quarta-feira, 16 de abril de 2014

RESPONSABILIZAÇÃO PELO NÃO USO DE EPIs AINDA VARIA

Responsabilização pelo não uso de EPIs ainda varia

 
A falta de segurança jurídica na Justiça do Trabalho — queixa constante de empresários e advogados — pode ser exemplificada nas decisões sobre o controle do uso de equipamentos de segurança obrigatório pelos trabalhadores, os Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s). Em casos de acidente, a Justiça do Trabalho se divide ao apontar a responsabilidade tanto das empresas quanto dos empregados. Em alguns tribunais, a não utilização pelos empregados ou mesmo a utilização incorreta do EPI é culpa da empresa. Em outras cortes entende-se que se o trabalhador não tiver uma justificativa plausível para não usar o EPI, pode ser demitido por justa causa.
Jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região aponta caso em que o empregado faltou no dia da instrução de como usar os EPIs e não usou o equipamento durante o trabalho. Nessa caso, julgado em abril deste ano, a 9ª Turma entendeu que a falta de fiscalização não pode transferir para a empregadora a responsabilidade total pelos danos. “Se o empregado recebe óculos de proteção e não o usa, cabe-lhe grande parcela de culpa por ferimentos ocorridos na região que seria protegida pelo EPI”, diz o acórdão. (Recurso Ordinário 0128100-04.2008.5.01.0013)
Entretanto esses entendimentos não são unânimes. Há decisões no sentido de que a falta de fiscalização impede a dispensa por justa causa. É o caso de duas decisões do TRT-24 que entenderam que se não havia rígida fiscalização ou exigência da utilização dos equipamentos durante o trabalho, e as empresas descumpriam obrigação legal de assegurar a integridade física de seus empregados — o que impede a dispensa por justa causa. (RO 205-84.2012.5.24.0076 e RO 204-02.2012.5.24.0076)
A Consolidação das Leis Trabalhistas, por sua vez, determina que o uso não justificado do equipamento é motivo de demissão por justa causa do empregado. Porém, segundo o advogado trabalhista Iuri de Melo Barros, do escritório Raeffray Brugioni Advogados, é possível interpretar que a demissão se dará apenas no caso em que o empregado não tenha uma justificativa plausível para o não uso do EPI. 
Se o empregado se recusar a usar o equipamento pode ser demitido por justa causa, já que além de ser um ato de insubordinação do empregado, está colocando em risco a sua saúde. Contudo, segundo Gláucia Massoni, sócia do Fragata e Antunes Advogados, para segurança da empresa é importante que a mesma se acautele através de advertências e suspensão antes da demissão por justa causa, “já que um único evento pode ser considerado rigor excessivo do empregador”, afirmou.
Assim também entende a advogada Karen Badaró Viero, sócia do Marcelo Tostes Advogados. Segundo ela, a Justiça do Trabalho tem mantido as justas causas aplicadas nestes casos, mas é sempre bom lembrar que o ideal é que o ato da justa causa seja provado não só pelos fatos, mas também pela aplicação de advertência e suspensão, "de modo a deixar ainda mais natural a aplicação da justa causa”.
Postura negligente
Priscilla Costa Halasi, do Trigueiro Fontes Advogados, afirma que a empresa que não fiscaliza a utilização de EPI por seus funcionários assume o risco de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais e, como consequência, pode ser responsabilizada pelo pagamento de dano moral, material, estético e pensão vitalícia. “Atualmente, há diversos equipamentos de proteção adaptados para cada função, razão pela qual não se justifica a recusa dos empregados para utilização destes”, afirmou a advogada.
Ela explica que uma postura negligente da empresa desestimula os empregados e faz com que eles não prezem pelo uso e conservação do equipamento, e, consequentemente, pela sua própria segurança. “Isso traz uma imagem negativa para a empresa, além de consequências jurídicas em ações trabalhistas, para o pagamento de adicionais de periculosidade e insalubridade, decorrentes de irregularidade no fornecimento e/ou utilização dos equipamentos.”
Além disso, não basta que a empresa forneça os equipamentos de proteção. É necessário que haja a comprovação da entrega dos EPIs, em perfeito estado de conservação e quantidade suficiente, assim como uma fiscalização efetiva quanto à sua regular e correta utilização. A empresa deve fazer ainda o rigoroso controle dos funcionários e promover a conscientização pelo regular uso dos equipamentos.
 
Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2014

terça-feira, 15 de abril de 2014

DOUTRINA SE CONCENTRA EM LUTA DE INTERPRETAÇÃO E ARGUMENTOS

Doutrina se concentra em luta de interpretações e argumentos

 
O direito é o único campo do conhecimento em que o autor não é chamado de autor, mas de doutrinador. Mas por quê? O que está por trás desta diferença de nomenclaturas? Em que medida isso impacta na forma como o direito é concebido pelos diversos profissionais?
Não quero fazer uma digressão histórica sobre quando começou o uso do termo ou sobre as raízes jurídicas remotas dele. A análise histórica me ajudaria a entender a origem, mas não o motivo pelo qual ainda se reproduz a ideia de “doutrinador”. A minha análise se aproxima mais da sociologia do que da história, ao menos da história (mal) contada pelos juristas (que se aventuram em relatar fatos históricos a partir de outros juristas, e assim por diante).
O fato é que a palavra “doutrinador” traduz uma forte autoridade pelo que se escreve. Quem é doutrinador carrega uma doutrina, um dogma, isto é, um ponto de partida inquestionável. Sob a aura de um pretenso saber técnico que lhe permite afirmar o que pretende, o doutrinador é visto como uma pessoa quase sobrenatural. Pelo fato de escrever um livro ou publicar um artigo, é adjetivado como “ilustre”, “festejado”, “renomado”, etc.
Não é por acaso que a doutrina deve ser tradicionalmente exposta num esquema pré-existente, que reforça a validade do doutrinador em relação ao que ele escreve. Por exemplo, não é incomum encontrar um livro de direito que obedece à seguinte sequência: i) introdução; ii) evolução histórica; iii) conceitos; iv) fontes do direito; v) princípios; vi) conteúdo efetivo; vii) considerações finais. Trata-se de um paradigma que não ajuda muito a entender o direito atual!
Além do esquema quase sempre obedecer a esta sequência lógica, as teorias e a transformação social são frequentemente apresentadas nos textos a partir de uma dialética simplista tendente à consensualidade. Por exemplo, no direito penal existe a teoria objetiva do crime (teoria A) e, no lado diametralmente oposto, existe a teoria subjetiva do crime (teoria B). Além disso, após a formulação das teorias A e B, uma pessoa iluminada criou a teoria objetiva-subjetiva (teoria C ou teoria mista). E assim, de evolução em evolução, o mundo é apresentado como um caminho rumo ao consenso da teoria mista. Sem falar nos doutrinadores que chegaram atrasados, mas querem “doutrinar”, e escrevem a teoria D, que basicamente nega a existência de crimes nas sociedades contemporâneas.
Outra característica da doutrina jurídica é justamente o fato dela se concentrar num mero conflito de interpretações e argumentos. Toda interpretação e argumento têm interesses por trás, e todo interesse tem valores que lhes dá sustentação. Essa é a regra básica da negociação, por exemplo. Porém, ao se concentrar apenas na discussão superficial da ponta do iceberg (interpretações e argumentos), a doutrina jurídica não revela os verdadeiros interesses e valores que orientam a defesa de um lado ou de outro. Afinal, eu posso defender as pesquisas com células-tronco porque eu acredito que isso trará melhorias aos seres humanos, mas o meu interesse também pode ser porque a minha esposa tem um laboratório que lucraria muito com isso. Ao focar somente no lícito, ilícito, constitucional, inconstitucional, certo, errado, perde-se a grande chance de se pensar os problemas jurídicos de maneira mais aprofundada do que o mero conflito de opiniões. Interpretações e argumentos são importantes, mas não bastam. Precisamos saber os interesses por trás das posições.
Obviamente, este vício encontra ampla aderência no campo do direito. Ao se fundarem neste caráter sacro dos doutrinadores – assim como fazem com a famosa “intenção do legislador” -, os profissionais do direito tendem a reproduzir uma visão caricatural dos problemas jurídicos numa (falsa) confiança de que o doutrinador, em razão de sua suposta autoridade, pode ser a chave para a compreensão do mundo.
É inegável que há doutrinadores que buscam ir além disso e produzem um conhecimento realmente aprofundado, empírico e denso. Há outros que até se recusam a serem chamados assim e defendem que o conhecimento do direito deve superar a discussão sobre o “dever ser”. Assim, este artigo não tem qualquer pretensão de generalização e seria leviano de minha parte fazê-lo. Porém, torna-se especialmente relevante uma ruptura de paradigma no direito, em que o doutrinador seja visto e concebido como um humano-autor e que haja um maior senso de autonomia e coragem por parte dos profissionais do direito na produção do conhecimento.
 
Felipe Asensi é advogado e professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio).
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 14 de abril de 2014

