terça-feira, 13 de maio de 2014

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

 
Em recentes acontecimentos que tiveram lugar no território nacional, só possíveis no incrível realismo fantástico tupiniquim, tomamos conhecimento de que um número considerável de brasileiros não viram mal algum em trucidar, em linchamento público, uma pobre dona de casa, vizinha dos justiceiros, mãe de duas belas crianças, suportados na suspeita improvável e logo após desmentida de que a vítima, identificada pelos carrascos através de retrato falado de alguns anos, fosse praticante de uma mal explicada seita onde se sequestravam crianças para rituais de magia negra. É bom que se diga que a morta, sacrificada em holocausto à ignorância que pontifica em boa parte de nossa sociedade cordial, portava no momento do justiçamento público uma Bíblia, pois voltava, segundo o que divulgaram, de um culto evangélico. Quase no mesmo dia, torcedores de um grande time nordestino, confirmando a barbárie em que se transformaram os estádios brasileiros, revolucionaram a conhecida crueldade que informa a nossas “bem comportadas” torcidas organizadas, promovendo o arremesso de um vaso sanitário sobre a cabeça de torcedores rivais, matando um pobre e indefeso transeunte. Dias antes, duas mulheres teriam confessado, segundo a imprensa, a morte de uma criança de 11 anos.
Como todos sabem, não são eventos isolados. São apenas os exemplos mais próximos. Portanto, não podemos nos enganar: numa sociedade como a brasileira, sem dúvida das mais diversificadas do mundo (tanto do ponto de vista racial, como econômico, cultural, educacional e político), vai se tornando cada vez mais improvável que alguma instituição (igreja, estado, educação ou mesmo a família) tenha a capacidade de integrar minimamente os seus cidadãos. E ninguém quer compartilhar a responsabilidade pelo outro e pela esfera pública. A impressão que se forma é a de que somos todos campeões de direitos, mas temos incrível dificuldade de administrar os compromissos que os deveres correspondentes a esses direitos nos impõem. Mais do que isso, a sociedade não quer se vincular a valores mínimos que possam coordenar minimamente seu comportamento.
O mal não é só nosso, não obstante ganhe aqui notas de paroxismo. A ideia de que exista um fundamento último, uma ética essencial a atravessar a moral, a política e o Direito, com o qual poderíamos, em cada caso concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela melhor proposta política, ou sobre a melhor conduta no plano moral, ou sobre a melhor decisão no plano jurídico, funda-se na mesma perspectiva de uma mundo governado por uma razão única, em que, existindo boa vontade, poderíamos divisar sempre, e de forma indiscutível, o que é certo e o que é errado. A partir do ponto de vista que nos permitiria a representação da única resposta correta, torna-se possível moralizar a política e até mesmo o Direito. Assim se mostraria possível perscrutar no voto, ou na opinião, ou na decisão divergente, não apenas o desacordo do olhar, mas a imoralidade de não pensar corretamente, isto é, “de não pensar como nós, os intelectualmente capacitados e moralmente incorruptíveis, pensamos”. Contudo, e esse é o lado positivo, a realidade atual não é composta de uma verdade única. Esse é um mundo, com certeza, que não existe mais.
I. O lado bom da tolerância e da diversidadeComo bem sintetizado por Kundera, a verdade está mais para uma narrativa ambígua e insegura dos personagens de um romance do que para a certeza e a univocidade de uma teoria totalizante que se pretenda impor de fora da vida e da história pela autoridade indiscutível de algum filósofo predestinado (cito)[1]: “Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza, isso não exige menos força. (...) O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado. Nesse ‘ou — ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”
O mundo mudou. As ações morais já não podem contar com um ponto de referência certo e igualmente vinculativo em tudo e para todos. Com a incrível diferenciação funcional das complexas sociedades contemporâneas, os seus subsistemas (direito, política, imprensa, economia etc) passam a autogovernar-se por meio de códigos próprios e autônomos, que prescindem de critérios morais externos de uniformização. No quadro de uma moral fragmentada e cada vez mais sem capacidade de comunicar-se com os outros subsistemas (Niklas Luhmann)[2], a mesma conduta pode encontrar diferentes coeficientes de legitimação. O servidor público que se transformou em fonte de um jornalista para falar e expor toda a verdade de um fato tem uma conduta positiva no âmbito do subsistema da imprensa e da informação, mas, ao romper o sigilo profissional (artigo 154, do CP), ou quebrar o segredo de justiça de uma interceptação telefônica (artigo 10, da Lei 9.296/96), pratica uma conduta negativa no subsistema do direito e pode, inclusive, ser punido por isso.
II. As dificuldades jurídicas e morais da fragmentação dos valoresNum mundo mais tolerante e diversificado, já não temos uma moral que nos assegure a unidade de pensar e de agir, o que é bom, mas nos impõe seriíssimos desafios. Como será possível a coordenação (inclusive jurídica) de condutas com base em parâmetros comuns numa sociedade de valores tão fragmentados? E, mesmo num quadro de fragmentação moral, muito embora exigíveis limites mínimos, já necessários à própria sobrevivência da sociedade, como dizer e impor o que é certo e errado a grupos de pessoas cuja miséria (indigência) é menos econômica do que cultural e ética?
Antes, as condutas morais podiam, por exemplo, fundamentar-se na figura de Deus e impor-se pela revelação dos comandos que partiam do amor divino, ou do medo provocado pela ira divina[3]. Hoje, contudo, a moral de fundo cristã perdeu, em todo o Ocidente, para o bem ou para o mal, a sua força socialmente vinculativa. A impressão que se tem é que a própria comunicação não conseguirá superar sua contingência imanente e as pessoas estarão verdadeiramente sozinhas. De fato, como será possível duas pessoas se comunicarem em um universo de valores, regras e comportamentos, além de discursos e semânticas (linguagens) tão diversificados? A questão, pois, é saber como a sociedade contemporânea poderá lidar com essa drástica fragmentação moral e, já agora, até mesmo de sua linguagem[4].
Parece mesmo duvidoso, como bem deduzido por Detlef Horster, que diante de uma tal fragmentação de valores, exista “um ponto de referência comum para todas as condutas e regras morais e, mais do que isso, para todas as regras e decisões jurídicas, que possa valer, como base e condição contextual, para a interação dos indivíduos que vivem em sociedade”. Em uma sociedade em que se idolatra o individualismo, o normal é que não exista mesmo um ponto comum de consenso como nas comunidades mais antigas, baseadas na revelação de origem cristã[5]. Como se viu, isso é bom e ao mesmo tempo ruim.
Não se pode mais partir, numa sociedade radicalmente diferenciada em suas funções de “uma identidade abrangente (umfassender Identität ) do indivíduo com a sociedade”. Por isso, ainda segundo Detlef Horster, “A não-identidade do indivíduo e sociedade reflete-se na diversificação do direito e moral, de uma forma que era impensável à época de Sócrates, já que para ele (consoante o que podemos intuir do seu díalogo com Criton 53) a virtude individual e o direito da comunidade eram um e a mesma coisa, e uma violação ao direito seria também ilegítimo e indigno (unanständig) do ponto de vista moral” [6].
Não parece existir hoje qualquer instituição, como a Igreja na Idade Média, que consiga ligar as pessoas de uma mesma comunidade, ao longo de suas vidas, por intermédio de valores ou de objetivos comuns. Mais do que nunca, sabemos da existência de outros territórios, de outras visões de mundo, de outros valores e até mesmo de linguagens e de comportamentos ao mesmo tempo diferentes, mas também legitimados. As pessoas estão livres para associarem-se a grupos, valores e comportamentos, permanecendo vinculadas a eles enquanto estiverem satisfeitas.
Resumindo, ao fim a sociedade torna-se vítima de suas próprias virtudes: quanto mais tolerante, mais fragmentada, desunida e, infelizmente, no nosso caso, mais violenta.
Governos e instituições, aí incluído o Poder Judiciário, desorientam a comunidade com mensagens contraditórias, subtraindo da própria ordem jurídica a capacidade — sua principal característica — de estabilizar expectativas e comportamentos. Não é de surpreender, pois, que sejamos confrontados cotidianamente com comportamentos e valores que julgávamos inexistentes ou extintos da história de nossa cultura (linchamentos e todos os tipos perversos de violência contra a pessoa). Nada indica que esse estado de coisas encontrará um adversário à altura, sobretudo, se continuarmos insistindo com a ideia de que o mal está exclusivamente no Estado, e não na sociedade como um todo; e com o dogma de que o problema é a qualidade dos agentes públicos brasileiros, e não de formação e de comportamento de todos os indivíduos que compõem a sociedade, estejam ou não no Estado. Enquanto esses (auto)enganos servirem de alívio à consciência e à hipocrisia nacional, todos nós teremos uma ponta de responsabilidade por acontecimentos tão nefastos como aqueles que introduziram o presente artigo.

