Porque a ponderação e a subsunção são inconsistentes
Todos sabem que há muito abandonei o neoconstitucionalismo (ver aqui). Tenho referido que o neoconstitucionalismo brasileiro, com raras exceções[1], representa, apenas, a superação do positivismo tradicional, na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da escola do Direito livre, da jurisprudência dos interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta última, da jurisprudência dos valores. Minhas críticas ao neoconstitucionalismo valem para as teorias da argumentação e às posturas que professam voluntarismos e defendem o poder discricionário dos juízes.
Com efeito, a partir de campos diferentes do conhecimento, é possível separar o velho e o novo no Direito. Em outras palavras, se não há segurança para apontar as características de uma teoria efetivamente pós-positivista e coerente com o que denomino de Constitucionalismo Contemporâneo — fórmula com a qual substituí o neoconstitucionalismo — há, entretanto, condições para que se possa dizer “o que não é” e “o que não serve” para a contemporânea teoria do direito, mormente em países com sistemas e ordenamentos jurídicos complexos.
De todo modo, vale a pena insistir nos pontos de convergência das teorias críticas e/ou que se pretendem pós-positivistas: diante dos fracassos do positivismo tradicional, a partir da busca da construção de uma autônoma razão teórica, as diversas posturas críticas buscaram, sob os mais diversos âmbitos, (re)introduzir os “valores” no Direito. Assim, por exemplo, diante de uma demanda por uma tutela que esteja relacionada com a vida, com a dignidade da pessoa, enfim, com a proteção dos direitos fundamentais, o que fazer? Qual é a tarefa do jurista?
Definitivamente, o novo constitucionalismo — seja qual for o seu (mais adequado) sentido — não trouxe a indiferença. Na verdade, houve uma pré-ocupação de ordem ético-filosófica: a de que o Direito deve se ocupar com a construção de uma sociedade justa e solidária. Em outras palavras, o desafio do Estado Constitucional (lato sensu) tem sido o seguinte: como fazer com que o Direito não fique indiferente às injustiças sociais? Como fazer com que a perspectiva moral de uma sociedade que aposte no Direito como o lugar da institucionalização do ideal da vida boa não venha pretender, em um segundo, “corrigir” a sua própria condição de possibilidade, que é o direito que sustenta o Estado Democrático?
Vejamos isso. O tão decantado “neoconstitucionalismo” deveria ser sinônimo de “novo paradigma”. Isto porque o Direito — do paradigma exsurgido no segundo pós-guerra — deixa de ser meramente regulador para assumir uma feição de transformação das relações sociais, circunstância que pode ser facilmente constatada a partir do exame dos textos constitucionais surgidos nesse período.
Com a desconfiança em relação ao legislativo (e às mutações produzidas pelas maiorias incontroláveis), passou-se a apostar em uma matriz de sentido dotada de garantias contra essas maiorias eventuais (ou não). Fazer democracia a partir do e pelo Direito parece que passou a ser o lema dos Estados Democráticos. Isso implicou – e continua a implicar – mudanças de compreensão: como olhar o novo com os olhos do novo?
Pois bem. Quais seriam os elementos caracterizadores desse fenômeno (que uma das vertentes denominou de “neoconstitucionalismo”)? Seria uma espécie de positivismo sofisticado? O “neoconstitucionalismo” teria características de continuidade e não de ruptura?