EMBARGOS E DECLARAÇÃO DEVEM SER SEMPRE ADMITIDOS

Embargos de declaração devem ser sempre admitidos

 
Na jurisprudência dos tribunais superiores, prepondera a orientação de que não cabem embargos de declaração contra a decisão proferida pelo tribunal de origem, que não admite recurso extraordinário ou especial. Segundo esse modo de pensar, o único recurso cabível seria o agravo previsto no artigo 544 do Código de Processo Civil.[1]
Tenho defendido opinião diversa. Segundo penso, devem ser admitidos embargos de declaração contra quaisquer decisões judiciais. O fato de a lei processual prever o cabimento de outro recurso (como, no caso, o agravo referido no artigo 544 do CPC) não altera essa ordem de ideias.[2]
A mesma orientação jurisprudencial antes referida é no sentido de que, como os embargos de declaração não seriam cabíveis na hipótese, sua interposição não interromperia o prazo para a interposição do agravo.[3]
Recentemente, contudo, decidiu a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que, “excepcionalmente, atribui-se esse efeito interruptivo quando, como evidenciado na espécie, a decisão é tão genérica que sequer permite a interposição do agravo”.[4]
Essa decisão interessantíssima, por várias razões.[5] Desejo destacar, contudo, no presente texto, apenas o seguinte aspecto: reconheceu-se, na mencionada decisão, que, caso existente obscuridade (Constituição Federal, artigo 535 do CPC), os embargos de declaração seriam cabíveis; logo, sua interposição interromperia o prazo para interposição do agravo previsto no artigo 544 do CPC.
Trata-se, sem dúvida, de orientação que destoa da observada pela jurisprudência antes praticamente pacífica do Superior Tribunal de Justiça. Resta saber se tal orientação passará a ser observada pelos demais órgãos do referido tribunal.
Entendo que a orientação firmada no julgado ora referido não se limitou a criar uma exceção à orientação antes preponderante. Com efeito, antes decidia-se no sentido de não serem cabíveis os embargos de declaração contra a decisão proferida pelo tribunal de origem, que não admite recurso extraordinário ou especial; o julgado proferido pela Corte Especial do STJ, diversamente, passa a admitir os embargos de declaração se presentes as circunstâncias indicadas no artigo 535 do CPC — o que significa, simplesmente, aplicar-se o referido dispositivo legal.
Resta, porém, um problema: acabará o STJ tendo que decidir, caso a caso, se os embargos de declaração interpostos pela parte seriam cabíveis (ou seja, se encontravam-se presentes as circunstâncias referidas no artigo 535 do CPC) para, então, admitir a interrupção do prazo para interposição do agravo do artigo 544 do CPC.
Cria-se, assim, mais uma questão processual que será levantada por uma das partes, em tais casos, o que acabará criando mais incidentes processuais e, consequentemente, gerando mais trabalho para o tribunal superior. Melhor seria, pura e simplesmente, admitir-se que os embargos de declaração opostos tempestivamente, ainda que não conhecidos, interrompem o prazo para a interposição do agravo previsto no artigo 544 do CPC, aplicando-se o disposto no artigo 538, caput, do Código.

[1] Nesse sentido, por exemplo, no STJ, cf. AgRg no Ag 1341818 (j. 20.9.2012) e AgRg no AREsp 466711 (j. 18.3.2014); no STF, cf. ARE 663031 AgR (j. 28.2. 2012) e ARE 789420 (j. 24.3.2014).
[2] Cf. o que escrevi em Código de Processo Civil comentado, 2. ed., Revista dos Tribunais, comentário aos artigos 535 e 538 do CPC.
[3] Cf. julgados citados na nota n. 1.
[4] STJ, Corte Especial, EAREsp 275615 (j. 13.3.2014), íntegra disponível aqui.
[5] Por exemplo, afirma-se, na fundamentação do voto condutor do referido acórdão, que aquele entendimento no sentido de que os embargos de declaração não interromperiam o prazo para interposição do agravo previsto no artigo 544 do CPC não seria explicado pela jurisprudência: “A jurisprudência, sem explicitar a respectiva motivação, tem se orientado no sentido de que esse prazo não é interrompido” (grifou-se).
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2014

"NÃO EXISTE DEMOCRACIA COM INTOLERÂNCIA", DIZ CÁRMEN LÚCIA


"Não existe democracia com intolerância", diz Cármen Lúcia

 
A ministra Carmen Lúcia do Supremo Tribunal Federal conclamou sociedade a ser mais tolerante para assim ser possível exercer a democracia de fato. A afirmação foi feita durante conferência magna de encerramento das atividades do Congresso Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. A conferência encerrou o evento que aconteceu no Cine-Theatro Central de Juiz de Fora nessa quinta e sexta-feira (10 e 11 de abril) e apresentou seis painéis sobre diversos temas ligados à advocacia. 
Segundo a ministra, “não existe democracia com qualquer tipo de intolerância. Precisamos amadurecer nossa democracia para, enfim, exercê-la de fato. É preciso que a sociedade se constitucionalize, com um movimento que demonstre que sabe quem é e para onde quer ir. É preciso trabalhar para se ter o Brasil que se merece”, afirmou.
Disse ainda que estamos vivendo um momento peculiar. “Cada geração quer o melhor para si e para as gerações que virão. O que era justo para meus bisavós, pode não ser para mim. Uma sociedade deve saber e buscar o que é justo para si. Os senhores me pagam, enquanto cidadãos, para que eu exerça essa justiça. Cada cidadão deve pensar sobre si mesmo, com o outro e sobre o outro, para amadurecer a ideia de que sociedade temos e qual queremos ter. E ainda devemos entrar no mérito de qual sociedade merecemos pelo que fazemos”, propôs.
No início do evento, foi exibido o vídeo oficial de promoção da XXII Conferência Nacional dos Advogados, que acontecerá de 20 a 23 de outubro de 2014 no Rio de Janeiro, e deve reunir mais de 20 mil profissionais e estudantes. Nesse intuito, o Congresso Nacional da OAB serviu para conferir os ajustes finais no temário da Conferência.
Carmen Lúcia ainda recebeu de Silva Chaves, em nome do presidente da OAB Nacional, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, uma placa em homenagem aos trabalhos jurídicos prestados ao país.
Compuseram a mesa os membros honorários vitalícios da OAB, Marcelo Lavenère e Roberto Antônio Busato; o presidente da seccional mineira, Luis Claudio Silva Chaves; o conselheiro federal pela OAB-MG, Paulo Roberto de Gouvêa Medina; o vice-presidente da Caixa de Assistência aos Advogados da OAB-MG, Wagner Parrot; a secretária-geral da OAB-MG, Helena Delamônica; e a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-MG, Valquíria Valadão. Com informações da Assessoria de Imprensa do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2014

