Em primeiro lugar, cumpre registrar a enorme satisfação em estrear nessa respeitável coluna Direito Civil Atual, produzida pela Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo, criada pelos ilustres professores Ignácio Poveda Velasco, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi.
Nesta primeira participação, busca-se oferecer aos leitores um breve panorama sobre as recentes modificações introduzidas no regime jurídico das fundações de direito privado, pela edição da Lei federal 13.151, de 28 de julho de 2015. Visa-se, ainda, a ampliar as oportunidades de reflexão e diálogo sobre esse importante tema das fundações, tendo em mira o seu relevante papel na própria configuração do Estado, na contemporaneidade.
A referida lei, resultante do Projeto de Lei 1.336, de 2011 [
[1]], cuidou de: a) ampliar o rol de finalidades para as quais as fundações podem ser constituídas; b) fixar a atribuição do Ministério Público do Distrito Federal para a fiscalização das fundações sediadas nesses entes federativos; c) estabelecer um prazo de 45 dias para a manifestação do Ministério Público acerca das alterações estatutárias das fundações; além de d) permitir a remuneração de dirigentes das associações e fundações, sem fins lucrativos, beneficiários de imunidades tributárias, desde que em valores compatíveis com o mercado.
Quanto à finalidade dos entes fundacionais, lembre-se que, distintamente das associações e sociedades, as fundações não resultam da união de indivíduos, mas da afetação de um determinado patrimônio a um fim, especificado pelo seu instituidor, e para cuja consecução esse acervo patrimonial se destina. Ou seja, “nas fundações, não há sócios ou associados, mas apenas destinatários”. A propósito, Enneccerus, Kipp e Wolff pontuam que não é necessário que haja um círculo determinado de pessoas a quem a fundação favoreça, a exemplo das fundações para fins científicos gerais ou hospitais, para os quais não se tenha preestabelecido quem ali possa ser acolhido. Contudo, ainda que exista esse círculo de pessoas, não lhes caberá administrá-la [
[2]].
Como se vê, a questão da finalidade das fundações é marcadamente ligada à sua natureza. Tanto assim que, sob o ponto de vista histórico, as fundações são identificadas como entidades que buscam beneficiar a coletividade, por meio de finalidades eminentemente sociais.
O Direito brasileiro acolheu a fundação como espécie de pessoa jurídica de interesse social ou coletivo (artigo 11 da Lei 4.657/42), ou seja, não admite a criação de fundações para administração de interesses particulares, mas somente daqueles que interessem à sociedade ou a uma dada coletividade. Trata-se de instituto dogmaticamente bem definido: dotação patrimonial, composta de bens livres e suficientes; finalidade voltada a um interesse social instituído pelo fundador; e afetação desse patrimônio a essa finalidade, de maneira perene e inalterável. Consequentemente, de natureza incompatível com qualquer finalidade que vise à distribuição de lucros.
Nessa linha, o caput do artigo 62 do Código Civil de 2002 preocupa-se apenas em estabelecer o primeiro passo para a constituição de uma fundação de direito privado, qual seja, um ato de dotação patrimonial. Portanto, à semelhança do que fizera o legislador do Código Civil de 1916 e, em consonância com o a maior parte da legislação comparada, não se preocupou em definir a fundação, evitando entrar nessa seara.
O Código Civil de 2002, todavia, visando a impedir a criação de fundações com objetivos fúteis, caprichosos [
[3]] ou que tenham intuito de distribuir lucros, cuidou de estabelecer, por meio da inclusão do parágrafo único, a regra – sem correspondente no Código Civil de 1916 – segundo a qual a constituição de fundação somente poderia visar a fins religiosos, morais, culturais e de assistência, excluindo, aparentemente, desse rol os entes que desempenham finalidades de elevado conteúdo social, como se percebe em muitos casos de fundações de finalidade científica, de promoção à saúde, à educação, ao esporte ou ao meio ambiente, só para ficar com esses exemplos.
Assim, apesar da boa intenção do legislador, o fato é que o citado parágrafo único do art. 62 do Código Civil restringiu, demasiadamente, o escopo fundacional, a ponto de merecer severas críticas da doutrina, que o taxou de “desnecessário”, “nocivo” [
[4]], “confuso”, “impróprio” [
[5]], constituindo-se em “interferência desregrada na liberdade de escolha do instituidor” [
[6]].
Por isso mesmo, já se vinha entendendo que o referido dispositivo legal deveria “ser interpretado de modo a excluir apenas as fundações de fins lucrativos” e que, portanto, “a constituição de fundação para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente está compreendida no Código Civil, artigo 62, parágrafo único” (enunciados de 9 e 8, respectivamente, da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal).
