sexta-feira, 26 de julho de 2013

Crimes hediondos: enquanto enforcavam, tungavam

Quando bater carteira dava pena de morte
Conta-se que o dia em que enforcaram os primeiros condenados à morte pelo crime de “bateção” de carteira em um país da Europa foi também o dia em que mais carteiras se furtou. Os curiosos foram à praça ver os enforcamentos e, bingo! A malta — lixando-se para a hediondez do crime (a metáfora é minha) — aproveitou para tungar mais ainda.

Veja-se: não estou dizendo que a pena não resolve. Tenho minhas diferenças com setores do Direito Penal brasileiro, principalmente com os iluministas tardios ou os libertaristas, que (quase) acham que é proibido proibir.[1] Menos. Um garantista da cepa como Ferrajoli não pensa assim, embora alguns leitores do mestre acreditem que ele seja um abolicionista.
De minha parte, acredito que a pena é necessária. A pena é castigo. É retribuição. E deve servir para prevenção geral. Mas só ela — a pena — não resolve. E, quanto maior e inexequível, mais caráter simbólico assume. E pode ser um tiro no pé. Já escrevi na coluna passada lembrando da transformação da falsificação de medicamentos em crime hediondo. Alguém recorda de alguma condenação? Fazendo uma alegoria em relação à lenda dos enforcamentos e da tunga das carteiras, no dia em que sancionaram a hediondez dos medicamentos foi o dia em que mais se falsificou uma ideia: a de crime hediondo como panaceia, como remédio (sem trocadilho) para todos os males.
A velha mania de legislar no calor da novidade 
Pois bem. Estamos diante de uma nova inclusão de crimes do rol dos hediondos. Desta vez são os crimes de corrupção e peculato. Isso, à evidência, merece uma discussão mais aprofundada. É o pano de fundo necessário para revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição acerca do que seja bem jurídico e o poder-dever de punição em terrae brasilis.

Quem tem acompanhado as sucessivas manifestações e seus mais recentes desdobramentos pode observar que os poderes da República refizeram sua agenda de modo a dialogar com as tantas vozes que vêm das ruas clamando por mudanças. Claro, refiro-me aqui a quem o faz com olhos críticos. A massa recém desperta (?) ainda se alterna entre o deslumbramento e ação irrefletida.
Contudo, o momento é realmente muito bom para que pensemos sobre as questões estruturais dos problemas evidenciados nas manifestações, afinal, só assim se poderá reconhecer e refutar factoides, paliativos e demagogias, tanto os exigidos quanto os oferecidos e recebidos muitas vezes como soluções. Por isso, irei analisar a elevação do crime de corrupção (e outros) ao status de hediondo, cartaz levantado por inúmeros manifestantes, compromisso da presidente da República e projeto aprovado no Senado.
O Direito Penal e o dinheiro da viúva
Sinto-me a cavaleiro para falar sobre e do assunto. Afinal, fui citado na exposição de motivos do projeto da nova lei (ainda falta aprovar na Câmara). Antes de tudo, devo louvar o interesse e a dedicação do senador Pedro Taques (PDT-MT). Se o seu mandato encerrasse hoje, seu nome já estaria gravado no Senado como um dos mais combatentes parlamentares contra a impunidade. Veja-se a sua luta para a aprovação do novo Código Penal e suas discussões — fortes — com setores refratários a uma exasperação das penas dos crimes de cariz metaindividual. Taques tem muito claro que no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve voltar as suas baterias em direção aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República. Ou seja, penas menores para os crimes de cariz individual e penas mais duras para os crimes cometidos pelo andar de cima, em que se enquadra, sim, a corrupção, bem como a sonegação de tributos (o “sonegômetro” aponta para o valor de R$ 415,1 bilhões/ano — clique aqui para ler). Já, aqui, vai um pequeno registro: parcela considerável do Direito Penal de terrae brasilis não quer discutir essa questão da criminalização mais dura da sonegação de tributos... Por que será?

