terça-feira, 14 de julho de 2015

"Restrições da Lei de Mediação atrapalham sua aplicação no Direito de Família"




Vice-presidente do IBDFAM, Maria Berenice Dias defende mais possibilidades para mediação extrajudicial.

A Lei da Mediação (Lei 13.140/2015), sancionada no final de junho pela presidente Dilma Rousseff, diz que pode ser objeto de mediação o conflito que envolve direitos disponíveis ou indisponíveis que admitam transação. No entanto, exige homologação em juízo do consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis — aquele do qual o titular não podem privar-se por simples vontade própria, como os direitos familiares.

Essa restrição, na opinião da advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é injustificada e atrapalha a prática conciliatória em muitas ações no âmbito do Direito da Família.

“Não vejo como não haver a possibilidade de fazer mediação extrajudicial quando há interesse de crianças ou incapazes em geral”, disse, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Ela explica que a Justiça vem admitindo que o reconhecimento da paternidade seja feito diretamente no cartório de registro civil, sem processo judicial, por exemplo, e que o filho, por acordo, pode dizer que o genitor não é mais o pai dele.

Na opinião dela, a Lei da Mediação e o novo Código de Processo Civil, quando falam de conciliação, falham ao não ter copiado o modelo argentino. No país vizinho, no âmbito das relações de família, é necessário comprovar documentalmente que foi tentada uma conciliação extrajudicial antes de entrar com um processo na Justiça. A tônica deve ser uma mediação antes do processo e não uma mediação dentro do processo, disse. Só assim o instrumento será eficaz para diminuir o número de casos na Justiça.

Maria Berenice faz mediações extrajudiciais há oito anos, desde que se aposentou como desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é a opinião da senhora sobre a Lei de Mediação?
Maria Berenice Dias — A regulamentação dessa atividade que busca aproximar as pessoas para encontrar uma solução consensual vem em boa hora, mas, de uma maneira injustificada, não admite que seja feita a mediação quando se trata de direitos indisponíveis. No âmbito do Direito de Família, não vejo como não haver a possibilidade de fazer mediação extrajudicial quando há interesse de crianças ou de incapazes em geral.

ConJur — Por quê?
Maria Berenice Dias — Claro que não se pode abrir mão de alguns direitos, mas isso não quer dizer que seja indisponível. Por acordo, o filho pode dizer que o genitor não é mais o pai dele. A Justiça vem admitindo que o reconhecimento da paternidade seja feito diretamente no cartório de registro civil, sem processo judicial. É uma forma extrajudicial, um acordo de vontade entre os envolvidos. A limitação acaba eventualmente impossibilitando a mediação em muitas ações no âmbito do Direito da Família. Talvez fosse o caso de fazer a ressalva de que a mediação tem de ser levada para homologação judicial quando há interesse de menores e incapazes.

ConJur — A restrição vale também para o direito de visita?
Maria Berenice Dias — Deve haver a possibilidade de ser resolvido de forma consensual o estabelecimento da forma de convivência, o chamado direito de visita, em relação a uma criança. O que melhor atende o interesse dela são os pais decidirem como vai ser essa convivência, e não o juiz dizer quais são os horários. Nesse aspecto, o juiz é incompetente e vai errar. É importante deixar os familiares resolverem porque eles sabem os costumes e a dinâmica da família.

ConJur — A senhora acredita que a lei conseguirá reduzir a judicialização dos conflitos?
Maria Berenice Dias — O que peca tanto na Lei da Mediação, mas basicamente no novo Código de Processo Civil, nesse ponto da mediação, é não ter copiado o modelo argentino. Para se entrar com uma ação na Justiça na Argentina, no âmbito das relações de família, é necessário comprovar documentalmente que foi tentada uma conciliação extrajudicial. Primeiro as pessoas têm que fazer uma tentativa de mediação e documentá-la. Este documento é expedido pelos serviços de mediação. É a forma mais eficaz de diminuir o número de processos na Justiça — que é a finalidade primeira de incentivar formas conciliatórias.

ConJur — Qual é o procedimento sugerido pelo CPC para a mediação?
Maria Berenice Dias — É judicialmente. Conforme o novo CPC, é preciso procurar um advogado e entrar com uma ação fundamentada. E isso gera animosidade porque há citação, é um procedimento judicial. Depois é que o juiz manda fazer a conciliação. A partir disso, quem vai pautar quando será feita a mediação é o mediador. É uma volta desnecessária no processo. O que amenizou um pouco é que nas ações de família, quando o réu é citado, ele não vai receber a cópia da petição inicial. Alguns processualistas estão se insurgindo contra, porque dizem que o réu vai para a audiência sem saber do que vai ter que se defender. Este dispositivo foi inspirado no Código das Famílias, que foi elaborado pelo IBDFAM. Acho salutar. Ao receber a cópia com uma acusação de abandono de lar, por exemplo, o réu pode se irritar e dificultar a mediação. No caso de mediação extrajudicial, a pessoa simplesmente é chamada para tentar resolver o conflito.

ConJur — E se a validade da mediação for questionada?
Maria Berenice Dias — Se os direitos são disponíveis ou não, em caso de Direito da Família, quando há interesse de criança, é só colocar no papel o que foi acordado e levar para homologação judicial. Mas, mesmo assim, o juiz vai ser um carimbador, ele não vai fazer uma audiência. A tônica deve ser uma mediação antes do processo e não uma mediação dentro do processo.

ConJur — Qual foi a maior dificuldade encontrada pela senhora nesses oito anos fazendo mediação no âmbito do Direito da Família?
Maria Berenice Dias — É a mágoa, o ressentimento. Todos sonham com amor eterno e tendem a culpar o parceiro pelo fim do relacionamento. É uma forma de compensar a dor da perda com um sentimento de vingança. É a mãe dizendo para o pai que não vai mais deixá-lo ver o filho porque houve a separação. Ou o marido traído dizendo que não vai pagar pensão para o filho.

