Luiz
Cláudio Borges
Mestre em Constitucionalismo e Democracia,
pela FDSM; Especialista em Direito Civil e Processo Civil, CPG-FADIVA; advogado
e professor.
TJMG
- Embargos Infringentes Nº 1.0024.09.647304-6/004
- rel. Des. VERSANI PENNA – Dje 08/11/2012[i] –
Área do Direito: CONSTITUCIONAL - CIVIL
EMENTA:
EMBARGOS INFRINGENTES. EXECUÇÃO. IMÓVEL RESIDENCIAL. GARANTIA HIPOTECÁRIA EM
FAVOR DE PESSOA JURÍDICA. BEM DE FAMÍLIA. PROTEÇÃO LEGAL. IMPENHORABILIDADE.
RENÚNCIA AO PRIVILÉGIO. EXEGESE DO ART. 3º, INCISO V, DA LEI FEDERAL N.
8.009/90. IMPOSSIBILIDADE DE CONDICIONAMENTO CONTRA LEGEM.
- A
teor do disposto no art. 3º, inciso V, da Lei Federal n. 8.009/90, o imóvel
dado em garantia hipotecária pelo casal ou pela entidade familiar resta
excluído da proteção legal ao bem de família.
- Em
observância ao princípio do pacta sunt
servanda e da boa-fé objetiva, não se pode desconsiderar ato volitivo do
devedor que oferece o bem em que reside com sua família em garantia hipotecária
para a obtenção de financiamento para sua empresa, configurando, com isso,
renúncia ao privilégio legal da impenhorabilidade.
- Não
se pode ir além da intenção do legislador e criar condição contra legem no sentido de que o negócio, assegurado pela garantia
hipotecária, tenha sido realizado em prol da entidade familiar.
Resenha
Trata-se
de acórdão em embargos infringentes versando sobre a impenhorabilidade ou não do
bem de família, dado pelos pais (e proprietários do imóvel) em garantia
hipotecária para assegurar pagamento de dívida contraída por sociedade
empresaria (pessoa jurídica), da qual são sócios.
Em
primeira instância, a filha do casal ingressou com embargos de terceiros
objetivando, liminarmente, a suspensão do leilão e, no mérito a desconstituição
da penhora. O pedido teve como fundamento a violação do artigo 1º, da Lei
8.009/1990, o qual dispõe que “o imóvel
residencial próprio do casal ou da entidade familiar, é impenhorável e não
responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária
ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filho que sejam
seus proprietários e nele residam, salvo as hipóteses previstas nesta lei”.
E
mais, arguiu-se ainda a inaplicabilidade do disposto no artigo 3º., inciso V,
da Lei 8.009/1990, isto porque, embora o imóvel tivesse sido dado em garantia
pelos pais da então embargante, o valor tomado não teria sido destinado ou
revertido para a família ou entidade familiar.
Na
respeitável sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais, declarou a
Magistrada que, não obstante o posicionamento do c. Superior Tribunal de
Justiça, seu entendimento caminhava em sentido contrário, posto que o artigo
3º, inciso V, da Lei 8.009/1990 autoriza a penhora do bem de família.
Como
fundamento, a i. Magistrada aponta o julgamento do RE 407688, veja:
[...].
Mutatis
mutandis para o caso dos autos, o Supremo Tribunal Federal já decidiu no
julgamento do RE 407688 que na exceção elencada no art. 3º, inciso VII, da Lei
8.009/90, o fiador não pode deduzir a tese do bem de família vez que a garantia
prestada decorreu de livre expressão de vontade.
Vejamos o
decidido pela Suprema Corte, in verbis:
“FIADOR.
Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade
solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de
família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia,
previsto no artigo 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei
nº. 8.009/90, com a redação da Lei nº. 8245/91 [...]”.
Argumenta, por fim, que o princípio da boa-fé objetiva deve ser
observado:
[...]
Por fim,
um último argumento deve ser trazido. O novo Código Civil traz como postulado a
teoria da boa-fé objetiva.
[...].
Esse princípio
da boa-fé objetiva determina que haja uma coerência no cumprimento da
expectativa alheia, independentemente da palavra que haja sido dada, ou do
acordo que tenha sido concluído, representando, sob esse aspecto, a atitude de
lealdade, de fidelidade, de cuidado que se costuma observar e que é
legitimamente esperada nas relações.
