Regras constitucionais não admitem juízo de ponderação
Como sabem aqueles que nos prestigiam com a leitura de nossa colunaConstituição e Poder, tenho sugerido, por diversas vezes, nos artigos em que abordei o problema da ponderação de bens (Güterabwägung), que, não obstante inevitáveis em situações extremas, mesmo em casos de colisão de direitos fundamentais, a utilização de juízos de ponderação deverá ser sempre e sempre residual.
De fato, de tudo o que tenho lido sobre o tema, acabei por concluir, com base em autores a que abaixo farei remissão, que, no mais das vezes, os problemas jurídicos, até por limites estruturais da própria ponderação, podem ser adequadamente solucionados sem as dificuldades retóricas necessariamente envolvidas quando nos valemos do método da ponderação.
Diante disso e considerando os abusos que têm sido cometidos em nome daponderação de bens, muitos dos qualificados leitores da coluna Constituição e Poder, em carinhosas manifestações, escreveram-me para solicitar que, em artigos futuros, eu pudesse indicar alguns desses eventuais limites à possibilidade de ponderação no âmbito do Direito Constitucional. Muito bem, com o artigo de hoje, acredito, começo a resgatar essa dívida.
Não obstante a existência de ilustrada pena que, muito embora voz praticamente isolada, apresente posição divergente, como primeiro passo, no artigo de hoje, pretendo demonstrar que é impossível falar de ponderação quando se esteja diante de verdadeiro conflito de regras, e não de colisão de princípios constitucionais. Por outro lado, como algumas matérias constitucionais (procedimentos, poderes, competências, limitações) são, costumeiramente, veiculadas na forma de regras, a estar certo esse primeiro raciocínio, todas as vezes que o tema a decidir a elas se refiram, por óbvio, não se poderia consentir com juízos de ponderação.
Um parêntesis importante. Por honestidade intelectual devo também anotar que nada do que estou a dizer sequer tem a nota do ineditismo. O brilhante professor brasileiro, Virgílio Afonso da Silva, por exemplo, na sequência dos estudos do celebrado Professor Robert Alexy, seu orientador de doutorado, tem insistido, se eu bem o interpreto, em muito das mesmas ideias que passo a referir, ainda que o tenha feito com estilo mais elegante e, certamente, com maior qualidade. Além disso, dos estudos de outro ilustre orientando do Professor Alexy, Martin Borowski, acredito eu, também se alcançariam muitos dos mesmos resultados. Feito o registro e a homenagem devida, expliquemo-nos de forma mais específica.
Apesar da queixa frequente contra uma suposta ubiquidade dos juízos de ponderação, como se eles estivessem em todos os lugares (Abwägung überall)[1], chegando-se mesmo a se cogitar de um “Estado ponderador” (Abwägunsstaat)[2], o fato verdadeiro é que a ponderação, fazendo parte da estrutura da proporcionalidade em estrito sentido, tem caráter residual em relação à aplicação geral das normas constitucionais, e mesmo e principalmente em relação às duas outras máximas parciais constitutivas do princípio da proporcionalidade (adequação e necessidade) [3].
Não é difícil compreender que algumas matérias próprias dos textos constitucionais, até mesmo pela estrutura normativa dos preceitos em que são regularmente veiculadas (mais afeitas a regras do que a princípios), acabam excluídas da possibilidade de juízos de ponderação por parte dos órgãos competentes para a sua aplicação. De fato, como limite de sua específica conformação estrutural, o que fica bastante evidente no caso - mais conhecido - dos direitos fundamentais, não se pode esquecer que a ponderação sempre e apenas se reconduzirá a situações de colisão entre normas constitucionais, seja colisão de direitos fundamentais com outros direitos fundamentais (colisão autêntica), seja com outros princípios de hierarquia também constitucional (colisão inautêntica), e mesmo assim quando esse estado de tensão normativa demonstre não poder ser solucionado com outros instrumentos e métodos argumentativos.
Por essa mesma razão, deve-se concluir impossível cogitar de ponderação em caso de conflitos de regras constitucionais, já que as regras, diversamente dos princípios, são caracterizadas precisamente por serem normas ou posições jurídicas definitivas e, por sua específica estrutura, já foram anteriormente ponderadas, tornando impossível uma (nova) ponderação como regras.
Se a distinção entre regras e princípios pode guardar algum sentido, é porque regras são, estruturalmente, normas definitivas e de antemão já ponderadas e por isso mesmo — como regras — não se prestam à ponderação. Por isso é que a doutrina tem distinguido os casos de colisão de princípios dos casos de conflito de regras. Não se pode falar em colisão, mas apenas em conflito de regras, pois, como se sabe, não há como resolver conflito entre normas definitivas (já ponderadas) com base na sua dimensão de peso, em consideração à primazia de uma das normas diante das circunstâncias do caso concreto (Dworkin, Alexy, Borowski), mas apenas por sua dimensão de validade. A razão também é simples: — sendo a regra,por definição, uma norma já ponderada - por isso, definitiva — não poderia se prestar a uma nova ponderação, o que, obviamente, lhe subtrairia o caráter de definitividade.
