quinta-feira, 18 de junho de 2015

Advogado pode ser contratado apenas por honorários sucumbenciais





Advogado pode ser contratado apenas pelos honorários de sucumbência, pois não há dispositivo legal que vede esse tipo de remuneração. Assim, 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho confirmou, por unanimidade, a validade de uma cláusula contratual que estipulava o pagamento a um advogado dessa forma. 

No caso, o advogado firmou contrato de prestação de serviços com o Banco do Brasil, mas uma cláusula do acordo estabelecia que a remuneração seria por meio de honorários sucumbenciais. Na ação, o profissional pedia a anulação da cláusula e que a Justiça do Trabalho fixasse os valores de pagamento.

Por sua vez, o Banco do Brasil sustentou que as condições contratuais estabelecidas eram legais e afirmou que o contrato espelha o exercício da livre contratualidade, conforme os princípios da boa-fé. O pedido do advogado foi concedido em primeira instância, mas a decisão foi reformada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (MT).

Em recurso ao TST, o advogado argumentou que assinou o contrato por necessidade, sem discutir nenhuma das cláusulas e que o pagamento dos honorários sucumbenciais não exclui o direito aos honorários advocatícios. Segundo ele, a sucumbência é devida independente do acordo com a parte contratante.

Para o ministro Lelio Bentes Corrêa, relator do agravo, a cláusula é válida, pois, mesmo o contrato sendo de risco (devido ao modo de remuneração), o advogado sabia dos termos do contrato. "Ainda assim, livremente concordou em assumir, em conjunto com o contratante, o risco pelo sucesso ou não nas demandas".

O ministro ressaltou ainda que, por ser advogado, o profissional tem conhecimento técnico para verificar se as condições oferecidas são vantajosas ou não. "Certamente o advogado vislumbrou no contrato, ainda que sem o pagamento de honorários contratuais, a possibilidade de retorno financeiro, uma vez que o Banco do Brasil, dado o seu porte e poderio econômico, litiga em uma infinidade de demandas", concluiu.

Segundo Corrêa, não houve violação aos artigos 22, 23 e 24, parágrafo 3º, daLei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) nem ao artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, como alegou o advogado. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.




Revista Consultor Jurídico, 17 de junho de 2015, 17h16

Em Habeas Data, Supremo garante a contribuinte direito a dados da Receita






O Habeas Data pode ser usado pelos contribuintes para ter acesso a dados sobre a arrecadação tributária estatal. Foi o que decidiu nesta quarta-feira (17/6), por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal.

A decisão foi proferida em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida. Fixou-se a seguinte tese: "Habeas data é a garantia constitucional adequada para obtenção, pelo cidadão, de dados concernentes ao pagamento de tributos constantes dos sistemas informatizados de apoio à arrecadação dos órgãos de arreia fazendária dos entes estatais".

O recurso foi apresentado por uma empresa que impetrou, na Justiça Federal em Santa Catarina, um Habeas Data para ter acesso a informações a seu respeito junto à Receita Federal. Ele pedia dados do Sistema de Conta Corrente de Pessoa Jurídica (Siconr), da Receita.

A decisão do tribunal de origem foi de que o Siconr é um "cadastro de uso privativo" do Fisco, "o que retira o enquadramento do direito invocado ao Habeas Data".

O Supremo seguiu o voto do ministro Luiz Fux, relator. Ele afirmou que o contribuinte tem direito de saber o que se encontra em bancos de dados públicos a seu respeito. De acordo com Fux, os sistemas de apoio à arrecadação usados pelas fazendas públicas não estão envolvidos pelo sigilo fiscal.

Este foi o primeiro caso em que o ministro Luiz Edson Fachin, empossado na última terça-feira (16/6), votou. O ministro Marco Aurélio, que nesta quarta foi homenageado por seus 25 anos de Supremo, ressaltou que este foi o primeiro Habeas Data que julgou em Plenário.


Amiga da corte
A Ordem dos Advogados do Brasil participou do caso como amicus curiae. Em memorial enviado aos ministros, a entidade afirmou que a Receita viola o direito constitucional de as pessoas terem acesso a dados de seu interesse ao disponibilizar apenas informações relativas a débitos tributários, mas não a eventuais créditos ou pagamentos feitos que não estejam alocados a débitos. O documento é assinado pelo presidente do Conselho Federal,Marcus Vinícius Furtado Coêlho, pelo procurador especial tributário da OAB, Luiz Gustavo Bichara, e pelo advogado Owaldo Pinheiro Ribeiro Júnior.



“Com efeito, é notório que diversos pagamentos efetuados pelos contribuintes ficam sem vinculação a um débito específico. É dizer: muito embora tenha havido o pagamento de um tributo, o mesmo não é processado no sistema, constando o débito em aberto ad aeternum, inclusive servindo de motivo para que seja negada a indispensável certidão negativa para os contribuintes”, diz o memorial.

De acordo com os advogados, é inadmissível que o Fisco e o Judiciário se recusem a fornecer informações sob a alegação de sigilo fiscal, uma vez que esse princípio não pode ser invocado contra dados do próprio contribuinte. E essa recusa acaba prejudicando-o, apontam:

“A demora da Receita Federal do Brasil em fazer a consolidação de pagamentos realizados nos programas de parcelamentos (Refis e suas reaberturas, Paes, Paex etc.) é outro grave exemplo que prejudica o contribuinte, na medida em que, enquanto não há consolidação, necessita com frequência da via judicial para obter sua Certidão Negativa de Débitos, assoberbando o Poder Judiciário, inobstante o fato de ter cumprido todos os requisitos da legislação tributária”.

Para fundamentar seu argumento, o Conselho Federal da Ordem destacou que a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2012) estabeleceu que os órgãos públicos devem observar a publicidade como preceito geral. A entidade também citou a recente decisão do Supremo que privilegiou o direito à informação ao liberar as biografias não autorizadas.

Quanto à via adequada para o contribuinte requerer acesso aos seus dados, os advogados apontaram o Habeas Data, instrumento que, de acordo com voto do ministro Celso de Mello, “envolve um dos aspectos mais expressivos da tutela jurídica dos direitos da personalidade”.

Clique aqui para ler o memorial.

RE 673.707

*Texto alterado às 23h do dia 17 de junho de 2015 para correção de informações

Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 17 de junho de 2015, 18h53

sexta-feira, 12 de junho de 2015

DEFESA DE INTERESSES "'Lava jato' é oportunidade para melhorar a prática do lobby no Brasil"







Ao divulgar relações ilegais entre empreiteiras e dirigentes da Petrobras, a operação "lava jato" contribuirá para tornar mais clara a defesa de interesses empresariais e para melhorar a imagem dos lobistas no Brasil. Essa é a opinião da presidente em exercício do Instituto de Relações Governamentais (Irelgov), Kelly Aguilar.

“É a oportunidade de dar destaque para o profissional de uma forma positiva e de mostrar que existe a defesa de interesses legítima e legal, e que ela é, sim, feita por muitas empresas de forma ética, transparente e com boas práticas. Eu vejo como mudança de paradigma total. Tem que mudar comportamentos, formas de se trabalhar no Congresso e em vários setores da sociedade”, afirma Kelly.

E esse é o objetivo do Irelgov. O instituto, que existe oficialmente desde março, foi criado para ser um think tank da atividade de relações governamentais, também conhecida como lobby. As duas principais missões da entidade são promover e debater estudos sobre a área e, principalmente, mostrar à sociedade como é o trabalho dos profissionais do ramo — e como ele é legítimo.

Esse último ponto visa a tornar os lobistas aptos a responder a frequente pergunta “O que você faz?”, diz a presidente do Irelgov. Mais do que isso, ela defende que o conhecimento irá melhorar a imagem da atividade, que atualmente não é bem-vista aos olhos da população. 

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Kelly – que é gerente de relações governamentais da empresa farmacêutica MSD – defendeu o financiamento privado de campanhas eleitorais, alegando que é apenas outra forma de as empresas defenderem seus interesses. Até porque “quanto mais se proíbe, mais brecha para caixa dois você abre”, argumenta.

A especialista em relações governamentais também explicou como é o dia a dia de um profissional da área, apontou o que alguém que pretende ingressar na área precisa saber e destacou que o lobby não precisa ser regulamentado no Brasil, uma vez que a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) já estabelece regras sobre o assunto.

