segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Crise financeira exige nova postura do profissional do Direito



Por Vladimir Passos de Freitas


A crise financeira chegou e não dá mostras de que irá embora tão cedo. Surpresos, os brasileiros enfrentam algo que conheciam de longe, algo que parecia privilégio exclusivo da velha Europa, e não de um país emergente, que se intitulava a sexta economia mundial.

Em meio a esse quadro, ao profissional do Direito — e também aos estudantes — resta preparar-se para esse momento da vida nacional. Mudar-se para a Austrália, Canadá ou outro país mais estável, como muitos estão fazendo, não será a solução, porque, além de todas as dificuldades, esses países querem técnicos, e não bacharéis em Direito. Então, o melhor é enfrentar o desafio. Aqui e agora.

A falta de dinheiro no mercado afeta a todos, senão pessoalmente, pelo menos no círculo da família, onde tornou-se comum haver pessoas desempregadas. Porém, alguns sofrem de forma mais direta.

Entre os menos atingidos estão aqueles que, no serviço público, receberam aumento nos últimos 12 meses. Sim, porque agora aumentos substanciosos são quase impossíveis, por maior que seja a mobilização da categoria. O caixa da União e da maioria dos estados está vazio. Liminares não fazem milagres, não criam dinheiro. Portanto, quem está no serviço público não deve alimentar grandes expectativas.

O mesmo se dá com aqueles que, nele, querem entrar. Inevitavelmente, haverá adiamento de novas nomeações ou até mesmo suspensão de concursos. Mais no Poder Executivo do que no Judiciário ou no Ministério Público, que têm orçamentos próprios. Jovens concurseiros sofrerão os efeitos de forma direta.

Passando à esfera privada, seguindo a linha dos concursos, vale notar que a falta de perspectiva afetará os cursos preparatórios, que movimentam expressiva quantidade de dinheiro. O círculo da falta de dinheiro, com o cancelamento de pedidos, atingirá, também, escritórios de advocacia. Menos entrada de dinheiro, menos postos de trabalho, principalmente para jovens advogados e estagiários.

Mas se esta é uma dura realidade, já sentida no bolso de grande parcela da população, o fato é que não adianta colocá-la em um pedestal e ficar a lamuriar-se pelos cantos. Alguns não dão uma pausa nem mesmo nos momentos de confraternização, desejando aos governantes e suas mães que se dirijam aos locais mais escabrosos. Isso, ainda que seja compreensível, só faz as coisas agravarem-se e nada resolve.

Que fazer?

A primeira medida é não cultivar o pessimismo. Manter o foco em coisas positivas, em planos, irradia uma energia positiva que inspirará os que nos rodeiam. Ninguém dará uma causa a um jovem advogado que, a um simples “tudo bem?”, despeja uma sucessão de queixas, exteriorizando seu próprio insucesso.

Mas só otimismo não basta. É preciso alterar os hábitos financeiros. O primeiro passo é fazer uma lista das dívidas e afastar todas as que não sejam indispensáveis. Por exemplo, será que um casal necessita de dois carros e, consequentemente, de duas vagas na garagem, manutenção, seguro, IPVA e consumo duplos? O cartão de crédito está sob controle? Jantar fora cabe no orçamento? O consumo de bens vai além do necessário? Os espetáculos oferecidos graciosamente pelo município estão sendo aproveitados?

Tudo isso entra na chamada economia comportamental, na qual devem ser estabelecidas as metas que importam (por exemplo, um curso de especialização) e afastados os gastos supérfluos (por exemplo, a bolsa de grife). Em outras palavras, alinhar as despesas aos valores. Permanecer com o ventilador de pá em vez do ar condicionado pode significar dar ao filho aulas de natação. O que é mais importante?

Passando da vida privada à profissional, a maioria dos graduados em Direito começa em um escritório de advocacia. Poucos dispõem de dinheiro e coragem para iniciar sozinhos, ou mesmo com um ou dois colegas. Pois bem, será pouco o salário inicial de R$ 1.200? Deve ser rejeitado?

Referida quantia é baixa, sem dúvida. Outros profissionais, sem curso superior, por vezes ganham muito mais. Porém, aquela pode ser a oportunidade que dará ao jovem novos horizontes. Os R$ 1.200 são apenas parte do pacote. Ali está a oportunidade de aprender o Direito na prática, de observar como se organiza um escritório, como se conquistam clientes, como são as audiências, como se deve tratar a máquina judiciária, tudo enfim. Portanto, deve, sim, ser aceita a oferta, inclusive porque, se ela fosse de R$ 5.000, o escolhido não seria um jovem sem experiência e sem títulos.

Na sequência, suponha-se que o recém-formado aceitou o desafio. Aí será preciso que não se limite às rotinas que lhe foram impostas. Se quiser se destacar, se desejar novas oportunidades, se ambicionar crescer, terá que fazer algo mais, fazer-se notar, aparecer.

Por exemplo, imagine-se que sua atribuição não seja das mais sedutoras, apenas busca e apreensão de veículos cujas prestações não foram pagas à financeira. O fazer a diferença pode ser exteriorizado de duas formas. A primeira é achando soluções que deem ao escritório mais agilidade e eficiência. A segunda é oferecer-se para outras atividades, sem prejuízo da principal. Por exemplo, redigindo rascunhos de agravos de instrumento.

Tornar-se indispensável, chamar a atenção para suas qualidades, sem dúvida serão a chave da permanência e crescimento no escritório, tudo refletindo-se em melhores ganhos financeiros. Saber bem o inglês pode ser uma ferramenta decisiva. Advogados mais velhos, regra geral, não sabem inglês, muito embora jamais o confessem. Se a jovem iniciante, que passou parte de sua juventude nas salas de bons cursos, dominar o idioma, poderá ter acesso à melhor doutrina ou a precedentes de tribunais norte-americanos, ingleses ou canadenses. Que tal, quando o dono do escritório prepara o memorial de uma importante causa, sair-se com essa: “Doutor, a Suprema Corte dos Estados Unidos já decidiu a favor de sua tese no caso Schimdt x Stevenson, o senhor gostaria que eu lhe entregasse o precedente traduzido?”.

