O que me impele a fazer um “manual republicano”
Em tempos de protestos e indignações, sem que muitas autoridades estejam captando a mensagem das ruas — andam em aviões por aí —, vejo na TV Pedro Bial falando em honestidade, ética e moral. O mesmo apresentador que comanda um programa chamado Big Brother, no qual a vigarice e o estelionato são a condição de possibilidade de “se dar bem” e ganhar a “bolada” ao final... o vencedor é aquele que... melhor passar a perna nos outros. Belo exemplo para a cidadania. Mesmo caso da novela das oito, da mesma Globo: é uma cópia de vários seriados americanos. Que belo exemplo de criação artística para os jovens. Belo recado: recorte e cole. Eis o grande paradigma hermenêutico do século XXI: Ctrl+c e Ctrl+v. Isso me dá uma melancolia, um pessimismo...
Mas, vamos ver o lado bom. De certo modo, esse conjunto de coisas (aviões da FAB, passeatas, protestos, projetos do SUS) me impeliu a escrever algumas dicas republicanas para que (Novos) Detentores de Cargos em Carreiras Jurídicas (doravante denominados (N)DCCJ — o “novos” está entre parênteses em face da ambiguidade, isto é, as dicas são dirigidas aos novos, mas servem, evidentemente, também aos antigos) tenham sucesso na profissão. Não esqueçamos que o Brasil é o país que mais tem carreiras jurídicas. Estou pensando em fazer um “manual” com conselhos republicanos para essa gente toda que passa(rá) a cuidar da justiça e do Estado
lato sensu (e, por óbvio, para os que já estão na máquina pública). Pensando no futuro, é claro. Como um
u-topos. Na verdade, a coluna desta semana é devedora da coluna da semana passada escrita pelo colega de ConJur, Vladimir Passos de Freitas (
Manual de sobrevivência e sucesso nas carreiras jurídicas), a quem agradeço desde já. Gracias, Vladimir. Valeu a inspiração.
Princípios reitores (dicas lato sensu)
Minhas dicas são baseadas em alguns princípios, que valem também para alunos em geral. O aluno que o professor mais respeita é aquele que faz observações desde o primeiro dia de aula. O aluno que leu os livros e deixa claro que leu. Se o professor diz um disparate, ele levanta a mão e, claro, com educação, diz que o mestre se equivocou. Pronto. Se ele tiver razão, o professor passará a ter muito cuidado com ele. Ao contrário do outro aluno que levou maçã para o mestre. Assim deve ser a relação do (N)DCCJ com as instâncias com que se relaciona(rá). Um homem experiente sabe bem perceber uma postura passiva, uma agressiva e uma assertiva do interlocutor. Entre os polos daquele que assume uma postura bajuladora e aquele se comporta como opositor, existe aquele que se mantém íntegro, sólido. Quem assume uma postura passiva pode até obter alguns ganhos, mas tenderá a ser explorado e subestimado. O agressivo tende a ser excluído ou posto de lado porque se torna uma ameaça. Já o assertivo é visto como tal: confiável e capaz de ser um parceiro, um amigo.
O segundo princípio deriva do primeiro. É o de que o funcionário (de carreira jurídica ou não) deve sempre deixar claro que cargo público não é da “posse de ninguém”, embora todos tomem posse e depois não queiram sair mais. Posse, na verdade, vira propriedade. Por exemplo, o (N)DCCJ (não ficou bem essa sigla?) não deve ir buscar cigarro para o chefe. E nem servir de churrasqueiro nas festas do chefe. Esse princípio será importante para ser usado quando o chefe, por estar mal-humorado, decidir dar esporro em todos. Neste momento, deve o jovem detentor de um cargo público oriundo de uma carreira jurídica (mas não só ele) estabelecer os limites da atuação do chefe. Ou isso, ou o resto de seus dias serão de churrasqueiro mesmo.
Outro princípio é o de que você, um (N)DCCJ, é servidor da população. Se tiver que aplicar punição, faça-o, sem esperar que, se o outro estiver no seu lugar, poderá vir a poupá-lo no futuro. O lobo é o lobo do lobo, quer dizer, o homem é o lobo do homem. E assim por diante. Os demais princípios são extraídos destes principais, como por exemplo, ao se abaixar, parcela daquilo que está abaixo das costas pode ficar a descoberto. Como sabem, princípios, para mim, não são simplesmente valores. Isto porque valores são coisas contingenciais. Fugidios. Absolutamente subjetivos. Achar que princípios são valores é cair no subjetivismo. Princípios são o mundo prático introduzido no Direito. Logo, não possuem uma taxonomia.