sábado, 12 de abril de 2014

NOVAS TENDÊNCIAS NA JURISPRUDÊNCIA DO STF E A JURISTOCRACIA

Novas tendências na jurisprudência do STF e a juristocracia

 
“O primeiro grande tema do constitucionalismo moderno é a democracia; o segundo é sua limitação.” Essa é uma das inúmeras frases de efeito que compõem o livro A nova separação de poderes, de Bruce Ackerman.[1] O texto, como o próprio nome indica, defende uma renovada compreensão acerca da vetusta ideia de separação de poderes na perspectiva de refletir sobre um modelo no interior do qual o exercício do poder político sofra controles internos mútuos — não necessariamente vinculados às três clássicas funções — tendo como mote o ideal de um governo efetivamente limitado.
No livro de Ackerman, a questão é colocada a partir do inexorável ponto de intersecção que vincula o conceito de separação de poderes ao de sistema de governo. E o autor não esconde suas principais intenções: quer expor criticamente as “numerosas desvantagens dos sistemas presidencialistas” em relação aos modelos parlamentaristas mais contemporâneos (que incorporam mecanismos de limitação das maiorias eventuais e controle sobre excessos eleitorais). Mais especificamente, sua critica está dirigida à exportação do modelo estadunidense de presidencialismo para outras realidades culturais cujo a América Latina talvez seja o maior exemplo. Claro que tais desvantagens são vistas a partir de um ponto específico: a questão da limitação do poder e da realização no maior grau possível da concepção de autogoverno.
O modelo por ele defendido representa, na verdade, uma provocação ao debate. É chamado de parlamentarismo limitado — que não existe em completude em nenhum sistema político contemporâneo – mas que é pensado a partir de uma analise comparada de uma série de engrenagens que compõem os sistemas constitucionais democráticos atuais. O resultado é um modelo complexo de controles de maiorias eventuais — por um Tribunal especializado, nos moldes dos Tribunais Constitucionais ad hoc — somado a recalls legislativos, adoção de corpos legislativos com duas casas que se relacionam, cada qual, de forma diferente com o gabinete do executivo e, ainda, um órgão externo, não vinculado a nenhuma das funções tradicionais, e especializado na função de exercer o controle do cumprimento das regras eleitorais (desde financiamento de campanhas, até a formação de coalisões etc).
Para além da discussão sobre a viabilidade do modelo proposto por Ackerman, o elemento mais significativo projetado pelo texto aparece na mensagem, implícita em todo o argumento do autor, de que a engenharia constitucional que preside a concepção de separação de poderes não pode ser pensada como uma máquina com engrenagens fixas e que, com o tempo, acabam por se tornar obsoletas. Ao contrário, esse arranjo político esta sujeito a revisões periódicas que podem levar a transformações profundas no modo como cada elemento desse sistema se relaciona com os outros e como se estabelecem mecanismos de controle.
Se esse aspecto mecânico pode apresentar transformações temporais, há um traço que se apresenta como elemento nuclear e essencial na articulação de todos esses fatores: a concepção de democracia e sua necessária limitação. O centro do debate é determinado, então, não pelos aspectos estruturais que caracterizam cada uma das funções do governo, mas, sim, sobre o que é necessário fazer para concretizar uma fórmula política democrática e o ideal de um governo limitado. Nada novo. Algo que deita raízes no conceito de governo misto e que está retido em Montesquieu e nas suas observações relativas à necessidade de um poder que controla o próprio poder. O que há de novo são as possibilidades de se levar esse ideário à realização. Nesse aspecto, a engenharia constitucional produz novos materiais, engrenagens que são interessantes do ponto de vista jurídico-político.
Toda essa discussão está na ordem do dia, levando-se em conta as recentes tendências da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Vale dizer, prevalecendo o entendimento adotado pela maioria dos ministros no julgamento da Reclamação 4.335/AC e da ADI 4.650/DF, não há dúvidas de que a arquitetônica da separação de poderes que oferece os contornos de nosso modelo constitucional está sofrendo um processo de reforma. E, é importante frisar, isso não está acontecendo na perspectiva de um planejamento adequado, cuidando para evitar rachaduras em nosso edifício democrático. Pelo contrário, no modo como estamos fazendo, a reforma está seguindo mesmo é a lógica do “puxadinho”.
Na Rcl 4.335/AC a maioria decretou, embora por diferentes motivos, o enterro da remessa ao Senado (artigo 52, inciso X da CF/1988) como um instrumento de verificação política das decisões de inconstitucionalidade exaradas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. Ressalte-se que, mais além do aspecto pragmático que reveste o problema da generalização dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal nos casos de suspensão da execução da lei, o instituto da remessa ao Senado deve ser encarado, também, como uma possibilidade de controle da atividade do STF pelo Senado.
No caso desta reclamação, há que se consignar que o resultado que agora se confirmou já se projetava como provável desde os idos de 2007. Naquele momento, a doutrina jurídica — que tem a tarefa de constranger os significados articulados pelo judiciário em suas decisões — quedou-se praticamente silente com relação ao problema posto. Salvo as exceções do texto de Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Martonio Barreto Lima (clique aqui para ler) e de Nelson Nery Jr.[2], boa parte do constitucionalismo brasileiro ou aderiu à posição ou adotou uma postura meramente descritiva para o caso. Aliás, já está encomendada, em parceria com Lenio Streck, uma outra coluna sobre os aspectos simbólicos da não doutrina. Voltaremos, portanto, a essa temática.