ConJur — Qual é o assunto mais controverso atualmente no Direito da Família?
Maria Berenice Dias — Antes era o valor da pensão alimentícia, hoje é com relação ao chamado direito de convivência. Cada vez mais os pais estão reivindicando conviver mais com os filhos depois da separação e há a resistência das mães que, muitas vezes, se acham proprietárias das crianças, porque saíram da barriga dela. É um ranço cultural difícil de ser superado. É por isso que surgiu a lei da guarda compartilhada, a lei da alienação parental, que foram criadas por causa do movimento dos pais excluídos da convivência com os filhos. O pai só vê o filho quando a mãe “deixa”, parece que não é um direito do pai. É um direito do filho de conviver com o pai. Esse ranço contaminou o Poder Judiciário porque dificilmente a justiça entrega a guarda para o pai.

ConJur – É uma forma de preconceito em relação aos homens?
Maria Berenice Dias — Sim. Noto ainda o Poder Judiciário muito arraigado esse sentimento chamado instinto maternal. Isso não existe, mãe não é bicho e eu nunca ouvi falar em instinto paternal. 


Marcelo Galli é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2015, 17h34

segunda-feira, 13 de julho de 2015

ESPECIAL - Aviso prévio: quando o empregador pode ou não descontar a parcela e quando está obrigado a quitá-la.




Nas relações de emprego, quando uma das partes, empregado ou empregador, decide rescindir o contrato de trabalho por prazo indeterminado, sem justa causa, deverá notificar a outra parte da sua decisão, de forma antecipada. É o aviso prévio, ou seja, a comunicação da rescisão do contrato de trabalho dirigida por uma das partes à outra, com a antecedência a que está obrigada pela lei. Ele está previsto no artigo 487 da CLT e sua finalidade é evitar a surpresa na ruptura do contrato de trabalho, concedendo ao empregador a possibilidade de preencher o cargo vago e, ao empregado, de obter uma nova colocação no mercado de trabalho.

Havendo a rescisão do contrato de trabalho sem justa causa, por iniciativa do empregador, ele poderá optar por conceder ao empregado o aviso prévio trabalhado ou indenizado. Nesse último caso, deverá pagar ao trabalhador os salários correspondentes aos dias do aviso, juntamente com as verbas rescisórias. Quando for do empregado a iniciativa de romper o vínculo, ou seja, quando ele pedir demissão, terá que cumprir o aviso prévio, a menos que o empregador o dispense formalmente. Caso contrário, o empregador poderá descontar os salários relativos ao período das suas verbas rescisórias. É o que determina os parágrafos primeiro e segundo do artigo 487 da CLT.

Nessa matéria especial, veremos alguns casos apreciados pelas Turmas do TRT-MG, nos quais se discutiu a possibilidade de desconto do aviso prévio pelo empregador das verbas devidas ao empregado, inclusive naquelas situações em que, não configurados os pressupostos para a rescisão indireta do contrato de trabalho, prevaleceu a vontade do empregado de se desligar do emprego, situação equivalente ao pedido de demissão.
Empregado pede demissão e não cumpre aviso prévio: é possível deduzir valor do aviso das parcelas rescisórias 


O parágrafo 2° do art. 487 da CLT é claro ao estabelecer que a falta de aviso prévio por parte do empregado dá ao empregador o direito de descontar os salários correspondentes ao período. E, se não existe salário a receber, o valor pode ser descontado de outros créditos do empregado, como férias e 13° salário.

Assim decidiu a 3ª Turma do TRT/MG, ao dar provimento ao recurso de uma empresa que não se conformava com a sua condenação a restituir a um trabalhador o valor do aviso prévio descontado na rescisão contratual, assim como de pagar a multa do artigo 477 da CLT. Pela tese da ré, como o reclamante se demitiu sem cumprir o aviso prévio, ela estaria autorizada a realizar o desconto respectivo, nos termos do artigo 487, parágrafo 2º da CLT. E, em razão do valor descontado, o ex-empregado não teve saldo a receber de verbas rescisórias. Por isso mesmo, seria inaplicável a multa do artigo 477 da CLT. Esses argumentos foram acolhidos pela Turma julgadora.

O relator do recurso, juiz convocado Manoel Barbosa da Silva, destacou que o parágrafo 2° do artigo 487 da CLT permite expressamente que o empregador desconte dos salários o valor correspondente ao aviso prévio não cumprido pelo empregado que pediu demissão, como no caso. E, não havendo salário a receber, nada impede que o desconto incida sobre outros créditos do empregado, como férias e 13° salário.

"Se pode ser descontado do salário, verba reconhecida como intocável pela doutrina e pela jurisprudência, com maior razão deve ser permitido o desconto do aviso prévio devido pelo empregado no pedido de demissão", frisou o relator.

Para reforçar esse entendimento, ele citou decisão do TST que, por sua vez, apoiou-se na lição de Valentim Carrion, in Comentários à CLT, art. 487, § 2°, nota 7: "Lícita é a compensação do aviso prévio dado à empresa pelo empregado demissionário em parcelas decorrentes do pedido de dispensa, como férias e gratificação natalina" (TST, E-RR 1.278/79, Fernando Franco, Ac. TP 1.757/81, in Valentim Carrion, Comentários à CLT, Edição de 2013).

Assim, a Turma, acolhendo o voto do relator, deu provimento ao recurso da empresa para absolvê-la da restituição do aviso prévio descontado no TRCT, e por consequência, da multa prevista no § 8° do art. 477 da CLT. (TRT-00672-2014-079-03-00-0-RO - acórdão em 25/02/2015)
Rescisão indireta improcedente: desconto de aviso prévio indevido 


Já em outra situação analisada pela 8ª Turma do TRT mineiro, a empregada se afastou do serviço e requereu na Justiça a rescisão indireta do contrato de trabalho. Para os julgadores, mesmo tendo havido o indeferimento da rescisão indireta e reconhecimento da condição de demissionária da reclamante, ela não deixou de cumprir o aviso prévio, mas apenas se valeu da prerrogativa prevista no artigo 483, § 3º, da CLT. É que a norma prevê que o empregado poderá pedir na Justiça a rescisão indireta do pacto, permanecendo ou não no serviço até a decisão final do processo.