Mas, se a ambição for maior do que um bom salário, há que se partir para um voo solitário, com todos os seus riscos, mas também com mais possibilidades. Como manter um escritório sem ter um pai advogado, um tio juiz de Direito que se dispôs a ceder uma sala do escritório previamente comprado antes da aposentadoria ou situação similar?

Bem, aí há que ser corajoso e criativo. Não há nada de mais em usar a garagem da casa da avó que ficou viúva ou mesmo manter escritório em casa e atender a domicílio ou em salas de locação por dia ou por hora (day office). A OAB, em muitas capitais (por exemplo, Curitiba), mantém salas bem equipadas para atendimento eventual. Alugar sala com colegas, usar de manhã enquanto outro usa de tarde, dividir o salário da secretária ou do estagiário, fazer a faxina para não pagar a terceiros, tudo é válido. Dois ou três anos de sacrifício podem possibilitar a posterior estabilidade econômica.

Procurar nichos de advocacia que estejam afetados pela crise também pode ser uma forma de sucesso e de rendimento. Que tal especializar-se a negociar dívidas de inadimplentes? Ou se dispor a defender os milhares de presos que, muitas vezes, não têm seus pedidos examinados, criando um atendimento de massa? Ainda, a regularizar a situação dos refugiados junto ao Ministério da Justiça e também quanto ao exercício profissional, pois muitos deles têm curso superior?

Os graduados em Direito são muitos, e a crise econômica encurta suas possibilidades de expansão profissional e financeira. Mas isso não deve ser causa de desânimo ou escapismo, seja este de que forma for. Ao contrário, deve ser fonte de estímulo para enfrentar a luta com estratégias e adaptação adequadas aos novos tempos.

Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2015, 8h10

Ajuizar ação pedindo rescisão indireta dispensa empregado de aviso-prévio






Se for de conhecimento prévio a intenção de um empregado de pedir rescisão indireta, a empresa não pode descontar das verbas rescisórias os salários relativos ao aviso-prévio não cumprido por ele. O entendimento foi adotado pela 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho.

Para o colegiado, o desconto não poderia ter ocorrido, pois a empresa soube com antecedência da intenção do funcionário de encerrar o contrato. Isso porque foi notificada de ação judicial na qual ele pretendia o reconhecimento da rescisão indireta por ter sido agredido no ambiente de trabalho.

O Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) considerou improcedente o pedido do trabalhador, que não comprovou ter sido agredido fisicamente por encarregado da empresa nem o descumprimento de obrigações contratuais. O TRT-3 concluiu que não houve, portanto, falta grave para a rescisão indireta (artigo 483 da CLT) e determinou o término do vínculo por iniciativa do próprio trabalhador.

A transportadora quis descontar o aviso-prévio das verbas rescisórias por entender que a demissão foi voluntária. A pretensão, porém, foi rejeitada pela juíza da 4ª Vara do Trabalho de Betim (MG), que entendeu não ser possível descontar o pré-aviso na forma do artigo 487, parágrafo segundo, da CLT. Pelo dispositivo, o empregador pode descontar os salários do empregado na ausência de aviso-prévio. Conforme a sentença, o funcionário não tinha o objetivo de rescindir o contrato de outro modo senão por falta grave da empresa.

O relator do recurso da transportadora ao TST, ministro João Oreste Dalazen, negou-lhe provimento. Ele afirmou que o ajuizamento da ação visando à rescisão indireta dispensou o empregado de emitir o pré-aviso, porque a notificação da empresa sobre o processo implicou a sua ciência quanto ao objetivo de o conferente romper o vínculo de emprego. Para o ministro, esse entendimento afasta a incidência do artigo 487, parágrafo segundo, da CLT. A decisão foi por maioria, vencida a desembargadora convocada Cilene Ferreira Santos. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.

RR-2122-90.2012.5.03.0087


Revista Consultor Jurídico, 28 de setembro de 2015, 10h49

NJ ESPECIAL - Tese Jurídica Prevalecente nº 3 do TRT-MG: Comissões sobre vendas a prazo incidem sobre o preço final da mercadoria, incluindo encargos de financiamento.



Em Sessão Ordinária realizada no dia 13/08/2015, dando cumprimento ao disposto no art. 896, parágrafo 3º, da CLT, e na Lei 13.015/2014, o Tribunal Pleno do TRT de Minas conheceu do Incidente de Uniformização de Jurisprudência (IUJ) suscitado no processo 00448-2014-035-03-00-4-RO e, por maioria simples de votos, determinou a edição da Tese Jurídica Prevalecente nº 3, com a seguinte redação:
"COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. As comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento ".