[1] Milan Kundera. A arte do romance. Tradução Teresa Bulhões. Carvalho da Fonseca. — São Paulo : Companhia das Letras, 2009, p. 14/15.
[2] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[3] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[4] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[5] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 1 (367 – 389).
[6] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 2 (367 – 389).
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2014

Erro em informação de site de tribunal impõe devolução de prazo

Erro em informação de site de tribunal impõe devolução de prazo

 
Ainda que os dados disponibilizados pela internet não substituam a publicação oficial, a divulgação no site do tribunal de informações erradas sobre andamento processual impõe a devolução de prazo. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, por ser fonte oficial, as informações processuais divulgadas não podem confundir as partes, induzindo a erros e conduzindo à perda de oportunidades.
Esse foi o entendimento aplicado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso especial interposto pelo estado de Mato Grosso do Sul contra acórdão do Tribunal de Justiça local, que não autorizou a devolução do prazo recursal apesar de erro na divulgação de informações processuais pela internet.
O caso envolveu a interposição de embargos à execução. De acordo com o estado de Mato Grosso do Sul, o erro publicado no sistema de informações processuais teria sido a causa de os embargos serem considerados intempestivos, isto é, apresentados fora do prazo legal. 
O TJ-MT manteve a decisão monocrática que acolheu a preliminar de intempestividade. Segundo o acórdão, “a intempestividade dos embargos à execução é matéria de ordem pública, cognoscível de ofício e em qualquer grau de jurisdição, por não estar sujeita à preclusão, e o andamento processual encartado pelo apelado tem caráter meramente informativo e não vale como certidão”. 
O ministro Humberto Martins, relator, reconheceu que a antiga jurisprudência do STJ considerava que erro na divulgação das informações processuais via internet, dado seu caráter meramente informativo, não autorizava a devolução de prazo. No entanto, Martins observou que esse entendimento foi superado pela Corte Especial.
Segundo o ministro, ficou consolidado que, "ainda que os dados disponibilizados pela internet sejam meramente informativos e não substituam a publicação oficial (fundamento dos precedentes em contrário), isso não impede que se reconheça ter havido justa causa no descumprimento do prazo recursal pelo litigante (artigo 183, caput, do Código de Processo Civil), induzido por erro cometido pelo próprio tribunal".
“O entendimento adotado no acórdão recorrido encontra-se em desacordo com a recente jurisprudência do STJ. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para determinar o retorno dos autos ao Tribunal de Justiça, a fim de que verifique a admissibilidade dos embargos à luz da atual orientação do STJ e, sendo o caso, prossiga com o julgamento de mérito”, concluiu o relator. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Clique aqui para ler o acórdão.REsp 1.438.529
 