Não há suficiente clareza nas diversas teses acerca do significado do “neoconstitucionalismo”. De todo modo, vale lembrar que o neoconstitucionalismo tem sido teorizado sob os mais diferentes enfoques. Écio Oto, de forma percuciente, faz uma descrição das principais propriedades/características desse fenômeno.[2] Essa “planta” do neoconstitucionalismo também possui, de um modo ou de outro, a assinatura de autores como Susanna Pozzolo, Prieto Sanchís, Sastre Ariza, Paolo Comanducci, Ricardo Guastini, com variações próprias decorrentes das matrizes teóricas que cada um segue (no Brasil Luis Roberto Barroso, Daniel Sarmento, entre outros, com os quais mantenho, nesse particular, por sobejas razões, profundas — porém respeitosas — divergências). Analiso, aqui, a problemática a partir de dois pontos. Assim:
a) O neoconstitucionalismo (não) é “pós-positivista”O pós-positivismo deveria ser a principal característica do neoconstitucionalismo. Mas não é. Ou seja, o neoconstitucionalismo somente teria sentido como “paradigma do direito” se fosse compreendido como superador do positivismo ou dos diversos positivismos. Pós-positivismo não é uma continuidade do positivismo, assim como o neoconstitucionalismo não deveria ser uma continuidade do constitucionalismo liberal. Há uma efetiva descontinuidade de cunho paradigmático nessa fenomenologia, no interior da qual os elementos caracterizadores do positivismo são ultrapassados por uma nova concepção de direito. Bem, ao menos isso deveria ser assim.
Penso que o ponto fundamental é que o positivismo nunca se preocupou em responder ao problema central do Direito, por considerar a discricionariedade judicial como uma fatalidade. E isso é imperdoável. A razão prática — locus onde o positivismo coloca a discricionariedade — não poderia ser controlada pelos mecanismos teóricos da ciência do direito. A solução, portanto, era simples: deixemos de lado a razão prática (discricionariedade) e façamos apenas epistemologia (ou, quando esta não dá conta, deixe-se ao alvedrio do juiz — eis o ovo da serpente gestado desde a modernidade).
Este ponto é fundamental para que fique bem claro para onde as teorias do direito auto denominadas pós-positivistas (ou não positivistas, o que dá no mesmo) pretendem apontar sua artilharia: o enfrentamento do problema interpretativo, que é o elemento fundamental de toda experiência jurídica. Isto significa afirmar que, de algum modo, todas as teorias do Direito que se projetam nesta dimensão pós-positivista procuram responder a este ponto; procuram enfrentar o problema das vaguezas e ambiguidades dos textos jurídicos; procuram, enfim, enfrentar problemas próprios da chamada razão prática — que havia sido expulsa do território jurídico-epistemológico pelo positivismo.
Tenho que somente poder ser chamada de pós-positivista uma teoria do Direito que tenha, efetivamente, superado o positivismo, tanto na sua forma primitiva (exegético-conceitual), quanto na sua forma normativista-semântico-discricionária. A superação do positivismo implica enfrentamento do problema da discricionariedade judicial ou, também poderíamos falar, no enfrentamento do solipsismo da razão prática (veja-se a crítica que Habermas faz à razão prática eivada de solipsismo). Implica, também, assumir uma tese de descontinuidade com relação ao conceito de princípio. Ou seja, no pós-positivismo, os princípios não podem mais ser tratados no sentido dos velhos princípios gerais do direito e nem como cláusulas de abertura. Eis o desastre representado, por exemplo, pela LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) em terrae brasilis. Que lástima foi a aprovação dessa lei.
b) Ponderações, subsunções e suas impossibilidades filosóficasPois bem. Se o pós-positivismo tem sido considerado como o principal elemento diferenciador/caracterizador do neoconstitucionalismo, a ponderação acabou por se transformar no grande problema e, por assim dizer, em um obstáculo ao próprio neoconstitucionalismo.
O que quero dizer é que o neoconstitucionalismo não pode(ria) e não deve(ria) depender de juízos de ponderação, mormente se percebermos que “ponderação” e “discricionariedade” são faces de uma mesma moeda. Afinal, no modo como a ponderação vem sendo convocada (e “aplicada”) em terrae brasilis, tudo está a indicar que não passa daquilo que Philipp Heck chamava, na Jurisprudência dos Interesses, de Abwägung, que quer dizer “sopesamento”, “balanceamento” ou “ponderação”. Com a diferença de que, na Interessenjurisprudenz, não havia a construção da “regra da ponderação” (claro que essa construção está em Alexy e não nas práticas brasileiras).