Já  com relação à ADI 4.650/DF, o que ficou determinado pela já formada maioria dos ministros implica uma clara intervenção do Supremo no âmbito eleitoral, conferindo ao Poder Judiciário uma função de controle que vai além de suas atribuições constitucionais. Já foi dito, inclusive pelo ministro Luís Roberto Barroso, que inconstitucionalidade, a princípio, não há (no financiamento eleitoral por pessoas jurídicas). Por tudo o que já foi exposto, inclusive neste mesmo Diário de Classe, a atividade do judiciário na ADI 4.650 esta fora do âmbito do controle de constitucionalidade. No caso, o Judiciário está agindo como saneador do processo eleitoral realizando um controle do próprio modelo de financiamento de campanhas vigente no direito brasileiro. A possibilidade — de fiscalização do processo eleitoral, inclusive no que tange ao financiamento de campanhas — pode ser algo salutar para aperfeiçoamento democrático do processo e fortalecimento da ideia de limitação do poder. Sem dúvida, trata-se de algo que cabe dentro desse debate acerca da nova separação de poderes. O próprio Bruce Ackerman propõem algo que ele nomeia como poder supervisor da democracia: um órgão burocratizado com função específica de controle do processo eleitoral mas que esta fora da estrutura orgânica do Poder Judiciário ou de qualquer outra das funções tradicionais de governo. Todavia, no julgamento da referida ADI, o Supremo reservou para si essa tarefa de controle do processo eleitoral dando ares de que a decisão que se tomava representava um exercício de controle de constitucionalidade.
Em suma, na nova separação de poderes à brasileira, o que se apresenta diante de nós não é uma formula que radicalize a concepção de um governo limitado, mas um caminho (sem volta?!) em direção a um fortalecimento cada vez maior dos poderes concentrados em torno do STF. Mais uma capítulo de nossa juristocracia. E o mais inquietante dessa história é que essa marcha da concentração do poder tem como fonte a própria jurisprudência da Corte. Além dos dois julgamentos acima retratados, é possível incluir também o entendimento já sedimentado e que foi reprisado no MS 32.033 a respeito da possibilidade de controle de constitucionalidade preventivo.
De fato, é preciso reconhecer que somos mesmo premiados no quesito engenharia constitucional. Além de sofrermos com os problemas decorrentes do nosso presidencialismo de coalisão — que Ackerman entende como sendo uma “modalidade tóxica de presidencialismo”, porque faz um mix entre presidencialismo e sistema eleitoral proporcional — convivendo com uma oscilação institucional perniciosa em que ora o executivo é muito forte e coopta o legislativo; ora o executivo é muito fraco e é cooptado pelo poder legislativo, temos também que nos preocupar com essa tendência autocrática que parece prevalecer no Supremo Tribunal Federal.
Certamente, nos dedicamos muito a falar dos riscos de uma juristocracia no plano da interpretação constitucional, cujo marco conceitual é dado pelo ativismo judicial. Mas é preciso permanecermos vigilantes também no que tange às transformações na nossa engenharia constitucional de separação de poderes. O Supremo Tribunal Federal, nessas novas tendências jurisprudenciais que tem adotado, não está praticando apenas uma modificação interpretativa. Está alterando a “máquina”, revolvendo a engrenagem que movimenta o governo em uma democracia.
Vale perguntar: estamos ganhando o quê com isso? Há maior limitação do poder e consequente valorização do ideal democrático de autogoverno? Parece-me que não. Talvez seja o caso de nos preocuparmos um pouco mais com a Política. Escrita assim mesmo, com “P” maiúsculo. Política como a arte do melhor governo. Política entendida não apenas numa perspectiva realista, mas também em uma perspectiva prescritiva. Deixo-vos com um convite à reflexão. O texto é de Giovanni Sartori:
“Um astrônomo que discute Filosofia, um químico que discorre sobre Música, ou um poeta que conversa sobre Matemática não emitem menos absurdos do que o cidadão comum quando entrevistado sobre política. A diferença está em que o astrônomo, o químico e o poeta evitarão geralmente o papel de tolos alegando desconhecimento, enquanto que o cidadão é forçado a preocupar-se com a política e no meio da incompetência geral ele já não percebe que é um asno. Assim, a única diferença reside em que nas outras zonas da ignorância somos avisados para pensar em nossos próprios afazeres, enquanto que no reino político somos encorajados a assumir atitude oposta, e assim acabamos por não saber que desconhecemos tudo.”[3] 

[1] Cf. Ackerman, Bruce, La nueva división de poderes. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2011, Kindle Edition, pos. 996.Registre-se que o livro encontra-se traduzido para o português pela editor Lumen Juris.
[2] Cf. NERY JÚNIOR, Nelson. Anotações sobre mutação constitucional – Alteração da Constituição sem modificação do texto, decisionismo e Verfassungsstaat”.In: Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet e George Salomão Leite (org.) São Pao: Revista dos Tribunais, 2009, p.94.
[3] Sartori, Giovanni. Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965, p. 91.
 
Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2014

PERDA DO PRZO PARA INTERPOR RECURSO GERA DANO MORAL

Perda de prazo para interpor recurso gera dano moral

 
A não interposição de recurso dentro prazo, por comprometer a possibilidade de o cliente virar o jogo a seu favor numa condenação, caracteriza perda de uma chance, ensejando indenização por dano moral. Afinal, embora a obrigação do advogado seja de meio e não de resultado, apresentar o recurso cabível e no prazo é dever primário e imediato da representação judicial.
O argumento levou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a manter, integralmente, sentença que condenou um escritório de advocacia de Uruguaiana a pagar o equivalente a 15 salários-mínimos de reparação moral a uma cliente. Embora tenha vencido a ação trabalhista principal a seus cuidados, o escritório tardou em interpor recurso contra a condenação por dano moral que sua representada sofreu em processo de reconvenção.
O relator da Apelação na 15ª Câmara Cível, desembargador Otávio Augusto de Freitas Barcellos, afirmou no acórdão que a questão posta nos autos não é apenas a possibilidade de êxito na demanda, mas o ato de parte dos procuradores, consistente na perda do prazo recursal.
‘‘A convivência cotidiana nos faz ver que, mesmo para os leigos do mundo jurídico e das ações judiciais, um dos exemplos mais corriqueiros de erro na prestação de serviço de advocacia é a perda de um prazo’’, afirmou o relator.
Atualmente, constatou o magistrado, a prestação de serviços vem sendo objeto de inúmeras ações judiciais, em que a classe dos advogados tece críticas e busca a responsabilização dos vários danos causados aos seus clientes.
‘‘Assim, é imprescindível que o advogado, dentre vários outros operadores do Direito, sirva de exemplo de serviço prestado de forma responsável, dada a importância que existe na relação de confiança que estabelece com seu cliente’’, encerrou. O acórdão foi lavrado na sessão de 19 de março.
Causa trabalhistaA autora contratou o escritório de advocacia para defendê-la numa reclamatória trabalhista, depois que foi demitida sem justa causa da Santa Casa de Caridade de Uruguaiana, onde trabalhou como médica radiologista pelo período de seis meses. O município fica na fronteira com a Argentina.
Citado pela Justiça do Trabalho, o hospital se defendeu e apresentou reconvenção, com o objetivo de processar a médica por danos morais. Motivo: ela foi acusada de dar declarações falsas num programa político transmitido pela tevê. Na sua ‘‘denúncia pública’’, disse, dentre outras coisas, que a Santa Casa lhe devia mais de R$ 200 mil e que não lhe permitia visitar sua família, que mora em Canoas, município da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Embora tenha saído vitoriosa na causa trabalhista, embolsando R$ 49,2 mil, a autora foi condenada em danos morais na reconvenção. Segundo o juízo da 1ª Vara do Trabalho de Uruguaiana, suas ‘‘denúncias’’ não passavam de ‘‘inverdades’’ e tiveram o propósito de abalar a reputação do hospital perante a comunidade, principalmente no meio médico. O valor da reparação foi fixado em R$ 7.650, o equivalente a 15 salários-mínimos em janeiro de 2011.
Os procuradores da autora deixaram transcorrer o prazo para interpor o recurso ordinário e, quando o fizeram, ele não foi conhecido. Com isso, a sentença trabalhista acabou transitando em julgado. Em face da perda de prazo, a médica revogou o contrato com o escritório, sem pagar os honorários, denunciou-o junto ao Tribunal de Ética da OAB gaúcha e ainda entrou com Ação Indenizatória na Justiça comum. No processo, pediu que fosse isentada do pagamento de honorários advocatícios contratados, bem como ressarcida pelos danos materiais e morais sofridos.
Diante do juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Canoas, o escritório alegou que o contrato de prestação de serviços entabulado entre as partes se limitava ao ajuizamento da reclamatória, que gerou vantagens econômicas para a autora. Disse que não foi contratado para defendê-la na reconvenção, por se tratar de ação autônoma.
A sentençaA juíza Gioconda Fianco Pitt afirmou, de início, que o advogado tem de agir com atenção, diligência e com técnicas adequadas, constituindo-se o contrato de prestação de serviços numa obrigação de meio, não de fim. Assim, a teor do que dispõe o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) em seu artigo 14, parágrafo 4º, a responsabilidade civil do advogado é subjetiva; ou seja, demanda investigação acerca de sua culpabilidade.
Entrando no caso concreto, a juíza disse ser descabida a tese do réu, de que não foi contratado para atuar na reconvenção, já que essa ação tramita nos próprios autos da demanda principal, inclusive com sentença única. Por isso, a seu ver, não há necessidade de contratação específica para tal, já que o mandato abarca todas as questões que venham a ser analisadas durante o trâmite do feito.
Nesse contexto, a juíza entendeu que ficou caracterizada a desídia dos procuradores, pois a apresentação de recurso cabível e dentro do prazo é obrigação primária e imediata da representação judicial. Em consequência, o não agir da banca fez com que a parte autora perdesse a oportunidade de buscar a reforma da sentença.
‘‘A jurisprudência, há muito, vem decidindo acerca da responsabilidade civil do advogado, em casos como o dos autos, de negligência do patrono frente a seu cliente, embasando os julgados à doutrina da perda de uma chance (perte d’une chance). Segundo essa teoria, a indenização pelos danos morais seria devida pela perda da possibilidade de apreciação do direito do autor pelo Poder Judiciário’’, escreveu na sentença. A reparação foi arbitrada em R$ 10.170,00, o equivalente a 15 salários-mínimos em abril de 2013.
A julgadora negou, entretanto, o ressarcimento material. Se a obrigação é de meio, ponderou, o seu procurador não poderia garantir a reversão do resultado da condenação sofrida na reconvenção. Logo, não cabe a reparação.
Quanto ao pedido de isenção do pagamento de honorários, a juíza observou que o eventual direito da autora deve ser examinado no curso da ação de cobrança manejada pelo escritório de advocacia, que tramita numa das varas cíveis da comarca. Ou seja, deve ser examinado em sede de embargos de devedor.
Clique aqui para ler sentença da vara trabalhista.Clique aqui para ler a sentença da vara cível.Clique aqui para ler o acórdão do TJ-RS.
 