Sigo. A demanda por reprimenda efetiva para as condutas que lesam o patrimônio público (obviamente) não é nova. Não que seja levada em conta quando elegemos nossos representantes. A Ficha Limpa é um belo exemplo disso: uma lei que impede que elejamos novamente pessoas que macularam seu histórico — sozinhos não somos capazes de deixar de votar nessa gente, mas é uma bandeira balançada por setores da direita e da esquerda de forma indistinta. Ou seja: somos “tão bons”, saímos para protestar, mas precisamos de uma lei para “nos proteger” (de nós mesmos) para que não elejamos “fichas sujas”.
A corrupção e a hediondez
Como referido, o Senado aprovou no dia 26 de junho o PLS 204/11 que inclui no rol dos crimes hediondos os tipos penais descritos nos artigos 316, 317 e 333 do CP.[2] Elevou ainda as penas mínimas de todos para quatro anos. Tal fato se deu no dia imediatamente posterior à presidente se dirigir à nação e afirmar ser prioridade a elevação do crime de “corrupção dolosa” (sic).

Pois bem. Foi feito. E agora? “corruptos” passarão a ser vistos frequentando o sistema carcerário? Não é bem assim...
Já denuncio de há muito (e nessa esteira uma série de orientandos meus) que o Direito Penal emterrae brasilis não passou por uma filtragem constitucional em 1988 e segue sendo remendado sem a observância dos requisitos impostos pela nova ordem paradigmática e consoante com o avanço da teoria do delito. Aproveito para refutar aqui a tola (e tão comum no imaginário jurídico) ilusão de que se pode separar teoria e prática, como se por trás desta última não houvesse qualquer fundamento teórico, de modo a realizar-se por si mesma.
Há quase 20 anos, venho denunciando a seletividade penal e a consequente disparidade de tratamento dado às penas previstas para os delitos individuais, em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa, e os metaindividuais cometidos por agentes econômica ou politicamente poderosos, como nos casos da sonegação fiscal, da apropriação indébita previdenciária e dos crimes contra o sistema financeiro em geral. E tenho sido criticado duramente por isso.
Denuncio, com veemência, que o Código Penal de 1940 foi escrito sob a lógica liberal individualista, o que fez com que a propriedade privada tenha ocupado o centro das atenções e recebido uma tutela amplamente superior se comparada à dos bens jurídicos coletivos. Por justiça, diga-se: é um código de seu tempo.
E a velha concussão “ficou” hedionda
O problema é que esse velho código — de perfil liberal-individualista — atravessou o século XX e ingressou no século XXI. Nele está o crime de concussão (artigo 316 — Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida), que — pasmem — possui pena idêntica ao do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, parágrafo 4º), qual seja a de dois a oito anos de reclusão. Quais são os livros de Direito Penal que denunciaram isso (no devido tempo) no plano daquilo que denomino de “paradigmas do direito”? Cartas para a coluna.