O juiz de 1º Grau julgou improcedente a rescisão indireta e declarou que a reclamante era demissionária. Com isso, entendeu que ela deveria ter cumprido o aviso prévio e, como não o fez, autorizou que a empresa descontasse dos créditos da empregada o valor correspondente ao aviso prévio. A reclamante recorreu da sentença, afirmando ser indevido o desconto e requerendo o pagamento do aviso prévio por parte da ré. A Turma lhe deu razão.

O relator do recurso, desembargador José Marlon de Freitas, então atuando como convocado na Turma, ressaltou que, apesar de ter sido considerada demissionária, com o indeferimento da rescisão indireta, a reclamante não deixou de cumprir o aviso prévio, mas, apenas se valeu da prerrogativa prevista no artigo 483, § 3º, da CLT, de se afastar do serviço, até o final da decisão do processo. Conforme frisou, ela não teria como cumprir o aviso prévio, na forma como determina o art. 487, § 2º, da CLT, porque distintas as circunstâncias. Por essas razões, a Turma deu provimento ao recurso da reclamante para excluiu o desconto e determinar que a empresa pagasse o valor do aviso prévio à reclamante.(0010819-89.2014.5.03.0165 RO - acórdão em 03/12/2014)
Empregado dispensado que arranja logo novo emprego: é devido o aviso prévio? 


Nesse terceiro e último caso, a situação foi um pouco diferente. O reclamante era empregado de uma empresa prestadora de serviços que o dispensou sem justa causa. Só que ele foi imediatamente transferido para outra empresa prestadora de serviços e continuou a trabalhar na mesma tomadora, sob as mesmas condições, sem solução de continuidade. A antiga empregadora não lhe pagou o aviso prévio, mas o trabalhador também não pediu a dispensa do seu cumprimento. E aí? Nessas circuntacias, ele teria direito ao aviso prévio?

Para a 1ª Turma do TRT de Minas a resposta é positiva. Os julgadores reformaram a sentença que indeferiu o pedido do trabalhador de recebimento do aviso prévio e suas projeções.

No entendimento do juiz de 1º Grau, o fato de o ex-empregado ter sido imediatamente admitido por outra empresa, inclusive continuando a prestar serviço na mesma tomadora e em iguais condições, exclui o direito ao recebimento do aviso prévio indenizado. Isso porque a finalidade do aviso prévio seria justamente proporcionar ao trabalhador um período razoável para busca de novo emprego, tendo aplicação, no caso e por analogia, o precedente normativo 24 do TST. Mas a Turma de julgadores, acolhendo o voto da relatora do recurso, desembargadora Maria Cecília Alves Pinto, decidiu de forma diferente.

De acordo com a relatora, a hipótese de obtenção de um novo emprego exclui o direito do trabalhador ao aviso prévio somente se ele requerer, de forma expressa, a dispensa do seu cumprimento perante a empresa, o que não ocorreu no caso. Conforme ressaltou, essa é a melhor interpretação da súmula ao 276/TST, que dispõe que: "O direito ao aviso prévio é irrenunciável pelo empregado. O pedido de dispensa de cumprimento não exime o empregador de pagar o respectivo valor, salvo comprovação de haver o prestador dos serviços obtido novo emprego".

Para reforçar seu posicionamento, a desembargadora citou várias decisões do TST, no sentido de que o aviso prévio é irrenunciável pelo empregado, a não ser por uma única exceção: se ele requerer a dispensa do seu cumprimento por estar prestando serviços a novo empregador. Ou seja, se não há pedido de dispensa do aviso prévio pelo trabalhador, a obtenção de novo emprego no período não afasta a obrigação da empresa de pagá-lo.

Assim, tendo em vista que o reclamante foi dispensado sem justa causa e que não houve aviso prévio, seja na forma trabalhada, seja na forma indenizada, a Turma concluiu que ele tem direito a receber da ré o valor correspondente ao aviso, com suas projeções. (TRT/00617-2014-169-03-00-1-RO - acórdão em 08/06/2015)



NOTÍCIAS JURÍDICAS anteriores sobre o tema 



Fonte: TRT3

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Como (não) se ensinava processo penal antes da "lava jato". Eis o busílis!






Alexandre Morais da Rosa (ler aqui) pergunta como é possível ensinar Direito Processual penal depois da operação "lava jato". A resposta é difícil. Ela exigiria a escrita de um livro e não de uma coluna. O segredo da resposta está na crise da dogmática jurídica, da qual falarei mais adiante.

Dos anos 80 para cá ocorreu uma transição não muito bem feita. A falta de democracia originou uma espécie de aposta no protagonismo do Judiciário em face da estrutura autoritária da legislação e do Estado. Por isso floresceu, em determinado período, um espaço que foi ocupado por teses acionalistas, como o realismo jurídico, o direito alternativo, o direito achado na rua, a velha investigação cientifica, etc. No regime autoritário, era necessária aposta em posturas acionalistas. Entretanto, quando foi implantada a democracia e promulgada, logo depois, a Constituição, a dogmática jurídica não se reciclou. Ali começa o problema.

A crise de paradigma de dupla face: minha antropofagia
Para mim, o busílis da questão que está na raiz da pergunta de Alexandre Morais da Rosa reside lá longe. E sobre ela escrevi muito. Já antes de 1988 fazíamos congressos e, junto com José Eduardo Faria, denunciávamos aquilo que hoje bate forte na dogmática. Faria dizia que se avizinhava uma crise de paradigma com a nova Constituição. Segundo ele, o direito estava preparado para lidar com conflitos interindividuais e não “aguentaria o tranco” quando se defrontasse com os conflitos transindividuais.