Histórico do IUJ: Entendendo origem e a matéria objeto do incidente
O IUJ foi suscitado por um reclamante, ao interpor recurso ordinário contra sentença proferida na ação trabalhista que ele havia ajuizado contra uma empresa (processo no. 00448-2014-035-03-00-4-RO). Ele pretendia a reforma da sentença, para que a empregadora fosse condenada a lhe pagar diferenças de comissões. Disse que, quando contratado, teve sua remuneração ajustada à base de comissões variáveis no mínimo de 1,0% sobre as vendas concluídas. Mas, segundo ele, era prejudicado pela empresa nas vendas a prazo, pois sua comissão era calculada somente pelo valor do produto à vista, ou seja, aquele contido na nota fiscal, e não pelo preço final pago pelos clientes/consumidores, que era bem superior. Alegou a existência de divergência jurisprudencial entre as Turmas do TRT/MG, no tocante à matéria relativa ao cálculo das comissões sobre vendas a prazo, apresentando, inclusive, cópias de acórdãos que demonstram os entendimentos divergentes.
Na decisão de lº grau, o reclamante teve seu pedido indeferido, ao fundamento de que a possibilidade de pagamento pela venda de forma parcelada era acessória à atividade do autor, com fim apenas de facilitar o pagamento para o cliente, por meio de parcelamento do preço. Além disso, o juiz destacou que o reclamante recebia de uma só vez as comissões pelos produtos vendidos, ainda que o cliente realizasse pagamento de forma parcelada ou deixasse de cumprir com alguma prestação, o que, na opinião do julgador, era vantajoso para o trabalhador.
A Turma Recursal de Juiz de Fora, ao analisar o recurso do trabalhador, acolheu o IUJ suscitado por ele e suspendeu o julgamento dos recursos ordinários interpostos na ação (incluindo o da reclamada), determinando a remessa do processo para a Comissão de Jurisprudência. Conforme ressaltou o relator do recurso, desembargador Luiz Antônio de Paula Iennaco, a divergência apontada, acerca do cálculo de comissões sobre vendas a prazo, é atual, em razão da repetição de ações abordando a matéria e da contemporaneidade dos acórdãos dissonantes. Ele também a considerou relevante, tendo em vista que o debate envolve suposto direito a diferenças salariais com relação a vários empregados, em razão de política adotada uniformemente pelo empregador, sendo que algumas decisões são pelo deferimento das diferenças, enquanto outras são pela negativa integral da pretensão.
Seguindo os trâmites do IUJ, o 1º Vice-Presidente Judicial do TRT-MG, desembargador José Murilo de Moraes, como base no artigo 2º da Resolução GP n. 9 de abril de 2015, determinou a suspensão do andamento dos processos que tratam da mesma matéria, até que fosse julgado o incidente.
Em parecer, a Comissão de Jurisprudência do TRT-MG reconheceu que as Turmas do Tribunal vêm, de fato, adotando em seus julgamentos teses contrapostas a respeito da matéria. A primeira no sentido de que "as comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria vendida, no qual se incluem os encargos decorrentes da operação de financiamento." A segunda, de que "os encargos decorrentes do financiamento não integram as comissões devidas ao empregador vendedor". Apontou decisões judiciais comprovando essas divergências e, em seguida, apresentou três sugestões de redação de Súmula para fins de uniformização jurisprudencial:

(1) "COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. Inexistindo previsão expressa em sentido contrário na data de admissão do empregado, as comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento".
(2) - "COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. OS encargos decorrentes do financiamento das mercadorias não integram as comissões devidas ao empregado vendedor".
(3) - "COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. Inexistindo previsão expressa em sentido contrário na data de admissão do empregado, os encargos decorrentes de financiamento contratado com a empregadora ou com empresa integrante de seu grupo econômico integram as comissões sobre as vendas a prazo devidas ao empregado vendedor".

O Ministério Público do Trabalho (MPT) se manifestou pela adoção do entendimento expresso na 2ª opção de verbete, dentre os sugeridos pela Comissão de Uniformização de Jurisprudência, ou seja, de que "os encargos decorrentes do financiamento das mercadorias não integram as comissões devidas ao empregado vendedor". As razões apresentadas pelo MPT foram as seguintes: ao vendedor incumbe apenas a venda dos produtos, cabendo ao cliente optar pela forma de pagamento - a vista ou a prazo - que melhor lhe convir; a operação de parcelamento não se confunde com a operação de venda, ainda que concedida pela própria empregadora; de todo modo, o empregado é beneficiado, pois recebe comissão de forma antecipada, já incidente sobre a totalidade do valor do produto vendido, independentemente de eventual inadimplemento do comprador; eventuais encargos decorrentes de financiamento não podem integrar a comissão, da mesma forma que o risco do empreendimento não pode ser transferido ao empregado.


"X" da questão
Foi assim que os desembargadores do TRT de mineiro, pelo seu Tribunal Pleno, à unanimidade, conheceram do Incidente de Uniformização de Jurisprudência suscitado pelo reclamante, com base no art. 896, § 3º, da CLT.
A questão jurídica controvertida objeto do IUJ referiu-se, portanto, ao cálculo das comissões nas vendas a prazo e a divergência residiu na integração, ou não, dos encargos financeiros decorrentes das operações de financiamento nas comissões devidas ao empregado vendedor.
Na sessão de julgamento, as sugestões formuladas pela Comissão de Uniformização de Jurisprudência foram desdobradas e reordenadas em cinco outras proposições:

(opção 1) - COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. OS encargos decorrentes do financiamento das mercadorias não integram as comissões devidas ao empregado vendedor.
(opção 2) - COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. Inexistindo previsão contratual expressa em sentido contrário na data de admissão do empregado, as comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento.
(opção 3 ) - COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. Inexistindo previsão contratual expressa em sentido contrário na data de admissão do empregado, os encargos decorrentes de financiamento contratado com a empregadora ou com empresa integrante de seu grupo econômico integram as comissões sobre as vendas a prazo devidas ao empregado vendedor.
(opção 4) - COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. As comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento.
(opção 5) - COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. As comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento, desde que o financiamento seja contratado com empregadora ou empresa integrante do mesmo grupo econômico.

Tese vencida
No voto condutor, o desembargador Relator, Luiz Antônio de Paula Iennaco, propôs a adoção da primeira tese dentre as sugeridas na sessão de julgamento, ou seja: "COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. OS encargos decorrentes do financiamento das mercadorias não integram as comissões devidas ao empregado vendedor". Na sua visão, a prática empresária de quitar comissões aos empregados com base no valor à vista do bem vendido não configura ato ilícito, muito menos injusto, pois o preço maior praticado nos pagamentos a prazo decorre dos juros embutidos, relativos aos riscos da atividade com os quais somente a empresa arca. Ele ponderou ainda que o pagamento de comissões sobre o valor da venda à vista, mesmo nas operações de crediário, não prejudicaria o empregado, pois ele não estaria sujeito ao recebimento parcelado do benefício, nem correria o risco do inadimplemento do comprador. Assim, para o relator, os encargos decorrentes do financiamento das mercadorias não devem integrar as comissões devidas ao empregado vendedor.


