Promotor requer absolvição e defensor, condenação: que jabuticaba é essa?
Por Lenio Luiz Streck
A notícia vinda de Vespasiano (MG) de que, em um júri, o promotor requereu a absolvição dos acusados (o que, aliás, é de sua prerrogativa) e o assistente da acusação, a condenação, faz-me retornar a um assunto sobre o qual já há muito me debrucei. Qual é o papel das instituições em uma democracia? Vamos complicar um pouco o exemplo, supondo que esse assistente de acusação seja um defensor público. Pronto: temos o prato feito. No primeiro exemplo, o Estado, que tem um agente político com a garantia da vitaliciedade e que possui o monopólio da ação penal pública, ao mesmo tempo admite que possa haver um “auxílio” de “terceiro interessado” para essa tarefa. Já no segundo caso, o Estado paga — caro — duas vezes: para acusar e para “auxiliar” a acusação. Se no primeiro caso até poderíamos dizer que, afinal, quem paga é o particular, no segundo caso temos uma esquizofrenia institucional: em um país carente de recursos, o Estado-se-dá-ao-luxo-de-pagar-duas-acusações-públicas. Bingo! Contei isso para um jurista alemão. E ele farfalhava de tanto rir. E brincou: —“Por isso, perderam de 7 a 1 (não gostei da gozação, mas, o que fazer?). Enfim... País rico é país sem pobreza, diriam os governos Lula e Dilma. Fechemos as cortinas e façamos uma anamnese do problema.
O primeiro ponto é a constitucionalidade ou a adequação ao Estado de Direito Democrático da própria figura do assistente de acusação. Não serei peremptório. Apenas proponho a discussão. Já houve momento em que essa questão teve repercussão no judiciário, quando, pela primeira vez, sustentei a não recepção da figura da assistência de acusação. Naquele momento, porque o dispositivo era anterior à Constituição, sustentei a não recepção, mostrando como a nova conformação do Ministério Público afastava a participação da vítima, que ficaria reservada à busca de indenização civil (como verão, esta também é a tese do ministro Marco Aurélio e do ex-ministro Cezar Peluso). A assistência da acusação, na verdade, significa(ria) vingança privada. A questão se agrava(va) nos casos em que o Ministério Público pedia a absolvição e o assistente pedia a condenação do réu, o que suscitava discutir o interesse de agir da vítima.
Se o réu é acusado pela sociedade e essa não tem interesse, qual a razão para a vítima intervir na ação? Obtive várias vitórias no TJ-RS, ao ponto de a 5ª Câmara Criminal, por um determinado período, não mais aceitar recursos advindos do assistente de acusação. Aliás — para minha satisfação — essa também era a tese da Defensoria Pública do RS e da União, como se pode ver no HC 102.085-RS.
Veio uma minirreforma no processo penal e o dispositivo prevendo o assistente de acusação foi “novado”. Logo, já não seria o caso de não recepção — questão que não demanda(va) incidente de inconstitucionalidade — e, sim, de inconstitucionalidade de uma “nova” lei. Nesse sentido, não encontrei clima para um incidente. Tentei e fui derrotado.
Passado um tempo, penso que devemos voltar a discutir o tema. Qual é o sentido da assistência à acusação? A busca da indenização ou (um)a vingança privada? Ou as duas coisas? Ora, só para começar, mesmo que o réu seja absolvido, isso não impede a ação civil, porque nem todos os dispositivos que tratam da sentença no Código de Processo Penal conduzem diretamente à não possibilidade de ação civil (sim, sei que, se a absolvição é por negativa de autoria ou da inexistência do fato, não cabe indenização; mas, convenhamos, são as hipóteses radicais de absolvição, pois não?). Elementar isso.
Um novo componente que complica o fenômeno
A questão, agora, assume foros diferenciados, em face de um novo elemento. Mesmo que se admita que a assistência à acusação (em si) seja constitucional, pode um defensor público ingressar como assistente? A Defensoria foi criada para isso? E, uma vez aceita a tese, como ficam os casos em que o-titular-exclusivo-da-ação-penal requer a absolvição do réu e defensor, “contratado” para a assistência, vê-se na obrigação — porque, afinal, é assistente por parte da vítima — de pleitear a condenação? Ou o defensor, com sua independência funcional, poderia também pedir a condenação de seu cliente? Qual é a posição que deve valer? A do promotor ou do defensor, atuando como assistente? E como fica o réu, que tem contra si alguém que não é indicado pela Constituição para acusá-lo? E como ficam os casos em que tanto promotor e defensor-assistente requerem a condenação (caso recente em São Paulo)? Não se trata de manifesto excesso de acusação?