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2014

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Em retratação, STJ aplica definição de índice de correção do balanço de 1989 (Plano Verão)

Em retratação, STJ aplica definição de índice de correção do balanço de 1989 (Plano Verão)

 
A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao aplicar entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em repercussão geral, assegurou o direito de uma empresa a utilizar o índice de IPC de 42,72% em janeiro de 1989 e o reflexo lógico de 10,14% em fevereiro de 1989 como indexadores da correção monetária das demonstrações financeiras do balanço relativo ao ano-base de 1989. 

A mudança tem reflexo na base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSSL). O relator do recurso especial foi o ministro Mauro Campbell Marques.

A argumentação das empresas que recorreram à Justiça quanto ao indexador era que, quando da transição entre a OTN e o BTN, houve um significativo expurgo da parcela real de correção monetária apurada para os meses de janeiro e fevereiro de 1989, utilizada para a fixação do valor da OTN empregada para a correção monetária das demonstrações financeiras do ano-base de 1989 e conversão em BTN. Em consequência, houve aumento do valor do tributo (IRPJ e CSSL) cobrado das empresas.

Repercussão geral

O STF reconheceu a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 30 da Lei 7.730/89 e do artigo 30 da Lei 7.799/89. Essas normas veiculavam a indexação da correção monetária das demonstrações financeiras no período-base de 1989, para efeito da apuração do IRPJ e CSSL, no âmbito do Plano Verão. O entendimento do STF foi adotado sob repercussão geral (RE 242.689).

Assim, ao julgar o recurso especial na Segunda Turma, o ministro Campbell aplicou o juízo de retratação previsto no artigo 543-B, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil (CPC). Por conta do julgamento do STF, ele considerou retirados do mundo jurídico os dispositivos declarados inconstitucionais, e concluiu que se fazia necessária a revisão da jurisprudência do STJ.

Na hipótese dos autos, o ministro entendeu que a correção monetária das demonstrações financeiras no período-base 1989 deverá tomar como parâmetro os termos da legislação revogada pelo Plano Verão. O magistrado ponderou que “até 15 de janeiro de 1989, a OTN já era fixada com base no IPC, e somente no próprio mês de janeiro, por disposição específica da Lei 7.799 (artigo 30, declarado inconstitucional), seu valor foi determinado de forma diferente (NCz$ 6,92). Também a BTN criada passou a ser fixada pelo IPC”, disse.

Sendo assim, o ministro relator concluiu que deverá ser aplicado o IPC para o período, como índice de correção monetária, conforme o artigo 6º, parágrafo único, do Decreto-Lei 2.283/86; o artigo 6º, parágrafo único, do Decreto-Lei 2.284/86; e o artigo 5º, parágrafo 2º, da Lei 7.777/89. Os índices aplicáveis a título de IPC são 42,72% em janeiro de 1989 e 10,14% em fevereiro de 1989, já estabelecidos pela jurisprudência do STJ.

