10 de novembro de 2016, 8h00
Por Lenio Luiz Streck
De novo: O que são precedentes? É possível que, no Brasil, precedentes sejam teses e que, no common law, sejam outra coisa? Afinal, teses e precedentes são a mesma coisa? E as súmulas? Elas também são precedentes? Na coluna da última semana (veja aqui), diante do recente texto do ministro Roberto Barroso e Patrícia Mello, propusemos (Georges Abboud e eu) que se fizesse um colóquio — e não um solilóquio — a respeito do tema, na medida em que a proposta de transformação dos tribunais superiores em “cortes de teses” parece ser, no mínimo, açodada, para não dizer inconstitucional. Também não é “a saída” continuar sustentando que “teses” feitas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça sejam apelidadas de “precedentes”. Nossas premissas: o CPC não institui um sistema de precedentes; súmulas não são precedentes; teses também não; não somos commonlistas; não temos nada a ver com o common law. Mas se alguém invocar o common law, tem de assumir alguns ônus...! Ó que não dá é querer o melhor dos dois mundos sem “os custos da fundamentação”.
Eis que, nesta semana, enquanto Abboud e eu escrevíamos a coluna mostrando tim tim por tim tim a diferença entre os diversos institutos (sumulas, precedentes, teses, etc), deparo-me com recentíssima decisão do próprio ministro Barroso, que revela uma outra face do problema relativo à utilização irrefletida dos “precedentes” no direito brasileiro. Na medida em que teses, súmulas, decisões vinculantes e outras categorias são habitualmente equiparadas a “precedentes” pelos tribunais superiores, assumindo, com esse status, um selo de “obrigatoriedade” que “independe do seu conteúdo”, essas figuras torna(ra)m-se verdadeiros mantras cuja função é desonerar o órgão julgador do dever fundamental de fundamentação das decisões. Dito de outro modo, “precedentes” tornam-se álibis para facilitar o trabalho de juízes e tribunais, eximindo-os de fundamentar suas decisões. Tudo se transforma em “efetividade quantitativa”. Às favas a efetividade qualitativa.
Vejamos, então, a decisão proferida pelo ministro Barroso no julgamento do agravo em recurso extraordinário 992.299, oriundo de um processo que tramitou perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em que se discutia o direito à indenização por danos morais e materiais decorrente da perda de mandato eletivo e da cassação de direitos políticos com base no Ato Institucional 5. O pedido do autor foi julgado procedente em primeiro e segundo grau de jurisdição, tendo a União Federal interposto recurso extraordinário, ao qual, na origem, negou-se seguimento. Contra essa decisão, a União Federal interpôs agravo, o qual também não mereceu trânsito por parte do Supremo Tribunal Federal, conforma a seguinte decisão, prolatada pelo ministro Barroso:
Trata-se de agravo cujo objeto é decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário. A decisão agravada está correta e alinhada aos precedentes firmados por esta Corte.
Diante do exposto, com base no art. 21, § 1º, do RI/STF, nego seguimento ao recurso.
Publique-se.
Brasília, 15 de setembro de 2016.
Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO - Relator
Qual é o problema da decisão? Certamente que meu objetivo não é adentrar no mérito da questão abordada no recurso extraordinário da União Federal e no seu agravo. O que preocupa é a falta de fundamentação na decisão que negou seguimento ao agravo. Preocupa-me o conjunto de ilegalidades. Sequer é possível saber a matéria versada no recurso, pois o ministro Barroso limitou-se a dizer que a decisão agravada estaria correta e alinhada aos precedentes firmados pelo Supremo. Porém, quais são esses precedentes? Por que a decisão está correta? A menção aos “precedentes” da corte, que sequer são referidos na decisão, supre as exigências do §1º do artigo 489 do Código de Processo Civil Brasileiro?
Uma das principais conquistas do atual Código de Processo Civil brasileiro foi especificar aquilo que já era consagrado na Constituição em seu artigo 93, IX, ou seja, o dever de fundamentação das decisões judiciais. O mérito da legislação processual, no ponto, é estabelecer quando uma decisão judicial não será fundamentada, atacando, com isso, situações que se repetem na prática jurídica brasileira ao arrepio da Constituição.
Com efeito, pelo menos, três dessas situações em que uma decisão não se considera fundamentada podem ser encontradas na decisão de Barroso, quais sejam, “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (artigo 489, §1º, III), “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (artigo 489, §1º, IV) e “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (artigo 489, §1º, VI). Três violações em uma decisão de três/quatro linhas.