Leia a entrevista:

ConJur — Como surgiu o Irelgov?
Kelly Aguilar — Foi depois do primeiro curso de relações governamentais que teve no Insper, em 2013. Antes disso, não tinha nada na área. Foi uma turma super unida, e, ao mesmo tempo, bem eclética, porque tinha desde os profissionais que realmente trabalhavam em relações governamentais até os curiosos, como jornalistas, cientistas políticos, alunos de graduação, desempregados que já tinham ouvido falar em relações governamentais e queriam entrar no ramo, entre outros. Eram professores o diretor de Relações Governamentais da Nike, Guilherme Athia, que hoje é o presidente afastado do Irelgov [por estar trabalhando do Brasil], o cientista político Carlos Melo, o pesquisador Sérgio Lazzarini. Foi um curso muito interessante. Mas algumas queixas sempre surgiam durante as aulas ou nos intervalos, como “a minha empresa não sabe o que eu faço” ou “eu tenho muita dificuldade em explicar para as pessoas o que eu faço” ou “eu não gosto de falar que eu faço lobby, porque eu não sinto que eu faço lobby”. Tinha também aquela coisa do preconceito, quando alguém entendia e torcia o nariz: “Então, você vai para Brasília, você fala com o Congresso?”. No final do curso, o Insper fez um coquetel, e dessa conversa surgiu o entendimento de que aquela reunião não poderia terminar ali. A gente começou a se reunir, e aí veio a ideia de fazer o instituto.

ConJur — Quais são os objetivos do Irelgov?
Kelly Aguilar — Basicamente, nós temos dois pilares: o da educação e o da reputação. Com isso, temos a intenção de divulgar o máximo possível o que é a profissão de relações governamentais, o que a gente faz, com quem a gente lida, como que é esse relacionamento, de que forma ele ocorre. Hoje [a área de relações governamentais] é um mito, é tão mito que varias empresas têm profissionais do ramo, mas se você for olhar, cada uma os classifica com um título diferente.

ConJur — A senhora acredita que há espaço para uma graduação de relações governamentais? Ou uma pós- graduação já seria suficiente?
Kelly Aguilar — Eu acho que tudo é muito novo para nós — a nossa Constituição é muito recente, o processo democrático é muito recente. Olobby no Brasil tem esse lado pejorativo, porque ele vem lá da época um pouco antes da ditadura militar (1964-1985), quando o Legislativo era super enfraquecido, e quem realmente fazia as leis era o Executivo. As coisas eram tendenciosas, direcionadas, havia favorecimento dos amigos de quem estava no poder. Depois, com a ditadura, a situação piorou. Agora que temos uma democracia, estamos assistindo a um fortalecimento do Congresso, que também está em fase de aprendizado. Os parlamentares também estão aprendendo a trabalhar nessa nova fase. Neste momento, um curso de graduação é demais. Poderíamos até montar um curso, mas um intensivo, de um ano. Eu indicaria mais uma pós-graduação, mas também não sei se uma de dois anos.

ConJur — Dos cursos de graduação existentes, qual prepara melhor para a área de relações governamentais? Que disciplinas um curso de relações governamentais deveria ter?
Kelly Aguilar — Dos de graduação, ainda é o de Direito, porque o estudante tem o entendimento de leis como a Lei Anticorrupção e entende decompliance. Um curso de relações governamentais teria que ter algumas matérias de Direito, como Direito Constitucional, Direito Civil, técnicas de negociação e relações internacionais. Os assuntos regulatórios são super complicados, temos novas leis regulatórias e tributárias a cada dia. E teria uma matéria especifica de Congresso, dos regimentos internos, como funcionam o Senado e a Câmara, como funcionam as comissões, por que é daquele jeito, por que são escolhidas aquelas pessoas, como elas são escolhidas, qual a importância, por que os presidentes da Câmara e do Senado são tão importantes, por que são eles que sentam com a presidente da República quando a coisa emperra, por que os lideres dos partidos são importantes. Essa parte política é fundamental. Vale a pessoa entender a responsabilidade que ela tem perante com quem ela está falando fora da empresa, sendo qualquer governo, instituição, mídia, porque é ela que está representando a empresa e passando a imagem para fora. Se não tiver comunicação junto não dá. Depende do mercado, mas o trabalho básico de relações governamentais é levar informação, contribuir com uma política pública.

ConJur — Como é a atividade prática de um profissional de relações governamentais? As empresas chegam à conclusão de que há uma regulação que precisa ser melhorada e elaboram projetos de lei que depois encaminham aos parlamentares? Ou apenas levam argumentos e sugestões aos políticos?
Kelly Aguilar — É tudo isso junto, mas depende muito do mercado. Há algumas características que são intrínsecas a determinados mercados. No ramo do tabaco, temos no Brasil basicamente duas empresas altamente reguladas. Elas não podem fazer propaganda, têm que publicar fotos de doenças causadas pelo cigarro, não podem ter a marca nas embalagens, que devem ser genéricas. Por isso, é dificílimo trabalhar nesse setor. Imagina ser relações governamentais de uma empresa dessas? Você chega lá no Congresso e fala: “Deputado, preciso da sua ajuda porque a Agência Nacional de Vigilância Sanitária está querendo tirar a marca da embalagem”. Qual deputado ou senador vai querer por a cara dele para bater e falar que vai defender o cigarro? Nenhum. É muito difícil isso, exige muita criatividade desse profissional. Eu conheci um relações governamentais de uma dessas empresas. Ele estava sempre lá no corredor da Câmara ou do Senado, e só levava pancada, ninguém queria falar com ele. Um dia eu falei para ele: “Às vezes eu fico até com dó, porque eu sempre achei que trabalhar com medicamentos era muito difícil, mas com tabaco é muito pior, pois, pelo menos, medicamentos tiram dores, salvam vidas, proporcionam qualidade de vida, fazem as pessoas viverem melhor. Já vocês não têm nem argumento, só é coisa ruim”. Ao que ele respondeu: “Não é não. A gente recolhe tanto e tanto de imposto. Trabalhamos com não sei quantas famílias que plantam o tabaco”. Ele começou a elencar uma série de outros fatores interessantes. Mas é lógico, toda hora que passava um deputado ou senador no corredor, falava “Cigarro mata”. Ele era criativo, respondia: “Mata, deputado, mas é a escolha de cada um, ninguém é obrigado a fumar”. Depende muito do mercado.

ConJur — Como é no mercado da saúde?
Kelly Aguilar — A indústria vai por onde os dados estatísticos mostram. Surge a pergunta: “O que mata mais?”. A partir da resposta, todo mundo vai querer fazer uma droga para aquela patologia. Para ganhar mais dinheiro, faz parte, mas mais de um terço dos funcionários da industria é de médicos e pesquisadores. Eles querem a cura, vão com o espírito de médico, não com o espírito de vendedores. Os especialistas fazem um plano estratégico para desenvolver medicamentos necessários ao país. Depois disso, vamos vai estudar o caso. Existem várias formas de trabalhar. Podemos trabalhar com projetos de lei que já existem, assim fazemos pesquisas, procurando saber o andamento da medida, quem está à frente dela, falando com pessoas da área, afinal, há diversos deputados e senadores que são advogados ou médicos. Um parlamentar da saúde te entende melhor porque, geralmente, ele já foi secretário de Saúde da cidade dele, entende muito de vigilância sanitária, de doenças tropicais, de saneamento.

Mas tem projeto de lei que é ruim, e aí vamos ao deputado falando: “Arquiva isso, vamos fazer um novo”. Ajudamos e fazer um [projeto] mais atual e trabalhamos para ser aprovado. E nisso tem todo aquele conhecimento para o texto passar nas comissões. O fundamental nessa história é que todos ganhem. Quando se está fazendo esse trabalho, o que é preciso ter na cabeça é que todos vão ganhar com o seu trabalho: você, sua empresa, o governo, porque vai ter os índices de saúde melhorados, o político, porque ele leva aquilo para o palanque dele.