Tese vencedora
Mas o desembargador redator, Emerson José Alves Lage, sugeriu a adoção da quarta opção, dentre as discutidas e propostas em sessão de julgamento, como visto acima, com o seguinte teor: COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. As comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento". Ao final, essa foi a tese jurídica vencedora (ou Prevalente), acolhida pela maioria dos desembargadores Tribunal Pleno do TRT/MG, que ficaram convencidos pelas colocações do redator.
O desembargador redator ressaltou, inicialmente, que a solução da controvérsia jurídica, objeto do IUJ, está na definição de qual seria a melhor interpretação do artigo 2º da Lei 3.207, de 1957, que dispõe: "O empregado vendedor terá direito à comissão avençada sobre as vendas que realizar". Mais especificamente, em definir o que venha a ser a expressão "venda realizada" e seus efeitos para fins de pagamento de comissão. E, segundo ele, como a lei não estabelece distinção entre venda à vista e venda a prazo, para fim de apuração do valor da comissão, não cabe ao interprete fazer essa diferenciação.
Além disso, ele ponderou que a interpretação conjunta das normas que regem a matéria leva "à forte convicção" da possibilidade de que os encargos de financiamento devem sim integrar a base de cálculo das comissões sobre vendas. Sua conclusão se baseou na análise das seguintes leis:

Lei 3.207/57, em seus artigos 5°, 6° e 7º:
"Art 5o. Nas transações em que a empresa se obrigar por prestações sucessivas, o pagamento das comissões e percentagens será exigível de acordo com a ordem de recebimento das mesmas (sic).
Art 6o. A cessação das relações de trabalho, ou a inexecução voluntária do negócio pelo empregador, não prejudicará a percepção das comissões e percentagens devidas.
Art 7o. Verificada a insolvência do comprador, cabe ao empregador o direito de estornar a comissão que houver pago".
Também foi citado o artigo 466 da CLT, e seus parágrafos, que dispõem:
"Art. 466. O pagamento de comissões e percentagens só é exigível depois de ultimada a transação a que se referem.
Parágrafo 1° - Nas transações realizadas por prestações sucessivas, é exigível o pagamento das percentagens e comissões que lhes disserem respeito proporcionalmente à respectiva liquidação.
Parágrafo 2o. - A cessação das relações de trabalho não prejudica a percepção das comissões e percentagens devidas na forma estabelecida por este artigo".

Nos termos do voto vencedor, a interpretação dessas normas reproduzidas leva "à clara percepção" de que o empregado tem direito, nas transações realizadas por prestações sucessivas, de receber "o pagamento das percentagens e comissões que lhes disserem respeito proporcionalmente à respectiva liquidação". Assim, para o desembargador, a leitura do artigo 2°, parte final, da Lei 3.207/57 ("vendas que realizar"), assim como da expressão constante do artigo 466 da CLT ("venda ultimada") não pode ser outra senão a de que a comissão, necessária e obrigatoriamente, incide sobre a totalidade do negócio realizado, nele se incluindo os possíveis encargos de financiamento ocasionados pelas vendas à prazo.
Para fundamentar seu entendimento, o redator frisou que o ato de venda não se restringe à fixação do preço ajustado e à escolha da forma de pagamento pelo comprador (se à vista ou a prazo). "O processo de venda percorre, por vezes, senão na quase totalidade das vezes, para fins de convencimento do comprador, um longo processo de convencimento, com estabelecimento das condições do negócio que, depois de pactuadas, passam à etapa meramente burocrática de concretização do financiamento. E essa intermediação entre vendedor e comprador está inserida no conceito jurídico de "transação ultimada", referida no artigo 466 CLT", destacou.
Citando trechos doutrinários de grandes estudiosos do Direito do Trabalho (Maurício Godinho Delgado, Alice Monteiro de Barros, Orlando Gomes e Elson Gottschalk), o desembargador explicou que não há margem à dúvidas: o que a lei assegura, como forma de débito/crédito das comissões, é ter-se a transacão ultimada, e esta, pelo texto legal, ocorre quando o vendedor entrega ao comerciante (empregador) a proposta de negócio e este não a recusa dentro dos prazos previstos em lei (art, 3º da Lei 3.207/57, segundo o qual: "A transação será considerada aceita se o empregador não a recusar por escrito, dentro de 10 (dez) dias, contados da data da proposta. Tratando-se de transação a ser concluída com comerciante ou empresa estabelecida noutro Estado ou no estrangeiro, o prazo para aceitação ou recusa da proposta de venda será de 90 (noventa) dias podendo, ainda, ser prorrogado, por tempo determinado, mediante comunicação escrita feita ao empregado").
Sendo assim, concluiu o desembargador que a transação engloba a atividade do vendedor empregado, que não se limita à simples demonstração do produto e indicação de preço e condições de pagamento, mas também o trabalho de persuasão do comprador para o ato de compra, recaindo, na fala do Ministro Maurício Godinho Delgado, de que a ultimação da transação ocorre com a aceitação "pelo comprador nos termos em que lhe foi proposta" a venda. Ou seja, o ato de venda não abrange, exclusivamente, a exibição do produto e indicação das formas de pagamento. A venda é concluída, na verdade, com o ato subsequente, e administrativo, de verificação das condições de crédito do comprador. Dessa forma, a interpretação no sentido de que a comissão incidiria apenas sobre o preço à vista contraria toda a estrutura normativa sobre a matéria.
O julgador lembrou ainda que o trabalhador comissionista puro, diferentemente dos demais trabalhadores, é remunerado com base, exclusivamente, na realização da própria venda. Não se poderia, portanto, entender-se que a atividade do empregado seja apenas a de demonstração ou oferta do produto e indicação dos meios de pagamento. "Há toda uma atividade de comercialização desse produto, nela se incluindo a formulação e convencimento quanto às formas de aquisição, atividade que deve e merece ser remunerada", registrou.
Em reforço à sua tese, ressaltou o relator que, como é de conhecimento de todos, os juros praticados sobre os negócios realizados no Brasil não remuneram apenas o valor pelo uso do capital emprestado, ou mesmo do risco pela inadimplência, mas representam, efetivamente, ganho real desse tipo de negócio (operação financeira). Muitas vezes, esses juros compõem o valor primário de venda dos produtos, em forma com o parcelamento do preço pago como se fosse aquele correspondente ao valor à vista do produto, mas, que na verdade, incorpora autêntico e simulado financiamento, por meio do conhecido sistema de juros embutidos. E, segundo o relator, esse é mais um motivo para que o empregado comissionista não seja remunerado considerando apenas o valor "real" do preço "à vista" da mercadoria. O contrário seria o mesmo que autorizar pagamento de comissão menor do que o valor da venda ou do negócio por ele realizado (atividade empreendida), segundo previsto e garantido em lei. Daí, frisou o relator que é devida a comissão pelo valor do negócio ultimado (toda a atividade de venda) que engloba, portanto, os ditos encargos financeiros (eles também foram objeto de negociação e agenciamento).
Por fim, o desembargador concluiu que, se as comissões incidem sobre as vendas realizadas ou ultimadas pelo empregado comissionista, elas devem incidir ou ser calculadas tendo como base de cálculo o preço final pago pelo consumidor, ou seja, o preço da mercadoria acrescida dos encargos de financiamento na venda a prazo. "Esta é a acepção legal, da 'venda realizada' ou 'ultimada'", arrematou.
Quanto aos acréscimos sugeridos nos outros verbetes propostos pela Comissão de Jurisprudência do TRT/MG, para o relator, a discussão sobre eles se mostrou inoportuna para o estabelecimento do precedente judicial. Isso porque a possibilidade de se estabelecer cláusula contratual com conteúdo diverso daquele autorizado em lei, ou a legalidade desta cláusula, dependeria da análise de cada caso concreto. Da mesma forma, o fato de ter sido ou não o financiamento originado do agenciamento direto com a própria empregadora, ou, ainda, por intermédio de empresa integrante de seu grupo econômico (ou mesmo a ela estranha), são questões que extrapolam os limites do precedente objeto do IUJ.
Por tudo isso, concluiu-se pela adoção do precedente constante da quarta opção daquelas discutidas e propostas em sessão de julgamento. Assim, os Desembargadores do TRT de mineiro, pelo seu Tribunal Pleno, por maioria simples de votos, determinaram a edição de Tese Jurídica Prevalecente, com a seguinte redação: "COMISSÕES SOBRE VENDAS A PRAZO. BASE DE CÁLCULO. As comissões sobre as vendas a prazo devem incidir sobre o preço final da mercadoria, neste incluídos os encargos decorrentes da operação de financiamento.".