Esse mesmo código foi (mal) “recepcionado” pela Constituição de 1988. As distorções contidas no código ancião podem ser constatadas em toda a legislação penal, v.g., os que tratam do meio ambiente, do consumidor, da infância, dos idosos... e também das finanças publicas, cuja tutela se dá por uma série de tipos penais, não somente por aqueles eleitos para reforma. Que dizer, então, da comparação com o crime de tortura (Lei 9.455/97), equiparado a hediondo, cuja pena é a mesma do furto qualificado (e sem multa!)? Aliás, como é que em crimes contra o patrimônio, cujo autor é, em 99% é pobre, aplicam-se multas? Pergunte a qualquer juiz quantos condenados por crimes contra o patrimônio ele já viu algum pagando a multa. Isso é a demonstração de que nosso Código Penal se descolou da realidade. No jargão psicanalítico isso se chama esquizofrenia.
Os leitores se deram conta de que, no entremeio disso tudo, nada se falou da praga contemporânea chamada fraude a licitações, ainda tida como “crime de menor potencial ofensivo”? Querem que repita?
Ou a maioria dos crimes de responsabilidade de prefeitos, cuja pena mínima é de três meses? Esta funda-se em uma inadequada e, indubitavelmente ultrapassada, teoria da discricionariedade administrativa (importada de forma completamente indiscriminada e extremamente conveniente para as elites de terrae brasilis), que permite ao administrador “de plantão” impor sua vontade com a capa de sentido da legitimidade teórica que esta “janela” (aquela enraizada no capítulo oitavo da TPD de Kelsen) de liberdade lhe oferece. Configura-se uma verdadeira erosão de legalidade e traição do Estado Democrático de Direito, promovendo uma retroalimentação da desigualdade, que passa a ser cada vez mais patrocinada pelo próprio Estado!
E por que não se falou sobre a forma como se tratam as sonegações tributárias, especialmente no tocante à famosa Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda que diz que a União só deve perseguir créditos tributários superiores a R$ 20 mil e cuja consequência é a extinção da punibilidade dos crimes de sonegação, descaminho etc. nos casos em que o valor seja menor do que esses R$ 20 mil? Hein? Alô, Senado da República! Alô, meu amigo Pedro Taques! Alô, presidente da República! Essa portaria serve para tungar os cofres públicos!
163 ações penais, um mandado de prisão
Já no ano de 1988 escrevia sobre as distorções do Direito Penal brasileiro. De lá para cá a coisa só piorou. Alias, um breve passar d’olhos sobre a lei penal brasileira é suficiente para revelar a escancarada a preferência do legislador quanto ao bem jurídico a ser protegido com maior esmero, (eis que a pena deve guardar congruência com a necessidade de tutela) quando se tem como parâmetro de comparação as sanções cominadas aos crimes de redução a condição análoga à de escravo (pena de dois a oito anos de reclusão) e o crime de extorsão mediante sequestro com duração de mais de 24 horas (pena de 12 a 20 anos de reclusão).

Repita-se que o crime de supressão ou alteração de marcas de animais (artigo 162) é apenado com seis meses a três anos de detenção e multa, pena máxima superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes (artigo 249 ), violência doméstica nas hipóteses do parágrafo 10° (artigo 129), maus-tratos (artigo 136), violação de domicílio — quando praticada durante a noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violência ou de arma, ou, ainda, por duas ou mais pessoas (artigo 150, parágrafo 1°) e assédio sexual (artigo 216-A, pena máxima de dois anos). O apenamento máximo excede, ainda, as penas originalmente previstas a crimes contra a ordem tributária (destaque para o artigo 2° da Lei 8.137/1990), alguns crimes ambientais (artsigos 32; 45; 50 da Lei 9.605/1998), a sérios crimes cometidos contra criança e adolescente (artigos 228; 229; 230; 231; 232; 234; 235; 236; 244 da Lei 8.069/1990) e a crimes ocorridos em licitações (arts. 93; 97; 98 da Lei 9.666/1993).
Não causa surpresa que dados extraídos do Infopen[3] revelem de forma cristalina a manutenção da clientela “hospedada” nas penitenciárias, cadeias públicas e demais estabelecimentos prisionais brasileiros. Num universo de 471.254 internos, 216.870 não completaram o ensino fundamental, 52.970 não concluíram o ensino médio e 26.343 sequer foram alfabetizados.
Tampouco surpreende a constatação de que 240.642 cumprem pena por crimes contra a propriedade e somente 1.144 por crimes contra a administração pública (peculato, concussão e excesso de exação e corrupção passiva). 125.744 cumprem pena por tráfico de entorpecentes, ao passo que 156 o fazem por crimes ambientais. Por tudo isso, não é sem motivo que não constam registros de internos condenados por fraude à licitação, gestão fraudulenta (ou qualquer outro crime contra o sistema financeiro).
O legislador tem liberdade de conformação?
Aliás, seria o legislador “livre” para fazer essas opções, escolhendo como apenar ou como escusar de sanção a ofensa a bens jurídicos? Num Estado Democrático de Direito essa resposta só pode ser um sonoro não.