ConJur — Como são identificadas as normas que uma empresa ou setor deseja que sejam alteradas, revogadas ou criadas? Há um grupo que analisa as leis do setor e vê o que se aplica e o que não mais se aplica?
Kelly Aguilar — Não precisa disso, porque quase todo dia tem uma lei nova. Então, é impacto todo dia. Por exemplo, há leis que acabam encarecendo mais um produto. Os medicamentos são uns dos poucos produtos que têm o preço controlado. Todo mundo fala: “Medicamento é caro”. Se quiser reclamar, fale com o governo, porque é ele que dá o preço, não a empresa. A maioria não sabe disso, acha que todo mundo tem o preço livre. Então vem uma tributação sobre o princípio ativo do medicamento ou eles decidem que a caixinha tem que ser maior, que tem que ter a bula, que tem que conter letras maiores, que tem que ter código braile, aí o impacto é gigantesco. O que precisamos fazer? Pegar todo o material e ir para Brasília falar com aquele deputado ou senador que está cuidando do assunto. Aí é preciso explicar a questão para ele, falar: “Hoje a fabricação é toda globalizada. O senhor tem ideia de que mudar o tamanho da caixinha impacta a produção no mundo inteiro? Vai ter um custo gigantesco, e eu não posso nem repassar aos consumidores, porque a lei não permite”. Às vezes, eles não sabem disso, fazem a lei com boa vontade, porque vem lá o pessoal da cidade deles e fala: “Sou aposentado, o remédio está muito caro”, “eu não enxergo mais, as letrinhas são pequenas”, ou “tem um cego que tomou laxante achando que era outro medicamento”. Então, nessas ocasiões, a gente tem que ir lá e levar informação, explicar a situação, convidá-lo para conhecer a fábrica e mostrar para ele que mesmo um projeto de lei que veio com a melhor das vontades não faz sentido.

ConJur — Então, em geral, o trabalho é baseado em novas leis. Mas há também o trabalho de revisar normas antigas do setor?
Kelly Aguilar — Só quando há um impacto direito. Mas às vezes acontece alguma coisa, você vai olhar e a legislação antiga nunca foi atualizada e já não cabe para aquilo. Por exemplo, agora estão debatendo a biodiversidade. A Lei de Propriedade Industrial é de 1996 e prevê que não pode extrair nem pesquisar plantas. O que o Brasil mais tem? Qual a nossa maior diversidade? Onde a gente poderia estar avançadíssimo, pesquisando? Mas não pode. Então, o que acontece? Roubam. Porque alguém vai fazer. Aí vêm estrangeiros para cá e levam [as plantas] embora. É preciso trabalhar na atualização dessa lei. Tem que dar acesso [às pesquisas]. Os defensores da lei dizem que, sem a proibição, as florestas irão acabar. Mas as madeireiras estão acabando com as florestas muito mais rápido do que se pesquisadores estivessem fazendo seus estudos com responsabilidade.

ConJur — Nos Estados Unidos, o lobby é regulamentado. Lá, os lobistas têm que ser registrados no Congresso e no Executivo, é preciso especificar quem os contratou e onde vão atuar. Além disso, esses profissionais têm obrigação de prestar contas dos valores recebidos a cada três meses. O descumprimento disso pode gerar multa e até prisão. Existe ainda um limite de US$ 250 dólares para os presentes que os lobistas podem dar a governantes e parlamentares. A senhora acha que é preciso regulamentar a profissão no Brasil? Se sim, a regulamentação deve seguir esse modelo dos Estados Unidos?
Kelly Aguilar — O Irelgov não trabalha com essa pauta, e eu, pessoalmente, concordo com o instituto, especialmente por causa da Lei Anticorrupção, que deixou claro o que os lobistas podem e não podem fazer. Para nós, de empresas de capital estrangeiro, está mais claro ainda, porque seguimos o Foreign Corrupt Practices Act [lei norte-americana que disciplina a atuação de empresas em países estrangeiros], que é mais restritivo ainda. Ou seja, para nós, o limite de presentes não é de US$ 250, mas de R$ 100 — e isso se autorizarem. Eu não vejo necessidade de eu estar regulamentada, para chegar lá no Congresso, ter um crachá e dizer: “Olha, eu sou relações governamentais...”, porque hoje, quando eu entro lá, eles já me conhecem, sabem quem eu sou, de qual indústria, o que estou fazendo lá, com quem eu trabalho. Quanto a prestar contas, eu já tenho que fazer isso para minha empresa, que promove auditoria mensalmente. Além disso, eu já sou proibida de fazer um monte de coisas, algo talvez mais restritivo que nos Estados Unidos. Temos um trabalho diário de saber o que cada um está fazendo, com quem, é tudo monitorado, temos um departamento decompliance, tem o jurídico. Então, eu não vejo essa necessidade. Antes disso vem essa parte que o Irelgov se propõe, que é primeiro educar e divulgar o que é a relação e municiar esses profissionais de mais ferramentas para trabalharem de forma ética e transparente. Mais para a frente, vai voltar de novo essa pauta e aí, já mais maduros, mais certos do que estamos fazendo, talvez valha a pena regulamentar a profissão. Hoje, isso não é uma prioridade, e não vai solucionar os problemas, melhorar o Congresso, deixar tudo limpo e transparente.

ConJur — No Congresso, há pelo menos dois projetos de lei para regulamentar a profissão de lobista. Um é o do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que é um pouco mais amplo e parecido com o norte-americano, traz uma definição legal de lobistas, estabelece prestação de contas, cadastro dos profissionais perante os órgãos públicos e proibição total dos presentes a políticos e governantes. O outro é o do ex-deputado Mendes Ribeiro (PMDB-RS), morto em março, que é mais genérico e regula a atuação dos lobistas apenas no âmbito da Câmara. Ambos os projetos já estão há bastante tempo no Congresso — o do Mendes Ribeiro foi apresentado em 2001, e o do Zarattini em 2007. Por que não ocorreu a regulamentação até hoje? A senhora acredita seria possível no momento aprovar a regulamentação dolobby? Há clima no Congresso para isso?
Kelly Aguilar — De jeito nenhum. Hoje não tem clima para nada lá dentro. Como na indústria do tabaco, também é difícil você defender a regulamentação da profissão [de relações governamentais]. Por quê? As pessoas entendem lobby de uma forma ruim. Enquanto a sociedade e a mídia não tiverem mais informações sobre o que é o ramo de relações governamentais, eu acho muito difícil um político levantar a bandeira e levar o projeto adiante. Eles até tentaram. Veja se andou. Por quê? Não é bom para a imagem. Político quer voto. Ele já está pensando na próxima eleição. Os adversários vão colocar na propaganda que ele estava defendendo lobby. Todo mundo tem uma forma errada de enxergar lobby. Por isso é importante primeiro formar, educar, ensinar, e quando tiver esse tema muito bem clareado, estipulado — eu espero que tenha várias consequências da operação "lava jato" —, e as pessoas começarem a entender a diferença que o trabalho daquele profissional faz na sua vida diária, aí, sim, vale a pena trazer isso de volta e tentar regulamentar. Esse projeto que é mais restritivo, do Zarattini, é totalmente errado, porque onde há proibição, as pessoas vão achar uma forma de fazer alguma coisa. Então, você acaba proibindo de um lado e vai ter gente que vai ter as mais criativas soluções para o que se pode fazer ali, o que a lei não proíbe ela permite, então eles vão e fazem. Tem que ser uma coisa mais conversada, tem que trazer para audiência pública, ser mais debatido, explicar, aula, informar, sair em jornal, revista, para depois começar a distribuir um projeto mais novo, baseado na Lei Anticorrupção, porque esses dois já caíram por terra do jeito que estão.

ConJur — Como o lobby se diferencia do tráfico de influência? O que separa o legal do ilegal, o legitimo do ilegítimo nessa atividade?
Kelly Aguilar — Basicamente, é o poder que você tem e o uso que você faz dele. Nesse poder de influência, há diversas formas de práticas: aquele que corrompe, aquele que aceita ser corrompido, aquele que pede, aquele que não aceita pagar ... Tem de todo tipo. O lobby, basicamente, é defesa de interesses. E a defesa de interesses é algo legítimo, legal, e que é feito em qualquer lugar: dentro de casa, em família, com os filhos, com os amigos, você vai defender seus interesses.

O cidadão vota, paga imposto, por que também não tem o direito de influenciar ou de defender os seus interesses, sejam eles pessoais, do bairro, do prédio ou da empresa? Isso é totalmente legitimo, não tem nenhum problema, cada um defende o seu interesse. Agora, quando se parte para influenciar por poder, não é legal. Acaba no tráfico de influência, é tudo errado desde o inicio, já não tem o foco do social. Temos que fazer relações governamentais onde todos ganham. Porém, no tráfico de influência, não são todos que ganham, tem duas partes que estão ganhando, e o resto está perdendo. Isso eu não chamo de lobby, é trafico de influência, porque ele não tem nenhum interesse com a saúde, com o social, com a consequência, ele está ali preocupado com os interesses dele, o ganha-ganha dele, da empresa, e ali são dois, o resto não existe.