Bingo. Ousadamente, peguei a tese de Faria e fiz uma antropofagia, que já está em textos bem antigos. Chamei a essa crise de uma crise paradigmática com dupla face. A face um (lado A) era a da estrutura do direito, que, preparada para pegar ladrões de galinha (e criticava a cultura manualesca cujos exemplos eram sobre Caio, Ticio e Mévio), não estava preparada para enfrentar os casos que tratavam de bens jurídicos transindividuais (vejam: as garantias são para todos; na época denunciava que estas só eram aplicadas em favor de determinados segmentos — eu queria isonomia para a patuleia, por assim dizer).

Mas havia um problema a mais. A crise só se sustentava porque havia um lado “B”, que chamei de crise do paradigma aristotélico-tomista e da filosofia da consciência (e teses voluntaristas em geral) porque, de um lado ainda a dogmática estava sustentada em posturas objetivistas (verdade real, por exemplo e o mito do dado das posturas exegetistas) e, de outro, paradoxalmente, quando interessa(va) — ideológica e politicamente — lança(va) mão do extremo subjetivismo, dando o sentido que quer(ia) às leis e aos fenômenos envolucrados nos tipos penais e nas garantias processuais.

A crise de dupla face escondeu, por exemplo, o solipsismo judicial, que, por sua vez, esconde o paradoxo representado pela dupla face (o mix entre objetivismo e subjetivismo). E continua escondendo a relevante circunstância de que a dogmática jurídico-processual penal produziu doutrina durante todos esses anos apostando no protagonismo dos juízes.Continuou a apostar na livre apreciação da prova. Mais: colocou um verniz — que agora desbotou — com a ficção do “livre convencimento motivado” (ou livre apreciação motivada). É de uma ingenuidade de dar dó a crença generalizada da comunidade jurídica na bondade das analises judiciais. O juiz é bom? Para quem? Depende do lado que você está. Ou eu tenho um direito, ou eu não tenho — se eu tenho, o Poder Público tem o dever de reconhecê-lo. Não importa minha posição social. É assim que funciona em arranjos democráticos. E isso não pode depender da opinião que eu e você temos a respeito disso.

Observemos um sintoma: quando a procuradora Ela de Castilhos escreveu sua tese de doutorado nos anos 90, mostrou que menos de 10% dos casos de crimes de colarinho branco era objeto de condenação em Pindorama. Por que hoje isso mudou? Por uma razão simples: naquele momento os órgãos repressivos-investigativos eram competentes para lidar com os crimes ligados à interindividualidade ( o lado A da crise). Sempre foi mais fácil provar coisas quando o réu era pobre e os crimes daqueles-cometidos-por-pobres. No momento em que, dos anos 2000 para cá, houve um aprimoramento da Policia Federal e do Ministério Público, começou a mudar o cenário. No andar de baixo a coisa continuou como estava; o que começou a mudar foi a relação com o andar de cima.

Só a dogmática não se reciclou
Mas, o que não mudou? Só não mudou o imaginário dos juristas. No processo penal, continuou-se a escrever, grosso modo, as mesmas coisas. Poucas foram as analises criticas, no sentido paradigmático da palavra (não me refiro aos discursos panfletários). E tem sido quase zero a preocupação com a filosofia no processo, isto é, a discussão das condições de possibilidade de o judiciário apreender o fenômeno e... decidir. Não nos preocupamos com a decisão. Por incrível que pareça — e isso parece risível — somos tão atrasados que até mesmo o projeto do novo Código de Processo Penal (que tramita a passos de cágado no Parlamento) insiste na tese da livre apreciação da prova.

Ora, deveríamos ter iniciado no dia 5 de outubro de 1988 uma filtragem nos Códigos. Mais, fundamentalmente, deveríamos ter feito uma filtragem nas posturas dos juristas. A CF/88 mudou o alvo. Lamentavelmente, pouquíssimo se alterou na dogmática processual-penal. Até hoje tem gente que escreve sobre processo penal ainda defendendo o sistema inquisitivo. Foi muito lenta a apropriação do novo. Lembro a batalha que travei, em conjunto com a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para implementar a tese do interrogatório como meio de defesa. Fiz inúmeros pareceres sustentando a nulidade de interrogatórios que não traziam a presença do advogado. De forma pioneira, a 5ª Câmara anulou centenas de processos. O Ministério Públicorecorria contra meus próprios pareceres. E o Superior Tribunal de Justiça anulava as anulações, sob o argumento de que o CPP não exigia a presença de advogado. Lembro que, em 2004, quando veio a Lei 10.792/2003, escrevi: os juristas não acreditaram até agora na CF que prevê a ampla defesa; mas agora acreditam na nova Lei.Aleluia. Não era dramático?

Há marcos rupturais?
Alexandre Morais da Rosa diz que a "lava jato" é um marco. Eu diria que a “coisa” começou um pouco antes, na Ação Penal 470. Escrevi várias colunas na ConJur mostrando que a maior derrotada na AP 470 foi, exatamente, a dogmática jurídica. Seus elementos centrais foram destroçados do mesmo modo que o escrete canarinho o foi pela seleção alemã na Copa passada. Quando viram, estava 5x0. E assim foi com a AP 470. Aquilo que a dogmática pregava e ensinava a vida toda foi liquidada paradoxalmente pelo mesmo esquema tático que a sustentou: a livre apreciação da prova e a busca da verdade real (que tem em seu ponto de estofo o velho inquisitivismo e, portanto, as respostas teleológicas). Sim. Há décadas que os livros de processo penal ensina(ra)m aquilo que foi utilizado como arma contra os próprios ensinadores e utentes em geral. É duro, mas foi o que ocorreu.

