sábado, 29 de outubro de 2016

Responsabilidade civil ambiental e a reparação integral do dano



Por Álvaro Luiz Valery Mirra


No Direito brasileiro, conforme tem sido analisado pela doutrina especializada, a responsabilidade civil ambiental está sujeita a um regime jurídico próprio e específico, fundado nas normas do artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal e do artigo 14, parágrafo 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), diverso, em muitos pontos, do regime comum do Direito Civil e do Direito Administrativo, o que deu à responsabilidade civil por danos ambientais entre nós uma grande amplitude[1].

Entre outros aspectos, esse regime especial de responsabilidade civil está baseado a) na admissão da reparabilidade do dano causado à qualidade ambiental em si mesma considerada, reconhecida como bem jurídico protegido, e do dano moral ambiental[2]; b) na consagração da responsabilidade objetiva do degradador do meio ambiente, ou seja, responsabilidade decorrente do simples risco ou do simples fato da atividade degradadora, independentemente da culpa do agente, adotada a teoria do risco integral[3]; c) na amplitude com que a legislação brasileira trata os sujeitos responsáveis, por meio da noção de poluidor adotada pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, considerado poluidor a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, direta ou indiretamente responsável pela degradação ambiental (artigo 3º, IV); e d) na ampliação dos efeitos da responsabilidade civil, que abrange não apenas a reparação propriamente dita do dano ao meio ambiente, como também a supressão do fato danoso à qualidade ambiental, por meio do que se obtém a cessação definitiva da atividade causadora de degradação do meio ambiente.

Dentro desse contexto, em que se verificam a amplitude e a força da responsabilidade civil pelo dano ambiental, impõe-se indagar se tem lugar, também, a aplicação do princípio da reparação integral do dano ambiental.

A noção de reparação aplicável ao dano ambiental traz consigo sempre a ideia de compensação. Isso no sentido de que a degradação do meio ambiente e dos bens ambientais não permite jamais, a rigor, o retorno da qualidade ambiental ao estado anterior ao dano, restando sempre alguma sequela do dano que não pode ser totalmente eliminada. Há, na realidade, sempre algo de irreversível no dano ambiental, o que não significa irreparabilidade sob o ponto de vista jurídico.

Nesse contexto, a reparação do dano ambiental deve invariavelmente conduzir o meio ambiente a uma situação equivalente — na medida do que for praticamente possível — àquela de que seria beneficiário se o dano não tivesse sido causado, compensando-se, ainda, as degradações ambientais que se mostrarem irreversíveis. Daí a incidência do princípio da reparação integral do dano[4].

A reparação integral do dano ao meio ambiente abrange não apenas o dano causado ao bem ou recurso ambiental imediatamente atingido, como também toda a extensão dos danos produzidos em consequência do fato danoso à qualidade ambiental[5], incluindo: a) os efeitos ecológicos e ambientais da agressão inicial a um determinado bem ambiental que estiverem no mesmo encadeamento causal (como, por exemplo, a destruição de espécimes, habitats e ecossistemas inter-relacionados com o meio imediatamente afetado; a contribuição da degradação causada ao aquecimento global); b) as perdas de qualidade ambiental havidas no interregno entre a ocorrência do dano e a efetiva recomposição do meio degradado; c) os danos ambientais futuros que se apresentarem como certos; d) os danos irreversíveis causados à qualidade ambiental, que de alguma forma devem ser compensados; e) os danos morais coletivos resultantes da agressão a determinado bem ambiental[6].

Essa, inclusive, é a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, em expressivo julgado da lavra do ministro Herman Benjamin, que, inclusive, foi ainda mais longe, ao decidir que a reparação integral do dano ambiental compreende, igualmente, a restituição ao patrimônio público do proveito econômico do agente com a atividade ou empreendimento degradador, a mais-valia ecológica que o empreendedor indevidamente auferiu com o exercício da atividade degradadora (como, por exemplo, a madeira ou o minério retirados ao arrepio da lei do imóvel degradado ou, ainda, o benefício com o uso ilícito da área para fim agrossilvopastoril, turístico ou comercial)[7].

Questão importante na matéria diz respeito à incidência ou não de alguma exceção ao princípio da reparação integral do dano ambiental, por vezes aceita na teoria da responsabilidade civil, para o fim de limitar a amplitude da reparação pretendida, com base, em especial, no exercício de um certo poder moderador dos juízes, movidos por razões de equidade, em disposições legais especiais ou na convenção entre as partes interessadas[8].

Essa indagação é particularmente importante se se considerar o disposto no artigo 944 do Código Civil brasileiro, que depois de firmar a regra da reparação integral do dano, no caput, abriu, no parágrafo único, a possibilidade de o juiz reduzir equitativamente a indenização, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa do agente e o dano efetivamente causado. A referida norma do Código Civil, como norma geral em tema de responsabilidade civil, teria incidência no âmbito da responsabilidade civil ambiental?