Em termos lógicos, uma norma não pode ser e não ser definitiva (regra) ao mesmo tempo. Assim, (1) ou a norma já foi ponderada e, por isso, é regra e, como posição normativa definitiva, não poderia sofrer (nova) ponderação, (2) ou não foi ainda ponderada e, não sendo definitiva, como princípio, presta-se a juízos de ponderação.
A explicação, portanto, merece uma tautológica insistência conceitual: — Caso a norma se preste a uma (nova) ponderação, evidentemente, é porque não era uma posição definitiva e, por isso mesmo, em termos de conceito e de estrutura, não era verdadeiramente regra.
Calha ainda advertir com todos aqueles ilustres autores (Virgílio Afonso da Silva, Martin Borowski e Robert Alexy) que a divisão entre regras e princípios só se pode impor ou deduzir de um texto já interpretado. Portanto, regra ou princípio, é distinção que pressupõe a existência de uma norma, isto é, de um texto normativo sobre o qual já se produziu uma determinada interpretação. Um texto ou um enunciado constitucional sem interpretação não é ainda norma, isto é, não é ainda nem regra nem princípio, tornando inadequada a conclusão de que se possa ponderar uma regra, quando o que se está a considerar é ainda o texto não interpretado. A ideia de que se possa ponderar regras vem da indevida conclusão de quem toma um texto como regra (antes de interpretá-lo) e, depois de interpretá-lo, submete a norma alcançada à consideração e ponderação das circunstâncias e possibilidades do caso concreto. Ora, a norma então ponderada, precisamente, porque não definitiva, seria tudo, menos uma regra.
É certo que alguém pode partir de uma outra conceituação e distinção entre regras (posições definitivas) e princípios (posições prima facie, a ponderar), mas a possibilidade de ponderação de regras, em tais situações, consideras as premissas divergentes, não se prestaria a fundamentar uma crítica legítima ao que autores como Robert Alexy têm sustentado.
Em inteira sintonia com as ideias aqui defendidas, Louis Henkin, com o olhar voltado para o Direito norte-americano, já havia atestado — sem assim o designar — o caráter residual da ponderação de bens. De fato, conforme enfatizara, ao contrário do que se costuma difundir e acreditar, tomando em consideração a necessidade pragmática de sua utilização pelos operadores do Direito, pelo menos em seu sentido restrito, dificilmente a ponderação de bens (balancing) poderia ser considerada um tema dominante na jurisprudência constitucional norte-americana[4]. A sua utilização, afirma, é incomum e rara, quando se cuida de disposições constitucionais expressas ou dispositivos constitucionais específicos[5]. Para adaptar-se à gramática aqui utilizada, dir-se-ia: boa parte das normas constitucionais são regras, pois veiculadas como disposições expressas e específicas, isto é, definitivas, e, como tais, não se predispõem a qualquer ponderação[6]. Essas normas, ainda consoante a gramática aqui utilizada, não permitem considerar — ponderar — a possibilidades ou circunstâncias do caso concreto, pois, submetidas à interpretação, veiculam indiscutivelmente posições jurídicas definitivas.
Assim, para exemplificar e concluir, pode-se afirmar com alguma segurança, valendo-se ainda das conclusões de L. Henkin, que normas constitucionais que estabeleçam formas, qualificações, procedimentos, poderes e limitações dos vários níveis de poder, sobre relações interestaduais, processo de emenda à Constituição e mesmo questões sobre federalismo e separação de poderes, dificilmente, permitirão juízos de ponderação. Como se pode perceber de leitura ainda que superficial do texto constitucional e considerada a experiência da jurisdição constitucional brasileira e comparada, a maior parte das questões envolvendo esses temas são de fato enfrentadas cotidianamente sem a necessidade da presença da ponderação de bens[7].
[1] Walter Leisner. Der Abwägungsstaat: Verhältnismäβigkeit als Gerechtigkeit?”, p. 11 ss.
[2] Walter Leisner. Der Abwägungsstaat: Verhältnismäβigkeit als Gerechtigkeit?”, p. 5 ss.
[3] T. Lenckner. Der Grundsatz der Güterabwägung als Grundlage der Rechtfertigung, p. 2 96, 298 ss.
[4] Louis Henkin. Infallibility under law: constitutional balancing, p. 1025/6.
[5] Louis Henkin. Infallibility under law: constitutional balancing, p. 1026.
[6] Louis Henkin. Infallibility under law: constitutional balancing, p. 1026.
[7] Louis Henkin. Infallibility under law: constitutional balancing, ibidem.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 21 de julho de 2014, 18:49h
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