[...].
Qualquer
leigo de escassas luzes ou doutor da maior suposição tem plena ciência que, se
determinado bem for dado em garantia, poderá posteriormente vir a ser penhorado.
Assim, o proprietário do imóvel não pode posteriormente alegar que estava de
boa-fé e, tampouco, um morador do imóvel que sequer é o proprietário, como no
caso dos autos, vir por vias reflexas obter a impenhorabilidade pretendida.
O
brocardo venire contra factum proprium veda que as partes assumam uma posição
contraditória, para obter êxito pela sua própria conduta ilegal.
[...].”
Irresignada
com a respeitável sentença, a então Embargante interpôs recurso de apelação, o qual,
por maioria de votos, foi provido para reformar a decisão de primeiro grau.
Fundado
no voto do Desembargador Barros Levenhagen (voto vencido), o BDMG interpôs
embargos infringentes, o qual, também por maioria de votos, foi provido para
resgatar o voto vencido e, consequentemente, manter a respeitável sentença de
primeira instância.
Na
decisão de embargos infringentes, o Relator do recurso salientou que:
[S]em
embargo da posição prevalente que, me antecedendo, concluiu que a exceção à
impenhorabilidade prevista no art. 3º, inciso V, da Lei Federal n. 8.009/90 não
se aplica à hipótese em que a hipoteca foi dada para garantia de financiamento
contraído por empresa, entendo que houve um ato de livre disposição por parte
do proprietário do imóvel.
A propósito, confira-se o disposto no art.
3º, inciso V da Lei Federal n. 8.009/90:
Art. 3º A
impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,
previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel
oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar (g.n.).
De certo, a ressalva contida no inciso V, do
art. 3º de referido diploma legal permite expressamente que o imóvel dado em
garantia hipotecária pelo casal ou pela entidade familiar seja excluído da
proteção ao bem de família.
Ora, em observância ao princípio do pacta sunt servanda e da boa-fé
objetiva, não se pode, aqui, desconsiderar ato volitivo do devedor que oferece
o bem em que reside com sua família em garantia hipotecária para a obtenção de
financiamento para sua empresa.
Não foi outro, aliás, o entendimento da
Ministra Nancy Andrighi, por ocasião do julgamento do REsp 1141732/SP,
colacionado aos autos pelo embargante:
CIVIL. BEM DE FAMÍLIA. OFERECIMENTO EM
GARANTIA HIPOTECÁRIA. BENEFÍCIO DA ENTIDADE FAMILIAR. RENÚNCIA À
IMPENHORABILIDADE. 1. A exceção do art. 3º, inciso V, da Lei nº 8.009/90, que
permite a penhora de bem dado em hipoteca, limita-se à hipótese de dívida
constituída em favor da entidade familiar. Precedentes. 2. A comunidade formada
pelos pais e seus descendentes se enquadra no conceito legal de entidade
familiar, inclusive para os fins da Lei nº 8.009/90. 3. A boa-fé do devedor é
determinante para que possa se socorrer do favor legal, reprimindo-se quaisquer
atos praticados no intuito de fraudar credores ou retardar o trâmite dos
processos de cobrança. O fato de o
imóvel dado em garantia ser o único bem da família certamente é sopesado ao
oferecê-lo em hipoteca, ciente de que o ato implica renúncia à impenhorabilidade.
Assim, não se mostra razoável que depois, ante a sua inadimplência, o devedor
use esse fato como subterfúgio para livrar o imóvel da penhora. A atitude
contraria a boa-fé ínsita às relações negociais, pois equivaleria à entrega de
uma garantia que o devedor, desde o início, sabia ser inexequível, esvaziando-a
por completo. 4. Recurso especial a que se nega provimento (julgado em
09/11/2010)(g.n.).
[...].