Quando o (N)DCCJ chegar ao local para o qual foi lotado, designado ou assumiu a função e quiser saber em quais subordinados confiar, espere um mês. Depois pergunte ao subordinado que costumeiramente lhe elogia como eram os três últimos antecessores. A resposta dele será a previsão do que ele pensará de você quando sair. Isso será bom também para que você tome consciência que o poder não está em você, mas no cargo. Evita-se, assim, o que Jung chamava de insuflação dapersona — quando o indivíduo passa a confundir o poder com a pessoa.
Da mesma forma, é um mau sinal para o (N)DCCJ quando ele se incomoda quando não é tratado com o epíteto de “doutor” (mesmo que o (N)DCCJ tenha o verdadeiro título: um doutorado acadêmico). Esse é o primeiro passo para o cometimento de abusos e para se pôr em risco a carreira do (N)DCCJ. Na magistratura e na carreira do Ministério Público isso é conhecido como “juizite” e “promotorite”, uma espécie de inflamação aguda em uma das regiões mais débeis da alma humana: a vaidade.
Vamos, assim, às 20 dicas stricto sensu
1. Se você passou no concurso do Ministério Público, não faça denúncias do tipo “deixa-que-o-juiz-resolve-depois”, colocando na tipificação desde quadrilha ou bando até a improbidade pelo uso de folhas de papel timbrado; ao mesmo tempo, pense bem se, de fato, existe esse negócio de in dúbio pro societate.
2. Em sendo um (N)DCCJ – juiz, não julgue fazendo estatísticas para agradar ao CNJ; evite decisões que deem azo a uma porção de embargos de declaração; e não responda aos embargos dizendo que “nada há a esclarecer”, obrigando o causídico a ofertar um agravo, iniciando uma via crucisprocessual; pense que no peito do causídico bate um coração...
3. Se você passou no concurso de juiz, não maltrate seus funcionários como fez aquele juiz federal de Chapecó que, em um
Procedimento Comum do Juizado Especial Cível Nº 5008083-73.2012.404.7202/SC, que é autoexplicável, no qual ele (o magistrado, um (N)DCCJ), rejeitando os embargos declaratórios, achou que podia dar uma chinelada — e bota chinelada nisso — no servidor (parte) e no seu advogado (clique
aqui para ler), o que demonstra que ainda estamos longe — mas bem longe — da democracia na
Terrae de
Vera e Santa Cruz.
4. Se você for um (N)DCCJ-Procurador Federal, não se contente com decisões contra Viúva, por exemplo, quando, no INSS, o juiz não aceitar prova pericial que aponte para o não direito do utente (não só recorra como leve essa questão a sua chefia — afinal, você é o defensor da Viúva; alguém tem de fazê-lo). Lembre-se que juiz não faz socialismo processual, coisa velha do tempo da Áustria (e ele, o juiz, não é Menger nem Klein, gente que defendia isso). Lembre-se também que aposentadorias rurais não se provam tão somente a partir de um “empírico olhar” nas condições do requerente (também aqui o (N)DCCJ deve saber que judiciário não decide por intuições ou outros modos, e, sim somente mediante claras provas). Por mais que o cidadão necessite do dinheiro, pense que não é tarefa do judiciário fazer isso.
5. Se você, agora um (N)DCCJ, é um advogado da União (na especificidade tratada neste item), pense na importância que é defender o cofre da combalida Viúva. Portanto, se lhe mandarem aplicar uma portaria dispensando a cobrança de dívidas de até R$ 20 mil, peça que seu superior lhe mostre a lei aprovada pelo Congresso e, de imediato, mande uma nottitia constitucionalis ao PGR.
6. Se você, agora um (N)DCCJ, é um defensor público, pense bem antes de defender alguém que não seja hipossuficiente. Afinal, ao atendê-lo, você estará tirando uma vaga de Hiporex (um hipossuficiente realmente existente), além de estar tirando o trabalho daquele bacharel que lá com seu pequeno escritório, lutando para ganhar a vida, que, como você também sabe, embora ganhe bem como todos os CCJs (cargos de carreira jurídica), a vida não está fácil. Outra coisa: se alguém quiser fazer operação plástica por conta da Viúva para se transformar em lagarto, providencie uma consulta psiquiátrica para o gajo, mas, por favor, não ingresse com uma ação judicial.
7. Se você, agora um (N)DCCJ, estiver presidindo uma audiência (de qualquer tipo), não fique examinando sua caixa de e-mails ou seu perfil no Facebook. Isso é feio. E ponto.
8. Abra mão de qualquer “literatura periguete” (quer algo mais fácil que “periguete”?). Se você for cursar pós-graduação — principalmente se for com financiamento da combalida Viúva — não faça dissertação ou tese sobre temas monográficos como “agravo de instrumento”, “o papel do oficial de Justiça”, “reflexões sobre os embargos infringentes”; “(re)pensando o artigo 25 do Código do Consumidor — uma visão crítica”; “um olhar sistêmico sobre a progressão de regime” ou “execução de pré-executividade: reflexões à margem”...