Não há dúvida que a decisão do ministro Barroso se baseou em “motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”, não enfrentou os argumentos deduzidos pela União Federal no seu recurso e, estando assentada em “precedente” veio a identificá-lo. Veja-se, já de pronto, o fetiche do precedente. Veja-se o tamanho da ficção que é o precedente à brasileira.
Ainda poderiam ser feitas outras objeções à decisão de Barroso. Com base em Michelle Taruffo, autor que constantemente é lembrado pelos precedentalistas brasileiros, pode-se dizer que a exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais também cumpre uma função extraprocessual, na medida em que possibilita o controle do exercício do Poder Judiciário fora do contexto processual, por parte do povo e da opinião pública em geral, tudo dentro de uma concepção democrática do poder[1]. Note-se que nem isso é possível diante da decisão do ministro Barroso, que sequer permite que aqueles que venham a consultá-la no site do Supremo possam saber do que ela trata.
Nisso tudo transparece o problema de substituir a lei e a Constituição por “precedentes” de maneira irrefletida: o precedente acaba servindo para tudo e, ao mesmo tempo, não significada nada! Com base em supostos precedentes a Corte Suprema desonera-se de fundamentar suas decisões e, com facilidade, cria-se uma barreira para o conhecimento de qualquer recurso que venha a impugnar suas próprias decisões.
Isso não significa que devemos deixar de lado a discussão a respeito dos “precedentes” no direito brasileiro. Porém, isso deve ser levado à sério, e não apenas uma ferramenta para facilitar o trabalho de tribunais e impedir o conhecimento de recursos. Então, de que vale a utilização de conceitos do common law, como é o caso do overruling se o sistema de filtros recursais, aliados à falta de fundamentação das decisões que versam sobre a admissibilidade dos recursos para os tribunais superiores impedem o exercício do direito ao contraditório como direito de influência?
Conforme lembrei na tretralogia sobre os precedentes publicada aqui na ConJur (Ver as quatro colunas Senso Incomum sobre o assunto: um, dois, três e quatro), com base na doutrina de Dierle Nunes, estamos diante do fenômeno que o processualista mineiro chamou de Einzatzgruppen (grupos de extermínio) de recursos no STF, cujo objetivo é justamente não admitir recursos. O problema é que essas decisões, do modo como são lançadas — e a decisão do ministro Barroso é um forte exemplo disso — acabam gerando diversos outros recursos. Trata-se de uma falsa efetividade, de uma efetividade quantitativa que deixa de lado a qualidade das decisões. Que efetividade é essa que multiplica os problemas?
Já falei que mesmo o genuíno precedente não pode ser considerado critério máximo para justificar o raciocínio judicial (ver aqui) e, agora, precisamos acrescentar que precedente não é um álibi para desonerar o julgador de fundamentar suas decisões. Corremos o risco de chamar tudo de precedente — repita-se, teses e ratio decidendi não são a mesma coisa — e, pior ainda, com isso desrespeitar o dever de fundamentação das decisões em favor da bandeira da efetividade (quantitativa) acima de tudo... a decisão do ministro Barroso é um sintoma disso. Urge, portanto, que a comunidade jurídica passe a questionar até onde iremos com essa transformação das cortes supremas em cortes de teses!
Numa palavra: Acredito que nem mesmo os mais ferrenhos defensores dos “precedentes obrigatórios” no Brasil aceitem essa banalização dos precedentes pelo Judiciário brasileiro. É importante repetir que os mecanismos vinculantes do artigo 927 do CPC e as “teses” que o Supremo vem lançado ao final dos seus julgamentos como defende Barroso não são precedentes.
Há tantos assuntos para falar... Mas tinha o dever cívico-epistêmico de trazer essa decisão que simboliza dramaticamente o que se está fazendo no judiciário em nome de efetividades quantitativas. Essa é a função da doutrina, como tenho dito. O silêncio eloquente de setores da doutrina é que reforçam decisões como essa. Assim ocorreu no decorrer destes 28 anos. Começaram a dizer que princípios eram (são) valores (apostando na moral contra o direito), reforçaram o livre convencimento, aplaudiram o ativismo... Ou seja: o que mais se fez foi teoria normativa da política e o que menos se fez foi teoria do direito. Com isso, o direito foi sendo fragilizado, exaurido.
Meu receio (e isso está à nossa porta) é que, quando precisarmos mesmo do direito, ele já não estará. Porque foi predado. Na verdade, por ser pré-dado, acabou sendo predado. Por isso, continuo propugnando por um grau de ortodoxia. Salvemos, pois, o direito.
1 TARUFFO, Michelle. La motivazine della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975, p. 237.
*Texto alterado às 14h34 desta quinta-feira (10/11) para correção. O número do agravo é 992.299 e não 992.229.
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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2016, 8h00