Ou seja, na medida em que, nas práticas dos tribunais (assim como na doutrina) de terrae brasilis as “colisões de princípios” são “solucionadas” a partir de uma ponderação “direta”, confrontando um princípio (ou valor ou interesse) com outro, está-se, na verdade, muito mais próximo da velha Interessenjurisprudenz, com fortes pitadas da Wertungsjurisprudenz (jurisprudência dos valores). E, assim, o neoconstitucionalismo acaba revelando traços que dão condições ao desenvolvimento do ativismo judicial,[3] que à diferença do fenômeno da judicialização da política (que ocorre de modo contingencial, isto é, na incompetência dos demais Poderes do Estado), apresenta-se como uma postura judicial para além dos limites estabelecidos constitucionalmente.
Neste contexto, não surpreende que, embora citada e recitada ad nauseam pela doutrina e pelos tribunais, não seja possível encontrar uma decisão sequer aplicando a regra da ponderação. Há milhares de decisões (e exemplos doutrinários) fazendo menção à ponderação, que, ao fim e ao cabo, é transformada em álibi retórico para o exercício dos mais variados modos de discricionarismos e axiologismos. Ou de argumentos meta-jurídicos.
De todo modo, podemos “dar de barato” que a falta de concretização das Constituições programáticas demandou uma reformulação na teoria dos princípios, representada pelo abandono do chamado critério fraco de diferenciação (que considera princípio e regra com a mesma estrutura lógica hipotético-condicional e com diferentes densidades semânticas) para a adoção do critério forte de distinção, onde os princípios assumiam estrutura lógica diferente daquela que identificava a regra. Isso colocou, infelizmente, os princípios sob o manto metodológico da ponderação (enquanto que a regra se mantinha na subsunção — sic!). Permitiu-se, assim, novas possibilidades para os princípios e não demorou muito para que estivéssemos falando em aplicação direta mediante ponderação controlada pela proporcionalidade (sic).
Mas o fato é que esse giro não conferiu ao princípio suficiência ôntica-semântica, além de ter mantido intacto o erro originário: o mundo prático foi jogado para “dentro” do sistema e, a partir dessa operação, foi pensado como tal (como sistema). Ou seja, o mundo prático que é concreto ou, na falta de uma melhor palavra, pragmático, paradoxalmente é retratado ao modo da abstratalidade própria da ideia de sistema. A percepção originária de que os princípios não possuíam densidade semântica conteve, bem ou mal, o avanço — ao menos no início — da “pamprincipiologia”, mas o equívoco no diagnóstico da crise fez com que os princípios elevassem o grau de discricionariedade, decisionismo e arbitrariedade. Facilmente perceptível, assim, o “fator Katchanga Real” que atravessou a aplicação dos princípios.
Em termos práticos (e no interior do pensamento alexiano), a distinção entre regras e princípios perde a função — ao menos no plano de uma teoria do direito calcada em paradigmas filosóficos —, uma vez que não há mais a distinção subsunção-ponderação. E não é assim porque eu quero. Isso é assim porque é impossível sustentar a subsunção no plano dos paradigmas filosóficos pós-giro linguístico. Ao mesmo tempo, isso faz com que a ponderação se transforme em um procedimento generalizado de aplicação do Direito. Desse modo, em todo e qualquer processo aplicativo, haveria a necessidade de uma “parada” para que se efetuasse a ponderação. Nem vou falar aqui da ponderação de regras, por total falta de sentido.
De todo modo, o problema principal da ponderação é a sua filiação ao esquema sujeito-objeto (ou das vulgatas voluntaristas da filosofia da consciência) e a sua dependência da discricionariedade, ratio final. Desse modo, se a discricionariedade é o elemento que sustenta o positivismo jurídico nos hard cases e nas vaguezas e ambiguidades dos textos jurídicos, não parece que a ponderação seja “o” mecanismo que arranque o Direito dos braços do positivismo. Pode até livrá-lo dos braços do positivismo primitivo, mas inexoravelmente o atira nos braços de outra forma de positivismo — axiologista, normativista ou pragmati(ci)sta. Veja-se: a teoria da argumentação, de onde surgiu a ponderação, não conseguiu fugir do velho problema engendrado pelo subjetivismo, a discricionariedade, circunstância que é reconhecida pelo próprio Alexy.[4]
Aliás, quem escolhe os princípios a serem sopesados? Numa palavra: dizer que a ponderação é um elemento caracterizador do neoconstitucionalismo está correto. Mas é exatamente por isso que, nos moldes em que situo o Constitucionalismo Contemporâneo, não há espaço para a ponderação. Em definitivo: a subsunção — admitida para os easy cases — não tem lugar no plano de um paradigma filosófico que ultrapassou o esquema sujeito-objeto. De todo modo, resta uma pergunta: e por que a regra de direito fundamental adscripta (resultado da ponderação) se transforma em uma subsunção de segundo grau ou uma “metassubsunção”?