De fato, é nesses hard cases da vida (real) que os juízes revelam suas convicções pessoais sobre o direito, não esquecendo que também houve uma profunda renovação nos quadros da magistratura e do Ministério Público. A questão é saber se o direito coincide com as convicções pessoais dos juízes (e dos promotores). Entendem o que quero dizer? O que apareceu, tanto na AP 470 como na "lava jato" (e isso se estende ao restante do direito)? Simples. Apareceu aquilo que venho denunciando há muito tempo: A visão pessoal do judiciário acerca do problema e seus efeitos colaterais em uma sociedade fragmentada. Ou seja, indagou-se ao judiciário o que o direito tem a dizer sobre esses fenômenos e ele respondeu o-que-cada-membro-do-judiciário-pensa-sobre-tudo-isso. Claro que ele já fazia isso desde sempre. Só que, agora, pegou em outro alvo. Essa talvez seja a parte mais difícil de compreender na teoria do direito: a de que, antes dos juízes, existe uma estrutura chamada “direito” e que, por vezes, não diz exatamente a mesma coisa que cada juiz pensa. Esse é o locus da doutrina jurídica: fazer essa transição paradigmática entre o direito (estrutura) e o imaginário dos operadores. Observe-se: esta análise transcende os hard casesem tela. Não pretendo, assim, “julgar os julgamentos”.

Onde e quanto sapato aperta em novos pés
Por que digo isso? Porque, quando o sapato aperta (em novos pés), quando o caso e os argumentos que os concebem assim o exigem, os juízes acabam dizendo o que pensam sobre a apreciação da prova, do convencimento, da formação da opinião. O problema é que, por vezes, isso fica aquém ou além da estrutura chamada “direito” (que é feito pelo parlamento). Quando surge um “decido conforme minha consciência”, ou um “não me importa o que diz a doutrina” na voz da linguagem pública, é porque a doutrina já fracassou de há muito... se é que me entendem.

Ou seja: vai tudo muito bem até que o direito (uma instituição fundante da democracia) deixa de ser um direito, para ser aquilo-que-o-juiz-entende-por-direito. É, por exemplo, quando se prende e se solta com base no mesmo argumento. Pois é: Se tudo é, nada é. Acredito que isso tudo pode ser resumido assim: enquanto a “clientela” era a patuleia, a dogmática jurídica se indignava no atacado; mas quando a “clientela” passou a ser um “não-patuleu”, a dogmática passou a se indignar no varejo. Só que já é(ra) tarde. Aqui entra a pergunta de Alexandre Morais da Rosa.

Então, como ensinamos?
Pois esse é o ponto central para a resposta à pergunta de Alexandre Morais da Rosa. Como ensinamos processo até hoje? Simples: Ensinamos processo a anos-luz dos paradigmas que conformam o mundo. Ninguém mais fala no esquema sujeito-objeto. Mas, no direito, sim. Só que é ainda pior. Não só falam no esquema sujeito-objeto (subjetivismo-solipsista) como ainda tem gente escrevendo sobre verdade real, que é uma “verdade” pré-moderna, em que, se quisermos lidar com os fatores S e O, seria O>S, um objeto que (ainda) assujeita o sujeito. É complexo isso? É. Muito. Mas se continuarmos a achar que direito é coisa simples — como querem setores importantes da dogmática jurídica — teremos que aguentar isso tudo-o-que-vemos-cotidianamente.

Um sintoma que mostra a crise claramente
Outro sintoma que demonstra a minha tese da crise de dupla face: a tal da ponderação. Esse sintoma desnuda a crise de dupla face. Sempre a denunciei (a ponderação) como sendo uma tese caudatária do subjetivismo. Inúmeros juristas — alguns que hoje se queixem da "lava jato" e se queixaram da AP 470 — escreveram ou ensina(ra)m nas salas de aula que o juiz pode fazer ponderação entre direitos individuais e interesses coletivos, citando, para isso, Alexy. Dramaticamente equivocados. Quantos acusados já foram condenados com base na ponderação (mal feita)? Sem fazer qualquer passagem pelas fases complexas do processo de “ponderação”, o judiciário simplesmente pega um “valor” (sic) em cada mão e, fiat lux: escolhe um deles, no mais das vezes o “valor público”, que seria o interesse da coletividade. Só que esquece(ra)m que Alexy nunca disse isso. E o ônus argumentativo? Ninguém fala disso? Sabem por quê? Porque a dogmática nunca se preocupou com isso. Coagulou os sentidos e se fechou em um monastério. A dogmática jurídica quer ser prática. Mais importante que estudar e pesquisar, é ter bons contatos na República. É conhecer os caminhos das pedras... Pois é.

Insisto: Enquanto o modelo investigatório-probatório tratava de alcançar a malta, a dogmática quedou-se silente. Agora, quando se alcançam outros setores, a “coisa pega”. Louvo a preocupação de Alexandre Morais da Rosa. Bingo. Apenas acrescentaria que: não se ensina depois... porque não se ensinou antes... Essa luta é paradigmática. E foi perdida. Pela própria dogmática jurídica. Porque exatamente cumpriu o vaticínio da crise de paradigmas de dupla face: preparada para enfrentar os conflitos interindividuais, não se preparou para os grandes embates. Não se preparou para o dia em que o jogo poderia virar, com novidades como delação, etc.

Tudo isso que disse acima posso comprovar epistemicamente (e empiricamente). Quando saiu a Lei das Interceptações — lá em 1997 —, escrevi acerca do perigo de se usar esse mecanismo como inicio e não comoultima ratio. Poucos se preocuparam com isso. A própria delação premiada merec(er)ia uma filtragem constitucional, conforme delineei alhures, para que ela não fosse utilizada igualmente como unica ratio e como instrumento de pressão. Ali está(ria) uma inconstitucionalidade. Como sempre, a dogmática decidiu esperar o que o judiciário diria... Sempre uma volta ao velho realismo jurídico. O direito se faz mesmo é... na decisão. O fantasma de Holmes, Alf Ross, Olivecrona... estão presentes.

Quando surgiu a lei que alterou o artigo 212 do CPP, fui o primeiro a escrever e lutar no tribunal para que fosse aplicado, porque ali estava o inicio da implementação do sistema acusatório. E ali estava também uma possibilidade de ruptura com a velha teoria das nulidades. Fui à luta. Fiz críticas à doutrina de Luiz Flávio Gomes e Guilherme Nucci que defenderam a não necessidade de aplicar, dizendo que o novel dispositivo nada havia alterado na estrutura do CPP. Diziam ambos que isso acarretava apenas nulidade relativa, como se estivéssemos no século XIX. Também critiquei o STJ e o Supremo Tribunal Federal. E quem esteve no Congresso da ABDCONST realizado depois da lei deve se lembrar do repto que fiz ao STF e a um dos ministros presentes acerca do sentido dos limites semânticos da lei. Está lá gravado. E a dogmática jurídica quedou-se silente. Posso matar a cobra e mostrá-la morta.