NoPENHORA - BEM DE FAMILIA - EXCEÇÃO PREVISTA EXPRESSAMENTE NA LEI
8.009/90 - POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO DA GARANTIA OFERTADA. A lei não dispõe que
se a hipoteca for decorrente de contratação de capital de giro para empresa
daqueles que ofertaram o imóvel será ele inalienável; pelo contrário,
estabelece que a impenhorabilidade NÃO SERÁ oponível em caso de execução de
hipoteca de imóvel oferecido como garantia real pelo casal proprietário do
mesmo - sendo exatamente esta a hipótese dos autos. Foram os próprios
agravantes que ofereceram o imóvel como garantia à dívida, e não podem, agora,
invocar a Lei 8.009/90 para se livrarem do pagamento.
caso presente, bem se vê pela cédula de
crédito comercial contraída em favor de pessoa jurídica, a empresa “Vidro Arte
Comércio de Vidros Decorativos Ltda.” (fls. 11/18 do executivo principal), que
o próprio proprietário do imóvel e sua esposa deram o bem em garantia
hipotecária, evidenciando, assim, que houve um ato de livre disposição por
parte do casal, ainda que a propriedade seja a única e residencial da entidade
familiar.
Ademais, a disposição legal (art.
3º, inciso V, Lei Federal n. 8.009/90) não estabelece que se a hipoteca for
decorrente de contratação de capital de giro para empresa daqueles que
ofertaram o imóvel – in casu,
financiamento para aquisição de máquinas, equipamentos e formatização (fls. 11
da execução apense) – será ele inalienável. Ao contrário, prescreve
expressamente que a impenhorabilidade não será oponível em caso de execução de
hipoteca de imóvel oferecido como garantia real pelo casal proprietário do
mesmo.
Com efeito, não se pode ir além
da intenção do legislador e criar condição contra
legem no sentido de que o negócio, assegurado pela garantia hipotecária,
tenha sido realizado em prol da entidade familiar; até porque é de se presumir
que o financiamento em benefício da empresa da qual é sócio o proprietário do
imóvel tenha resultado em proveito da família.
[...].
Com tais considerações, acolho os infringentes para que prevaleça o entendimento
minoritário, que, confirmando a decisão singular, julgou pela improcedência dos
embargos de terceiros opostos por [...].
Em
recentíssima decisão, o colendo Superior Tribunal de Justiça teve a
oportunidade de apreciar caso semelhante, veja:
11857957
- DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. CÉDULA DE CRÉDITO COMERCIAL COM
HIPOTECA. IMÓVEL HIPOTECADO DE PROPRIEDADE DE PESSOA JURÍDICA. ÚNICO BEM A
SERVIR DE MORADA À ENTIDADE FAMILIAR. LEI
Nº 8.009/1990. IMÓVEL DADO EM GARANTIA EM FAVOR DE TERCEIRA PESSOA JURÍDICA. INTERVENIENTES
HIPOTECANTES NÃO BENEFICIÁRIOS DO EMPRÉSTIMO. BEM DE FAMÍLIA. MATÉRIA DE ORDEM
PÚBLICA. BENEFÍCIO QUE NÃO ADMITE RENÚNCIA POR PARTE DE SEU TITULAR. CARACTERIZAÇÃO DO BEM, OBJETO DA
EXECUÇÃO, COMO BEM DE FAMIÍLIA. CONVICÇÃO FORMADA COM BASE NO SUPORTE
FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7/STJ. INCIDÊNCIA. 1. "Para que seja
reconhecida a impenhorabilidade do bem de família, de acordo com o artigo
1º, da Lei
nº 8.009/90, basta que o imóvel sirva de residência para a família do
devedor, sendo irrelevante o valor do bem. " (RESP 1.178.469/SP, Rel.
Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 18/11/2010, DJe 10/12/2010)
2. A jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que a
incidência da proteção dada ao bem de família somente é afastada se
caracterizada alguma das hipóteses descritas nos incisos I a IV do art.
3º da Lei
nº 8.009/1990. Precedentes. 3. O benefício conferido pela Lei
n. 8.009/90 ao instituto do bem de família constitui princípio de ordem
pública, prevalente mesmo sobre a vontade manifestada, não admitindo sua
renúncia por parte de seu titular. A propósito, entre outros: RESP 875.687/RS,
Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/8/2011, DJe
22/8/2011; RESP 805.713/DF, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta
Turma, julgado em 15/3/2007, DJ 16/4/2007 4. A firme jurisprudência do STJ é no
sentido de que a excepcionalidade da regra que autoriza a penhora de bem de
família dado em garantia (art.