ConJur — Uma empresa que faz doação de campanha para um político dentro das regras previstas em lei ela está fazendo lobby?
Kelly Aguilar — Ela está defendendo interesse também. De novo, é permitido por lei? É. Posso fazer? Posso. Tem limite? Tem. Vai ser publicado, vai estar lá no site do Tribunal Superior Eleitoral, todo mundo vê, todo mundo sabe para quem eu doei. Quer dizer que aquele deputado vai fazer tudo que eu pedir? De novo, depende da relação que você tem com aquela pessoa, com aquele partido, depende muito da sua conduta. Eu posso doar para ele, mas também para a oposição. A maioria no Brasil faz isso, doa para todo mundo porque tem certeza que em algum lugar ele vai conseguir alguma coisa. O raciocínio é diferente, porque a forma de trabalhar é errada. As pessoas não podem pensar: “Porque eu dei eu tenho que receber”. Não é exatamente assim. Eu dei, se a agenda bater, ótimo. Tem que ter um mínimo de coerência nisso. Eu defendo as doações, sou totalmente a favor. De novo, quanto mais se proíbe, mais brecha para caixa dois abre. Todo ano a campanha fica mais cara no Brasil. De onde eles vão tirar esse dinheiro? Eu conheço deputado falido, que não tem casa, vendeu casa, vendeu carro, vive na casa da sogra, porque teve que pagar [a campanha], porque o partido não tem dinheiro para todo mundo, porque não conseguiu recolher das empresas tudo que precisava. E ele nem se elegeu, só faliu.

ConJur — Mas muitos afirmam que o financiamento privado de campanhas é uma das maiores fontes de corrupção no Brasil. O ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa afirmou em março que as doações para políticos não passam de empréstimos que cobrados a juros altos de quem recebeu o dinheiro para se eleger. O que a senhora pensa disso?
Kelly Aguilar — Depende da forma como eles estipularam o negócio. De novo, se as regras são claras desde o inicio, se você sabe quem são as empresas que doam, pra quem elas doam e quanto, e se discriminam de forma clara e transparente como é utilizado esse dinheiro, eu não vejo problema nenhum. Ali não era esse o caso. Eles usavam dinheiro de campanha, montavam caixa dois, e aí faziam o diabo com tudo isso. E montavam aquelas empresas fantasmas, laranja e tal. Não pode ser só fazer e deixar. Tem que auditar o partido, tem que auditar as contas de todo mundo.

ConJur — O que a senhora acha que é mais eficaz para uma empresa defender seus interesses e atingir resultados satisfatórios: contratar lobistas ou financiar um grupo de parlamentares?
Kelly Aguilar — Mais eficaz é a empresa ter um funcionário de relações governamentais bem treinado, que entenda a corporação, seus negócios, o país e suas regras do país, e que entenda o que ele está fazendo lá. Eu sou totalmente contra esse negócio de pagar deputado para fazer o que eu quero. Isso é coisa do passado, muito colonialista — se bem que o Brasil não deixou de ser uma colônia. Temos que avançar, dar um passo à frente, não podemos continuar com práticas que não fazem parte do século XXI. Enquanto não tiver reforma política, a gente não sai disso. Ficar dependendo de contratar escritório de lobista para ir lá fazer o quê? Eu contrato um lobista, pago uma fortuna, ele não sabe o que eu faço. Aí ele vem aqui, fica uma ou duas horas com isso, fala: “A lei é essa, meu impacto é esse, vai lá tentar resolver”. Ele vai lá, vai tentar resolver sei lá como e ele vai falar em nome da minha empresa, vai levar a imagem da minha empresa lá, eu não sei como é que ele vai falar, não sei que forma ele vai dizer alguma coisa, não sei se ele vai dar brecha para um político entender que possa haver uma situação. Eu não posso delegar uma função tão sensível para uma pessoa que eu não sei se vai entender o que eu faço. Ele tem que estar bem preparado, tem que ser da empresa, tem que estar no contexto para entender a responsabilidade que tem no convencimento, com informações verídicas, com fatos. Uma vez que você fala uma mentira, nunca mais acreditam em você.

ConJur — A senhora acha que a operação "lava jato" prejudicou a imagem dos lobistas no país? Ela vai dificultar a atuação desses profissionais?
Kelly Aguilar — Ao contrário, eu vejo como uma oportunidade, porque, coincidentemente, veio tudo junto: a criação do Irelgov, a Lei Anticorrupção, já estava tendo o julgamento do mensalão [Ação Penal 470]. Agora vem a operação lava jato, vem o juiz Sergio Moro, vem as delações premiadas, eu acho que só chama atenção para uma coisa positiva. Eu vejo oportunidade porque os que atuavam nesses esquemas vão pensar “Agora a coisa está pegando sério. Eu trabalhava dessa forma, mas não posso mais trabalhar assim, a não ser que eu queira me arriscar ir para cadeia, que meu chefe também vá, que eu passe vergonha depois, porque eu sou presa, depois como encaro minha família, como eu vejo meus amigos?”. Eu tenho amigos que trabalham em empresas investigadas [na operação "lava jato"] que estão com vergonha de falar onde eles trabalham. Imagina se você é envolvido em um nível maior, como que você vai trabalhar? Mas tudo isso só vem ajudar. É a oportunidade de dar destaque para o profissional de uma forma positiva e de mostrar que existe a defesa de interesses legítima e legal, e que ela é, sim, feita por muitas empresas de forma ética, transparente e com boas práticas. É isso que a gente vai defender, essa é a nossa pauta no Irelgov. Eu vejo como mudança, é mudança de paradigma total, tem que mudar comportamentos, mudar formas de se trabalhar o Congresso, mudar formas de se trabalhar em vários setores da sociedade.

ConJur — No Congresso, há bancadas que defendem os mais diversos interesses setoriais, como as dos ruralistas, dos evangélicos, dos bancos, de armas. O que eles fazem parece muito com o lobby. Isso é legal e legítimo?
Kelly Aguilar — Tudo é lobby. Ninguém está lá [no Congresso] para visitar ninguém, ninguém está lá porque quer passear, está todo mundo lá defendendo um interesse. Se você quiser um sinônimo para lobby, defesa de interesse, está todo mundo defendendo seu interesse, está todo mundo defendendo seu mercado, está todo mundo defendendo seu ganha-pão. A bancada ruralista está defendendo a agroindústria, é a maior bancada no Congresso, a que tem mais poder, e representa o maior setor de exportação do Brasil. Então, vale muito [defender esses interesses], e aí você não está discutindo só os seus interesses, tem interesses do Brasil, tem a balança comercial, tem que exportar, você tem que alimentar aqui dentro, tem um monte de gente passando fome lá fora porque não tem as condições do Brasil de plantar, você tem que ser um exportador. Como que eu penso os próximos anos com a população aumentando em outros países que não têm condições de plantar como nós temos? Onde a China tem terreno para plantar? Ali é tudo árido, o pouco que tem planta arroz. Como você pode ajudar a alimentar? Tem que pensar além. Lá fora, todo mundo defende interesses muito mais que nós. Por exemplo, a água. O Brasil tem o maior território de água doce. Quando faltar água lá fora, por diversos motivos, ou quando a maioria for só água salgada, onde a água vai ser mais cara? A água cara vai ser cara aqui. Então, você tem que pensar tudo em longo prazo. Você usa um monte de água para o gado, você tem que plantar para o gado comer, você tem que plantar para gente comer, essas questões tem que ser trabalhadas todo dia. Arma é um dos bens mais comercializados no mundo. Se o dado continua atualizado, a arma é o que mais se vende no mundo. Como não vai ter alguém lá defendendo o interesse de arma? Então, tem todo um jogo ali, um depende do outro. Não pense que lá dentro do Congresso só tem brasileiro, tem gente de tudo quanto é país, porque todo mundo tem interesse com todo mundo. E cada vez mais, porque o mundo é globalizado, cada vez mais a gente vai precisar do outro. No fim, a gente está pensando na nossa sobrevivência, em como vamos estar daqui a 20 ou 40 anos. A gente tem que pensar em tudo isso. As decisões são cada vez mais complexas, cada vez mais difíceis. Se você não tiver essa visão de médio ou longo prazo e não começar a trabalhar agora, terá prejuízos no futuro. E para evitar isso, tem que trabalhar lá [no Congresso], porque lá que são tomadas as decisões. Começa nas cidades, tem um pouco [de defesa de interesses] nas Câmaras dos Vereadores, um pouco mais nas Assembleias Legislativas, em alguns estados mais que outros. Mas você tem que pensar que em todo lugar tem alguém genuinamente defendendo seu interesse. 


Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2015, 8h59

Empresa só pode ser declarada inidônea se puder produzir prova no processo


Processos administrativos só podem gerar sanções quando a parte acusada tem direito a produzir provas. Assim entendeu o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ao suspender ato da Controladoria-Geral da União que declarou uma empresa inidônea.