Enfim, esse quadro de crise paradigmática de dupla face faz com que, hoje — e esse é o ponto nevrálgico — os direitos, as garantias processuais não dependam de uma estrutura chamada direito (conceito aqui já explicitei ad nauseam), e, sim, do solipsismo judicial, que por sua vez possui ancoragem nas fragmentadas decisões judiciais. Para o bem e para o mal. Afinal, há decisões para todos os gostos. As decisões passam a ser, cada vez mais, teleológicas (decide-se e, só depois, busca-se uma justificativa) e não de principio. Não quero ser o descobridor da pólvora, mas tenho insistido, com chatice epistêmica, que as decisões judiciais devem ser proferidas por princípios e não por políticas. E que precisamos de uma teoria da decisão. Antes de uma decisão por decisão, um modo de como esta deve ser feita.

Para ser bem claro: Se, por exemplo, o paciente reúne as condições de receber habeas corpus — aferíveis objetivamente em face da estrutura chamada “direito” — por mais que seja antipático ou politicamente incorreto a sua soltura, o judiciário deve conceder o writ. Mesmo que a mídia berre. Porque a decisão na democracia é por principio. Por mais tentador que seja agir por política. Mas, infelizmente, a própria dogmática jurídica cavou o seu buraco. Admite até hoje a livre apreciação. Logo, se esta é livre, pode ser contra ou a favor. E logo depois se justifica o que foi decidido intuitivamente... Por isso, em casos que envolvam forte atuação da mídia, cada vez mais as decisões são teleológicas. Finalísticas.

Mas não ponho a culpa no Judiciário. Fazemos parte de uma coisa maior, que é o imaginário jurídico no interior do qual nos localizamos. E agimos. E não reagimos. Do professor da faculdade tipo-balão-mágico, que não sabe um ovo do que ensina, até o professor de cursinho que encanta as plateias com refrões resumidinhos, até a pós-graduação que, em parte considerável de programas, ainda repete conteúdos da graduação, com dissertações e teses sobre embargos, limitação de fim de semana, estelionato, cheque sem fundo ou agravo, com temas monográficos que recebem uma flambagem teórica do tipo “regra é no tudo ou nada, princípios é na ponderação”. Tem exceção? Claro. Muita. Mas parcela considerável do ensino e das práticas nos mostra esse quadro tão bem pintado por Alexandre Morais da Rosa. Só que minha resposta tenta pegar a origem disso tudo.

O problema é que o judiciário já se acostumou...
Parece que a discussão das garantias processuais, antes tão distante do andar de baixo (veja-se que a maioria dos tribunais estaduais ainda usa a inversão do ônus da prova para crimes do tipo cometido-pela-patuleia), está provocando, dialeticamente, o andar de cima. Violações são condenáveis nos dois andares. Só há um modo de combater isso: decidindo por princípio,como explicito em Verdade e Consenso. E, para tanto, necessitamos de uma doutrina adequada.

Se na primeira pedalada a-paradigmática nas garantias a doutrina tivesse feito os necessários constrangimentos (que devem atuar nas faculdades, cursinhos, livros, conferencias, seminários, etc), não teria sido formada uma “certa tradição”... se me entendem o que quero dizer. Ou seja, o problema é que o judiciário já se acostumou a julgar conforme a sua livre apreciação acerca dos fatos e da lei. E, hoje, todos pagam o preço:
o andar de baixo, por ser da tradição de um país de modernidade tardia; e
o andar de cima, pelo desejo que o judiciário tem de tentar corrigir aquilo que a política não vem conseguindo.

Só que esta tarefa não é dele.

Numa palavra final
O quadro pintado por Alexandre Morais da Rosa está correto no plano de uma análise realista. É assim mesmo que as coisas estão indo. E a saída que ele propõe também tem fortes traços de realismo jurídico, isto é, a decisão é, ao fim e ao campo, um problema do judiciário e assim devemos nos preparar para enfrentar esse fenômeno de poder. Mas, aí é que está: eu não consigo conceber que o problema da decisão se transforme em um jogo de poder ou seja resolvida como se fosse (algo tipo als ob). Se, de fato, for um jogo de poder, temos de confessar o fracasso da doutrina e de tudo o que ela representa em termos de “constrangimentos epistemológicos”. É como se, no nosso cotidiano, os sentidos das coisas só nos surgissem no momento em quelidássemos com elas e não a partir de um a priori compartilhado que, é claro, também inclui o encontro com essas coisas. Mas não são essas coisas (no caso, as decisões) que me impingem o que a coisa (o sentido do direito) é. Toda concepção que possui traços realistas inexoravelmente flerta com alguma forma de objetivismo. As decisões não são a fotografia do direito, assim como a filosofia não é o espelho da natureza, para usar uma expressão conhecida.

A partir do diagnóstico de Alexandre Morais da Rosa, haveria uma polarização que opõe um modelo “continental” de estudo do direito (identificado a partir de uma perspectiva epistemológica mais abstrata e sistemática, centrada na resolução dos problemas normativos) a um modelo anglo-saxão, de conotação realista (cuja identificação pode ser retratada a partir de um corte mais pragmático, assistemático, centrado num tipo de análise que permita avaliar as condições sociais e psicológicas que envolvem o processo decisório para — tentar — fazer projeções de como serão decididas os casos futuros semelhantes).