Com efeito, caso assim não fosse, chegar-se-ia ao maior de todos os absurdos, na medida em que seria imposta a extinção de uma fundação de preservação ambiental, por exemplo, simplesmente por seu fim ou objetivo não se subsumir à moldura estreita do referido dispositivo, qual seja, por não desempenhar uma finalidade religiosa, cultural, moral ou assistencial[
[7]].
O artigo 2º da Lei Federal 13.151, de 28 de julho de 2015, alterou a redação do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil, para o fim de ampliar o rol daquelas finalidades antes previstas. De acordo com a sua nova redação, “a fundação somente poderá constituir-se para fins de:
I – assistência social;
II – cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
III – educação;
IV – saúde;
V – segurança alimentar e nutricional;
VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;
VII – pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos;
VIII – promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos;
IX – atividades religiosas; e
X – (VETADO).”
Pode-se dizer que a alteração veio em boa hora, na medida em que buscou escapar daquele figurino demasiadamente restritivo do legislador de 2002. Concorde-se ou não com o critério adotado pelo legislador, o fato é que a referida lei ampliou e melhorou a redação do malsinado parágrafo único do artigo 62 do Código Civil de 2002, na exata medida em que visou a atender aos reclamos da doutrina a respeito da extrema, e até nociva, limitação finalística das fundações, ainda que apenas em parte.
Exposta, assim, em breves linhas, a mudança, parece importante trazer à tona algumas reflexões.
A primeira diz respeito à clara tentativa de o legislador dar um tratamento isonômico às fundações e associações, declaradas como de Utilidade Pública ou de Assistência Social, em relação àquelas classificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS), especialmente com relação à possibilidade de remuneração dos seus dirigentes executivos. Essa tentativa traz reflexos observáveis na simetria existente entre o rol das finalidades previstas no novo texto do parágrafo único do art. 62, do Código Civil, e aqueles fins exigidos pelo artigo 3º da Lei 9.790/99, para a qualificação de uma entidade como OSCIP.
Esse intento também se encontra expresso nos votos dos relatores do projeto de lei em questão.
Não se pode, entretanto, confundir os requisitos de qualificação das entidades que atuam na suplementação daquelas áreas onde o Estado se mostrou omisso ou ineficiente (dentre eles aqueles exigíveis para a qualificação de uma entidade como OSCIP), com os próprios pressupostos configuradores de uma fundação.
De fato, essas qualificações têm a função de estabelecer um regime jurídico especial, em relação ao regime geral das fundações, que permite benefícios fiscais ou contratação com o Poder Público, facilitando o mecanismo de controle estatal das entidades assim qualificadas [
[8]]. Trata-se de uma realidade peculiar do Ordenamento Jurídico brasileiro, mas que não se confunde com os contornos dogmáticos do modelo jurídico em questão.
Portanto, mostra-se impertinente condicionar a constituição de uma fundação, por exemplo, que vise à promoção da saúde e da educação (artigo 62, parágrafo único, III e IV, do Código Civil), a que suas atividades sejam prestadas de maneira apenas gratuita, à maneira do que se exige para a qualificação de uma entidade como OSCIP (artigo 3º, III e IV, da Lei 9.790/99).
Isso soaria tão equivocado quanto dizer que uma fundação que venha a ser constituída deverá ser invariavelmente qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Por mais socialmente relevante e nobre que seja a sua finalidade isso não é verdadeiro. Bem poderá ela não se enquadrar nos requisitos estabelecidos na lei de regência. Por exemplo, imagine-se que a finalidade social dessa fundação seja voltada para a disseminação de credos, cultos e práticas religiosas, ou que tenha ela sido constituída por algum partido político. Apesar de se constituírem fundações – cujas atividades estão inquestionavelmente previstas na nova redação do parágrafo único do art. 62 do Código Civil –, jamais alcançariam o status de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), não pelo menos nos termos do artigo 2º, III, IV e XI, da vigente Lei 9.790/99.
A segunda reflexão que se propõe diz respeito à possibilidade da onerosidade dos serviços prestados pela fundação e do exercício de atividade econômica por parte dessas entidades.
Com efeito, não há nada que impeça que as rendas das fundações sejam decorrentes da remuneração de serviços por elas mesmas prestados. O que define uma entidade como de finalidade lucrativa, portanto, não é agratuidade ou a onerosidade dos seus serviços, mas o fato de os seus atos constitutivos preverem a possibilidade de que seus resultados sejam distribuídos entre os seus membros ou dirigentes.