Daí a pergunta: podemos transferir recursos do restante da população para pagar um defensor que irá fazer a assistência da acusação em nome de uma vítima em particular, sem que possamos estender esse direito para todas as demais vítimas de terrae brasilis? Ou seja: se uma vítima tem direito a um defensor fazendo a assistência de acusação, devemos ter presente que todas as demais vítimas devem ter o mesmo direito. Elementar isso também. Logo, haveria dois agentes do Estado acusando réus. Como coadunar isso, quando a própria Defensoria diz que faltam defensores? Para que serve o Ministério Público? É incompetente? O promotor é um néscio que não tem condições de sustentar a visão da sociedade acerca de um processo criminal? Afinal: quem representa a sociedade: O Ministério Público, dominus litis ou a Defensoria, que representa o hipossuficiente?
Veja-se que essa questão é antiga. No HC 102.085, estivemos juntos. Eu, sustentando, de há muito, no segundo grau, a inconstitucionalidade do assistente de acusação (tese criada por mim e Marcellus Polastri há 20 anos ou mais) e a Defensoria impetrando Habeas Corpus para impedir que o recurso do assistente (advogado pago pela vítima) vingasse junto ao STJ, repetindo a ação através de HC junto ao STF. Apenas quero que os juristas e os políticos pensem sobre isso. Em uma sociedade carente de recursos,terrae brasilis é jabuticaba (só tem por aqui isso). Nenhum país do mundo tem dois agentes — bem pagos (e que bom que sejam bem pagos) — acusando um réu (na maioria das vezes, superhipossuficiente). Só Pindorama tem. E, pior: pode ocorrer de ter dois agentes públicos (promotor e defensor) acusando e... outro agente público (também defensor público) defendendo. País rico é país sem pobreza! E então, a esquizofrenia é total. A malta paga tudo isso com seus impostos. Ah: como todos são iguais, sendo caso de duas vítimas, poderemos ter dois Defensores assistentes e mais dois defendendo os acusados. Logo, três acusando e dois defendendo. Todos pagos pela Viúva. Afinal, se o Juiz concede um defensor como assistente para um familiar, por que um segundo familiar (de outra família) pode ter negado pedido semelhante, se forem várias as vítimas? Tirante outras hipóteses, como o prazo em dobro que dispõe a Defensoria... Além do fato de que o defensor, atuando como assistente, tem poderes que o Advogado privado não possui. Como fica a isonomia?
Sigo. Terrae brasilis é demais. A saúde é um bom exemplo disso. Os patuleus tomam soro em pé nas filas do SUS. Enquanto isso, numa sala de audiências qualquer, digladiam-se um defensor público, um procurador do estado, um procurador do município, um promotor de Justiça e um juiz de Direito, todos muito bem remunerados pela Viúva, em torno da grande questão de saber quem é que paga pelos remédios. Mas não há recursos públicos suficientes...
Não me entendam mal (nesse país onde até mesmo a ironia tem de ser explicada, não cabe vacilar). É claro que vejo, no fortalecimento em si das Defensorias Públicas, um bem e não um mal. É preciso garantir acesso à justiça, e a contratação de advogados públicos é uma etapa importante para que isso aconteça. Franz Klein, um dos corifeus do socialismo processual, lá pelo fim do século XIX, já apontava para isso, ao defender que o Juiz,enquanto não houvesse advogados pagos pelo Estado, deveria assumir a defesa endoprocessual dos mais pobres (que o socialismo processual tenha ecos ainda hoje no processo jurisdicional, é um daqueles mistérios insondáveis da nossa existência). Também no célebre texto de Garth e Cappelletti sobre o acesso à Justiça aparecem apontamentos interessantes sobre essa temática. Se é verdade que o Poder Judiciário passava a ter um papel importante na resolução de “novas” questões, no enfrentamento de demandas políticas (ou com estas imbricadas), era preciso que alguém as levasse até ele, pois não?
No contexto do constitucionalismo brasileiro, em que se encontram, de um lado, um generoso catálogo de direitos fundamentais, e, de outro, uma realidade bruta e (em alguns aspectos) pré-moderna, é mesmo indispensável a figura de um advogado público. A judicialização das omissões concreta e individualmente geradas pelo Estado lato sensu deve poder ser feita com alguém competente. Então, loas às Defensorias. Que devem ser fortalecidas. Devo ter sido o primeiro, ou um dos primeiros ao menos, a sustentar que a não implementação de Defensorias, no âmbito dos estados, implicava omissão inconstitucional (judicializável, portanto). Também, de nada adiantaria trocar as filas do SUS por “filas nas Defensorias”. Fichas para atendimento por médico e por advogado. Troca-se de fila, segue-se sem o remédio, entendem?