A questão posta, portanto — a partir de um olhar hermenêutico — não pode ter como resposta um realismo de nova roupagem, que continue a descrer da possibilidade de uma concepção de direito que preexista à decisão judicial e que deve conformar o caso, com um efetivo grau de autonomia. Ora, se hoje temos esse mosaico sincrético de tradições no âmbito do processo penal, como bem denuncia Alexandre Morais da Rosa, isso se dá justamente porque, nos últimos dez anos, o campo majoritário do direito no Brasil acabou seduzido pelo canto das sereias do realismo jurídico. O que seria essa volta a uma espécie de realismo? Simples: nele, os sentidos do direito decorrem e se dão predominante... na e pela decisão judicial; eis o porquê do crescimento do direito “jurisprudencial” em Pindorama; eis o porquê da paixão do novo Código de Processo Civil (CPC) pelos precedentes.

Claro que a solução do problema não está em colocar o modelo conceitualista-sistemático como o método privilegiado de análise do direito. Insisto: a resposta à questão exige uma reflexão que consiga apontar para uma dimensão mais complexa do que aquela que resulta(ria) de uma simples opção por um modelo ou outro. Trata-se de conseguirmos construir uma verdadeira terceira via. Algo que, na verdade, já está aí: no pós-positivismo de Friedrich Müller, na teoria integrativa de Ronald Dworkin e, permito-me dizer, também na Teoria da Decisão que proponho em Verdade e Consenso — que faz uma antropofagia de Gadamer, Dworkin e Müller, de alguma forma) e outros tantos livros. Mas esse encontro precisa acontecerlogo, sem esperas ou demoras.

Desculpem-me pelo tamanho da coluna, mas o texto de Alexandre é absolutamente instigante. E é só o começo de uma longa discussão.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 9 de julho de 2015, 8h00

Juiz pode ignorar laudo pericial para conceder benefícios do INSS a cidadão





O juiz não deve ficar restrito a exames periciais, podendo se basear na situação econômica e nas condições de um cidadão para conceder benefícios do Instituto Social do Seguro Social (INSS). Assim entendeu o juiz Joviano Carneiro Neto, da comarca de Nova Crixás (GO), ao determinar que a autarquia repasse um salário mínimo (R$ 788) a uma mulher epilética pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), destinada a quem apresenta impedimentos de longo prazo.

O INSS apontava que um laudo médico atestava que a mulher poderia trabalhar mesmo com seu quadro de saúde. Mas o juiz disse que o Estado brasileiro, ao dispor sobre a dignidade humana como fundamento, deve permitir que os cidadãos tenham o mínimo existencial.

“O que não se vê à autora, já que, pela impossibilidade física e, ainda, sabendo da situação econômica nacional, a qual para quem é jovem já é por demais complicado encontrar um emprego, quanto mais para uma senhora de mais de 40 anos e com problema de saúde intermitente”, escreveu o juiz.

“Assim, não obstante a conclusão do laudo pericial, entendo que a situação pessoal da autora posta indica outra situação, qual seja, a autora não detém condições para, livre e vinculativamente, trabalhar para autossustentar-se, haja vista o quadro clínico posto nos autos”, disse ele. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-GO.

Clique aqui para ler a decisão.

Processo: 253603-47.2014.8.09.0176


Revista Consultor Jurídico, 9 de julho de 2015, 7h00

NJ Especial: Liberdade de expressão no trabalho




Juíza determina reintegração de jornalista que fez comentário sobre publicação do jornal no Facebook 

A utilização das redes sociais vem crescendo a cada dia e demandas envolvendo essa realidade começam a chegar à Justiça do Trabalho. Recentemente, a juíza Adriana Goulart de Sena Orsini, da 47ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, examinou uma ação relacionada ao tema. Em fundamentada decisão, a magistrada tratou de questões atuais como a liberdade de expressão e o uso das redes sociais no contexto da relação trabalhista. A sentença abordou também a discriminação contra o dirigente sindical e a importância do sindicato para o trabalhador.

No caso, uma empresa jornalística mineira se insurgiu contra a conduta de um jornalista que lá trabalhava havia mais de 27 anos. Ele comentou em sua página do Facebook uma publicação do jornal, ligada às últimas eleições presidenciais. Por se tratar de detentor de estabilidade sindical, a empregadora ajuizou Inquérito Judicial de Apuração de Falta Grave, pedindo o reconhecimento da falta imputada ao empregado e a rescisão do contrato de trabalho por justa causa. No entanto, após analisar detidamente a prova do processo, a juíza julgou improcedente a pretensão. Na decisão, ela determinou a reintegração do jornalista e condenou a empresa ao pagamento de salários e vantagens contratuais, com juros e atualização monetária, desde a data do afastamento.

Tudo começou quando o jornalista compartilhou fotos de páginas do jornal empregador contendo diferentes resultados de pesquisas de intenção de votos das eleições presidenciais de 2014, citando, ainda, comentários de outros usuários, aos quais acrescentou uma anotação própria, questionando a confiabilidade de alguns institutos de pesquisa. Para a empresa jornalística, o empregado não poderia ter usado a rede social para depreciar e "denegrir a imagem" do jornal, até porque, ocupa cargo de editor adjunto. O jornalista, por sua vez, argumentou que a crítica não se dirigia ao jornal, mas a institutos de pesquisa, entendendo que os limites do seu direito à livre manifestação do pensamento foram observados.

Para a magistrada, a grande questão aí estava em saber se a publicação feita pelo jornalista em sua página do Facebook extrapolou ou não os limites de sua liberdade de expressão e se atingiu ou não a honra e boa fama de sua empregadora. E, para chegar a uma conclusão, recorreu a vasta pesquisa doutrinária, legal e jurisprudencial sobre esses institutos jurídicos e também sobre a influência dos modernos meios de comunicação informal de massa, como a internet e suas redes sociais.

Convidamos o leitor a uma viagem, ponto a ponto, pelo teor dessa importante decisão:







Proc. Nº 2916-40.2014.503.0185 
Fonte: TRT3

terça-feira, 7 de julho de 2015

Assédio moral organizacional: teleatendente vítima de gestão por estresse será indenizada







O juiz Fabiano Fernandes Luzes, em sua atuação na 8ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, analisou um caso envolvendo a prática de assédio moral organizacional por uma empresa de telefonia e de TV por assinatura. Como registrou o julgador, a empresa empregava o que ficou denominado "straining", ou simplesmente "a gestão por estresse". E explicou: essa gestão se caracteriza pela adoção de medidas coercitivas, aplicadas na gestão de pessoal, objetivando impulsionar os funcionários a uma maior produtividade. Essas medidas são sempre amparadas em um medo coletivo em face de possíveis retaliações existentes.