Briga no ambiente de trabalho autoriza justa causa



Um ajudante de produção procurou a Justiça do Trabalho para tentar reverter a justa causa aplicada a ele após se envolver em uma briga com um colega de trabalho. Afirmou que sempre foi empregado exemplar e nunca havia recebido qualquer advertência por ato de indisciplina. No seu modo de entender, a empresa fornecedora para segmentos de autopeças deveria ter observado a gradação da pena. Ou seja, deveria ter aplicado pena mais branda antes de se valer da pena máxima, que é a justa causa.
No entanto, a 10ª Turma do TRT de Minas, que apreciou o recurso do trabalhador, decidiu manter a sentença que rejeitou a pretensão. Conforme observou a desembargadora relatora, Deoclecia Amorelli Dias, em uma das últimas sessões de que participou na Turma antes de se aposentar, o próprio reclamante confessou na petição inicial que agrediu fisicamente o ex-colega de serviço. A magistrada não acatou a tese de legítima defesa apresentada por ele.
"A legítima defesa pressupõe uma agressão grave ao ponto de colocar em risco a integridade física da vítima, o que não se verificou na espécie", explicou. No caso, o próprio reclamante relatou que recebeu um chute do ex-colega e revidou a agressão com outro chute. A conduta foi repudiada pela relatora, para quem o correto teria sido o autor levar ao conhecimento do superior hierárquico que havia sido agredido, para que este tomasse as providências devidas.
"O ambiente de trabalho não é local para discussões e troca de agressões físicas, independentemente de quem tenha sido o causador da briga, consubstanciando tal ato em autêntico desrespeito ao contrato de emprego, que requer urbanidade e bom comportamento do empregado", advertiu a magistrada, considerando desnecessária existência de penalidade anterior para legitimar a justa causa no caso.
"Um único ato, constante de troca de agressões físicas no ambiente laboral é motivo grave o suficiente para gerar o rompimento do pacto laboral por quebra imediata da confiança indispensável à sua manutenção", finalizou, negando provimento ao recurso.
A falta praticada pelo trabalhador foi enquadrada no artigo 482, "j", da CLT, que caracteriza como justa causa para a rescisão do contrato pelo empregador o "ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem".
( 0000798-11.2014.5.03.0147 RO )



Fonte: TRT3

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O que é preciso para (não) se conseguir um Habeas Corpus no Brasil




Por Lenio Luiz Streck


Um pouco de história
Desde 1495 (durante o reinado de Henrique VII, da Inglaterra) existe a ficção dos dois corpos do rei. Foi um jeito que o inicio da modernidade — na virada do medievo— encontrou para resolver o problema do corpo natural do rei e sua “divindade” (ou seu corpo imaterial). Estou preparando um livro sobre essa importante e complexa questão da qual já falo de há muito e já deixei explicitado no livro O que é isto – decido conforme minha consciência?

O auge dessa aplicação se deu quando o Parlamento inglês recorreu a essa ficção (1642) para conjurar, em nome e por meio da autoridade de Carlos I (corpo político-divino-imaterial do Rei), os exércitos que iriam combater o mesmo Carlos I (corpo natural e material do Rei). Fantástico, não? Por intermédio da Declaração dos Lordes e Comuns, o corpo político do Rei era retido no e pelo Parlamento, enquanto o corpo natural era colocado “no gelo”. Isto porque o Rei é a fonte da justiça e da proteção, mas os Atos de Justiça e proteção não são exercidos em sua própria pessoa, nem dependem de seu desejo, mas por meio de suas Cortes e seus Ministros que devem cumprir seu dever nesse sentido.[1]

Sou apaixonado por essa temática. E tenho sido pioneiro nessa discussão a partir da hermenêutica e da construção de uma teoria da decisão. Por isso ajudei a colocar no novo Código de Processo Civil a coerência e a integridade (artigo 926) e contribuí para a retirada do livre convencimento (artigo 371). Tudo para separar os dois corpos. Ou seja, tenho referido à saciedade que, em uma decisão, não devem importar as opiniões pessoais dos juízes e dos tribunais sobre os temas que julgam. Eles devem julgar segundo o direito, cujo conceito aqui já delineei tantas vezes. Por isso trouxe à baila essa história sobre a doutrina dos dois corpos do rei. Em breve lanço um livro sobre isso. E é útil para comentar o que segue.