Segundo se tem afirmado, essa exceção ao princípio da reparação integral do dano não tem aplicação à reparação do dano ambiental.

Por um lado, é importante insistir no fato de que a responsabilidade civil ambiental resulta de um sistema próprio e autônomo no contexto da responsabilidade civil, com regras especiais que se aplicam à matéria, em detrimento das normas gerais do Código Civil que com elas não sejam compatíveis. Nesse sentido, a responsabilidade civil por danos ambientais está sujeita a um regime jurídico específico, instituído a partir da Constituição Federal e da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que não inclui qualquer norma mitigadora da reparação integral do dano, sendo derrogatório, portanto, em tal aspecto, do regime geral do Código Civil.

Por outro lado, nunca é demais lembrar que a responsabilidade civil ambiental tem como fundamento o risco criado pelas atividades degradadoras e não a culpa do degradador, de maneira que configuraria verdadeiro contrassenso se se passasse a levar em conta exatamente a culpa para a delimitação da extensão da reparação pretendida.

Na realidade, limitar a reparação dos danos ambientais em virtude da menor culpa ou da ausência de culpa do degradador significaria, no final das contas, reinserir na responsabilidade objetiva a discussão da culpa do agente, agora não mais para a determinação da responsabilidade civil em si mesma, mas para a definição do montante reparatório, o que o regime instituído a partir da Constituição de 1988 e da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente pretendeu precisamente afastar.

No tocante à intervenção do legislador para o estabelecimento de limites legais à reparação do dano, em especial para favorecer o desempenho de determinadas atividades consideradas de particular relevância para o desenvolvimento do país, é importante observar que no Direito brasileiro tal expediente não foi adotado em relação à reparação de danos ambientais e nem seria a rigor admissível, tendo em vista a indisponibilidade do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito humano fundamental, e do meio ambiente, como bem de uso comum do povo (artigo 225, caput, da CF).

Finalmente, no que se refere à limitação à reparação de danos decorrente da convenção entre os interessados, importa considerar aqui, de maneira especial, a transação.

No âmbito da reparação de danos ambientais, devido ao já referido caráter indisponível do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito humano fundamental, e do meio ambiente, como bem de uso comum do povo (artigo 225, caput, da CF), não se pode a rigor ter como válida a transação, que, inclusive, nos termos da própria lei civil, está restrita a direitos patrimoniais de natureza privada.

Não se ignora aqui a existência de corrente doutrinária que se manifesta já há algum tempo no sentido de admitir a transação nessa matéria, com base, sobretudo, na Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), que autoriza a tomada pelos entes públicos legitimados à ação civil pública do denominado “compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais” (artigo 5º, parágrafo 6º), que muitos veem como a consagração definitiva no Direito Positivo brasileiro da admissibilidade de transações em tema de direitos e interesses difusos[9].

No entanto, parece que, nessa matéria, têm razão aqueles autores que entendem que o conteúdo possível do denominado compromisso de ajustamento de conduta nada tem a ver com o de uma verdadeira transação, por meio da qual se permitiriam concessões mútuas entre as partes[10].

É interessante observar a respeito que, nos exatos termos da lei, por intermédio do compromisso em questão os degradadores se comprometem a ajustar as suas condutas às exigências legais, não fazendo o legislador referência, em momento algum, à possibilidade de se realizarem transações em relação aos direitos protegidos, por meio de concessões favoráveis aos interesses dos causadores de degradações ambientais. Assim, inclusive, já se pronunciou o Tribunal de Justiça de São Paulo[11].

Nesse passo, porém, vale uma ressalva. É a de que o Superior Tribunal de Justiça, embora como regra não admita a transação em tema de reparação do dano ambiental, já entendeu, em caráter excepcional, como válido, acordo celebrado nos autos de ação civil pública, em que houve reparação não integral do dano, por considerar, naquela hipótese específica, diante das circunstâncias da espécie, como a melhor forma de composição da lesão causada[12].

Em suma, como se procurou demonstrar, a reparação do dano ambiental deve sempre conduzir o meio ambiente a uma situação na medida do possível equivalente àquela de que seria beneficiário se o dano não tivesse sido causado. E, nessa matéria, o princípio da reparação integral do dano tem inteira aplicação, devendo-se levar em consideração não só o dano causado imediatamente ao bem ou recurso ambiental atingido como também toda a extensão dos danos produzidos em consequência do fato danoso à qualidade ambiental, incluindo o dano moral ambiental verificado.

Além disso, é importante ter sempre claro que no atual estágio do Direito Ambiental brasileiro não se admite qualquer limitação à plena reparabilidade do dano ao meio ambiente. Tendo em vista a indisponibilidade do direito protegido, nenhuma disposição legislativa, nenhum acordo entre os litigantes e nenhuma decisão judicial que tenham como finalidade ou efeito o de limitar a extensão da reparação do dano ambiental podem ser considerados legítimos.