Esta notícia se refere ao processo: REsp 1115895

Prova de operação anulada não serve para outra operação

Prova de operação anulada não serve para outra operação

 
Por terem sido obtidas a partir de um grampo declarado ilegal pelo Superior Tribunal de Justiça, também são, por consequência, nulas as provas que instruíram a operação poseidon, deflagrada em outubro de 2009 pela Polícia Federal para desarticular um suposto esquema de fraudes na importação de 70 veículos de luxo via Porto de Vitória, no Espírito Santo. Esse entendimento levou o juiz Marcus Vinícius Figueiredo de Oliveira Costa, da 1ª Vara Federal Criminal do Espírito Santo, a determinar o trancamento da respectiva ação penal.
O juiz baseou sua decisão em julgamentos do STJ que declararam ilegais longos períodos de interceptação telefônica a que foram submetidos alvos de outra investigação, denominada operação dilúvio, sobre descaminho e contrabando. As decisões do STJ são definitivas.
O grampo na poseidon se prolongou por mais de um ano. A legislação autoriza o procedimento por apenas 15 dias, prorrogáveis por mais 15. Há diferentes interpretações no Judiciário sobre se essa contagem deve ser feita apenas uma vez ou se repetir indefinidamente.
A operação dilúvio, desencadeada em 2004, abriu caminho para outras operações, como a poseidon. O juiz Marcus Vinícius Figueiredo de Oliveira Costa entendeu que as provas obtidas a partir da operação dilúvio "contaminaram" a investigação sobre a importação dos carros de luxo.
“Ainda que se pudesse cogitar da possibilidade de subsistência do crime de descaminho, ante algumas poucas constituições de crédito tributário, o fato é que os elementos que lhe deram suporte foram colhidos a partir das interceptações telefônicas declaradas nulas pelo STJ”, afirmou em sua decisão.
Para ele, sem as provas conseguidas na interceptação, não seria possível a obtenção dos mandados de busca e apreensão, nem colher o material probatório que instrui a denúncia.
O juiz argumenta que a denúncia feita pelo Ministério Público Federal é clara ao associar o início da investigação a documentos vinculados à operação dilúvio, contendo informações relacionadas a importações fraudulentas de automóveis.
“Dessa forma, tem-se que até mesmo naqueles casos em que houve constituição do crédito tributário, esta se deu com suporte em prova eivada pelo vício da ilicitude, não podendo subsistir, ante a aplicação da "teoria dos frutos da árvore envenenada" (artigo 157, parágrafo 1°, Código de Processo Penal)”, pontuou.
O juiz conclui que não há razões para a continuidade da ação penal, em relação aos crimes de descaminho e de falsidade ideológica, por conta da falta de “elementos representativos da materialidade delitiva”.
O raciocínio se aplica também ao delito de quadrilha. “Não configurados os delitos para os quais pretensamente a quadrilha se formara, não há que se falar na prática do delito de quadrilha”, diz.
“Se o material probatório que instrui a denúncia é nulo, contaminada está igualmente a decisão que a recebe”, finaliza.
Para o advogado Augusto Fauvel de Moraes, que defende um dos réus, a decisão respeitou o direito do cidadão assegurado pelo artigo 5º da Constituição, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Segundo ele, o Fisco, ao obter dados bancários por meio da quebra ilegal do sigilo de seu cliente, utilizou uma prova sem validade jurídica.
Histórico da operaçãoEm outubro de 2009, a Receita Federal, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal deflagraram a operação poseidon, para cumprimento de mandados de busca e apreensão nas cidades de São Paulo e Vitória.
A investigação, originada em procedimento fiscal da Alfândega de Vitória, sugeriu a existência de uma organização criminosa que praticava fraudes no comércio exterior, com ênfase na interposição fraudulenta de empresas e no subfaturamento na importação de carros de luxo e motocicletas.
As investigações apontaram que o mentor e principal beneficiário da fraude seria um tradicional revendedor de veículos importados na cidade de São Paulo, que, por meio do esquema, reduzia drasticamente seu desembolso com o pagamento dos impostos incidentes sobre a importação e sobre as vendas no mercado interno, obtendo lucros maiores e concorrendo deslealmente com importadores e comerciantes que operam dentro da lei.
Cerca de 212 automóveis e 100 motocicletas teriam sido nacionalizados irregularmente entre 2006 e 2009. De acordo com a Receita Federal, o volume de tributos sonegados na importação e no mercado interno, incluindo as multas, chegou a R$ 41 milhões.
Por essas ações, os participantes do esquema passaram a responder a processos pelos crimes de formação de quadrilha, descaminho, contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro, entre outros.
Clique aqui para ler a decisão.
Marcelo Pinto é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2014

Sem previsão contratual, Código Civil limita cessão de quotas

Sem previsão contratual, Código Civil limita cessão de quotas

 
Baseada no artigo 1.507 do Código Civil, que garante o direito de oposição na cessão de quotas em sociedade limitada, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça declarou inválida uma negociação selada sem que o conselho diretor da empresa soubesse que os adquirentes das quotas eram de uma companhia concorrente.
No caso, três sócios notificaram a empresa da intenção de venda de suas quotas. A sociedade e os outros membros não manifestaram interesse no direito de preferência e a cessão foi feita a terceiros.
O conselho diretor pediu a indicação do nome dos interessados na compra das quotas. Os sócios responderam que a exigência não estava prevista no contrato social e, não sendo exercido o direito de preferência em tempo hábil, as frações poderiam ser livremente negociadas.
A transferência foi feita, mas, em assembleia, mais de 67% do capital social se opôs à entrada dos compradores, que, então, ajuizaram ação pedindo a validação dos instrumentos de cessão e transferência das quotas. A petição foi julgada procedente.
Em recurso ao STJ, a empresa sustentou que a determinação considerou apenas a cláusula que trata do direito de preferência, ignorando o direito de oposição presente no artigo 1.507 do Código Civil.
O relator da matéria, ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que, “tratando-se de sociedade limitada, a qual ostenta natureza híbrida — ora com feição personalista, ora privilegiando o capital —, a matéria relativa à cessão de posição societária deve observar regras específicas, previstas no artigo 1.507 do diploma civil”.
Salomão reconheceu a faculdade de o contrato social dispor sobre critérios, condições e restrições à transmissão de quotas, mas disse que, no caso, não havia autorização expressa à livre alienação das quotas sociais para estranhos.
“A previsão genérica da possibilidade de cessão a terceiros equivale, portanto, segundo penso, ao silêncio, atraindo a aplicação da norma inserta no artigo 1.057 do mesmo diploma legal, que submete a transmissão para não sócio ao consentimento prévio de três quartos dos membros”, disse.
O ministro também comentou a atitude dos sócios cedentes ao não revelar o nome dos cessionários. “O pedido de esclarecimento consubstanciado na indicação do interessado na aquisição das quotas sociais era medida previsível e salutar, cujo escopo precípuo era justamente a preservação da affectio societatis e, em última instância, da ética, transparência e boa-fé objetiva, elementos que devem nortear as relações interpessoais tanto externa quanto interna corporis”, concluiu. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.
REsp 1.309.188
 