Como obter um Habeas Corpus? De novo a tese dos dois corpos do rei
A tese dos dois corpos do rei pode ser útil para analisarmos o estado da arte do direito em Pindorama. A jornalista Vera Magalhães escreveu na Folha que está avançada uma articulação de políticos de vários partidos, membros do governo, ministros do Superior Tribunal de Justiça e advogados da operação “lava jato” para que o STJ conceda nas próximas semanas Habeas Corpus para empreiteiros presos desde junho em Curitiba. Segundo a jornalista, a expectativa dos que costuram a saída é que o STJ também critique a manutenção de prisões provisórias por tanto tempo.

Deve ser a jornalista “Vera-Vidente”. A notícia foi contestada pelos advogados dos acusados. A questão que se coloca é: qual é o interesse de o jornal noticiar isso? Para prejudicar os acusados? Sim, porque por certo não seria para ajudá-los. Ou li mal a notícia?

O que há de estranho nisso? Ou o que há de “(a)normal” na notícia? Simples. Considerando que seja verdadeira a notícia, temos que, em terrae brasilis, necessitamos fazer conchavos para que alguém alcance um Habeas Corpus em tribunal superior. Mas chegamos a esse ponto? Na minha ingenuidade de quem nasceu no meio do mato e de parteira, sempre pensei que esses conchavos não são legítimos, para usar uma palavra suave. A partir das mais de seis mil folhas que já escrevi e de tantos milhares que já li, tenho que ou se tem direito a receber uma ordem de habeas corpus, porque presentes os requisitos – afinal, não vivemos, ainda, em um estado de exceção – ou não se tem esse direito.

Já escrevi muito sobre isso. Sabem por que isso é assim? Porque – de novo – não fazemos a separação dos dois corpos do rei. Desculpem-me a chatice epistêmica: decisões judiciais devem ser por princípio e não por políticas. Para o bem e para o mal. Nem conchavos para manter preso alguém, nem conchavos para soltar. Lutamos muito para construir a democracia, com juízes e promotores vitalícios, detentores de todas as vantagens pecuniárias. Construímos uma teoria constitucional sem precedentes. Uma teoria do direito avançada, melhor que a de muitos países avançados. Claro que no processo penal ainda necessitamos avançar. Os próprios juristas sempre apostaram (mal) na livre apreciação da prova. Talvez por isso estejam pagando um alto preço, como deixei claro na minha palestra no IBCrim.

Consequentemente, se decisões devem ser sempre por princípio e não por finalismos ou teleologia(s) – portanto, decisões judiciais não devem ser consequencialistas – parece-me feio e inadequado que notícias como a da jornalista tenham espaço na República. Doa a quem doer, se alguém tem direito à liberdade ou se constata que a prova é ilícita, deve ser libertado. Mesmo que a imprensa seja contra. Mesmo que a opinião pública odeie. Quando Procurador de Justiça, exarei – como era de meu costume, suspendendo meus pré-juízos – parecer pela concessão de Habeas Corpus em um caso de três assaltantes presos em flagrante, cuja homologação da prisão dizia: flagrante prende por si. Em meu parecer, disse: doa a quem doer, a decisão é nula, porque não fundamentada. E a jurisprudência e a lei exigem fundamentação. E citei precedentes. E acrescentei: faz parte do risco da democracia ter juízes que não sabem fundamentar. Eles terão de aprender, frisei. Mas não à custa da liberdade das pessoas (mesmo que sejam culpados, teleologicamente falando). Consequência: mesmo contra todas as críticas, meu parecer foi no sentido da concessão da ordem! Tudo para manter aquilo que sempre prego: coerência e integridade.

Insisto: decisões devem ser por princípio. E não por políticas ou qualquer outra finalidade. Por isso um bom exemplo de decisão por principio é o aeroporto. Todos têm de tirar o sapato. Todos passam pelo raio X. Até a senhora idosa que chegou atrasada. Vai perder o voo. O processo do aeroporto não é finalístico. O princípio é: não passa ninguém sem revista. Inclusive a velhinha. E os funcionários. Tire o cinto. E o relógio. E as moedas. Bingo. E se não fosse assim? Seria o caos. Porque a decisão de deixar passar sem revista seria... discricionária. Binguíssimo. E isso não daria segurança... nem jurídica, nem física aos usuários. Bingo de novo! Compreendem a minha insistência sobre a decisão por princípio e sobre os dois corpos do rei? Querem falar disso de outro modo? Pensem nisso como “republicanismo” e fairness (equanimidade).

Ou seja: quando pedimos um Habeas Corpus não estamos implorando por um favor. E não estamos perguntando se o tribunal quer ou não quer soltá-lo. Perguntamos, apenas, se ele tem direito. Só isso. Lembremos-nos do que disseram as Cortes no longínquo ano de 1642, na Inglaterra, sobre o agir do Rei: “Os atos de justiça não são exercidos em sua própria pessoa e nem dependem de seu desejo”.

A inconstitucionalidade do Brasil?
A confusão entre os dois corpos do rei ocorre todos os dias. Como explicar a tese dos dois corpos do rei que existe desde 1495? Simples. Quando alguém vai ao Judiciário, não vai pedir a opinião pessoal do juiz – corpo natural - acerca do tema. Nem vai perguntar se o que diz a lei é justo ou injusto. Fosse para discutir a justiça ou a injustiça seria mais fácil pedir a opinião de um filósofo moral.

Quem recorre ao Judiciário quer saber o que o direito, enfim, a estrutura jurídica composta de leis, doutrina e jurisprudência, têm a dizer.[2] E quem deve dar a resposta é o corpo imaterial do juiz (ou membro do Tribunal). Ora, exatamente porque a resposta tem sido subjetiva, pessoal, vivemos tempos de razão te(le)ológica, não secularizada.