Agora, que justificativas há para que se crie um “superadvogado público”, com poderes e prerrogativas que não alcançam aos demais advogados? O que justifica esta distinção? Por que alguém optaria por contratar um Advogado particular se poderá ser assistido, gratuitamente, por alguém que pode requisitar documentos e providências de órgãos públicos, além de possuir prazo dilatado para se manifestar nos processos? Vejam, aliás, como a questão da hipossuficiência vem sendo relativizada... A questão não é mais saber quem é hipossuficiente... A questão é: “— Quem não é?”. O “conceito” de hipossuficiente, agora, é organizacional. Não é mais econômico. Confesso que não entendi a “sofisticação” desse conceito... Mas, se o cidadão não é hipossuficiente econômico, não pode, ele, contratar advogado? Para que serve o advogado, afinal? Parece que “hipossuficiente” quer dizer: “basta alegar”. Nesse sentido, veja-se o duro questionamento feito pelo presidente da OAB-RS Marcelo Bertoluci (OAB-RS) à Defensoria do Rio Grande do Sul, cobrando explicações acerca da invasão da DPE na área da advocacia privada (clique aqui para ler).
Há, com efeito, uma esquizofrênica superposição de funções e poderes entre a Defensoria Pública e o Ministério Público. É possível dizer que o Ministério Público não tem cumprido a contento sua missão constitucional (isso é tema para outra coluna); mas dois erros não fazem um acerto. Principalmente enquanto ainda estiverem sendo distribuídas fichas de atendimento individual aos cidadãos que madrugam na esperança de obter, na coloração tupiniquim, o seu day in court.
É nesse sentido que devemos discutir o que vem acontecendo, com a atuação da Defensoria Pública como assistente de acusação em ações penais. Como disse, não quero ser peremptório. Quero colocar o problema para a comunidade jurídica discutir.
E para que isso não fique incompleto, trago a lume o HC 102.085, no qual o Supremo Tribunal Federal enfrentou o assunto (neste caso, tratava-se de um assistente privado), ainda que não estivessem presentes três ministros. Nesse writ, a Defensoria Pública pleiteava a nulidade de decisão do STJ, que deu guarida a Recurso Especial contra decisão do TJ-RS, que inadmitira recurso de apelação feito por assistente de acusação privado. Por maioria de votos, o STF sustentou a validade da velha Súmula 210 (corretamente, a Defensoria da União sustentava a sua não recepção!).
Permissa vênia, penso que o Supremo se equivocou. Os dois votos vencidos, da lavra dos ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, foram precisos e corretos. Para o ministro Marco Aurélio,
“o próprio constituinte abriu exceção única à regra da promoção privada em substituição à ação penal pública do Estado acusador. Fê-lo, de forma exauriente, mediante o preceito do inciso, já muito referido, LIX, do artigo 5º (será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada – está em bom vernáculo, em bom português – “no prazo legal. (...)
Será que, diante desses dois dispositivos, é possível ter-se a transmudação da ação penal pública que existiu em ação penal privada? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa. Uma ação que nasce pública incondicionada não pode, na fase recursal, transformar-se em uma ação penal privada. (...)”
Para encerrar, disse o ministro: a ação penal pública não pode se transformar em uma corrida de revezamento. Assistente só se justifica quando o Ministério Público for inerte.
Já o ministro Peluso asseverou que o texto constitucional derrogou a velha concepção de justiça privada e por isso, deferiu ao Ministério Público, em caráter privativo e exclusivo, a titularidade da ação penal.
“Para quê? Para a defesa de interesse estatal específico, que é o de punir criminosos (...). De modo que nem sequer se pode cogitar de que haja, nisso, algum interesse estatal em defender interesses patrimoniais do ofendido.
Em segundo lugar, porque costuma acontecer, como em qualquer instituição, que os agentes às vezes falhem, nos casos em que eventualmente o Ministério Público se omita, dada a relevância do mesmo interesse estatal, a Constituição atribuiu a titularidade da ação ao particular ofendido, mas em caráter de exceção e apenas na hipótese de omissão. (...) Só pode agir em termos de recurso quem tem direito de ação, direito de agir. Ora, quem tem direito de agir? O Ministério Público, como regra, e o querelante, como exceção, não o assistente. O assistente não exerce direito de ação, nem na concepção do processo criminal, nem na concepção, muito mais generosa, da ação civil. O assistente simplesmente adere ao titular da ação. (...) Ora, o assistente penal, não sendo titular de ação nenhuma, senão assistente de quem o é, a meu ver não pode recorrer (...).”