Revista Consultor Jurídico, 9 de maio de 2014

quinta-feira, 8 de maio de 2014

STF julga improcedente ADI contra dispositivos da Lei Geral da Copa

STF julga improcedente ADI contra dispositivos da Lei Geral da Copa

Por dez votos a um, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADI 4976, na qual a Procuradoria Geral da República questiona dispositivos da Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012). Os pontos questionados foram os que responsabilizam a União por prejuízos causados por terceiros e por fenômenos da natureza; que concederam prêmio em dinheiro e auxílio mensal aos jogadores das seleções brasileiras campeãs das Copas de 58, 62 e 70; e que isentam a Fifa e suas subsidiárias do pagamento de custas e outras despesas judiciais.
O relator, ministro Ricardo Lewandowski, votou pela improcedência da ADI, seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, ficando parcialmente vencido o ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF.
Responsabilidade
O relator, ministro Ricardo Lewandowski, apontou as vantagens econômicas (materiais) e imateriais de o Brasil sediar eventos esportivos como a Copa do Mundo, entre elas melhora da imagem do país, o aumento das exportações, o incremento ao turismo, a melhora da qualidade dos produtos e serviços, a incorporação de novas tecnologias e maior conforto aos cidadãos.
Para o ministro, o artigo 23 da Lei Geral da Copa não ofende o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, que, a seu ver, não esgota a matéria relacionada à responsabilidade civil da Administração Pública. Tanto que o artigo 21, inciso XXIII, alínea “d”, da Constituição prevê a responsabilização da União por danos nucleares, independentemente da existência de culpa. O ministro destacou que, para alguns doutrinadores, seria aplicável no caso de danos nucleares a teoria do risco integral, na qual se exclui a demonstração do nexo causal entre o dano e a ação do Estado.
O mesmo se dá, segundo ele, na legislação infraconstitucional, por exemplo, na Lei 10.744/2003, que atribui à União responsabilidade no caso de atentados terroristas e atos de guerra. Dessa forma, entendeu que o compromisso de sediar a Copa foi assumido “livre e soberanamente” pelo Brasil à época de sua candidatura, e entre as garantias prestadas pelo país “figura a responsabilidade por eventuais danos decorrentes do evento”.
Prêmio
O relator afastou a alegação da PGR de que não há justificativa nem previsão orçamentária para pagamento do prêmio e auxílio a jogadores campeões do mundo de 58, 62 e 70. Segundo ele, há 25 leis posteriores à promulgação da Constituição de 1988 prevendo o pagamento de pensões, sem questionamento da previsão orçamentária, aos descendentes de Tiradentes, aos sertanistas Cláudio e Orlando Villas-Boas, ao médium Chico Xavier e aos chamados “soldados da borracha”, entre outros. Em tais casos, o Congresso levou em conta, além do caráter assistencial, também o alcance da atividade dessas pessoas e o atendimento de demandas sociais geradas por fatos “excepcionais, imprevisíveis e não reeditáveis”, que não exigem contraprestação.
Custas processuais
O relator também declarou constitucional o artigo 53, que trata da isenção de custas e despesas judiciais para a FIFA. Segundo o ministro, o STF e a doutrina admitem a concessão de isenção tributária com objetivos determinados. No caso, conforme observou, a isenção prevista pela Lei Geral da Copa não se destina a beneficiário individual, mas trata-se de uma política de Estado soberano para garantir a realização de eventos de interesse de toda a sociedade.
Demais votos
O ministro Luís Roberto Barroso acompanhou integralmente o voto do relator. “Trata-se de uma lei que foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo chefe do Poder Executivo”, afirmou. “Não acho, por mais crítica que seja a visão que um juiz possa ter desta decisão política, que o Supremo possa, deva ou queira ser juiz de decisões de conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos”.
Para o ministro Teori Zavascki, a lei atendeu às condições de constitucionalidade, como a inclusão da previsão das fontes de custeio, com receitas oriundas do Tesouro Nacional.
“À luz do preceitos constitucionais, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade nos dispositivos da Lei Geral da Copa apontados nessa ação”, disse a ministra Rosa Weber. Ela explicou que, em seu voto, não exerce qualquer juízo valorativo, de conveniência ou de oportunidade. “Não entendo que seja este o juízo que se busca perante essa Corte”, concluiu.
O ministro Luiz Fux entendeu não haver razão para invalidar os dispositivos da lei que dispõem sobre o pagamento de pensões para ex-jogadores. Destacou ainda que a regra da responsabilidade civil prevista na norma representa apenas uma garantia mínima para o cidadão de que quaisquer danos sofridos durante o evento serão devidamente reparados.
O ministro Dias Toffoli observou não ver inconstitucionalidade na lei e lembrou que muitos dos ex-jogadores se encontram em situação de penúria, o que justificaria a concessão da pensão.
A ministra Cármen Lúcia considerou que não houve extrapolação da norma de responsabilidade objetiva, como alegado pela PGR. Segundo a ministra, a lei não afirma a responsabilidade plena, mas sim a assunção, pelo Estado, dos efeitos da responsabilidade, que será apurada em cada caso.
Para o ministro Gilmar Mendes, "houve uma clara delimitação das pensões, que foram colocadas dentro de patamares adequados”. Ele ressaltou que não parece ter havido qualquer exagero, uma vez que se busca assegurar o mínimo existencial, e considerou “justo e compreensível” o debate político em torno da Copa, “colocado a partir das manifestações de junho no sentido de que devemos buscar serviços públicos de qualidade”. Segundo o ministro Gilmar Mendes, um evento dessa magnitude movimenta a economia e produz efeitos imediatos em vários setores, como o turismo, e se reflete no aumento da arrecadação – que, por sua vez, “contribui certamente para a melhoria dos serviços”.
De acordo como ministro Marco Aurélio, a segurança pública é dever do Estado. Caso ocorra um incidente ligado à segurança, “evidentemente a FIFA não será responsável pelo ressarcimento dos prejuízos”. Quanto ao prêmio a ex-jogadores, ressaltou que “veio um pouco tarde”, considerado o reconhecimento das Copas de 58, 62 e 70. Para ele, não há o problema do custeio e “é impróprio invocar-se o artigo 195, parágrafo 5º, da Constituição”, tendo em vista que as despesas não correrão às custas da Previdência, mas sim do Tesouro Nacional. Assim, acompanhou o voto do relator, ressaltando sua preocupação em preservar a soberania do Brasil.
O ministro Celso de Mello registrou a importância da iniciativa processual da Procuradoria Geral da República ao questionar dispositivos da Lei Geral da Copa, mas afirmou que, a partir do juízo de validade constitucional, a pretensão não merecia prosperar. Para o decano do STF, o voto do relator esgotou todos os aspectos questionados, demonstrando que a Lei Geral da Copa é compatível com o que dispõe o artigo 217 da Constituição de 1988, “a primeira a dedicar um capítulo às práticas desportivas formais e não formais”.
Divergência
O presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, julgou parcialmente procedente a ação, divergindo do relator apenas em relação ao artigo 53 da Lei Geral da Copa. O dispositivo concede à Fifa e às suas subsidiárias no Brasil, representantes legais, consultores e empregados isenção no adiantamento de custas, emolumentos, caução, honorários periciais e outras despesas devidas ao Poder Judiciário, salvo se comprovada má-fé. Para o ministro, a concessão da isenção à Fifa (uma entidade privada) viola tanto o principio da isonomia quanto o que exige motivação idônea para qualquer tipo de exoneração fiscal. Segundo ele, a desoneração estabelecida no artigo 53 é apenas a “ponta do iceberg”, se comparada a outros benefícios que não estão em debate nesta ADI.
Leia a íntegra do voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski.
Fonte: STF