Num Estado Democrático de Direito não há (mais) oposição entre Estado e sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa da condição de “inimigo” para a de “amigo dos direitos fundamentais”, bem entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior dessa “reviravolta”, é evidente que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas que se coloquem como entrave à concretização do projeto constitucional, aquele traduzido em linhas gerais no artigo 3º da Constituição.
Nesse contexto, surge (desvela-se, em sentido hermenêutico) uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens jurídicos supra ou metaindividuais, que afetam toda a coletividade. Fala-se no enfrentamento de crimes como a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro (todos esses com lesividade metaindividual). Atenção, Senadores e Deputados: quem sabe os senhores revogam os dispositivos da Lei 10.684/2003 (artigo 9º.) e da Lei 11.941/2009 (artigo 69) que dizem que o pagamento do tributo extingue a punibilidade. Ou, então, apliquemos a isonomia: permitamos também que nos crimes cometidos pela patuleia (furtos, estelionatos) a ausência de prejuízo e ou a devolução do valor obtenha também esse favor legis. Afinal, a República é só para os maganos do andar de cima?
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição (que não é uma mera “carta de intenções”) efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para esta direção, dando proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em destaque (não só a ordem econômico-financeira, mas também o meio também o meio ambiente e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal é a ultima ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se espera (e aí Dworkin tem razão, quando cobra coerência e integridade do Direito) é que trate desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando para ficar mais claro: se o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos – artigo 5º, inciso XXII da Constituição), inclusive via Direito Penal, então não pode haver dúvida de que o tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a lesividade atinge o patrimônio da coletividade.
O que não implica, como se viu, em acreditar que a majoração do apenamento operará uma espécie de “mágica moralizadora” na sociedade brasileira. Ela tem um papel a cumprir, mas o combate à rapinagem institucional não se dá somente pela falta de instrumentos. Manca, também, vontade política e compromisso republicano. Todo parlamentar apresenta a declaração de bens ao TRE/TSE. As evoluções patrimoniais ao longo dos mandatos chegam a ser absurdas em alguns casos (e por tantas vezes são desconsideradas). O Ministério Público e os Tribunais de Contas têm acesso aos procedimentos licitatórios (são públicos). A Lei da Transparência abriu os gastos públicos para o controle social... Nunca foi tão fácil detectar e comprovar improbidades e mau uso do dinheiro da viúva. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) atua bem e em compasso com grupos da Polícia e do Ministério Público. Falta trabalhar! Bingo!
Outra medida efetiva seria por fim ao foro por prerrogativa de função, vergonhosamente conhecido como foro privilegiado. E os números apontam para a veracidade do apelido. Há, hoje, somente no Supremo Tribunal Federal, 163 ações penais originárias, sem falar nos 483 inquéritos.[4] Tendo em vista isso e o histórico de apenas um mandado de prisão desde 1988 (25 anos!), expedido, por sinal, semana passada, dá-se pra entender que a prática tem sido de impunidade. E só recentemente houve a primeira condenação e aplicação de pena.
Portanto, o problema não está em se converter em hediondo — se isso não passar de apenas discurso. Um mandado de prisão em 25 anos é muito pouco para um tribunal que julga questões tão graves do andar de cima. O mero incremento das penas sem a persecução penal efetiva é um engodo.
Tudo isso sem contar que o discurso da hediondez desvia o foco, é o bode expiatório para que as massas possam dormir à noite e sonharem com a diminuição da impunidade e com a falácia da isonomia. Enquanto isso, meio milhão de desdentados superlotam celas infectas e a centenária impunidade do andar de cima será, por um tempo, esquecida. Veja-se: não se trata de uma frase de efeito: o número está correto e eles, na sua imensa maioria, são destituídos de uma adequada dentição.
Muito mais efetivo, portanto, é o fim do foro privilegiado. Mas a isonomia, aqui, não é um princípio que pega bem. Sempre há pessoas “mais iguais” que outras, principalmente quando legislam em causa própria... ou quando desviam o foco por meio de um discurso demagógico e embromador.
Por que quatro anos?
De se notar que o que se aumentou nos tipos penais analisados foi a pena mínima (de dois anos para o dobro). Mas esse número não foi produto de cabalas ou eleito ao acaso. Lembremos que pela nossa legislação atual, quando a pena aplicada não for superior a quatro anos (eis o número não cabalístico), permite-se a substituição da privativa de liberdade (cadeia) por uma pena restritiva de direito (as populares “penas alternativas”).  Taí o busílis. Logo, o que dá com uma mão, tira-se com a outra.