9. Se você, um virtuoso (N)DCCJ, for convidado para a comissão de concurso da Instituição, não faça perguntas tipo “pegadinhas” ou sobre coisas ridículas (por exemplo, Caio e Tício que embarcam em uma tábua e depois se matam...), nem faça questões como uma da OAB recente, essa que está gerando toda a polêmica. Não precisa fazer com que Caio vá ao Paraguai, dê a volta pelo Suriname, furte um picolé em Manaus e depois dirija sem carteira em Torres (RS), além de fumar maconha na hora da prisão... A realidade fornece exemplos melhores do que essa ficcionalização que os juristas tanto gostam.
10. Se você for um (N)DCCJ-juiz (ou ingressar pelo Quinto Constitucional em Tribunal sem um parente importante), não decida conforme sua consciência e, sim, a partir do que diz a doutrina e a jurisprudência, com coerência e integridade. Saiba que o Direito tem um DNA. Sem construa princípios estapafúrdios. Aliás, não construa princípios. Você não é legislador. E na Justiça do Trabalho, isso vale também (se me entendem).
11. Dê-se conta de que o pan-principiologismo é uma doença contemporânea. Portanto, nem pense em aplicar “princípios” como “da ausência ocasional do plenário”, “da rotatividade”, “do fato consumado”, “da confiança no juiz da causa”, “da delação impositiva”, “alteralidade”, da “benignidade”, “do deduzido e do dedutível”, “da afetividade” (embora eu saiba que isso é “fofinho”) e “da felicidade” (embora todos queiramos ser felizes!). Mais: não lance mão da famosa ponderação de valores se você não leu Alexy. Portanto, nada de pegar um princípio em cada mão e recitar o mantra da “ponderação”.
12. Se você é um (N)DCCJ-juiz, dê-se conta, republicanamente, que no Brasil vige o sistema acusatório no processo penal. Não porque o autor do manual, no caso eu, queira assim, e, sim, porque é a Constituição que estabelece isso. Portanto, aplique o artigo 212 do Código de Processo Penal, a menos que você encontre um modo de não aplicá-lo dentro das seis hipóteses em que o juiz pode deixar de aplicar uma lei, conforme estabeleço em Verdade e Consenso. Fora disso, há um dever fundamental de aplicar a legislação produzida democraticamente.
13. Você, sendo juiz ou membro do Ministério Público, tem de saber da existência do princípio da isonomia e da igualdade. Ou seja, nos crimes de furto, ou aplicará o critério da insignificância dos crimes de descaminho também para o furto ou os crimes de contrabando ou descaminho também serão avaliados de acordo com as balizadoras do furto. Na República, você deve saber que a isonomia deve ser para valer. Inclusive na comparação entre a devolução do valor furtado com o pagamento dos tributos nos casos de sonegação. Fairness (equaninimidade), essa deve ser a palavra mais usada. Isonomia. Igualdade. Estes devem ser os critérios norteadores dos tribunais.
14. No plano das relações intrainstitucionais, tenha em mente que o corregedor-geral não deve ser buscado no aeroporto ou na rodoviária, salvo se for alguém do seu contato pessoal anterior e que, ainda, trate-se de uma correição ordinária. Aqui deve ser aplicado o primeiro princípio. Por exemplo, meu “manual” não aconselha que se busque o Corregedor-geral no aeroporto, por uma razão simples. Os primeiros minutos serão “legais”. Tira a mala, leva até o carro. O problema será a conversa até o hotel. Desastre. - Foi boa a viagem? Como está o tempo na capital? E aqueles minutos de silêncio... Horrível. Constrangedor. E você com vontade de se atirar para fora do veículo... Mais: Provavelmente o corregedor está odiando esse papo furado. E quando o “buscador” erra o time de futebol do corregedor? Por isso, não fosse por nada, é melhor deixar o corregedor ir sozinho ao hotel. Ou mandar só o motorista do fórum ir buscá-lo. O motorista está acostumado...
15. Um (N)DCCJ não deve “meio-que-se-michar” para o seu chefe (ou equivalente, dependendo o cargo e a carreira jurídica). Nem deve ficar estudando os hábitos do chefe e tomar cuidado para não interpelar o chefe se este estiver irritado. Meu pequeno manual estabelece que, em primeiro lugar, o (jovem) (N)DCCJ não é um caçador que fica cuidando de sua presa e tampouco um sniper que fica cuidando os hábitos de sua futura vítima. Aqui deve ser útil o segundo princípio acima delineado, combinado com os demais (além dos princípios implícitos). O novel concursado (e não só ele) não deve se preocupar com isso. Reconheço que um agir estratégico (habermasiano) pode ser útil.