Direito mastigado e literatura facilitada: agora vai!

Direito mastigado e literatura facilitada: agora vai!

 
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Campeonato de várzeaFiquei sabendo que no “campeonato mundial do raciocínio”, o Brasil ficou fora das oitavas de final, perdendo, ao que parece, para importantes nações como Honduras e Burkina Faso. Consta que ficamos no 38º lugar entre 44 países. Antes já sabíamos que parcela considerável dos universitários é analfabeta funcional. Penso que isso é assim porque vivemos tempos de estandardização. Tudo é prêt-à-porter (e prêt à penser e prêt-à-parler). O simbólico disso é o twitter. Hoje as pessoas não leem. Tuitam. Limitaram tudo a 140 caracteres. Tudo deve ser resumido. A TV “explica” o mundo colando o “relé”, ou seja, para explicar a enchente, o repórter fica com água pelo pescoço. Resultado: o que ficou resumido foi o cérebro da malta. Assim, forjou-se um novo “paradigma” (ironia minha): a nesciontologia, onde impera a “nesciedade”, que quer dizer estultice, mediocridade, etc (Cervantes fustigava os néscios). Nesse “paradigma neciontológico”, estuda-se o “ser do néscio”. E os fundamentos da nescio-cracia, cujo regime político deverá substituir a nossa frágil demo-cracia.
Pois se alguém achava que estávamos mal, acabaram-se os problemas: no ar, um novo produto — a facilitação na literatura. “Simplificações Tabajara”, a nova onda. Peguemos Shakespeare e o simplifiquemos. E vamos “orelhar” Machado de Assis. E assim por diante. A vida imita a arte. Ou a arte imita o direito? Os juristas chegaram antes. Mas foram alcançados pela gente da literatura. Bem feito. Só espero que isso não chegue na física e na química. Se chegar na medicina vou estocar comida ... Na psicologia já chegou, porque já vi Gestalt em resumos.
Para quem ainda não sabe: Os jornais noticiam (ler aqui) que a escritora Patricia Secco encontrou um novo nicho para vender seu peixe, a exemplo do que ocorre nos cursinhos na área jurídica (e nas faculdades). Vejam a genialidade da moça: "Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis". E ela “explica”: "— Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso." Bingo! Hip, hip, hurra! Diz mais a matéria da Folha de S.Paulo: “—Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de ‘O Alienista’, obra de Machado lançada em 1882, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um "sagacidade" virou "esperteza", por exemplo"). "A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil." Ah, bom. E o projeto dela não para por aí. Vem mais coisa por aí.
Estamos perdidos. “A equipe que ‘descomplica’ o texto é formada ‘por um monte de gente’, diz a autora, entre eles a própria e dois jornalistas amigos”. Aleluia. Achei que ela estava sozinha nessa nova empresa facilitadora. Vê-se, assim, que Patricia não receberá o Prêmio (Ig)Nobel sozinha. Estará acompanhada em Estocolmo! Já imagino a cerimônia da entrega: E por ter inventado a literatura facilitada-simplificada, o (Ig)Nobel vai para Pindorama! Quero estar lá para ver. Vou pedir passagens aéreas e estadia via Lei Rouanet. Aliás, como fez Patrícia para publicar 600 mil exemplares, segundo consta na imprensa. Tinha que ter dinheiro da Viúva nisso. Todos nós pagamos os pato. Viva a Viúva. O Brasil anda a passos de cágado.
Incrível como perdemos os fundamentos e os sentidos. É essa praga da pós-modernidade que-ninguém-sabe-o-que-é. Pulamos da modernidade e caímos em um vazio recheado de simplificações, twitters, sertanejos-universitários e universitários sertanejos. Jeca Tatu venceu. Viva nosso imaginário jeca!
Já aqui vai uma sugestão para a autora e seus amigos (com isso, o Nobel é certo!). A peça Julio Cesar, de Shakespeare, pode ter substituída, já no início, por frases curtinhas e bem explicativas. Por exemplo, eis o texto original:
“De uma feita, numa tarde enublada e tempestuosa, em que o Tibre agitado se batia dentro das próprias margens, perguntou-me César: “Cássio, ousarias atirar-te, junto comigo, na corrente infensa e nadar até ali?” Mal acabara de falar-me, vestido como estava, joguei-me na água e a me seguir chamei-o, o que ele fez de fato. A correnteza roncava; nós lutávamos contra ela com membros indefesos, apartando-a e à sua fúria opondo o ousado peito. Mas antes de alcançarmos nossa meta, César gritou: “Socorro, Cássio! Afogo-me!” Então, tal como Enéias, nosso grande progenitor, que carregam aos ombros o velho Anquises e o salvara às chamas que Tróia devastavam: da corrente do Tibre, assim, tirei o exausto César. Num deus, agora, está mudado esse homem, sendo Cássio uma mísera criatura que precisa curvar-se, quando César com enfado lhe faz um gesto vago. Na Espanha apanhou febre; e, quando o acesso lhe vinha, notei bem como tremia. Sim, esse deus tremia; seus covardes lábios ficaram pálidos, e os mesmos olhos que ao mundo todo inspiram medo o brilho a perder vieram. Muitas vezes o ouvi gemer. Sim, essa mesma língua que os romanos deixava estupefactos, levando-os a guardar os seus discursos, ah! gritava tal qual donzela doente: “Água, Titínio! Dá-me um pouco de água!” Muito me espanta, ó deuses! ver que um homem de uma constituição assim tão fraca tenha passado à frente neste mundo majestoso e, sozinho, obtido a palma”.