Sigo. Admitindo que a decisão do STF esteja correta, ainda assim teríamos que ver se a decisão é extensível aos casos em que o assistente da acusação é um defensor Público. Neste caso, uma interpretação conforme (verfassungskonforme Auslegung) ao dispositivo do CPP poderia resolver o assunto, ressalvando que o Estado (no caso, via defensor-assistente) não pode incorrer em bis in idem e excesso de acusação, tendo na mesma ação penal e do mesmo lado, um agente do Ministério Público e um agente da Defensoria. Neste caso, poder-se-ia admitir que, em uma democracia, não se pode impedir que um cidadão que tenha recursos contrate um advogado privado para buscar seus interesses (claro, de novo, vem a questão: qual é a leitura que se faz da Constituição, que, no seu artigo 5º., LIX, coloca como exceção à titularidade exclusiva do MP a hipótese de sua inércia, isto é, voltar-se-ia à discussão do cabimento stricto sensu da figura do assistente: afinal, ela é ou não constitucional?).
Sei das posições que sustentam tanto a permanência da assistência para a advocacia privada como para a Defensoria.[1] No próprio HC 102.085 essas posições estão desenhadas. Mas com elas não concordo. De todo modo, o que não podemos fazer é colocar recursos públicos onde não se deve pô-los e onde já existe alguém (bem) pago para fazer essa função.
Assim, ou é excesso de acusação, considerando-se inclusive o pressuposto não apenas da competência do Ministério Público, mas também o princípio da presunção de inocência, ou então, como no caso em que o promotor pede a absolvição e o defensor-assistente persiste na acusação, "esquizofrenia" estatal, em que deve prevalecer a posição do MP. Ou não? Como fica isso?
Enfim, como diz Marcellus Polastri, assistente de acusação é “intervenção de terceiro”: se for para interesse de ressarcimento cível. Isso para os que acham constitucional a figura do assistente, é claro.
Numa palavra: para onde vamos?
Em um país carente de recursos, essa questão assume foros de dramaticidade. Admitamos, como disse — no limite — que prevaleça a tese da adequação constitucional do instituto da assistência da acusação. Mas, ainda que essa tese se consolide, uma questão deve ser discutida, isto é: como colocar um defensor público como assistente de acusação para a vítima, se essa atitude não pode ser universalizada? Eis o busílis. E se fosse possível universalizar a concessão de um defensor para cada vítima (e levando-se em consideração o elástico conceito de hipossuficiência), qual seria o sentido da existência do titular da ação penal? Tornar-se-ia inútil, porque poderia ser substituído pelo defensor-assistente, poupando valiosos recursos públicos. Pronto: substitua-se o promotor pelo defensor, que pode, assim, fazer as duas coisas. Simples. E mais barato. Ou, quem sabe, que sejam unificadas as duas carreiras... Em outras palavras: temos que, urgentemente, reexaminar as nossas “bondades” e estudar as “fragilidades” de tais bondades, para usar uma expressão de Nussbaum.
Enfim, parece que os recursos públicos em terrae brasilis dão em árvore. Depois nos queixamos. Estamos indo com muita sede ao pote. E brincando de “relações institucionais”. O estado brasileiro parece ser um universo em expansão. Incha dia a dia. E sobrará pouco espaço para “as coisas privadas”. Só quero saber o que faremos com as mais de mil faculdades de Direito, se tudo será bancado pelo Estado. É inexorável que venha a explodir (ou implodir). E as instituições fazem uma disputa pelos pobres. O Estado é muito bondoso, pois não? Terrae brasilis é realmente incrível. Incrível no sentido de que não dá para acreditar. Vamos refletir sobre isso? Temos maturidade para tal? Tenho convicção que sim. Sou um otimista do tipo “als ob” (como se), isto é, “é como se tivéssemos”. Enfim, um pouco da filosofia do “como se”, de Hans Vahinger: uma ficção necessariamente útil...
[1] Sei também da posição – data vênia, equivocada – do STJ (por exemplo, o HC 24.079). Aliás, é estranha a fundamentação do STJ, ao aludir, em favor da tese da possibilidade de a defensoria atuar como assistente de acusação, a circunstância de que a Lei orgânica da DP dizer que "Art. 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: II - patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública". Ótimo, estimado Min. Félix Fischer. Só que o caso do HC 24.079 não tratava nem de ação privada e nem de ação penal subsidiária. Ninguém até hoje vi negar a algum Defensor Público a prerrogativa de ingressar com ação penal privada ou manejar a ação subsidiária, quando existir inércia do MP. Eis aí o busílis da questão. Quando existir inércia do Ministério Público!
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 24 de julho de 2014, 08:00h