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2014

PROBLEMAS COM ESCUTAS E SIGILO TELEFÔNICO VOLTAM À TONA


Problemas com escutas e sigilo telefônico voltam à tona

O noticiário tem chamado a atenção daqueles que acompanham com preocupação o aumento da vigilância do Estado sobre os cidadãos. Escutas ambientais em presídios — inclusive atrás de privadas — e pedidos para a quebra do sigilo dos telefones de toda uma região apontada no mapa — com latitude e longitude, mas sem dizer quem são os alvos — chegam ao Judiciário, que é chamado a definir os limites do que alguns já apontam como bisbilhotice.
Está no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, somente pode ser violado para investigação criminal, se autorizado pela Justiça. Já a Lei 9.296/1996, que regulamenta esse dispositivo constitucional, diz que o pedido da quebra de sigilo, pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, deve demonstrar com clareza a “situação objeto da investigação”, com indicação e qualificação dos investigados.
Apesar das exigências legais serem claras, pedidos e casos de grampos amplamente noticiados parecem fugir às regras. Um dos casos que colocou em discussão os limites de um pedido de interceptação é o pedido do Ministério Público do Distrito Federal para investigar se o ex-ministro José Dirceu usou celular dentro da prisão — com base em notícias de jornais de janeiro deste ano. A própria direção do presídio fez uma apuração e concluiu que o ex-ministro não utilizou o celular, mas o MP pediu ao Supremo Tribunal Federal que cinco empresas de telefonia entreguem uma lista com todas as ligações feitas e recebidas ao longo de 16 dias por duas Estações de Rádio Base (ERBs) de uma determinada coordenada geográfica.
De acordo com laudo feito por um engenheiro a pedido da defesa de José Dirceu umas da coordenadas é referente ao presídio da Papuda, onde o ex-ministro está preso devido à condenação na Ação Penal 470, o processo do mensalão. A outra localidade apontada, porém, engloba, inclusive, o Palácio do Planalto. O pedido do MP ainda não foi analisado pelo Judiciário, mas já é questionado.
Os advogados José Luis Oliveira Lima, Camila Torres Cesar e Rodrigo Dall’Acqua (foto) entregaram uma petição ao Supremo Tribunal Federal, junto com o laudo do engenheiro, mostrando que o pedido do MP-DF é abusivo. “Para investigar uma nota de jornal que já foi investigada, o MP-DF pede que cinco operadores de telefonia enviem todas as ligações de celulares, efetuadas e recebidas, envolvendo todos os usuários que trabalham no Palácio do Planalto no intervalo de 16 dias. O absurdo da pretendida quebra de sigilo telefônico revela o quão indiscriminada, genérica e abusiva é a medida pleiteada pelo MP-DF”, afirma a petição.
Após a revista eletrônica Consultor Jurídico tentar entrar em contato com a promotora Márcia Milhomens Sirotheau Corrêa, que assina o pedido, o MP-DF enviou uma nota informando que independente de onde caia as coordenadas do pedido do órgão, o foco é averiguar se José Dirceu cometeu ou não falta disciplinar grave com o uso do celular. “As pessoas que, eventualmente, tenham falado com ele, não cometem nenhuma infração. Mas ele, supostamente, sim. Além disso, como o inquérito que investigava a denúncia do uso de celular foi sumariamente arquivado, em cinco dias, o MP precisou aprofundar as investigações”, diz a nota.
Um dos responsáveis pela defesa de Dirceu, Rodrigo Dall'Acqua, considera o cenário alarmante. “O fato é gravíssimo. Sob o pretexto de investigar uma imaginada ligação entre a Papuda e Salvador (BA), o MP-DF pediu dissimuladamente a quebra de sigilo das ligações do Palácio do Planalto. Se não se respeita a intimidade da presidente da República, que dirá do cidadão comum”, questiona.
Na visão de advogados, entretanto, a questão não é tão simples quanto a colocada pelo MP. “Esse pedido é muito grave, pois se trata da sede do governo brasileiro, a mais alta autoridade do país. Isso esbarra no sigilo da conversa do governo”, diz o criminalista Alberto Zacharias Toron. A advogada Heloisa Estellita lembra que a questão ainda será analisada por ministros do STF. “O abuso aconteceria muito mais na concessão sem a observância da necessidade e demais requisitos legais do que nos pedidos em si”.
Detalhes obrigatórios
O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Nino Toldo (foto), lembra que os pedidos de quebra de sigilo devem ser detalhados, para que não extrapolem além da pessoa investigada. Segundo ele, pedidos genéricos não são comuns, mas cabe ao juiz determinar a especificação quando se deparar com casos assim. “Quando não há detalhes sobre a quebra solicitada, os juízes devem determinar a especificação. Eu nunca deferi um pedido de escuta ou grampo sem estar claro de quem é o telefone e quem é o alvo”, conta.