16. O (N)DCCJ não deve se isolar ou querer “fazer carreira solo”. Permitindo-me discordar de quem pensa o contrário, não creio que não se deva confiar segredos a ninguém e também não penso que o (N)DCCJ deva estar preocupado se, no futuro, o “confidente” será ou não seu inimigo. Meu “manual” estabelece que, sim, você deve ter amigos e confiar segredos a eles. Quem não tem amigo em quem possa confiar pode se tornar um sujeito perigoso (para si mesmo). Na verdade, permito-me, aqui reforçar o meu manual com uma citação de Aristóteles: uma das características da eudemonia – da vida boa ou da felicidade, conforme se traduza, decorre da amizade. O homem bom tem amigos. Bonito isso, não?
17. Explicando melhor (bônus do meu manual), com um pouco de humor: não vale a pena fazer as coisas se não se puder contar ou não vale a pena ter um segredo e não poder compartilhá-lo. Aquele (jovem) detentor de cargo público que não tiver um amigo desse quilate deve tratar de arrumar amigos. Ou, mais tarde, gastará dinheiro com psiquiatras. Lembram daquela anedota do sujeito que ficou preso com a Sharon Stone em uma ilha deserta? Ele pediu para ela se vestir de homem e fazer a volta na ilha para, ao passar por ele, gritar, já ao longe: “— Alfredo, você não sabe com quem eu transei...?” Viram como é necessário compartilhar segredos? Faz bem à saúde. E pode fazer bem à carreira jurídica. As duas coisas. Inclusive sair com a linda Sharon.
18. Não fica bem para o (N)DCCJ se expor em redes sociais. Diria mesmo que esse negócio de Facebook pode, mesmo, ser perigoso. Cá para nós, que frescura é essa de ficar colocando toda a sua privacidade no Facebook? Um jovem que passou em um cargo de carreira jurídica — e agora é um (N)DCCJ — deve estudar, fazer mestrado, doutorado e parar com essa perda de tempo de ficar se expondo nas redes sociais. O (N)DCCJ deve ler bons livros. Assim, não ficará citando compêndios de baixa categoria nas petições, pareceres e sentenças (e nem tirará modelitos das redes sociais).
19. Na linha da dica anterior: antes de abrir a internet para encomendar o último livro de Direito simplificado, respire fundo dez vezes, pense que você vai ficar mais burro... Faça uma análise de custo e benefício. E não fique escrevendo coisas no Facebook do tipo “hoje fui passear com meu cachorro...” ou “vou ao cinema ver o Adam Sandler na sua última comédia; vamos eu e o(a) novo(a) procurador(a) autárquico(a) que assumiu ontem...” (sem ser politicamente incorreto, mas cuidado com essa exposição de intimidades, em tempos de revelações na novela da Globo). E nem pense em dizer que acabou de sair do jogo de tênis... Fique sabendo de uma coisa (e, por favor, peço que compreendam a brincadeira — não peguem o que estou dizendo ao pé-da-letra): não existe intelectual bronzeado e que saiba jogar tênis. Ou uma coisa ou outra... (sei que existem alguns intelectuais que conseguem compatibilizar essas duas coisas — raros, mas existem). A vida é feita de escolhas.
20. Finalmente, se você subir na vida e chegar a algum ministério, não use avião da FAB. Viaje em avião de carreira, como a patuleia. Faz mal para as costas, mas faz bem ao espírito (público). E também não faça nepotismo. Direto ou indireto. Não use sua influência para beneficiar parentes. Acredite: o ideal de vida boa que a Constituição estabelece tem na meritocracia o seu baluarte.
Uma dica final
Não esqueçamos que a coluna se chama Senso Incomum. E que algumas coisas devem ser ditas, sempre. Mesmo que, por vezes, sejam contra o que digam ou o que façam ministros de Estado e ministros do STF, como é o caso dos que frequentaram os noticiários e as redes sociais no último final de semana, em face da possibilidade de preenchimento de cargos de desembargador estadual e federal pela prole de dois dos ministros da Corte Maior (clique aqui para ler). Fiquei pensando em qual das dicas do meu manual se enquadraria a situação relatada na aludida reportagem da Folha de S.Paulo. Tenho que dizer: se o que consta na matéria é verdade, então a situação se enquadra na dica número 20, acima. De todo modo, tinha que falar sobre tudo isso, mormente quando isso ocorre em tempos de protestos populares contra o modo como se exerce o poder em terrae brasilis. Sempre me lembro da pobre camponesa (da coluna passada) prestes a dar à luz. Isso não me sai da cabeça. Entre sístoles e diástoles, a coluna vai indo. Com os custos normais à espécie. Na forma da lei e da Constituição! Acham os leitores que o “manual” tem futuro? Vende?