A construtora Delta foi proibida de licitar e contratar com a Administração Pública depois de ser alvo da operação mão dupla, que apontou irregularidades envolvendo recursos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) no Ceará. Em 2010, a Polícia Federal apurou que servidores da autarquia desviaram verbas junto com empregados de empresas contratadas para fazer obras.

A Delta disse que a CGU usou apenas “prova emprestada” no processo administrativo, como transcrição de conversas telefônicas interceptadas e de documentos apreendidos pela PF, ou produzida unilateralmente pela Controladoria-Geral, por meio de relatórios elaborados com base em processos administrativos nos quais a construtora não figurou como parte.

Em análise preliminar, o ministro relator considerou plausível a alegação da empresa de que a CGU violou os princípios do contraditório e da ampla defesa ao impedir que a Delta produzisse provas.

Para Gilmar Mendes, ficaram demonstrados os dois requisitos para a concessão de liminar: a plausibilidade jurídica do pedido e o perigo da demora, pois a empresa já está há mais de dois anos suportando os efeitos da punição imposta pela CGU. A decisão vale até a decisão de mérito no processo.

Perícia questionada
A construtora, entretanto, teve um revés no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, onde queria derrubar a criptografia de um HD externo apreendido em sua sede. Como a análise do material foi feita por meio de cooperação técnica com os Estados Unidos, a empresa alegou que o trabalho foi ilegal, por ter sido delegado a peritos não oficiais.

O Ministério Público Federal respondeu que a cooperação segue acordo bilateral assinado entre Brasil e Estados Unidos (Decreto 3.810/2001). A corte rejeitou então o Mandado de Segurança, concluindo que a criptografia dos dados cumpriu os termos do acordo e que a perícia só será feita no Brasil.

A Delta também ficou conhecida por ser citada na operação monte carlo, que investigou o empresário Carlinhos Cachoeira. Com a medida, a empresa acabou entrando em recuperação judicial. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF e da Procuradoria Regional da República da 2ª Região.

Processo no STF: RMS 33.526



Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2015, 21h48

Justiça do Trabalho condena Bradesco por obrigar empregados a transportar valores sem escolta



A Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho não conheceu de recurso do Bradesco contra condenação ao pagamento de indenização de R$ 500 mil a título de indenização por danos morais coletivos por exigir que seus empregados do setor administrativo transportassem valores sem escolta. Segundo a Turma, o valor tem caráter pedagógico e não é exorbitante perante a condição econômica da instituição financeira.

A condenação se deu em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) a partir de sentença condenatória encaminhada pela Vara do Trabalho de Colíder (MT), que reconhecia a prática do banco de utilizar empregados de funções burocráticas ou administrativas (caixas, escriturários, chefes de conta, etc.) para o transporte de valores. Em novembro de 2007, o MPT chegou a se reunir com representantes do Bradesco nos municípios de Colíder e Peixoto de Azevedo (MT). Eles admitiram a prática, mas a empresa recusou proposta de assinatura de termo de ajustamento de conduta (TAC).

Na ação civil pública, o MPT observou que a prática "se perpetua em diferentes partes do Estado", e nem as condenações em ações individuais em montantes expressivos (uma delas de mais de R$ 119 mil), foram suficientes para desestimular a conduta do Banco.

Em sua defesa, o Bradesco argumentou que valores até 7.000 UFIRs (aproximadamente R$ 10 mil na época) podem ser transportados por empregados não treinados especificamente para essa função, conforme a Lei 7.102/83. No entanto, segundo o juiz de origem, a lei não dispensa a presença do vigilante no transporte de valores. "A única omissão que se vislumbra é quanto ao tipo de veículo a ser utilizado", enfatizou, ao condenar a instituição financeira a pagar R$ 500 mil para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), mais multa de R$ 100 mil para cada transporte feito de forma ilegal. A decisão foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região.

Em recurso de revista, o Bradesco questionou a condenação alegando, entre outros pontos, que possuis contratos de prestação de serviços de segurança e que teria sido obrigado a cumprir obrigação não prevista na Lei 7.102/1983.

No entanto, o relator do caso, ministro José Roberto Freire Pimenta, ressaltou que o Regional esclareceu que a existência do contrato não afastava o dever de indenizar, uma vez que as testemunhas ouvidas comprovaram o transporte sem escolta. "O fato de haver empresa contratada não leva à conclusão de que o banco sempre a utilizou e nunca exigiu de seus empregados a realização da atividade", afirmou, lembrando que o exame da matéria pelo TST exigiria o revolvimento de fatos e provas, procedimento vedado pela Súmula 126 do TST.

Quanto ao valor da indenização, o relator avaliou que a condição econômica do Bradesco e o caráter pedagógico da pena tornam razoável e proporcional a condenação fixada pela instância ordinária. "Esse valor compensa adequadamente o dano moral sofrido pela coletividade", concluiu.

A decisão foi unânime.

(Paula Andrade/CF)


Fonte: TST

Indenização por litigância de má-fé não exige prova de prejuízo à parte contrária


A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acabou com a controvérsia relativa ao pagamento de indenização decorrente da litigância de má-fé, prevista no artigo 18, capute parágrafo 2º, do Código de Processo Civil (CPC). Em julgamento de embargos de divergência relatados pelo ministro Luis Felipe Salomão, o colegiado concluiu que essa indenização não exige verificação de prejuízo efetivamente causado pela parte com a conduta lesiva praticada no âmbito do processo.

Com base na doutrina e em precedentes, Salomão analisou a evolução legislativa e as mudanças que o tema vem experimentando desde o CPC de 1939 até o novo código (Lei 13.105/15), que entrará em vigor no próximo ano. No novo CPC, a litigância de má-fé é regulada na seção que trata da responsabilidade das partes por dano processual. A conclusão do ministro é que, para a fixação da indenização, a lei só exige que haja um prejuízo potencial ou presumido.

O relator reconheceu que há precedentes no STJ que exigem a comprovação do prejuízo efetivamente causado à parte contrária, enquanto outros julgados afirmam não ser necessária tal comprovação.

“Tenho que o preenchimento das condutas descritas no artigo 17 do CPC, que define os contornos fáticos da litigância de má-fé, é causa suficiente para a configuração do prejuízo à parte contrária e ao andamento processual do feito”, consignou o ministro em seu voto, ressaltando que a exigência de comprovação do prejuízo praticamente impossibilitaria a aplicação da norma e comprometeria sua eficácia, por se tratar de prova extremamente difícil de ser produzida pela parte que se sentir atingida pelo dano processual.

Deslealdade processual

Para Luis Felipe Salomão, após recente julgamento realizado pela Corte Especial pelo rito do recurso repetitivo, ficou incontroverso no âmbito do STJ que a indenização prevista no artigo 18 do CPC tem caráter reparatório e decorre de um ato ilícito processual.

De acordo com o ministro, o dispositivo legal em discussão contém elemento punitivo em relação à deslealdade processual e também reparatório, ao prever a indenização à parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu. 

Em seu voto, o ministro ressaltou que a tese quanto à necessidade de comprovação do prejuízo causado muitas vezes impossibilita que o próprio juiz possa decretar de ofício (sem pedido da parte) a litigância de má-fé, já que o prejuízo nem sempre está efetivamente comprovado nos autos.

Divergência

Os embargos de divergência foram interpostos por uma empresa contra acórdão da Terceira Turma do STJ (REsp 1.133.262) relatado pelo ministro Sidnei Beneti, que entendeu pela necessidade de prévia comprovação do prejuízo supostamente causado por comportamento processual malicioso da outra parte. 

A empresa sustentou que o artigo 18 do CPC não exige prova porque a sua finalidade com a imposição do dever de indenizar não é reparar eventual dano, mas sim punir a parte litigante de má-fé para que ela não repita a conduta.

O relator dos embargos entendeu que a intenção de opor resistência injustificada ao andamento do processo ficou bem caracterizada no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo e por isso deu provimento aos embargos para reformar a decisão da Terceira Turma e restabelecer a indenização fixada pela corte capixaba.