Na perspectiva do Constitucionalismo Contemporâneo que defendo — portanto, para além das diferentes formas de positivismo —, a juridicidade não se dá nem subsuntivamente, nem dedutivamente. Ela se dá na applicatio, em que interpretar e aplicar não são atos possíveis de cisão. Isso implica afirmar — e superar — a distinção entre easy e hard cases. É sabido que, para as teorias da argumentação, os easy cases são solucionados pela via da subsunção, circunstância que, no limite — como que a repetir a tese de um objetivismo ingênuo — dispensa a mediação interpretativa. Permito-me repetir: isso não passa de um objetivismo ingênuo. Afinal, subsunção pressupõe esgotamento prévio das possibilidades de sentido de um texto e um automático acoplamento do fato. Ora, tal perspectiva implica um mergulho no esquema sujeito-objeto, portanto, aquém do giro linguístico-ontológico. A questão, entretanto, assume contornos mais complexos quando as teorias da argumentação (e falo nelas porque o neoconstitucionalismo nelas se sustenta), a partir dessa distinção estrutural easy-hard cases, sustentam que os princípios (somente) são chamados à colação para a resolução dos assim denominados hard cases. Mas, pergunto: um caso pode ser fácil ou difícil antes de “acontecer juridicamente”? Veja-se que, aparentemente, a distinção easy-hard cases não acarretaria maiores problemas no plano hermenêutico-aplicativo, não fosse o seguinte ponto: o de que é pela ponderação que se resolverão os hard cases.
Dito de outro modo, a admissão da cisão estrutural easy-hard cases passa a ser condição de possibilidade do ingresso da ponderação no plano da interpretação jurídica. Tudo isso para dizer que não podemos mais aceitar que, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda se postule que a luz para a determinação do direito in concreto provenha do protagonista da sentença. Isso quer dizer que, para além da cisão estrutural entre easy e hard cases, não pode haver decisão judicial que não seja fundamentada e justificada em um todo coerente de princípios que repercutam a história institucional do direito. Por isso, a necessidade de superarmos os discricionarismos, que, no mais das vezes, descambam na arbitrariedade interpretativa. O modo como fazer isso procuro delinear em Verdade e Consenso[5] e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica[6] , para onde me permito remeter o leitor.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
[1] Cito, por todos, Écio Oto, que trabalha o neoconstitucionalismo como anti-positivismo. Nesse sentido, seu livro no prelo: Constitucionalismo Global ou Pluriversalismo Internacional? O neoconstitucionalismo na perspectiva da teoria e da filosofia políticas contemporâneas. Lumen Juris, 2014.
[2] Ver, para tanto: Oto, Écio e Pozzolo, Susanna. Neoconstitucionalismo e Positivismo jurídico: as faces da Teoria do Direito em tempos de interpretação moral da Constituição. Florianópolis, Conceito, 2012. Nessa obra conjunta, Écio Oto, na primeira parte, elenca onze características que vem sendo atribuídas ao neoconstitucionalismo. Todas elas são analisadas por mim no Posfácio da referida obra.
[3] Ativismo judicial tem a ver com teses que circulam por aí, tais como a de que decisão judicial é um ato político porque é um ato de escolha... Ora, isso Kelsen já dizia lá no capítulo oitavo de sua TPD. Mas esse era o seu lado decisionista. Ele nunca se preocupou com a decisão judicial. O resto da história todos conhecemos. Ou não.
[4] Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Luis Virgilio A. Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 611.
[5] Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
[6] Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2014