Por que estou trazendo isso à baila? E por qual razão estou dizendo que, quando a parte vai ao Judiciário, ela quer saber, mesmo, o que o direito tem a dizer e não o que o judiciário, “pessoalmente por seus agentes”, tem a falar? Porque é isso que me pareceu o julgamento da ADI 4.650 sobre doações de campanha. Em termos de Estado Democrático, uma ADI deve(ria) perguntar se a Constituição Federal contempla ou não proibição de doações por parte de empresas. De todo modo, quero crer que a OAB não foi perguntar, via ADI, se o STF era contra ou a favor de as empresas doarem para os partidos. Também não perguntou – ou não deveria perguntar - se o ato de doar via empresa era bom ou ruim. Parece-me que não, porque isso seria pedir um simples juízo moral ao STF. Peço que me corrijam se eu estiver equivocado. Para mim, a pergunta correta é: o que o poder constituinte disse sobre doações? Ou ele não tratou do assunto? E é isso que a Corte deve responder. A CF proíbe ou não? Ou a Constituição permite ou proíbe.

Fundindo dois assuntos
Tenho receio dessa coisa chamada ECI - Estado de Coisas Inconstitucional, que é fluída, genérica e líquida. Por ela, tudo pode virar inconstitucionalidade. Das doações em campanha ao sistema prisional (ADPF 347). Mas pergunto: o salário mínimo não faz parte desse Estado de Coisas Inconstitucional? Os juros bancários - os do cartão de crédito bateram nos 400% - não são, igualmente, uma “coisa inconstitucional”? Peço perdão pela ironia, mas, diante do tamanho da crise, receio que alguém entre com uma ação para declarar a inconstitucionalidade... do Brasil.

Será que não estamos exagerando? Poderíamos chamar a isso de panconstitucionalismo? Será que, por exemplo, essa tese do ECI não é mais uma forma de justificar ativismos? Antes que alguém fale, respondo: sim, sei que essa tese não foi usada na referida ADI das doações de empresas. Foi em outro caso (ADPF 347). Mas, de algum modo, penso que esses “estados de coisas” estão relacionados. Já estão falando até em macrossentenças e ativismo estrutural.[3] E as coisas vão trocando de nome.

Esclarecendo: o PSol (por ironia, um partido que deveria acreditar no parlamento, mas como não ganha eleição para o Executivo para fazer suas políticas públicas, vai buscar sua pretensão fora de sua atuação institucional) foi ao Judiciário pedir que se declarasse o “Estado de Coisas Inconstitucional”, a fim de determinar ao governo federal que (dentre outras coisas) elabore e encaminhe ao STF, no prazo de três meses, um “Plano Nacional” para modificação das condições do sistema carcerário; após a deliberação do “Plano Nacional”, determinar ao governo de cada estado e do DF que formule e apresente ao STF, no prazo de três meses, um plano estadual ou distrital, que “se harmonize com o Plano Nacional”; impor o “imediato descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen)”; determinar ao Conselho Nacional de Justiça que coordene um ou mais mutirões carcerários etc.

Ou seja, basta que o sistema político não funcione como pensam os autores da causa que estará consagrada “a inconstitucionalidade das coisas”? Por essa tese poderíamos declarar o “estado de coisas econômico” inconstitucional. Afinal, com o dólar a mais de R$ 4... E poderíamos declará-lo com efeito ex tunc, para que o dólar voltasse ao patamar de R$ 2...

Pergunto: o que não é “coisa inconstitucional” neste país periférico que está à beira do abismo? Poderíamos aproveitar para fazer o mesmo com os juros sobre as operações de crédito, a situação do transporte público em terrae brasiliense, crise da segurança pública (o RS está um caos, o Rio nem se fala) crise na educação, dos hospitais (pessoas morrendo nas filas, tomando soro em pé...) etc. E, a partir de uma inconstitucionalidade por arrastamento, declarar a inconstitucionalidade do estado de coisas proporcionadas pelas operadoras de telefonia.

Peço que me desculpem. Não é implicância minha. Mas por que judicializar tudo? A pergunta que fica não respondida é: e a legitimidade constitucional para obrigar o Executivo a tomar essas medidas? É do Judiciário? Assim, sem mais nem menos? O que sobrou para a democracia? E se os juízes em suas comarcas começarem a declarar, em controle difuso, o estado de coisas inconstitucional das “coisas” do município? Tem município que não fornece nem merenda escolar. E não subestimemos o poder dos Tribunais do Estados Federados... Perdoem-me, de novo. Sei que isso é antipático. Mas não me perdoaria se não escrevesse isso.

Uma observação: entendo que o sistema prisional é caótico. Mas sua “inconstitucionalidade” (estado de coisas) é demasiado vaga, como dizem a PGR e a AGU. Cabe de tudo nesse “conceito ônibus” que é o ECI. Como advogado, estrategicamente, até admito lançar mão da tese. Mas como cientista (pensemos nos dois corpos do rei), o substrato se me apresenta frágil. Não esqueçamos que só a Colômbia a utilizou. O resto do mundo, não. E agora, o Brasil.

Numa palavra: a partir de um juízo político ou moral (ou econômico), o que não é inconstitucional em nosso país? O problema reside nos efeitos colaterais. O risco de uma decisão desse porte. Como em uma epidemia, a ADPF 347 é o “paciente zero”. Bem, devo estar dizendo isso talvez porque eu seja um conservador e acredite na divisão de poderes que está na Constituição. Mas, enfim, vive la différence (que quer dizer, vida longa à diferença).

Post scriptum: Quem escreveu esta coluna, creiam — e quem durante 28 anos de carreira de Ministério Público nunca confundiu os seus dois corpos —, não foi o meu corpo pessoal; quem escreveu e se responsabiliza pelo texto foi o professor e acadêmico. É o que poderia ser chamado, parafraseando o famoso livro de E. Kantorowicz, de The Streck’s Two Bodies!