Fonte: STJ

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Resenha do filme "O Capital"



“O Capital ” (Le Capital),
de Constantin Costa-Gavras
(2011)




Eixo Temático

A partir da crise estrutural do capital em meados da década de 1970 desenvolveu-se um complexo reestruturativo do capitalismo mundial caracterizado pelas politicas neoliberais que impulsionam o desenvolvimento da financeirização da riqueza capitalista. No bojo do capitalismo dourado do pos-guerra constituiram contradições orgânicas na dinâmica do capital que, com a grande crise da década de 1970, iriam contribuir para a afirmação do capital financeiro como fração predominante do capitalismo global. A hipertrofia do capital ficticio levou a constituição do capitalismo das bolhas financeiras, cuja dinâmica de acumulação volátil e instável imprimiu sua marca na conjuntura do sistema mundial do capital nos "trinta anos perversos" (1980-2010). Com o capitalismo predominantemente financeirizado o dinheiro afirmou-se como capital-dinheiro, expondo o capital em geral em sua face mais fetichizada. Ao debilitar o poder de barganha do trabalho, o capital-dinheiro como capital ficticio fez o mundo a sua imagem e semelhança, abrindo um temporalidade histórica de barbarie social caracterizada, por um lado, pela crise e irracionalidade social, e por outro lado, por uma intensa concorrencia entre as frações internas do capital pelo dominio do globo.

Temas-chave: crise e capitalismo global; neoliberalismo e financeirização da riqueza capitalista; capital financeiro e barbarie social.

Filmes relacionados: "Wall-Street - Poder e Cobiça"/"Wall Street - O dinheiro nunca dorme" de Oliver Stone; "Margin Call", de ; "A Grande Virada" de ;






Constantin Costa-Gavras é o cineasta do poder. Nos filmes de Costa-Gavras, o problema do poder do capital se coloca de maneira incisiva e obsessiva, seja como poder político, como nos filmes “Z” (1968) – um clássico do cinema político, ou ainda “Estado do Sítio” (1970), “A confissão” (1972) ou mesmo “Amém” (2002); seja como poder econômico, com o seu mais recente filme: “O capital” (2012). Mas, a obsessão de Costa-Gavras em dissecar o poder o leva a tratar também do drama da proletariedade, como ocorreu, por exemplo, no filme “Éden à Oeste” (2009), que conta a história de Elias, um jovem imigrante que chega a Paris para tentar ganhar o pão nosso de cada dia. Deste modo, existe uma ligação umbilical entre poder (político ou econômico) e proletariedade, isto é, o drama social de homens e mulheres exploradas e espoliadas de sua humanidade pelo movimento do capital como metabolismo social estranhado. Portanto, por trás da sanha do poder do Estado político, com suas conspirações e ditaduras militares, existe o drama humano pressuposto das vitimas do poder do capital, como Charlie Horman em “O desaparecido” (1982), Sam Baily em “O Quarto Poder” (1997) ou mesmo Kurt Gerstein e Riccardo Fontana em “Amém” (2002). Na verdade, poder e riqueza contem em si, como pólo antitético, alienação e miséria humana. Poder/riqueza e alienação/miséria humana, dois pólos antitéticos, mas indissociáveis, no mundo social do capital, estão presentes na longa filmografia de Costa-Gavras.

Por outro lado, Costa-Gavras expõe homens obcecados pelo poder e, ao mesmo tempo, homens transtornados pela perda do poder. Por exemplo, no filme “O Corte” (2005), Bruno Davert é um executivo-chefe desempregado, homem de poder, que, ao cair em desgraça, demitido pela lógica reestruturativa do capital, decide matar seus concorrentes. O poder (e o sujeito do poder) é tão irracional e perverso, quanto lógico-racional. Bruno Davert é a própria expressão da razão instrumental que calcula com frieza e crueldade seus atos de barbárie. O poder, como o Mefistófeles do “Fausto” (de Goethe), escraviza docemente quem o possui. Mas não se trata de mera escravidão, mas sim, de gozo perverso. O homem burguês (como o Fausto de Goethe) é um homem fascinado pelo poder. Ele deseja (e goza) com o poder: o poder social estranhado (e fetichizado) que o desefetiva como ser humano-genérico. Na verdade, os pólos antitéticos (poder/riqueza-alienação/miséria humana) se confundem, pois a alienação do homem do seu poder social – mesmo que o poder social assuma a forma histórica de poder social estranhado do capital - o faz sentir-se alienado e miserável, caindo na loucura de resgatar o poder perdido por métodos cruéis e irracionais (como é o caso de Bruno Davert em “O Corte”). 

Talvez Costa-Gavras queira nos dizer que existe uma racionalidade perversa na barbárie social. Portanto, o cineasta franco-grego é o cineasta da modernidade tardia do capital em suas dimensões irremediavelmente contraditórias, sendo, por exemplo, da mesma estirpe de um Stanley Kubrick, embora o cineasta norte-americano tenha sido superior no plano da plasticidade estética. 

O filme “O Capital” (2012) não foge a regra da filmografia de Costa-Gavras. Ele expõe a anatomia do poder econômico-financeiro do capital. Produzido no clima da crise européia (2010-2011) com sua política de austeridade neoliberal em prol dos interesses do capital financeiro, Costa-Gavras retratou no filme as intrigas do mundo das finanças globais. O banqueiro Marc Tourneuil, escritor e executivo financeiro do banco mais poderoso da Europa (o Phenix, com cerca de 100.407 funcionários em 49 países). Marc Tourneuil ascende à presidência do banco quando seu titular (Jack Marmende) adoece devido a um câncer de testículo. 

Logo no começo do filme, Costa-Gavras nos brinda com figuras metafóricas que permeiam a narrativa do filme. Primeiro, a cena inicial de Jack Marmande jogando golfe. A câmera focaliza o banqueiro arremessando, com uma tacada, a bola de golfe e logo a seguir cai paralisado no chão. A bola de golfe é a figura do mundo manipulado pelas personas do capital financeiro. Não é a toa que o filme começa com um jogo. Na verdade, a lógica do capitalismo-cassino, o capitalismo global predominantemente financeirizado. é a lógica do jogo.





O câncer nos testículos do presidente do banco Phenix é a própria metáfora da esterilidade do capitalismo global. A perda da virilidade do banqueiro é a metáfora da crise do provedor de riqueza fictícia, incapaz de realizar a reprodução hermafrodita da riqueza abstrata. Jack Marmande é o financista eunuco, que, com o câncer nos testículos, tornou-se literalmente incapaz de procriar. É o homem-metáfora da mundialização do capital nos seus limites derradeiros. Mas “O Capital”, de Costa-Gavras não é apenas um filme de homens estéreis, burgueses eunucos, guardiões do capital fictício; mas é também um filme sobre relações afetivas estéreis que nunca se consumam, pois falta às singularidades humanas a entrega de si. Por exemplo, Marc Tourneuil, o banqueiro todo-poderoso do Phenix, e a jovem Nassim, top model da high society endinheirada, têm uma relação afetiva estéril. A mulher-fetiche que seduz Marc Tourneuil, sempre lhe escapa, nunca se entregando sexualmente a ele. Ao mesmo tempo, Nassim espolia Marc Tourneuil, pedindo-lhe empréstimos milionários (apenas no final do filme, Marc Tourneuil consegue estuprá-la no interior de uma imensa limusine). Mas, outras metáforas permeiam o filme: o nome do mais poderoso banco europeu (Phenix) é a figura mitológica que renasce das cinzas. Renascer das cinzas é o que o sistema mundial do capital fictício tem feito nas últimas décadas de crises financeiras (1987, 1996, 2000 e 2008). No “trinta anos perversos” de capitalismo global, o capital financeiro sempre renasceu das cinzas provocadas pelo estouro das bolhas especulativas. Ao constituir-se como regime institucional internacional que lhe dá suporte, as finanças mundializadas criaram raízes na própria ordem sociometabolica do capital. Portanto, a financeirização da riqueza capitalista não é uma mera deformação da lógica da economia capitalista, como Keynes imaginou na década de 1930, capaz de extirpá-la por meio de políticas econômicas conduzidas pelo Estado nacional, mas sim, tornou-se traço crucial do próprio organismo metabólico da produção do capital nas condições de sua crise estrutural. 

O filme “O Capital”, de Costa-Gavras nos mostra a rápida ascensão de Marc Tourneuil, homens de letras e homem de confiança do banqueiro presidente do banco Phenix, que o considera “um homem jovem e talentoso, atributos que não são incompatíveis”. Ao ascender no circulo de poder das finanças, Marc Tourneuil torna-se alvo de intrigas palacianas dos membros do conselho administrativo sob o comando de De Suze, acionista majoritário, que aguarda o momento certo para destituí-lo. Mas Tourneuil, desde o começo, tem consciência das conspirações palacianas e contrata um investigador privado para acompanhar seus desafetos. 