Na situação levada à juízo, o magistrado apurou, pelos depoimentos das testemunhas, que a supervisora sempre buscava otimizar o desempenho das vendas através de verdadeira coação sobre seus subordinados, que viviam em contínuo estado de medo. E, como a teleatendente não atingiu as metas estipuladas, a supervisora a colocou para trabalhar sozinha em uma sala para que lá, no isolamento, ela refletisse sobre suas condutas. Outra forma usada para pressionar os empregados eram as ameaças de dispensa por justa causa e a restrição do uso do banheiro durante a jornada de trabalho. Disso também foi vítima a teleatendente. Como constatado através da prova testemunhal, o limite de uso diário era de 10 minutos e, caso ultrapassado, haveria desconto no intervalo intrajornada.

Nesse cenário, o juiz considerou cabível a rescisão indireta pretendida pela trabalhadora, por entender que houve rigor excessivo por parte da empregadora. "Não estamos diante de algo simples, como uma repreensão por uma conduta imprudente, mas sim um manifesto Assédio Moral Organizacional. Os funcionários são, através de tal técnica, levados aos limites de suas forças físicas e mentais, adequando-se assim ao teor do dispositivo normativo supra informado" , expressou-se o julgador, concluindo pela procedência do pedido de rescisão indireta do contrato de trabalho, com fundamento no artigo 483, b, da CLT.

Mas não foi só. O magistrado também não teve dúvidas de que a conduta da supervisora excedeu os limites da razoabilidade, seja através das ameaças verbalizadas de dispensa por justa causa, seja pelo isolamento imposto à teleatendente. Por essa razão, a empregadora foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais, arbitrada em R$8.000,00. A empresa recorreu dessa decisão, mas o recurso não foi conhecido, por deserto (falta do pagamento de custas ou de depósito recursal).

Fonte: TRT3

Indenização a empregado que foi demitido rápido demais divide especialistas





As anotações de contratação e desligamento na carteira de trabalho, se ocorrerem em um curto intervalo de tempo, podem prejudicar o trabalhador durante a busca por uma nova vaga e frustrar suas expectativas. Esse entendimento tem sido adotado por alguns magistrados em casos onde a demissão do funcionário ocorre logo após a contratação. Há episódios em que o fim do contrato de emprego ocorreu depois de dois dias de convivência.

Para o presidente da Comissão de Direito Processual do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, Euclydes José Marchi Mendonça, empregado e empregador podem rescindir o contrato a qualquer momento e sem justificativa. “Não há nenhuma lei que obrigue a empresa a contratar e manter aquela pessoa”, diz.

Segundo Mendonça, a decisão de contratar ou demitir envolve diversos aspectos e deve ser tomada após o devido planejamento. O representante da comissão da OAB detalha que, se uma demissão ocorre tão rápido, pode ter havido falta de aptidão para o trabalho por parte do empregado, ou até ausência de empatia entre as duas partes dessa relação. “Por mais que a empresa não seja um ser humano, ela é gerida por uma pessoa”, afirma.

Questionado sobre as condenações que as empresas sofreram por tal prática, o advogado considerou as decisões, apesar de pontuais, um pouco precipitadas. “Não acho que a empresa deva ser condenada porque o contrato foi rescindido [...] Eu tenho sentido algumas manifestações em decisões um pouco tendentes para um lado só (do trabalhador)”, opina.

O presidente da comissão disse também que o Judiciário deve sempre atuar em ocasiões mais contundentes, como o uso de trabalho escravo ou do trabalho do menor de idade. Mas, por outro lado, em casos que envolvam esse tipo de demissão, ele considera que houve interferência na livre iniciativa. “A Justiça não deve interferir excessivamente nas relações de trabalho. No momento que isso extrapola o limite do razoável, essa interferência deixa de ser legítima”, explica.

Deveres e direitos
Apesar de concordar que nossa legislação concede ao empregador o direito de demitir o funcionário sem razão aparente, o juiz titular da 18ª Vara do Trabalho de São Paulo, Paulo Sérgio Jakutis, afirma que esse possibilidade não pode "ultrapassar os limites". O excesso, diz ele, é o que diferencia uma prática ilegal de uma legal.

Justamente por causa dessa diferenciação, o juiz considera válida a presença da Justiça nas relações de trabalho. “O Judiciário tem que resolver esse conflito. Nenhum juiz pode recusar decidir o conflito que é apresentado a ele”, afirma.

O advogado especialista em Direito Cooperativo e relações do trabalhoÁlvaro Trevisioli tem uma opinião muito similar à do juiz. Segundo ele, uma das funções do Poder Judiciário é “dirimir controvérsias oriundas das relações do trabalho”.

Trevisioli também ressalta que essa situação atípica deve ser analisada individualmente, devido aos detalhes que cercam esses casos e podem influenciar na decisão do juiz. “Não é possível. Mesmo na área cível, não há um valor determinado para certas condutas. Você pode ter uma jurisprudência que vai se consolidando”, opina.

Paulo Jakutis considera, ainda, que essa presença do Judiciário serve para preencher uma lacuna deixada aberta desde 1988. Ele explica que o artigo 7º da Constituição Federal, que trata dos direitos trabalhistas, prevê em seu inciso I a criação de uma lei complementar para regulamentar a relação de emprego.

Essa norma nunca foi criada, fazendo com que a legislação sobre o tema trate apenas das compensações caso o fato ocorra, mas não evite esse tipo de conduta. “Acho que essa é uma das questões mais delicadas no Direito do Trabalho”, afirma o juiz.

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Brenno Grillo é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 6 de julho de 2015, 21h55

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...