3º, V, da Lei
nº 8009/90) limita-se à hipótese de a dívida ter sido constituída em favor
da entidade familiar, não se aplicando na hipótese de ter sido em favor de
terceiros caso dos autos. (AGRG no AG 1.126.623/SP, Rel. Ministro Paulo de
Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 16/9/2010, DJe 6/10/2010; RESP
268.690/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, DJ de 12/3/2001).
5. No caso, as instâncias ordinárias, com suporte no conjunto fático-probatório
produzido nos autos, firmaram convicção de que o bem dado em garantia é a
própria moradia da entidade familiar dos sócios da pessoa jurídica -
proprietária do imóvel e interveniente hipotecante do contrato de mútuo
celebrado -, situação que não desnatura sua condição de "bem de
família". Com efeito, inviável, em sede de especial, desconstituir a
conclusão a que chegou o Tribunal a quo quanto à realidade fática do uso do
imóvel - a de que o bem hipotecado é bem de família. 6. Agravo regimental não
provido. (STJ; AgRg-AREsp 264.431; Proc. 2012/0253270-0; SE; Quarta Turma; Rel.
Min. Luis Felipe Salomão; Julg. 05/03/2013; DJE 11/03/2013) Exclusividade Magister: Repositório
autorizado On-Line do STF nº 41/2009, do STJ nº 67/2008 e do TST nº 35/2009
Em
sentido oposto, o c. STJ demonstra que a jurisprudência daquela casa está a
contrariar o entendimento exarado nos embargos infringentes ora em análise. O julgado
aponta que, para se reconhecer a
impenhorabilidade prevista no artigo 1º, da Lei 8.009/90 basta apenas que o
imóvel sirva de residência para a família, como é o caso dos autos. E mais,
para afastar a aplicação do artigo 1º, e aplicar o disposto no inciso V, do
artigo 3º, da Lei 8.009/90, é preciso que fique demonstrado que o valor tomado
a título de empréstimo fora revertido em benefício da entidade familiar, pois a
mera presunção de que os valores tenham sido destinados à entidade familiar não
é capaz de elidir o disposto no artigo 1º, da Lei 8.009/90, sendo assim,
qualquer decisão que caminha em sentido diverso estar-se-á, inafastavelmente,
violando o referido dispositivo.
Em possível discussão em sede de
recurso especial e/ou recurso extraordinário, os argumentos são muitos e
variados, violação ou contrariedade de lei federal, divergência jurisprudencial
e violação do direito à moradia, art. 6º, da Constituição Federal e,
consequentemente, do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da
Constituição Federal).
O debate é necessário, a matéria é
polêmica, mas o resultado não pode ser outro: o direito à moradia e a dignidade
da pessoa humana devem ser preservados.
INTEIRO TEOR DO ACÓRDÃO:
- A teor do disposto no art. 3º, inciso V, da Lei Federal
n. 8.009/90, o imóvel dado em garantia hipotecária pelo casal ou pela entidade
familiar resta excluído da proteção legal ao bem de família.
- Em observância ao princípio do pacta sunt servanda e da boa-fé objetiva, não se pode desconsiderar
ato volitivo do devedor que oferece o bem em que reside com sua família em
garantia hipotecária para a obtenção de financiamento para sua empresa,
configurando, com isso, renúncia ao privilégio legal da impenhorabilidade.
- Não se pode ir além da
intenção do legislador e criar condição contra
legem no sentido de que o negócio, assegurado pela garantia hipotecária,
tenha sido realizado em prol da entidade familiar.
Embargos Infringentes
Nº 1.0024.09.647304-6/004 - COMARCA DE Belo Horizonte -
Embargante(s): BDMG BANCO DESENVOLVIMENTO MINAS GERAIS S/A - Embargado(a)(s):
TATIANA DI BLASI CHAVES
A C Ó R D Ã O
Vistos
etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, por
maioria, em conhecer e
acolher os embargos infringentes.
DES.
VERSIANI PENNA
Relator.
Des. Versiani Penna (RELATOR)
R e l a t ó r
i o
Trata-se
de embargos infringentes (fls.
275/282-TJ) interpostos pelo Banco de
Desenvolvimento de Minas Gerais S/A. – BDMG, por meio do qual objetiva a
prevalência do entendimento calcado no voto minoritário da lavra do e. Vogal,
Desembargador Barros Levenhagen, segundo o qual é defeso aos devedores que
ofereceram imóvel em hipoteca se eximirem da obrigação em deliberada afronta
aos princípios contratuais do pacta sunt
servanda e da boa-fé objetiva.