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa, reforça o entendimento: “O juiz não pode dar uma autorização aleatória, que propicia uma investigação sem qualquer controle da Justiça. Não se pode violar o direito de outras pessoas que não são alvo da investigação”, complementa.
Gravações na cadeia
Também nesta semana, a imprensa apontou que o doleiro Alberto Youssef, preso preventivamente na carceragem da Polícia Federal de Curitiba, encontrou o que seria uma escuta ambiental na própria cela. O advogado de Youssef, Antônio Figueiredo Basto, divulgou uma foto de seu cliente segurando o gravador. Ele entrou no mesmo dia com um pedido na Justiça Federal para que a possível escuta fosse investigada.
Em nota, a Polícia Federal negou fazer escutas clandestinas e alegou que o dispositivo foi apreendido pela entidade na cela do doleiro. O presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio Ribeiro, explica, no entanto, que a utilização de escutas ambientais em estabelecimentos prisionais é comum. “Não há a ideia de que o preso não possa ser alvo de escuta ambiental, inclusive em sua cela. A privacidade é um direito Constitucional, mas não existe direito absoluto”, afirma.
O presidente da associação observa que a escuta só é possível mediante autorização judicial. "Desde que siga os ritos, não há impedimento. Com ordem judicial é possível colocar escutas ambientais, interceptar correspondências e até mesmo as conversas do advogado com o cliente nos casos em que a investigação aponte que o advogado não está exercendo sua atividade e está associado à organização criminosa”, diz.
A prática realmente parece estar disseminada. No último mês, a ConJur noticiou uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que considerou legal a instalação de um gravador atrás de um vaso sanitário no acesso às celas de um presídio no Rio Grande do Sul. A 5ª Turma do STJ entendeu que na ordem constitucional não há garantias ou direitos absolutos, e é inviável a proteção ilimitada da liberdade de um cidadão em detrimento dos interesses da sociedade, o que justifica a adoção de medidas restritivas de garantias individuais em caso de defesa da ordem pública.
O presidente da Ajufe, Nino Toldo, também defende que não há direito absoluto. “Não é porque a pessoa está presa que fica imune à investigação. Ela pode ser alvo de nova investigação”, afirma.
Mesmo sendo considerada uma prática legal, a escuta em banheiro causa espanto em criminalistas, como Paulo Sérgio Leite Fernandes (foto). “Há, entre nós homens — e mulheres — duas grandes e maiores formas de intimidade: a defecação e o enlace sexual, exceção feita, é evidente, às anomalias, entre as quais destaco a coprofagia. Na medida em que a Justiça, em certas ocasiões, parece legitimar o grampeamento de contato íntimo entre presos e suas mulheres, mas [sobre] interceptação de banheiros, não sei mais o que pensar. O Poder Judiciário, eventualmente, enlouquece”.
Heloisa Estellita explica que o grampo só pode ocorrer nas hipóteses previstas na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), e, antes dela, na Lei 9.034/1995. “O preso não perde nenhum direito de personalidade não diretamente afetado pela pena”, diz.
Cliente-advogado
Por mais que considere um absurdo em determinados casos, o criminalista Alberto Toron aponta que, se houver autorização do juiz, não há problemas na escuta em celas de prisão, mas se incomoda com a permissão de grampos em conversas entre clientes e advogados — que ele classifica como um absurdo. A inviolabilidade da relação profissional leva o criminalista a discordar do presidente da ADPF sobre a possibilidade da interceptação da conversa entre presidiários e seus defensores. “Nos parlatórios, entendo que nunca é legitima a escuta telefônica entre presos e advogados”, diz.
O presidente da AMB, João Ricardo Costa, concorda que a interceptação de conversas de advogados com clientes "é uma situação complicada", pois o preso tem direito a conversar com seu defensor sem interferência. “Pode acontecer de forma acidental, no momento que está sendo monitorado o investigado”, diz.
Mesmo que autorizada, a escuta só pode servir para a investigação do suposto crime. O criminalista Rodrigo Dall'Acqua pondera que a interceptação jamais deve ser para investigar as estratégias usadas pelo advogado para defender seu cliente. “Mesmo com autorização judicial, não se admite escuta ambiental para bisbilhotar as estratégias de defesa do cidadão”, diz.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2014

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...