[1] BENJAMIN, Antônio Herman V. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 9, p. 5-52; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 441, nota 1199.
[2] STJ – 2ª T. – REsp 1.367.923/RJ – j. 27/8/2013 – rel. min. Humberto Martins; STJ – 2ª T. – REsp 1.198.727/MG – j. 14/8/2012 – rel. min. Herman Benjamin.
[3] STJ – 2ª Seção REsp 1.374.284/MG – j. 27/8.2014 – rel. min. Luís Felipe Salomão – sob o regime do artigo 543-C do CPC/1973; STJ – 4ª T. – AgRg no AgRg no AREsp 153.797/SP – j. 5/6/2014 – rel. min. Marco Buzzi; STJ – 2ª Seção – REsp 1.114.398/PR – j. 8/2/2012 – rel. min. Sidnei Beneti – sob o regime do artigo 543-C do CPC/1973.
[4] MIRRA, Álvaro Luiz Valery Mirra. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 314-324; BENJAMIN, Antônio Herman V., op. cit., p. 19; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 421-424; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 427-428; LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 229-230; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 211; LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 186; PINHO, Hortênsia Gomes. Prevenção e reparação de danos ambientais: as medidas de reposição natural, compensatória e preventivas e a indenização pecuniária. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 327-330.
[5] CUSTÓDIO, Helita Barreira. Avaliação de custos ambientais em ações judiciais de lesão ao meio ambiente. Revista dos Tribunais, v. 652, p. 26.
[6] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente, cit., p. 315.
[7] STJ – 2ª T. – REsp 1.145.083/MG – j. 27/9/2011 – rel. min. Herman Benjamin.
[8] Sobre todos esses aspectos, ver MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente, cit., p. 317 e ss.
[9] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, cit., p. 1465 e ss; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 316-329; NERY, Ana Luiza de Andrade. Compromisso de ajustamento de conduta: teoria e análise de casos práticos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 130-164.
[10] RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 141-159; AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 77-81; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 147-150.
[11] TJ-SP – 9ª Câmara de Direito Público – Ap. Cív. 259.003-5/0-00 – j. 19/2/2003 – rel. des. Ricardo Lewandowski.
[12] STJ – 2ª T. – REsp 299.400/RJ – j. 1º/6/2006 – rel. p/ acórdão min. Eliana Calmon.



Álvaro Luiz Valery Mirra é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2016, 8h05

Pensar a atualidade da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen



Por Alexandre Morais da Rosa


Um pouco de Teoria Pura do Direito não faz mal a ninguém. Prometi aos que acompanham a coluna indicar leituras preliminares. E hoje irei falar — brevemente — de Hans Kelsen.

A teoria do Direito proposta por Hans Kelsen[1] representou verdadeiro divisor de águas na Filosofia do Direito em face da maneira pela qual ele propôs o olhar sobre o objeto Direito. Esse olhar tinha pressupostos filosóficos da Escola neokantiana[2], segundo a qual o importante era o método (fundamento neopositivista[3]). É que somente com rigor metodológico poder-se-ia fazer ciência. Tendo em vista o caráter meramente descritivo, Hans Kelsen elegeu as normas jurídicas como seu objeto de estudo, construindo, assim, uma teoria formal, desvinculada, pois, do mundo da vida.

No contexto histórico em que surgiu a Teoria Pura do Direito, a proposta lançada por Hans Kelsen significava o rompimento com o paradigma[4] jusnaturalista[5]. A proposta era a abstração dos aspectos morais, sociológicos e religiosos, bem assim a Justiça, dentre outros, propondo a discussão meramente vinculada ao disposto nas normas jurídicas emanadas pelo Estado (monismo). Formou, destarte, o normativismo Kelseniano, preocupado exclusivamente com a lei e as demais normas positivas, com o escopo de purificar a ciência jurídica, então pululada por diversos fatores. Procurou — e conseguiu — dar personalidade ao Direito, investindo-o de caráter próprio: as normas.

De sorte que a Teoria Pura do Direito pretende analisar cientificamente o seu objeto, munida de pureza metódica, afastando da ciência jurídica qualquer elemento estranho, reduzindo-o à pura norma[6]. O processo de depuração propugnava um duplo decantamento, consistente na exclusão do mundo da vida e de aspectos valorativos, restringindo-se ao mundo lógico: norma jurídica.

Por não ser seu objeto, pouco importa à ciência jurídica como as normas são produzidas ou como deveriam ser, dado que isso seria objeto da Política Jurídica[7]. Com esse desiderato, a tarefa científica restringia-se à descrição, sem qualquer necessidade de discussões valorativas por parte dos juristas, fiel — sempre — ao seu objeto e desprovido de preocupações decorrentes, por exemplo, da Justiça, em decorrência da neutralidade pressuposta[8].