De outro lado, não há nada que proíba – muito pelo contrário, pode ser até recomendável – que as fundações exerçam atividade econômica, já que o patrimônio, estático, no mais das vezes mostra-se incapaz de atender aos fins estabelecidos pelo instituidor. Além disso, encontram-se cada vez mais escassas as possibilidades de o Estado brasileiro suprir, por meio de incentivos fiscais e subvenções, as ilimitadas necessidades do denominado terceiro setor, que se agiganta em um país de economia semiperiférica e de contrates sociais gigantescos como o nosso.
Entenda-se: acerca do aspecto finalístico da fundação, no Direito Civil brasileiro, é inegável que ele deve revestir-se de caráter social, voltando-se ao interesse geral, ou, ao menos, a uma coletividade relativamente determinável de destinatários, não podendo, ademais, ter caráter lucrativo, ou seja, distribuir lucros, dividendos, entre os seus dirigentes (o chamado lucro subjetivo).
Não há, contudo, óbice a que a fundação preste serviços remunerados (atividade-meio, de natureza econômica), desde que sirvam para o incremento patrimonial da própria entidade e o alcance das suas finalidades (atividade-fim, de cunho social). É o que se reconhece como atividade econômica de subsistência e sustentação dos fins da fundação.
Apesar da resistência de certos setores da doutrina nacional em reconhecer essa inexorável realidade social-econômica, muitas vezes pela constatação da existência de certos desvios e anomalias, o fato é que essa percepção é alcançada por parte da doutrina nacional e por parcela significativa da doutrina estrangeira, a exemplo de Portugal, Espanha, Alemanha e Itália [
[9]].
Em conclusão: é preciso, portanto, cautela na compreensão dessas mudanças. Todo o movimento do legislador de 2002 foi no sentido de vetar – ainda que por tortuosas linhas – a destinação de bens para finalidades fúteis ou para o exercício de atividade que visasse à distribuição de lucros. Com isso, criou uma limitação desnecessária e extrema aos fins fundacionais, como visto.
O legislador atual, tentando afastar os eventuais efeitos nefastos dessa limitação, ampliou o rol; mas manteve o critério casuístico de limitação de finalidades, o que ainda é bastante criticável, seja porque ainda corre-se o risco de limitar, indevidamente, a iniciativa dos particulares, seja por se estar diante de instituto com contornos dogmáticos já muito bem definidos, afigurando-se, pois, muito mais dispensável do que desejável a atribuição de uma tal limitação pelo legislador.
De todo o modo, ainda que não se concorde com esse pensar, o que se afigura como impensável é querer o intérprete limitar o sentido do requisito finalístico para a constituição de fundações. Seria, mais uma vez, retroceder. Consequentemente, a solução mais adequada parece ser considerar o novo rol do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil como apenas exemplificativo.
Vistas, assim, as principais questões atinentes à finalidade, resta tratar das novas regras sobre a atribuição legal do Ministério Público relacionadas ao velamento das fundações (artigos 66, parágrafo 1º, e 69, III, do Código Civil), tema que será explorado em uma próxima participação nesta coluna, aqui na ConJur.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da
Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] O projeto de lei tramitou, originariamente, no Senado Federal (PLS nº. 310, de 2006, de iniciativa do Senador Tassio Jereissat).
[2] ENNECERUS, Lugwig; KIPP, Theodor; et WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil, trad. Blas Pérez Gonzalez e José Alguer, Parte Geral, I, 2ª. Ed. Barcelona: Bosh, 1953, 1º Tomo, p. 430.
[3] ALVIM, Agostinho. Comentários ao Código Civil, Rio de Janeiro, Ed. Jurídica e Universitária, 1968, p. 159.
[4] ALVIM, Arruda; e ALVIM, Thereza (coord.). Comentários ao Código Civil Brasileiro. Parte Geral, Vol. I. Everaldo Augusto Cambier [et al.]. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 519.
[5] RESENDE, Tomaz de Aquino. As fundações e sua disciplina no novo Código Civil. In: REIS, Selma Negão Pereira dos (coord.). Questões de Direito Civil e o novo Código, São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 2004, p. 247.
[6] PAES, José Eduardo Sabó. Fundações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis e tributários, 7. ed. São Paulo: Forense, 2010, p. 377-382.
[8] DINIZ, Gustavo Saad. Direito das fundações privadas: teoria geral e exercício de atividades econômicas. Porto Alegre: Síntese, 2000. p. 100-101.
Antonio Lago Júnior é mestre em Direito pela UFBA, professor de Direito Civil nos cursos da Universidade Salvador (Unifacs), advogado e procurador do estado da Bahia.
Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2015, 8h00