Lindo, não? Mas muito complicado. Solução tabajara: uma nova versão de Júlio Cesar simplificado, na qual poderíamos ler: Cassio era um intrigueiro (=fuxiqueiro). Odiava Cesar. Para mostrar como Cesar era um sujeito bundão, contou para Brutus que Cesar não sabia nadar e um dia quase morreu de sede. Resumindo a fala de Cassio: Cesar se achava um Deus, mas era um incompetente e medroso. Nem nadar sabia. Ah: o Enéias do texto não é o “meu nome é Eneas”. Final: Brutus acreditou nisso e acabou com Cesar.
Eis a sugestão (grátis) que dou para o volume sobre Shakespeare! Abaixo, a capa do livro e a contracapa:
Ah: outra dica — O maior romance semiológico de Eco, O Nome da Rosa, pode ser facilitado, transformando o personagem (ockeano) Guilherme de Baskerville em Sherlock Holmes e o Adso de Melk em “meu caro Watson”. Pronto. Para que ficar discutindo nominalismo, poder, segredo, medievo, secularização etc, se podemos resumir tudo a um romancezinho policial? Bingo de novo! E uma versão simplificada de A Revolução dos Bichos (bichinhos que aprendem a falar) poderia facilmente se tornar roteiro de um filme da Disney. A Metamorfose de Kafka seria um livro sobre uma pessoa que vira uma barata. Ponto final. Ainda: A Megera Domada pode ser uma versão “simplificada” de 50 Tons de Cinza. E eu vou para o meu Bunker Facilitado. Lerei de novo Der Mann ohne Eigenschaften (O Homem Sem Atributos), de Robert Musil (o maior romance do século XX), antes que essa gente faça uma facilitação dizendo que o personagem Ulrich era um desclassificado (porque não tinha qualidades... se me entendem a ironia ou o sarcasmo)... Afinal, quem troca “sagacidade” por “esperteza” porque acha que a choldra não saberá o sentido, por certo achará que “sem qualidades” quererá dizer “incompetente”!!! Bingoooo!
É que tal Bobók, considerado por muitos uma das mais importantes menipeias de toda a literatura universal. Seria fácil “simplifica-lo”, pois não? Para que afinal perder tempo com temas que, incluídos no conto, retratam boa parte da complexa obra de Dostoiévski, se é possível dizer que o livro diz respeito apenas às excentricidades de um bando de almas penadas que, num cemitério, decidem narrar desavergonhadamente suas perversões praticadas em vida... Almas penadas safadinhas e desbocadas.
E Bentinho, coitado ... Logo os simplificadores de Dom Casmurro estarão rotulando o pobre rapaz de cornudo, sem pestanejar! E colocarão no twitter: # Perdeu, Bentinho corno!
Pronto. Por que ler o original se podemos ler um “facilitado” com sinônimos? A Sinfonia Inacabada de Schubert por certo merecerá um lançamento por parte do grupo dos (neo)facilitadores. E ainda dirão que esse Schubert — por certo, um preguiçoso — poderia ter acabado a sinfonia com trinta minutos menos, além do relevante fato de que poderia ter poupado divisas para o Imperador, dispensando um tocador do Oboé, três violinistas, etc.
O Brasil é terrível. Há tempos atrás, o programa Fantástico da Globo quis ensinar filosofia nos domingos à noite. Queria, é claro, facilitar. Genial, não? No primeiro programa a repórter-filósofa entrou em uma caverna em Tubarão (SC), e de lá buscou explicar...o Mito da Caverna. Entenderam? Caverna-que-é-igual-a-uma...caverna! Bingo. O Nobel e o Ignobel são nossos. Na sequência, para explicar Heráclito, ela subiu em um caminhão, para falar do... movimento. Céus. O que mais inventarão?
Tudo para facilitar a vida dos néscios. Dos néscios, pelos néscios e para os néscios (DOPELOPÁ). A nesciocracia venceu. Até na literatura. Estamos liquidados. Há um livro que pode nos ajudar a entender isso e que li nesses feriados: Psiche e techne – O homem na idade da técnica, de Umberto Galimberto, um “pacote” de 917 páginas (não havia uma versão facilitada e tive que pegar o original). Lendo-o, vislumbra-se a era da técnica, da alienação, do Google, da cultura de massa (que, no caso, não é um carboidrato!). Mais: como jurista, dá para ver a técnica dominando o homem do direito. Ele já não maneja a técnica; é ela que o maneja. O processo eletrônico é um bom exemplo disso. O jurista virou “suco”, exprimido entre techne e psique.