Hans Kelsen distinguia o mundo do ser, próprio das ciências naturais, do dever-ser, no qual o Direito estava situado. Premissa de seu pensamento era de que não existe possibilidade lógica de deduzir o dever-ser do ser, ou seja, de descobrir as normas jurídicas a partir dos fatos — natureza. Com essa dicotomia, o mundo da vida seria regido por leis da causalidade, enquanto o mundo do Direito traria as leis da imputação[9].

Com esse instrumental, a norma jurídica habitaria o mundo do dever-ser e obedeceria à ideia de imputação, decorrente de um comando ou mandamento. Logo, a norma jurídica traria um juízo hipotético de determinada conduta que, uma vez verificada, redundaria na aplicação da correspondente sanção[10].

À formulação das regras de reconhecimento das normas jurídicas, segue-se a aplicação hierarquizada. A estrutura do sistema estaria representada por uma pirâmide normativa, composta no vértice da Norma Fundamental, recurso lógico/pressuposto de validade de um sistema hierárquico, deduzindo-se, formalmente, a delegação da validade da norma superior. A linhagem formal ascendente é o fundamental para o reconhecimento e consequente validade formal da norma jurídica.

De sorte que a primeira manifestação positiva da Norma Fundamental estaria materializada pela Constituição. O conteúdo da Norma Fundamental é meramente formal, sem, pois, vinculação valorativa ou material, não justificando o ordenamento por critérios outros que não o lógico.

A resolução do problema das fontes do Direito foi solvida mediante a implementação de uma perspectiva unificada do Direito, decorrente exclusivamente do Estado. Esse casamento entre Estado e Direito impede a introdução de qualquer pluralismo jurídico, condicionando a validade à emanação formal do Estado[11].

Apesar das críticas a que a Teoria Pura do Direito está sujeita, o importante para efeito deste breve escrito, é que a forma prepondera sobre o conteúdo e o ordenamento jurídico seria estruturado de modo lógico, com inferências formais, colmatadoras da validade das normas jurídicas, emanadas, de qualquer sorte, do Estado. Não se pode, ademais, criticar Hans Kelsen fora do seu tempo, nem o uso que se fez de sua teoria. Mas flutuar sem saber de onde surgiu o discurso kelseniano é um problema para quem defende posições que desconhece.



[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
[2] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, vol. II. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 136-137, assevera: “Para Kant, a determinação racional da possibilidade e limite do conhecimento puro precede ao conhecimento do real. Da mesma forma, para Kelsen a necessidade de uma teoria pura, que delimite o objeto de conhecimento jurídico e estabeleça as condições e possibilidades do mesmo, precede logicamente o conhecimento das ciências jurídicas positivas. Por isso, a tarefa prioritária da teoria pura é estabelecer as categorias jurídicas distintivas e determinantes, em última instância, do campo temático específico das ciências jurídicas, as categorias constituintes da normatividade. Para este trabalho teórico apelaríamos para o método transcendental kantista, que permitiria a Kelsen estabelecer a legalidade da ciência jurídica”. Na esteira, OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Bobbio e a Filosofia dos Juristas. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 51.
[3] OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 5-38.
[4] KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, externa dois conceitos de paradigma: Primeiro: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. p. 219. Depois: “Os paradigmas são algo compartilhado pelos membros de tais comunidades”. P. 222. Os paradigmas são, assim, como a constelação dos compromissos de grupo.
[5] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, vol. I. Trad. Carmen C. Varriale et alli. Brasília : UNB, 1999, p. 655: “O Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer”. É uma concepção essencialista, que desconsidera o giro linguístico e a superação da filosofia da consciência, como se verá adiante.
[6] KELSEN, Hans. ¿Qué es la Teoría Pura del Derecho? México: Fontamara S.A., 1995, p. 8, esclarece: “Y por último, apoyándose en la comparación de todos los fenómenos calificados como ‘derecho’, se puede investigar la esencia del derecho, su estructura típica, independientemente del contenido variante que ha tenido en las diferentes épocas y países. Esta es la tarefa de una teoría general del derecho, es decir, de una teoría que no se limita a un determinado orden jurídico o a determinadas normas jurídicas. Esta teoría tiene que precisar el método específico y los conceptos fundamentales con los cuales es posible describir y concebir cualquier tipo de derecho”.
[7] Assim é que a formulação do Direito ficava a cargo do legislador, seara em que o aspecto valorativo desfilava com vigor; ao jurista era descabida essa valoração, mas tão somente a interpretação a-valorativa das normas jurídicas, sem a pretensão de suplantar a tarefa do legislador e, desta forma, violar o dogma da separação de poderes. Conferir: MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994. KELSEN, Hans. O problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito... p. 210: “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do conteúdo de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada de uma forma determinada — em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”.
[9] KELSEN, Hans. ¿Qué es la Teoría Pura del Derecho?... p.10-11.
[10] A representação clássica é a de que Se é A, deve ser B, em que A é o ilícito, e B, a sanção.
[11] Conferir: WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1997.



Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2016, 8h00

Município exonera 53 servidores que trabalhavam depois de aposentados




O servidor, depois de aposentado, não pode continuar no quadro de ativos do poder público, pois isso contraria o ordenamento jurídico, além de tornar vitalício um cargo que não tem essa prerrogativa. Assim entendeu o juiz Adriano Camargo Patussi, da Vara Única de Rosana, em São Paulo, ao conceder liminar para exonerar 53 servidores que atuavam na Prefeitura da cidade mesmo estando inativos.

A ação foi movida pelo Ministério Público de São Paulo depois de uma denúncia sobre o fato. Na cautelar, o juiz destacou que não há risco na decisão, principalmente à manutenção dos trabalhos da Prefeitura do interior paulista, pois há vários aprovados em concurso aguardando nomeação.

Segundo Patussi, a manutenção de servidores aposentados nos cargos afronta o artigo 37 da Constituição Federal, que impede o acúmulo de função; o artigo 33 da Lei 8.112/90, que delimita o regime jurídico dos servidores públicos civis da União; e o artigo 86, inciso V, da Lei estadual 10.261/68, que criou o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis de São Paulo.

O juiz destacou que, caso a permanência de aposentados do funcionalismo público em seus cargos fosse aceita, os quadros de servidores só seriam renovados caso houvesse rescisão por justa causa, pedido de desligamento do empregado ou morte. Disse ainda que a aposentadoria compulsória deixaria de ter valor legal. “Destarte, permitir tal situação significa transformar todos os cargos públicos em vitalícios sem, todavia, haver previsão legal.”

Coincidentemente, a decisão foi proferida na última quarta-feira (26/10), mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal proibiu a desaposentação. De acordo com a corte, o aposentado que trabalha e continua contribuindo não pode pedir a revisão de seu benefício por não haver previsão legal, o que torna o ato inconstitucional. O placar registrou 7 votos a 4.

Para o advogado Robson Thomas Moreira, a questão na atual conjuntura político-jurídica é conturbada, mas a condição dos servidores aposentados já encontrava-se instalada a anos. Por isso, diz ele, "o afastamento liminar gera insegurança jurídica, ao ponto que as liminares são decisões suscetíveis a modificação".

Clique aqui para ler a decisão.



Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2016, 11h03

Turma autoriza penhora sobre direito de usufruto de imóvel





Usufruto é o direito assegurado a alguém, que passa a usufruir das utilidades e frutos de um bem, cuja propriedade pertence a outra pessoa. Se o devedor inadimplente possui direito de usufruto de um imóvel, esse direito pode ser penhorado para fins de garantir um débito trabalhista?

Para o juiz convocado da 2ª Turma do TRT-MG Rodrigo Ribeiro Bueno, sim, pois não há impedimento para que a penhora recaia sobre o direito de usufruto (artigo 897 do NCPC) e a nossa legislação autoriza a cessão do exercício do usufruto a título oneroso ou gratuito (artigo 1393 do CC). Acompanhando esse entendimento, a Turma deu provimento ao recurso de um trabalhador para autorizar a penhora sobre o direito do devedor ao usufruto de um imóvel.

No caso, o trabalhador requereu a penhora de imóvel do qual o sócio da empresa devedora possui direito a usufruto vitalício. O pedido foi indeferido pelo juízo de 1º grau, inicialmente por ser o devedor apenas usufrutuário do imóvel e também porque eventual penhora sobre esse direito seria inócua por não possibilitar a satisfação do crédito.

Ao analisar o recurso, após esclarecer sobre a ausência de impedimento para que a penhora recaia sobre o usufruto, o relator ressaltou que, em relação à efetividade da medida constritiva, o processo se arrasta desde 1995, quando foi celebrado acordo entre as partes e apenas a primeira parcela foi paga. Levando em consideração que todas as tentativas de satisfação do crédito foram infrutíferas até o momento, o julgador entendeu pela pertinência da penhora sobre o direito de usufruto de imóvel, frisando que é do credor a obrigação de indicar os meios para prosseguir a execução, e ele apontou ser esse o único bem do devedor.

Nesse quadro, salientando que o imóvel poderá ser alugado pelo credor, por prazo suficiente para a quitação do seu crédito, o que revela a efetividade da medida, o relator deu provimento ao recurso, para autorizar a penhora do imóvel, nos limites a serem determinados pelo juízo da execução. ( 0187100-39.1995.5.03.0043 AP )

Fonte: TRT3

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O livro de Ronald H. Coase, enfim, no vernáculo! Devore-o!