O
acórdão recorrido (fls. 256/267-TJ) deu, por maioria, provimento ao recurso de
apelação e julgou procedentes os embargos de terceiros opostos por Tatiana di Blasi Chaves, para
desconstituir a penhora sobre o imóvel situado na Avenida Brasil, Bairro Vila
Pinto, em Varginha, dado em garantia hipotecária da cédula de crédito
comercial, emitida em favor de “Vidro Arte Comércio de Vidros Decorativos
Ltda.”, como se vê das fls. 11/18 da execução apensa – processo n.
0024.02.834881-1.
Sustenta
o embargante, em síntese, que, ao considerar impenhorável o imóvel residencial do
casal ou da entidade familiar, como fundamento a proteção da moradia e da
família, o legislador ressalvou, expressamente, a impenhorabilidade, em sete
hipóteses, dentre as quais aquela em que o casal ou entidade familiar,
proprietários do imóvel, o ofertar em garantia real (art. 3º, inciso V, da Lei
Federal n. 8.009/90).
Esclarece
que o sócio da empresa tomadora do financiamento – “Vidro Arte Comércio de
Vidros Decorativos Ltda.” – Calixto Carvalho Chaves, é quem oferecera,
juntamente com sua esposa, Rosângela di Blasi Chaves, o imóvel residencial em
garantia hipotecária, renunciando, assim, ao benefício da impenhorabilidade.
Invoca o princípio da boa-fé objetiva para afastar a inexistente condição
legal, criada no voto combatido, de que necessário que a dívida tenha sido
contraída em benefício do casal ou da entidade familiar.
A
embargada apresenta contrarrazões às fls. 302/312 e requer o desprovimento do
recurso.
Admitido
o processamento dos infringentes pela decisão de fls. 315-TJ.
É o
relatório.
V O T O
Satisfeitos os pressupostos de
admissibilidade, conheço dos
infringentes.
Sem embargo da posição prevalente que,
me antecedendo, concluiu que a exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º,
inciso V, da Lei Federal n. 8.009/90 não se aplica à hipótese em que a hipoteca
foi dada para garantia de financiamento contraído por empresa, entendo que
houve um ato de livre disposição por parte do proprietário do imóvel.
A propósito, confira-se o disposto no
art. 3º, inciso V da Lei Federal n. 8.009/90:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer
processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra
natureza, salvo se movido:
(...)
V - para
execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou
pela entidade familiar (g.n.).
De certo, a ressalva contida no inciso
V, do art. 3º de referido diploma legal permite expressamente que o imóvel dado
em garantia hipotecária pelo casal ou pela entidade familiar seja excluído da
proteção ao bem de família.
Ora, em observância ao princípio do pacta sunt servanda e da boa-fé
objetiva, não se pode, aqui, desconsiderar ato volitivo do devedor que oferece
o bem em que reside com sua família em garantia hipotecária para a obtenção de
financiamento para sua empresa.
Não foi outro, aliás, o entendimento
da Ministra Nancy Andrighi, por ocasião do julgamento do REsp 1141732/SP,
colacionado aos autos pelo embargante:
CIVIL. BEM DE FAMÍLIA. OFERECIMENTO EM
GARANTIA HIPOTECÁRIA. BENEFÍCIO DA ENTIDADE FAMILIAR. RENÚNCIA À IMPENHORABILIDADE.
1. A exceção do art. 3º, inciso V, da Lei nº 8.009/90, que permite a penhora de
bem dado em hipoteca, limita-se à hipótese de dívida constituída em favor da
entidade familiar. Precedentes. 2. A comunidade formada pelos pais e seus
descendentes se enquadra no conceito legal de entidade familiar, inclusive para
os fins da Lei nº 8.009/90. 3. A boa-fé do devedor é determinante para que
possa se socorrer do favor legal, reprimindo-se quaisquer atos praticados no
intuito de fraudar credores ou retardar o trâmite dos processos de cobrança. O fato de o imóvel dado em garantia ser o
único bem da família certamente é sopesado ao oferecê-lo em hipoteca, ciente de
que o ato implica renúncia à impenhorabilidade. Assim, não se mostra razoável
que depois, ante a sua inadimplência, o devedor use esse fato como subterfúgio
para livrar o imóvel da penhora. A atitude contraria a boa-fé ínsita às
relações negociais, pois equivaleria à entrega de uma garantia que o devedor,
desde o início, sabia ser inexequível, esvaziando-a por completo. 4.