Ele assume o cargo de presidente do Phenix disposto a lutar pelo poder, custe o que custar. Como jovem ambicioso no mundo das grandes finanças, Tourneuil possui um senso pragmático (e maquiavélico, no sentido pleno da palavra) na disputa pelo poder. Mas a posse do poder significa para Tourneuil, obter respeito. Num certo momento do filme, Diane, esposa de Marc, perguntou a ele: “O que você quer?”. Ele diz: “Dinheiro. Para ser respeitado”. Noutro momento, dialogando com a mulher observa: “Para você, o dinheiro é passado. Para mim, é o futuro. Menor o salário. Menor o respeito”. No mundo do capital, dinheiro é Poder. Dinheiro é Respeito. 




O filme de Costa-Gavras contém pérolas da filosofia do dinheiro como capital. Não se trata apenas do dinheiro como meio de circulação ou meio de pagamento, mas sim, dinheiro como capital, isto é, valor que se auto-valoriza. Existe uma mudança ontológica na forma de ser-dinheiro. Portanto, não se trata do mero dinheiro, mas sim do dinheiro como capital: dinheiro que faz mais dinheiro, dinheiro como capital fictício que assume as mais diversas formas de especulação: moedas, commodities, títulos públicos, ações, papéis e obras de arte. Um detalhe: no filme vemos a presença de obras de arte valiosas pintadas por Matisse e Modigliani nas salas luxuosas dos escritórios dos bancos e nos iates de luxos. Os objetos da arte clássica adquiriram valor de troca. Enfim, sob o capitalismo global financeirizado, o dinheiro como capital que se autovaloriza, desceu à Terra apropriando-se das objetivações supremas do espírito humano, convertendo-as em mero valor de troca sem lastro com o valor-trabalho. O capital-dinheiro é o fetiche em sua forma luminosa

Por outro lado, por trás das intriga palacianas do banco Phenix, temos as disputas entre frações do capital financeiro internacional (europeus versus norte-americanos, ou ainda, franceses versus alemães). As disputas territoriais que levaram governos a muitas guerras no passado, tornaram-se hoje disputas financeiras e comerciais por territórios intangíveis do poder financeiro global. Trata-se de uma disputa silenciosa e voraz nos bastidores dos circuitos financeiros globais, tão intransparente quanto a natureza do capital-dinheiro. 

O mais poderoso banco europeu (o Phenix) tornou-se alvo de ambição de um fundo especulativo norte-americano de espírito predador, que quer adquiri-lo para retirar-lhe a personalidade francesa (a França é o pais das regulamentações sociais que incomoda o capital especulativo-parasitário). Como diz Marc: “Gostam de Paris, mas não da França. Muitas leis sociais”. O fundo de investimentos norte-americano, acionista do Phenix, representado pelo mega-especulador Dittmar Rigule, quer torná-lo o maior banco do mundo, um banco de predadores com o espírito do “capitalismo de cowboy”, convertendo, deste modo, o Phenix num banco à la americano. De repente, Marc Tourneuil encontra-se no fogo cruzado destes interesses de poder do capital financeiro que aparece como o movimento dos múltiplos capitais disputando a hegemonia da ordem financeira internacional.

O jogo de poder do fundo especulativo norte-americano contra Marc Tourneuil é deveras sinuoso. Falsidade, desconfiança e hipocrisia são as marcas do capitalismo farsesco. Primeiro, os adversários de Marc Tourneuil buscam desprestigia-lo, obrigando-lhe a fazer um downsizing no Phenix; como diz o presidente do Phenix, um downsizing que não pareça corte de pessoal (sic). Eis a dimensão farsesca do capitalismo financeirizado. Ao obrigar Marc Tourneuil a fazer um corte de pessoal, seus desafetos queriam enfraquecê-lo politicamente, tornando-o vulnerável a ação dos especuladores. Mas Marc Tourneuil consegue driblá-los, adotando uma curiosa tática maoísta. Como sugeriu Diane, mulher de Marc Tourneuil, o comunista chinês Mao Tse-tung usou as bases para eliminar seus rivais. Finalmente, o presidente do Phenix tornou a operação de downsizing um sucesso de mercado. Deste modo, o tiro dos seus rivais saiu pela culatra. 

Por outro lado, o especulador Dittmar Rigule busca convencer Marc Tourneuil a comprar o banco Mitzuko, banco japonês falido, visando, deste modo, desvalorizar as ações do Phenix, levando o fundo especulativo norte-americano a adquirir o banco francês, demitindo Tourneil e empossando outro presidente. É a jogada decisiva da luta entre frações do capital financeiro (a fração norte-americana e a fração européia francesa). 

Na medida em que o capital financeiro se fortaleceu nas últimas décadas de capitalismo global, o sistema mundial do capital se auto-dilacera em contradições não-antagônicas internas de amplas proporções. Parafraseando Marx e Engels, poderíamos dizer que, ao criar o mundo à sua imagem e semelhança, o capital financeiro criou civilização em demasia, meios de subsistência em demasia, indústria em demasia, comércio em demasia, capital fictício em demasia. O mundo do capital tornou-se estreito demais para abranger toda a riqueza que criou. 




Portanto, no filme “O capital”, Costa-Gavras salientou a disputa entre frações européia e frações norte-americanas do capital financeiro. Estamos diante das lutas no interior do próprio capital financeiro que se auto-dilacera para concentrar-se cada vez mais. Por exemplo, sindicatos, por exemplo, não aparecem como protogonistas do filme. Como elemento antípoda antagônico ao capital, o trabalho organizado fragilizou-se pelo movimento do capitalismo global. Portanto, uma das dimensões da crise do capital é contraditoriamente, a fragilização de seu contraponto antagônico: o trabalho organizado hoje incapaz de constituir obstáculos à sanha devoradora do movimento do capital. Apenas num momento do filme, quando ocorre o downsizing, percebe-se a referencia aos sindicatos e governos, meros coadjuvantes do poder do capital no plano mundial. Num certo momento do filme, um desempregado aparece querendo falar com Tourneuil; mas ele afasta-se, embora no intimo, Marc Tourneuil queira fazer algo pelo miserável - ele fantasia um deposito na conta do desempregado. 

Deste modo, o jogo pesado no filme “O capital” ocorre entre posições no interior do próprio capital financeiro, deixando-se de lado as instituições de regulação do sistema – os sindicatos e governos subsumidos à lógica estrutural do Estado neoliberal. Eis o verdadeiro sintoma da crise estrutural do capital: o capital em geral sob a forma fictícia encontra seu limite ao destacar-se em demasia do trabalho organizado e dos governos nacionais, driblando o controle dos fluxos financeiros globais (como diz o diretor-executivo do Phenix em Londres, num diálogo com Marc Tourneiul, utiliza-se “robôs financeiros sem intervenção humana à margem da regulamentação” para driblar o controle dos fluxos financeiros globais). 

No mundo do capital, impõe-se a lei da selva. O thriller de Costa-Gavras é um jogo de intrigas na esfera do poder. São poucos os momentos em que Marc Tourneuil desce à Terra: ele se locomove em jatinhos ou mega limusines que o projetam noutra territorialidade social. O mundo social de Marc Tourneuil não é efetivamente o mundo dos homens. No filme, muitos contatos entre as pessoas ocorrem por meio de telas digitais, sendo tão virtuais quanto o próprio dinheiro. A presença da virtualidade no filme é freqüente. Por exemplo, nas comunicações à distancia e operações de negócios utilizando smarthopnes. As novas tecnologias digitais aparecem inclusive nos games que fascinam as crianças: o filho de Marc, que aparece apenas uma vez, jogando videogame, sendo obrigado pelo pai a falar inglês; ou ainda, as crianças na casa dos pais de Marc Tourneuil no interior da França, fascinadas diante dos gadgets eletrônicos presenteados pelo banqueiro. Enfim, telas digitais constituem cada vez mais a sociabilidade virtual do capitalismo fictício. 

O filme de Costa-Gavras expõe, com sutileza, o fetichismo das relações humanas instrumentais organizadas como um jogo que visa manter posições de poder e fazer cumprir o espírito da financeirização. Com exceção dos personagens subalternos – Diane Tourneuil, os familiares e empregados do banco, por exemplo - todos são conscientemente devotos fieis do Deus-Capital. O próprio Marc Tourneuil, entrega-se de corpo e alma ao jogo das finanças mundializadas, tornando-se narrador da lógica do dinheiro como capital. Diz Marc Tourneul:“O dinheiro é um cão que não pede carinho; lance a bola cada vez mais longe e ele a traz, indefinidamente.” Ou ainda: “Dizem que o dinheiro é um instrumento. Estão errados. O dinheiro é o amo. Quanto melhor o serve, melhor ele te trata.” 