Por Gabriel Nogueira Dias


Se um “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, Ítalo), A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald H. Coase, pertence integralmente a tal seleto grupo de escritos.

Para dizer pouco, não tivesse o próprio autor anglo-saxão sido agraciado com o Nobel Prize em 1991, 9 dentre os 15 últimos economistas laureados em Estocolmo têm suas raízes justamente no campo de pesquisa mais impactado por seus trabalhos — a Microeconomia; no caso de Jean Tirole (2014), Bengt Holmström e Oliver Hart (2016), a coincidência da área científica é ainda mais marcante: a Teoria dos Contratos. Ou seja, Coase disse e ainda resta pronto a dizer e inspirar, muito, academia e sociedade.

A empreita de trazê-lo ao vernáculo merece efusivos aplausos. Contra a corrente da caudalosa e sem precedentes crise que, infelizmente, inunda, rectius: afoga o mercado editorial pátrio, a Coleção Paulo Bonavides — editada pela Forense Universitária (Grupo Editorial Nacional) e dirigida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e pelo professor Otavio Luiz Rodrigues Junior — caminha fiel e tinhosa no cumprimento de sua missão quase civilizatória, isto é, contribuir ao crescimento cultural da nação.

Com efeito, além do tradicional cuidado editorial e de tradução — a qual, permita-se a menção, contou com a revisão dos professores Alexandre Veronese, Lucia Helena Salgado e Antônio José Maristrello Porto, além de uma revisão total por Francisco Niclós Negrão e uma revisão final do próprio organizador, professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. — o compêndio traz belo estudo introdutório do ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio Carlos Ferreira e da mestra em Direito Patrícia Cândido Alves Ferreira. Bem calibrando informações sobre origem, objetivos e contornos da obra de Coase, o essai préliminaire afigura-se como um motivo em si para adquirir e ler o compêndio em sua inteireza.

Nesse contexto, não seria preciso, talvez, mais muito para assanhar os leitores a (re)visitar a A Firma, o Mercado e o Direito de Ronald H. Coase. Aos indecisos e ainda pouco curiosos, três provocações talvez lhes sirvam de incremental estímulo.

É corrente dizer que Ronald H. Coase revolucionou o pensamento econômico do século XX ao introduzir o tema dos “custos de transação” e “direitos da propriedade” como ferramentas fundamentais à análise da estrutura institucional e do funcionamento da economia; que seu trabalho é um divisor de águas no exame de instituições, contratos, distribuição de direitos de propriedade, alocação ótima de recursos, externalidades e a real efetividade da regulação e intervenção do Estado na economia.

Tudo verdade. Porém, pouco, talvez, para espelhar a obra. Valor e virtude dos complete works de Coase parece-nos ligado a algo muito mais profundo e essencial a todo pensamento que se apresenta com status de significância perene ao mundo, qual seja, à ideia de Justiça.

Isto mesmo. Bem apreendido, o Law and Economics de Coase coloca em nossas mãos ferramentas para melhor interrogar e enfrentar o clássico tema da divisão ótima de recursos (escassos) na nossa sociedade. De Adam Smith a — para sacar um nome da moda — Thomas Piketty, passando por Thomas Malthus, David Ricardo e Karl Marx, por exemplo, todos os mais notórios economistas de nossa sociedade trouxeram e trazem consigo, no fundo, uma inquietação com o tema da acumulação de riqueza e as formas ótimas — ou justas, diríamos, filosoficamente — à divisão dos recursos (escassos) em nossa sociedade.

Revisitadas as origens de Ronald H. Coase, um garoto de origem proletária, marcado pela depressão dos anos 30 e com inicial inclinação ao socialismo Fabiano, não nos surpreende que este igualmente seja um fio condutor, se não propriamente oculto, implícito aos seus trabalhos. Ao infirmar exemplos e raciocínios a partir da existência de situações hipotéticas com zero custos de transação, Coase em verdade deseja colocar luzes à sua existência e, sobretudo, ao seu deletério impacto à ótima/justa divisão dos recursos. Estudos e críticas a sistemas regulatórios e contratuais que negligenciam e/ou estimulam a existência de severos custos de transação às partes envolvidas nada mais são do que crítico plaidoyer a uma sociedade mais justa.

Diretamente ligado ao tema, resta a incessante obsessão do autor para calcar a Ciência Econômica com pés e mãos no mundo real, apartando-se das abstrações inúteis. Per analogiam, Coase alinha-se, em comportamento e ideal metodológico, à inquieta personalidade do genial Rudolph von Jhering, que, a partir da segunda metade do século XIX, na esteira de seu irônico Scherz und Ernst in der Jurisprudenz (1884) abandona drasticamente sua marcante Jurisprudência dos Conceitos (Begriffsjurisprudenz) para abraçar, com toda força, a defesa incessante de uma Ciência Jurídica calcada na vida real; um ferrenho defensor das análises empíricas. Assim comporta-se Ronald H. Coase, que em seus pensamentos e exemplos sobre fenômenos e opções econômicas (v. também O farol na Economia, 1974), rechaça abordagens e premissas abstratas, que, em suas palavras, não levam em conta o mundo como ele é.