Heidegger alertava: O que inquieta, de fato, não é que o mundo se transforme num completo domínio da técnica. Muito mais preocupante é que o homem não está preparado para essa radical mudança do mundo.
Trata-se da soma da era da técnica com a cultura de massa, em que ocorre a desarticulação entre público e privado, entre social e individual, operada pela racionalidade técnica, que modifica também o conceito tradicional de massa, introduzindo uma variante que é a sua atomização e desarticulação em singularidades individuais, que, modeladas por produtos de massa, consumos de massa, informações de massa, tornam obsoleto o conceito de massa como concentração de muitos e atual o conceito de massificação como qualidade de milhões de indivíduos, cada um dos quais produz, consome e recebe as mesmas coisas de todos, mas de modo solitário (Galimberti).
No direito, eis o caldo de cultura onde pode ser encontrado o atual homo juridicus, o homo concurseirus, homo senso comunis, enfim, essa nova espécie de jurista FaSimpleResum (o jurista que quer facilidades, simplificações e resumos — estou resumindo para facilitar!!!). Para ele, o Direito é uma mera técnica. Uma mera racionalidade formal-instrumental, como se fosse uma ferramenta comum, uma enxada ou um machado. Às vezes até uma régua (“princípio” da proporcionalidade?”). Por isso, o direito sempre pode ser manipulado de qualquer modo. Não exige grandes elucubrações. O processo vira também instrumento. E a interpretação se faz via retórica, em que essa se autonomiza.
Numa palavra final.
Parafraseando Nietzsche, no Nascimento da Tragédia, digo: como se poderá constranger esse senso comum e essa fragmentação a abandonarem os seus segredos, a não ser se opondo vitoriosamente a ele? Mas como fazer isso?
Parece que ficamos em um meio fio: entre a ruptura e a alienação (acomodação). Opor-se vitoriosamente é sempre uma tarefa perigosa. Entregar-se ao conforto e à simplificação é sempre sedutor. A palavra alienação vem do latim alienus, que quer dizer “o outro”. Por isso o inferno sempre é o outro ou sempre são os outros. É possível derrotar tabus? Quais os totens a serem derrubados?
Mas para isso há que se tomar consciência do problema. E estar atento aos efeitos que a história tem sobre nós. Como diz o autor de Techne e Psiche, a memória desvela aquela abertura para o sentido da qual está excluído o animal, que, sem memória, não tem consciência de si nem do mundo que o circunda.
O homo simplificatus, alienado de sua condição, não-sabe-que-não-sabe. Não se dá conta que-pode-se-dar-conta. Mergulhado no senso comum, fica refém de um mundo pré-dado. E que, por ser pré-dado, é-lhe predador!
Outro livro que li nos feriados foi O livro dos Prazeres Proibidos, de Frederico Andahazy. É um romanceamento picante sobre a história da “invenção” do livro. Guttenberg é o personagem, é claro. Trabalhando com seu pai, que cunhava moedas para o Rei, vê com admiração os calígrafos reproduzindo a bíblia e outros textos. Diz, então, Guttenberg:
-“Estes homens devem ser verdadeiros sábios. Afinal, tanto copiam e com tal perfeição...”.
“-Talvez” – disse-lhe seu pai, esboçando um sorriso, e complementou: “- Se soubessem ler. Os melhores copistas são aqueles que não sabem ler”.
De fato: os melhores copistas são aqueles que não sabem ler! Bingo outra vez!
Post scriptum 1: para quem acha que isso que acabei de escrever não é necessário, vai uma frase de outro filósofo que curto (quem m’o apresentou foi o filósofo Alfredo Culleton), sobre a diferença entre sábios e néscios. Chama-se Avicena. Ele dizia:
Um sábio sabe a diferença entre as coisas necessárias e as desnecessárias. O néscio não sabe disso. Solução: bata-se nele (no néscio) com um chicote até que ele grite: “basta, basta: isso não é necessário”. Pronto. Agora ele aprendeu a diferença entre o necessário e não necessário.
Saludos para todos os que sabem a diferença entre o que é necessário e o que não é necessário! Sem necessitarmos colocar sinônimos... E sem substituir sagacidade por esperteza. Caso contrário, Chapolin Colorado dirá: não contavam com minha sagacidade...!
Vou aproveitar para iniciar um movimento similar no direito, que seria mais ou menos assim:
Comunidade Jurídica de terrae brasilis: impeça que o direito continue a ser “facilitado”, “simplificado”, “mastigado” e “resumidinho”.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 8 de maio de 2014

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