Na verdade, o poder persegue sua manutenção; como gozo perverso, o poder se auto-reproduz vorazmente. Marc Tourneuil não abdica do jogo do poder – ele joga vorazmente, até o final do filme. Eis uma qualidade ontológica do poder. O poder não renuncia, mas pelo contrario tenta se manter. É o que faz Marc Tourneuil, personagem central visceralmente contraditório. Como homem burguês, ele é a própria contradição viva que, as vezes, divaga e imagina confrontar o ethos do capital, insurgindo-se – pelo menos, no plano da fantasia - contra a mediocridade do mundo burguês. Este é um traço do homem burguês como homem esquizóide, homem dividido entre a civilização e a barbárie do capital. Como disse Marx e Engels: “As condições da sociedade burguesa são estreitas demais para abranger toda a riqueza que criou”. Entretanto, a riqueza humana de Marc Torneuil permanece, como ideal, no plano da fantasia: ele aparece como incapaz de confrontar efetivamente a lógica do capital. A esquizofrenia de Marc Tourneuil ocorre nos momentos de lapso que ele imagina agir de outro modo autenticamente pessoal (por exemplo, expulsando os sogros ávidos em saber do salário dele, ou ainda dando ajuda para o desempregado Elias Gigou, “sem trabalho há três meses”; ou demitindo a filha medíocre do presidente do banco). 

Marc Tourneuil desce à Terra dos homens comuns quando visita os pais e recebe a critica ácida do tio que questiona a lógica das finanças globais. A cena do almoço em família é um verdadeiro interrogatório do presidente do banco Phenix. Começa com a pergunta singela de Pierre, parente de Marc Tourneuil: “Se eu tiver dinheiro, em que devo investi-lo?”. Entretanto, Marc se recusa a ser consultor financeiro da família. Responde: “Na sua família, Pierre. E o principal, evite os bancos. Jogam com teu dinheiro, até que te deixam sem nada.” 

A seguir perguntam a Marc: “Quando alguém ganha 150 mil por ano, em que ele gasta?”. O banqueiro diz: “Eu também me pergunto. Por sorte, Diane me ajuda”. E observa: “O que me tranqüiliza é que os jogadores de futebol ganham 5 vezes mais e gastam tudo.” As perguntas à mesa se dirigem também ao pai de Marc: “Como é ter um filho tão importante?”. Ele responde: “Só sei que o vejo cada vez menos”. Diane, esposa de Marc, não perde a oportunidade de dizer: “Também o vejo cada vez menos. E tenho que ir a jantares chatos onde só se fala em dinheiro”. A relação de Marc com a esposa é marcada por afeto e carinho e ao mesmo tempo, distanciamento - não poderia ser diferente: o tempo dele é dedicado ao dinheiro-fetiche, faltando-lhe tempo para a família - em nenhum momento aparece Marc Tourneuil com a família. O tempo de vida do homem burguês é um tempo cativo. 

Mas o interrogatório em família adquire uma nova dimensão quando o tio de Marc intervém. As perguntas pessoais são substituídas por inquirições políticas. Não se fazem meras pergunta, mas acusações políticas contra aquilo que Marc Tourneuil representa: o capital financeiro. Coloca-se o problema da responsabilidade pessoal diante das atrocidades financeiras cometidas pelo sistema das finanças mundializadas: “Seu banco obtém benefícios e você demite as pessoas. Como lida com isso?”. Marc Tourneuil não foge à pergunta? Diz: “Muito mal, tio. O Banco estava afundando. Tive que salvá-lo. E tive que despedir para salvar 100 mil empregos.” O tio indigna-se com a resposta burocrática de Marc: “Não me venha com isso. Cansei de ouvir isso. Sangrou as pessoas três vezes: (1) a bolsa quer sangue. Você realoca, funcionários perdem emprego; (2) você os sangra como clientes; (3) pressiona os Estados endividados e quem paga é o cidadão. E como o funcionário é cliente e cidadão, você o fode três vezes. O dinheiro contamina tudo.”. 

Finalmente, o tio comunista provoca o sobrinho banqueiro com a pergunta: “Por que destroem a sociedade para pagar a dívida?”. O presidente do Phenix concorda - em parte - com as criticas feitas pelo tio (adiante, ele observaria para o pai: “Ele tem alguma razão”). Entretanto, Marc resigna-se e apresenta a sua racionalidade das coisas. Provocativamente, diz que o capital financeiro realiza às avessas o sonho dos comunistas que almejavam a internacionalização do trabalho. Por isso diz cinicamente para o tio que, “cumprimos seu sonho de juventude”. E salienta: “Vocês não queriam a internacionalização? Aqui está. O dinheiro não tem fronteiras, o trabalho, tampouco...Olhe, vê este brinquedo? Comprei em Londres. É alemão. Feito na Indonésia, por crianças. Acaso o mundo que você sonhava iria alimentar essas crianças? Nossa internacionalização o fará. Também trabalho para isso. O dinheiro nunca dorme. É como leite no fogo. Se não vigia, evapora e é preciso demitir”.

Enfim, Marc Tourneuil vive num mundo de racionalidades instrumentais em disputa. Por um lado, as racionalidades do capital e do trabalho; e por outro lado, as racionalidades da concorrência entre os múltiplos capitais – o que está posto no filme “O capital”. Ao sair, o pai de Marc recomenda ao filho cuidado com os americanos: “Eles só pensam em dinheiro”. Marc retruca: “São como nós, homens de negócio”. E conclui: “Como disse um banqueiro: Faço o trabalho de Deus.” 

O homem burguês cultiva prazeres e fantasias. Marc Tourneuil recusa as orgias sexuais, mas fascina-se com uma top model: Nassim. Trata-se de fantasia à primeira vista. Na verdade, Marc Tourneuil vive imerso em fantasias. Noutro momento, salientamos o papel de mulher-fetiche de Nassim, pura fantasia estéril como o capital fictício. A relação de Marc com Nassim é deveras estranha: ele deixa-se levar pelo fascínio que tem por ela e deixa-se inclusive ser explorado por ela ao pagar suas dividas. Mas nos momentos que se encontra com ela, ela sempre foge de relações intimas. Na boate, Nassim tenta dopá-lo; quer mantê-lo próximo e distante ao mesmo tempo, num jogo de manipulação. Alias, como salientamos acima, no filme “O capital”, de Costa-Gavras, tudo é jogo. As relações pessoais são meras abstrações, como o próprio capital-dinheiro, com a dimensão fictícia (e fantasiosa) compondo as interações pessoais.





É importante salientar que o filme de Costa-Gavras expõe, nas entrelinhas, o problema do precariado, isto é, o problema da juventude imersa numa futuridade precária. O capital financeiro, fração perversa do capital em geral, movimento abstrato supremo do capital-dinheiro, hostiliza a juventude pois ela representa efetivamente o futuro. O capital financeiro corroi a futuridade. A discriminação com a juventude aparece em alguns detalhes do filme “O capital”. Num certo momento, um importante acionista do Phenix, ao saber da indicação de Marc Tourneuil para presidente do banco, observa: “Corremos um risco nomeando alguém tão jovem”. Mas na reunião de posse do novo presidente do Phenix, Jack Marmande salientou que Marc Tourneuil é “um homem jovem e talentoso, atributos que não são incompatíveis”. Enfim, apesar de ser jovens, pode-se ser talentoso. 

Noutro momento, por exemplo, a discriminação do capitalismo global predominantemente financeirizado contra os jovens aparece num diálogo entre Marc Tourneuil e Nassim na boate. A top model observa um casal de velhos especuladores endinheirados divertindo-se na boate. Diz ela: “Quando for velha, gostaria de ser como eles”. Marc, um pouco dopado, retruca veementemente: “Como eles, não. Não quero terminar assim. Engordam seus fundos de pensão espremendo os mais jovens. São uns mercadores de escravos.” E arremata: “Os velhos controlam tudo. Me obrigam a demitir as pessoas e a sangrar o banco”. É o que explica o crescimento do precariado nos países capitalistas mais desenvolvidos. 

Entretanto, o filme indica que o capital financeiro considera como problemáticos não apenas os jovens, mas também os velhos, sustentados pelas pensões da previdência social deficitária. Os velhos constituem uma nova camada do proletariado precário do capitalismo global do século XXI. Como observou o diretor-executivo do Phenix na Inglaterra: “O problema do Japão, que logo será o nosso, são os velhos”. Enfim, a fratura da futuridade provocada pelo capitalismo global financeirizado atinge as duas etapas da vida humana alongada no século XXI: juventude – trajetória alongada pela precariedade de transição para a vida adulta; e velhice, alongada pelo aumento da expectativa de vida no século XXI.


Giovanni Alves (2013)




FONTE: http://www.telacritica.org/OCapital.htm

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