Em terceiro plano, a leitura de A Firma, o Mercado e o Direito nos coloca diante de uma imperativa reflexão sobre seu lugar e importância para a aplicação do direito pelos Tribunais. Coase, e grande parte dos defensores do Law and Economics, caminham pela picada de que o foco da prestação jurisdicional deveria ser a redução dos custos de transação. Bons juízes deveriam tentar, em suas decisões, distribuir os direitos entre as partes de forma similar ao que ocorreria se estas tivessem chegado a um acordo. Tais decisões, racionais (ou “ótimas” ou, melhor, “justas”), dariam causa a precedentes que orientariam os agentes econômicos em uma direção que os permitiria, no futuro, chegar a um acordo sem qualquer recurso aos tribunais.

Se, à atividade de lege ferenda, o projeto é interessante e próspero, quando da aplicação de lege lata tudo parece se complicar um cadinho a mais. A obsessão para a transformação da norma (dever-ser; Sollen) a partir do inconformismo com o fato (ser; Sein) bem habita o campo da política e sociologia, mas dificilmente parece se coadunar com os objetivos e funções da atividade jurisdicional. Ao juiz singular e/ou aos tribunais, por maior que seja a tentação (por pressão ou ativismo), é defeso abandonar a lei para abraçar, sem mais, o fato. A utilização de ferramentas e perspectivas eminentemente empíricas para melhor calibrar novas normas e estruturas regulatórias parece de virtude inquestionável; o trabalho legislativo deve se aproximar, sim, da Economia, bem como da Sociologia e da Análise Estatística. A “coisificação” ou, pior, a “fulanização” da norma à luz do fato pelos Tribunais, por sua vez, empobrece o Direito e incita a insegurança jurídica, o que por tabela nem de longe fortalece as instituições judicantes. Em síntese: “Coase, sim!; Coisa, não!”

Contudo, se nada disso for motivo suficiente para instigar a leitura do monumental clássico A Firma, o Mercado e o Direito, de Ronald H. Coase, fiemo-nos d’alma aberta na lição de Sócrates, tão citada por muitos como Cioran: “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



Gabriel Nogueira Dias é sócio do Magalhães e Dias Advocacia, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, Alemanha. Membro do Conselho da Fundação Hans Kelsen (República da Áustria).

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2016, 8h05

Padre é condenado a pagar danos morais por impedir interrupção de gravidez


 
Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou um padre do interior de Goiás a pagar indenização de danos morais no valor de R$ 60 mil por haver impedido uma interrupção de gestação que tinha sido autorizada pela Justiça.

Em 2005, o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz impetrou habeas corpus para impedir que uma mulher grávida levasse adiante, com auxílio médico, a interrupção da gravidez de feto diagnosticado com síndrome de Body Stalk – denominação dada a um conjunto de malformações que inviabilizam a vida fora do útero. No habeas corpus impetrado em favor do feto, o padre afirmou que os pais iriam praticar um homicídio.

Acompanhando o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma entendeu que o padre abusou do direito de ação e violou direitos da gestante e de seu marido, provocando-lhes sofrimento inútil.

Ao saber que o feto não sobreviveria ao parto, os pais, residentes na cidade de Morrinhos, a 128 quilômetros de Goiânia, haviam buscado – e conseguido – autorização judicial para interromper a gravidez.

Durante a internação hospitalar, a gestante, já tomando medicação para induzir o parto, foi surpreendida com a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, que atendeu ao pedido do padre e determinou a interrupção do procedimento.

A grávida, com dilatação já iniciada, voltou para casa. Nos oitos dias que se seguiram, assistida só pelo marido, ela agonizou até a hora do parto, quando retornou ao hospital. O feto morreu logo após o nascimento. O casal ajuizou uma ação por danos morais contra o padre, que preside a Associação Pró-Vida de Anápolis. Não obtendo sucesso na Justiça de Goiás, recorreu ao STJ.

Aterrorizante

Em seu voto, Nancy Andrighi classificou de “aterrorizante” a sequência de eventos sofridos pelo casal.

“Esse exaustivo trabalho de parto, com todas as dores que lhe são inerentes, dão o tom, em cores fortíssimas, do intenso dano moral suportado, tanto pela recorrente como pelo marido”, disse.

A ministra afirmou que o caso deve ser considerado à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, julgada em abril de 2012, quando se afastou a possiblidade de criminalização da interrupção de gestação de anencéfalos.

“É inegável que ambas as condições, anencefalia e síndrome de Body Stalk, redundam, segundo o conhecimento médico atual, na inviabilidade da vida extrauterina”, comparou a ministra.