Recurso especial a que se nega provimento (julgado em 09/11/2010)(g.n.)
No mesmo sentido, o entendimento do e.
Desembargador Barros Levenhagen, vencido no acórdão impugnado:
...sendo a
Apelada, ao mesmo tempo, sócia da empresa tomadora do empréstimo e proprietária
do imóvel dado em garantia deste negócio, pretende, diante do inadimplemento de
suas obrigações contratuais, contraídas sem vício de vontade, aproveitar-se de
sua própria torpeza, pleiteando o reconhecimento da impenhorabilidade do bem
hipotecado.
Com a pretendida manobra jurídica, está a
Postulante a ignorar, deliberadamente, os princípios contratuais do ‘pacta sunt
servanda’, e da boa-fé objetiva...(fl. 260-TJ).
NoPENHORA - BEM DE FAMILIA - EXCEÇÃO PREVISTA
EXPRESSAMENTE NA LEI 8.009/90 - POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO DA GARANTIA OFERTADA.
A lei não dispõe que se a hipoteca for decorrente de contratação de capital de
giro para empresa daqueles que ofertaram o imóvel será ele inalienável; pelo
contrário, estabelece que a impenhorabilidade NÃO SERÁ oponível em caso de
execução de hipoteca de imóvel oferecido como garantia real pelo casal
proprietário do mesmo - sendo exatamente esta a hipótese dos autos. Foram os
próprios agravantes que ofereceram o imóvel como garantia à dívida, e não
podem, agora, invocar a Lei 8.009/90 para se livrarem do pagamento.
caso presente, bem se vê pela cédula de
crédito comercial contraída em favor de pessoa jurídica, a empresa “Vidro Arte
Comércio de Vidros Decorativos Ltda.” (fls. 11/18 do executivo principal), que
o próprio proprietário do imóvel e sua esposa deram o bem em garantia
hipotecária, evidenciando, assim, que houve um ato de livre disposição por
parte do casal, ainda que a propriedade seja a única e residencial da entidade
familiar.
Ademais, a disposição
legal (art. 3º, inciso V, Lei Federal n. 8.009/90) não estabelece que se a
hipoteca for decorrente de contratação de capital de giro para empresa daqueles
que ofertaram o imóvel – in casu,
financiamento para aquisição de máquinas, equipamentos e formatização (fls. 11
da execução apense) – será ele inalienável. Ao contrário, prescreve
expressamente que a impenhorabilidade não será oponível em caso de execução de
hipoteca de imóvel oferecido como garantia real pelo casal proprietário do mesmo.
Com efeito, não se pode ir
além da intenção do legislador e criar condição contra legem no sentido de que o negócio, assegurado pela garantia
hipotecária, tenha sido realizado em prol da entidade familiar; até porque é de
se presumir que o financiamento em benefício da empresa da qual é sócio o
proprietário do imóvel tenha resultado em proveito da família.
Nesse sentido, o
posicionamento do e. Desembargador Tarcisio Martins Costa, amparado em
jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça:
EMBARGOS DE TERCEIRO -IMPENHORABILIDADE DO BEM
DE FAMÍLIA - EXAME DE OFÍCIO-
IMÓVEL OFERECIDO PELO DEVEDOR EM GARANTIA HIPOTECÁRIA - PENHORABILIDADE - ENQUADRAMENTO NA RESSALVA PREVISTA NO ART. 3º, V, DA LEI
8.009/90 - MEAÇÃO DA CONCUBINA - AVAL DADO PELO COMPANHEIRO À EMPRESA DA QUAL É SÓCIO - PRESUNÇÃO DE
QUE RESULTOU EM BENEFÍCIO DA FAMÍLIA
- ÔNUS DA PROVA DA CONVIVENTEEMBARGANTE. - A impenhorabilidade absoluta é matéria de ordem pública e, como tal,
suscetível de apreciação de ofício. - O
imóvel oferecido em garantia hipotecária pelo devedor é penhorável, por se
enquadrar na ressalva prevista no art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90. - A
jurisprudência consolidada do STJ orientou-se no sentido de que, em se tratando
de aval prestado pelo marido em favor de sociedade comercial da qual é sócio, é
de se presumir que a dívida dele
advinda tenha resultado em proveito da família,
daí cabendo ao cônjuge virago ou convivente o ônus da prova.
