizar o porte de pequenas quantidades de maconha. Um percentual muito expressivo das pessoas presas hoje no Brasil é por tráfico de pequenas quantidades de maconha, mais comumente. Eventualmente, cocaína. Assim, mandamos para o sistema penitenciário brasileiro um jovem de 18 ou 19 anos, réu primário e de bons antecedentes que é preso com 50 gramas de maconha. Em um caso meu recente eram 69 gramas de maconha. Ele foi condenado a prisão preventiva em regime fechado no presídio central de Porto Alegre, que é um dos piores do país — um réu primário. Esse é um indivíduo de baixa periculosidade, mas, depois de cumprir alguns meses de pena nesse presídio, torna-se um preso de alta periculosidade. Em muitos presídios, no dia em que o condenado entra, tem que escolher a qual facção ele vai pertencer, vai dever favores, vai dever a vida e, depois que sair da prisão, vai ter que pagar esses favores. O sistema, como nós já vimos, não ressocializa. No primeiro mundo, a grande preocupação dos legisladores em relação à droga é com o consumo, a situação do usuário da droga. Isso é importante, mas não é o maior problema no Brasil. O maior problema aqui é o poder que o tráfico tem sobre as comunidades pobres. O segundo é o efeito deletério que a criminalização da maconha produz sobre esses jovens que são presos e mandados para o sistema penitenciário. Em terceiro lugar vem o usuário. Portanto, nós temos que pensar em como neutralizar o poder do traficante, que é a maior violação difusa dos direitos humanos no país. É a violação de uma família criar os seus filhos num ambiente pacífico e sob um ideal de honestidade e correção. O tráfico oferece a este jovem, filho desta família, condições de remuneração e de vida impensáveis num emprego formal lícito. Ou seja, produz uma concorrência desleal com a vida honesta desta criança, desde a fase inicial da sua formação.
ConJur — O senhor acha que deveríamos legalizar todas as drogas?
Luís Roberto Barroso — Eu começaria pela maconha, como um laboratório, uma experiência social. Não pode ser uma coisa improvisada, tem que ser bem feito, com consultoria internacional, colocar no papel, saber quais são as opções, quanto custa e como regulamentar, e até mesmo se quer estatizar. No Uruguai, esse foi o caminho, nos Estados Unidos, não. Eu acho que se deve fazer com a maconha a mesma coisa que se faz com cigarro. É legal, fiscalizado, com campanhas de esclarecimento, de desincentivo. Acho que o país não perderia nada se fizesse essa experiência. Como disse o grande navegador Amyr Klink: "O maior naufrágio é não partir".
ConJur — No caso de se legalizar a maconha, as pessoas que já estão presas por tráfico de pequenas quantidades da droga podem ser soltas?
Luís Roberto Barroso — Acho que sim. Cabe revisão criminal se já tiver trânsito em julgado, ou relaxamento da prisão.
ConJur — Como advogado, o senhor defendeu, no STF, as uniões homoafetivas. Como o senhor vê o fato de a Suprema Corte dos EUA ter seguido a mesma linha?
Luís Roberto Barroso — Acho que nesta matéria saímos na frente e devemos nos orgulhar disso. Pessoalmente, defendi a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais em um artigo publicado em 2007. O Supremo acolheu esta tese, em uma ação que propus em nome do governador do estado do Rio de Janeiro em 2011. Foi uma das causas mais emocionantes da minha vida e eu considero que tenha sido a minha melhor sustentação oral. Foi um passo decisivo para o fim da discriminação e do preconceito contra os gays em geral. Em seguida, veio a regulamentação do casamento, que foi feita pelo Conselho Nacional de Justiça. O que vale a vida são os nossos afetos e as pessoas têm que ter o direito de colocar o seu afeto onde mora o seu desejo. Impedir essas pessoas de se casarem viola o direito fundamental à liberdade que cada um tem de fazer as próprias escolhas existenciais e à igualdade entre todas as pessoas. Se nós achamos que o casamento é uma coisa boa, porque potencializa os afetos, diminui a promiscuidade etc., o que justificaria nós excluirmos um grupo de pessoas desta possibilidade? Diminuir as pessoas ou as suas relações afetivas em razão da orientação sexual é uma derrota para o espírito. No futuro, isso vai ser visto com o mesmo espanto com que nós hoje encaramos a escravidão, a ideia de inferioridade da mulher ou o sacrifício de deficientes.
Revista Consultor Jurídico, 2 de julho de 2015, 7h20