Embora o julgamento da ADPF tenha sido posterior ao caso, a ministra assinalou que a orientação manifestada pelo STF não tem limites temporais, e já em 2005 era a mais consentânea com as normas constitucionais, inclusive pela reafirmação do caráter laico do Estado brasileiro e pelo reconhecimento da primazia da dignidade da gestante em relação aos direitos de feto sem viabilidade de vida extrauterina.

Ação temerária

A relatora avaliou que o padre agiu “temerariamente” quando pediu a suspensão do procedimento médico de interrupção da gravidez, que já estava em curso, e impôs aos pais, “notadamente à mãe”, sofrimento inócuo, “pois como se viu, os prognósticos de inviabilidade de vida extrauterina se confirmaram”.

De acordo com a ministra, o padre “buscou a tutela estatal para defender suas particulares ideias sobre a interrupção da gestação” e, com sua atitude, “agrediu os direitos inatos da mãe e do pai”, que contavam com a garantia legal de interromper a gestação.

Andrighi refutou ainda a ideia de que a responsabilidade não seria do padre, que apenas requereu o habeas corpus, mas, sim, do Estado, pois foi a Justiça que efetivamente proibiu a interrupção da gestação.

Segundo ela, “a busca do Poder Judiciário por uma tutela de urgência traz, para aquele que a maneja, o ônus da responsabilidade pelos danos que porventura a concessão do pleito venha a produzir, mormente quando ocorre hipótese de abuso de direito”.

A turma condenou o padre ao pagamento de R$ 60 mil como compensação por danos morais, valor a ser acrescido de correção monetária e juros de mora a partir do dia em que a recorrente deixou o hospital.

Destaques de hoje
Padre é condenado a pagar danos morais por impedir interrupção de gravidez
Morre ministro aposentado do STJ Antônio Torreão Braz
Alteração de competência do juízo não prejudica legitimidade do MP
Corte Especial absolve desembargador do Amapá acusado de difamação 
 
Fonte: STJ

Trabalhador que cumpria jornada de mais de 13 horas diárias será indenizado por dano existencial




Um trabalhador que cumpria jornada extensa na distribuidora de bebidas onde trabalhou por mais de dois anos conseguiu obter o direito a uma indenização por dano existencial no valor de R$ 10 mil. A decisão é da 4ª Turma do TRT de Minas, ao reformar a sentença que havia indeferido o pedido.

A juíza sentenciante reconheceu que a jornada trabalhada era de segunda a sábado, das 7h às 20h30 min, com 15 minutos de intervalo. Por esta razão, condenou a distribuidora ao pagamento de horas extras, mas indeferiu a reparação por dano existencial, pretendida com base no mesmo contexto. No entanto, ao julgar o recurso apresentado pelo trabalhador, a desembargadora Paula Oliveira Cantelli chegou à conclusão diversa. Dando razão aos argumentos apresentados na inicial, entendeu que o cumprimento de uma jornada diária de mais de treze horas prejudicava a capacidade do trabalhador de exercer as demais funções da vida em sociedade. Considerando o período de sono do homem médio de 8 horas por dia, ponderou que restavam a ele duas horas e 30 minutos para as demais atividades, como, higiene pessoal, deslocamento casa-trabalho-casa, convívio com a família e os amigos, estudos, dentre outros.

"O dano existencial é uma espécie de dano moral decorrente de uma frustração que impede a realização pessoal do trabalhador, afetando negativamente sua qualidade de vida. Os projetos pessoais e as relações sociais dos trabalhadores são frustrados devido a condutas ilícitas praticadas por seus empregadores", explicou.

A decisão amparou-se na Constituição Federal, que reconhece como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, entre outros. Ainda conforme registrado, a Constituição limita a jornada a oito horas e a carga semanal a 44 horas. Já a CLT dispõe, no artigo 59, que "a duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas)¿. De acordo com ela, trata-se de norma de interpretação restritiva e limitadora e que tem por objetivo a proteção da saúde do trabalhador.

"O direito fundamental do trabalhador à saúde, perpassa, necessariamente, pelo respeito à limitação da jornada, como corolário da dignidade humana, do valor social do trabalho e da função social da empresa, não descurando-se, ainda, que a saúde tem a sua base fundamental no direito à vida. O trabalhador, enquanto ser que aliena a sua força de trabalho, tem direito à desconexão", registrou.

Diante desse contexto, a julgadora deu provimento ao recurso para deferir a reparação por dano existencial. A indenização foi arbitrada em R$10 mil, valor considerado apto pela Turma julgadora a reparar as lesões sofridas pelo autor em sua esfera imaterial.
PJe: Processo nº 0011376-42.2015.5.03.0165 (RO). Acórdão em: 06/09/2016Para acessar a decisão, digite o número do processo em: https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam



Fonte: TRT3

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...