(...)
...resulta do exame dos autos que o
aval do executado fora concedido em benefício da sociedade comercial da qual é
sócio. Daí se presumir que a dívida
tenha sido contraída em proveito da família, por ser essa a fonte de onde
normalmente advém a manutenção e o sustento do núcleo familiar. Tal
presunção, como se sabe, é relativa ou juris
tantum, cabendo àquele que pretende a exclusão de sua meação o ônus da
prova, ao fito de elidi-la. Dessa forma, não há se cogitar da inversão do ônus
da prova, conforme entendeu a nobre sentenciante.
Nesse sentido, é a jurisprudência
consolidada do colendo Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL
CIVIL. EXECUÇÃO. AVAL DADO PELO MARIDO A EMPRESA DA QUAL É SÓCIO. PENHORA DE
BENS. MEAÇÃO DA ESPOSA. PRESUNÇÃO DE EMPRÉSTIMO QUE BENEFICIOU A FAMÍLIA.
TERCEIRA EMBARGANTE E MEEIRA QUE É SÓCIA DA MESMA PESSOA JURÍDICA. INCIDÊNCIA
DA CONSTRIÇÃO SOBRE A TOTALIDADE DOS BENS. ÔNUS DA PROVA PERTENCENTE À
ESPOSA.I. Orientou-se a jurisprudência
das Turmas integrantes da 2a. Seção do STJ no sentido de que em se tratando de
aval prestado pelo marido em favor de empresa da qual é sócio, é de se presumir
que o empréstimo que deu origem à dívida cobrada veio em benefício da família,
daí cabendo à esposa meeira o ônus da prova. II. (...) III. Recurso especial
conhecido e provido, para incidir a penhora sobre a totalidade dos bens, sem a
ressalva da meação (REsp 231029 - SP, 1999/0084128-0, Ministro ALDIR PASSARINHO
JUNIOR, 4ª Turma, DJ 17.02.2003, p.00281).
EMBARGOS DE TERCEIRO. PENHORA. MEAÇÃO. MULHER DO AVALISTA, SÓCIO DA EMPRESA
AVALIZADA. PRESUNÇÃO DE QUE A DÍVIDA FOI CONTRAÍDA EM BENEFÍCIO DA FAMÍLIA.
ÔNUS DA PROVA CONTRÁRIA. PRECEDENTES.- Agravo regimental voltado contra jurisprudência consolidada na Segunda Seção
do STJ, que nas circunstâncias como a dos autos, onde o marido da agravante
prestou aval a empresa da qual era sócio, reconhece a presunção de que a dívida
foi contraída em benefício da família, cabendo o ônus de provar o contrário à
mulher do avalista. - Subsistentes os fundamentos do decisório agravado,
nega-se provimento ao agravo (Agr REsp 299514 - SP, Agr Reg. no Resp
2001/0003391-1, Ministro CESAR ASFOR ROCHA, 4ª Turma, DJ 22.10.2001, p.00328)
(...)(Apelação Cível
2.0000.00.450094-5/000; julgado em 26/10/2004)(g.n.).
Com tais considerações, acolho os infringentes para que
prevaleça o entendimento minoritário, que, confirmando a decisão singular,
julgou pela improcedência dos embargos de terceiros opostos por Tatiana di
Blasi Chaves.
Custas na forma da lei.
É como voto.
Desa. Áurea Brasil (REVISORA) - De acordo
com o(a) Relator(a).
Des. Manuel Bravo Saramago
Peço
vênia aos doutos desembargadores que me precederam no presente julgamento para
manter o voto proferido por ocasião do julgamento da apelação, rejeitando os
presentes EMBARGOS INFRINGENTES.
Des. Barros Levenhagen - De acordo com o(a)
Relator(a).
Desa. Sandra Fonseca - De acordo com o(a)
Relator(a).
[i]
O
acórdão encontra-se disponível no sitio do TJMG.