[1] Ver, para tanto, MCIlwain, C.H. The High Court vs Parliament and its Supremacy, 1920, pp.389 e segs.; também E.H. Kantorowicz. The King’s Two Bodies. Princity University Press, 1957, primeira parte.

[2] A não ser em 6 hipóteses (ler aqui), há o dever de aplicar a lei.

[3] Conferir artigo do Professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 24 de setembro de 2015, 8h00

Falta de autorização de associados impede sociedade de assumir ação






Uma associação não pode assumir o polo ativo de ação civil pública promovida por ente associativo que, no curso da ação, veio a se dissolver (no caso, inclusive, por deliberação de seus próprios associados). Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça extinguiu sem análise do mérito ação movida contra uma financeira acusada de estimular o endividamento devido à publicidade abusiva, oferecendo crédito a aposentados, pensionistas e servidores públicos incluídos nos cadastros negativos de proteção ao crédito.

A ação foi movida pela Associação Nacional dos Consumidores de Crédito (Andec). No curso do processo, entretanto, houve a dissolução da entidade, e o Instituto Mineiro de Políticas Sociais e de Defesa do Consumidor (Polisdec) requereu a substituição processual para assumir a titularidade da ação.

No Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a substituição foi aceita. “Não sendo a ação civil pública ou coletiva de titularidade privativa de ninguém (no que se distingue da ação penal pública), eventual causa que impossibilite a continuação da associação legitimada no polo ativo da lide não impede qualquer colegitimado de assumir a promoção da demanda”, disse a decisão, conforme interpretação dada ao parágrafo 3º do artigo 5º da Lei 7.347/1985.

O relator no STJ, Marco Aurélio Bellizze, reconheceu que uma ação de interesse público pode ser assumida por outra instituição. Porém, ressaltou que no caso analisado as instituições têm naturezas incompatíveis e os associados da Polisdec não manifestaram desejo de que a instituição entrasse nesse debate.

“Em linha de princípio, afigura-se possível que o Ministério Público ou outro legitimado, que necessariamente guarde uma representatividade adequada com os interesses discutidos na ação, assuma, no curso do processo coletivo (inclusive com a demanda já estabilizada, como no caso dos autos), a titularidade do polo ativo da lide”, disse.

Para ele, essa possibilidade “não se restringe às hipóteses de desistência infundada ou de abandono da causa, mencionadas a título exemplificativo pelo legislador (numerus apertus). Todavia, essa compreensão quanto à possibilidade de assunção do polo ativo por outro legitimado não se aplica – ressalta-se – às associações, porque de todo incompatível”.

O entendimento do ministro, acompanhado de forma unânime pela turma, foi construído a partir de decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em debate sobre a legitimidade das associações para propor ação coletiva.

Procedimento inadequado
O relator explicou que, no específico caso das associações, é preciso levar em conta orientação do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a necessidade de expressa autorização dos associados para a defesa de seus direitos em juízo — seja individualmente, seja por deliberação de assembleia, não bastando, para tanto, a previsão genérica no respectivo estatuto. No STF, a decisão se deu no julgamento do Recurso Extraordinário 573.232, sob o regime do artigo 543-B do Código de Processo Civil.

Segundo Bellizze, no caso específico das associações, tal exigência dá ao magistrado, a possibilidade de melhor avaliar a abrangência e a relevância dos interesses discutidos na ação. Isso permite, inclusive, impedir o prosseguimento do feito, em observância ao princípio do devido processo legal à tutela jurisdicional coletiva, a fim de evitar o desvirtuamento do processo.

Concluiu, assim, sob o aspecto da representação, que é inconciliável a situação jurídica dos então representados pela associação dissolvida com a dos associados do "novo ente associativo", ainda que, em tese, os interesses discutidos na ação coletiva sejam comuns aos dois grupos de pessoas. Por tal razão, e considerando que o Ministério Público, ciente da dissolução da demandante, não manifestou interesse em prosseguir com a ação, extinguiu o feito sem julgamento de mérito.

O relator ressalvou, contudo, a possibilidade de a Polisdec ajuizar nova ação coletiva, com expressa autorização de seus associados, para tutelar o interesse do grupo por ela representado. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

REsp 1.405.697

Na cobrança de mensalidade escolar, juros incidem a partir do vencimento da parcela





Os juros de mora em cobrança de mensalidades escolares devem incidir a partir da data de vencimento da dívida. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu o recurso de uma instituição de ensino para reformar decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que havia entendido pela incidência a partir da citação.

O ministro Villas Bôas Cueva, relator do recurso, considerou que nos casos que tratam de mora ex re (decorrente do vencimento, ou seja, quando não há necessidade de citação ou interpelação judicial por parte do credor), os juros da dívida são contados a partir do final do prazo para pagamento das obrigações fixadas em acordo.

No processo analisado pela turma, a Fundação Armando Álvares Penteado ajuizou ação de cobrança contra uma aluna para receber a importância de R$ 2.522,33, relativa às parcelas dos meses de setembro, novembro e dezembro de 2004.

Advertência desnecessária

O juízo de primeiro grau condenou a aluna ao pagamento do valor principal acrescido de juros simples de 1% ao mês desde o vencimento das parcelas e correção de acordo com o IGP-M/FGV, conforme pactuado.

Em apelação, o TJSP determinou a incidência dos juros moratórios a partir da citação e manteve os demais termos da sentença. A fundação recorreu ao STJ sustentando que, em tais situações, o próprio tempo constitui o devedor em mora, razão pela qual os encargos deveriam incidir desde o inadimplemento da obrigação, sem a necessidade de citação ou interpelação judicial, conforme dispõe o artigo 397 do Código Civil.

Em seu voto, Villas Bôas Cueva destacou que a questão já foi amplamente debatida no STJ em outras ocasiões, e ficou decidido que os juros devem ser contados a partir do vencimento da prestação, por ser tratar de mora ex re.

Segundo o ministro, “se o devedor acertou um prazo para cumprir a prestação e se não há dúvida quanto ao valor a ser pago, não há também razão para se exigir que o credor o advirta quanto ao inadimplemento”. Leia o acórdão.
FONTE:STJ 

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...