Já um crime como roubo em concurso de pessoas não permite essa substituição. Mas tráfico de entorpecentes, sim.  Assim, resta paradoxal e incoerente taxar de “hediondo” um certo crime e, ao mesmo tempo, possibilitar a aplicação de penas restritivas de direitos em seu tipo básico. A hediondez deveria ser reservada para um tipo de criminalidade, desculpem-se a obviedade, “hedionda”, como o estupro, o latrocínio, genocídio... Não deveríamos banalizar esse epíteto. Se tudo é, nada é. Se consideramos correta a inclusão da corrupção e do peculato no rol dos hediondos, o que justifica a exclusão do crime de lavagem de dinheiro e sonegação de tributos? Atenção: não estou nem de longe propondo isso. Quero apenas fazer uma caricatura, para denunciar a falta de isonomia, coerência e integridade da legislação e do próprio Poder Judiciário, que não aplica a isonomia.
A aplicação da Übermassverbot (proibição de excesso)
Resultado: a pretexto de punição, corre-se sério risco de favorecer a impunidade. Não é assim que se faz. Todos sabem da minha predileção pelo legislador. Pela defesa que dele faço. E todos sabem da defesa que faço da necessidade de o Estado combater com vigor os delitos que colocam em xeque os objetivos da República previstos na Constituição. Mas, há limites. E estes são os limites constitucionais. A teoria do bem jurídico não pode ser banalizada a este ponto. Assim como, por exemplo, o legislador não poderia descriminalizar o estupro ou o homicídio (para dizer o mais), também não pode punir sem qualquer critério que respeite alguns elementos cunhados pela tradição do Direito Penal do Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, seria possível trabalhar a hipótese de aplicar a cláusula (ou princípio) da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), porque patente, em tais hipóteses, a proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos em tela. No segundo caso — e aqui se aplica a “hediondez” da corrupção e do peculato — parece visível o excesso de punição, podendo-se dizer que o legislador violou a cláusula da proibição de excesso (Übermassverbot).

Claro que tais princípios não são fáceis de explicar e/ou aplicar. Nesse sentido entra a importância da doutrina, que deve traçar esses limites, até para evitar que o judiciário decida de forma voluntarista (para “cima” ou para “baixo”). Além disso, dever-se-ia exigir do legislador a necessária prognose. Afinal, quais os elementos objetivos que apontam para o fato de que, transformando a corrupção em crime hediondo, haverá um arrefecimento nos atos de proxenetismo do dinheiro das Viúvas (municipal, estadual e federal)? Banalizar é sempre ruim. Banalizar o bem, banalizar o mal, banalizar a punição ou o desejo de punição... Tudo pode acabar em frustração.
Numa palavra
Como se pode ver, toda essa discussão de aumento de penas em tais tipos é inócua se os Órgãos encarregados da investigação continuam sem a infraestrutura necessária para o enfretamento da questão. Polícia aqui não foi feita para o andar de cima. Que dizer do resto? Estado de Direito para o andar de cima e Estado Polícia para o debaixo.

É claro que esse roteiro passa sempre pela impunidade. Até parece que esse filme é uma comédia. Mas não. Em um Estado com tanta malversação dos recursos públicos e com um estamento que trata a coisa pública como própria, desconhece (ou deliberadamente desrespeita) a moralidade e desvia o que deveria ir para os mais carentes, que mata e oprime por meio de uma violência simbólica colossal em sua dimensão e pelo tempo que perdura, só podemos concluir que estamos assistindo, na verdade, a uma tragédia. Por isso, os projetos salvacionistas como a hediondez da corrupção. É mais ou menos como transformar, no século XVIII, o crime de furto em enforcamento.
Vem de novo a questão do papel da doutrina. Devemos construir uma tradição acerca do que é e pode ser hediondo. E devemos construir uma teoria do bem jurídico-constitucional. Ninguém mais acredita na consciência profana do injusto ou na ontologia do bem jurídico (bem ao gosto do finalismo). Os tempos são outros. Vamos arregaçar as mangas. Vamos “constranger epistemologicamente” os legisladores (assim como devemos constranger epistemologicamente os julgadores – e não o fazemos). Ou seja, a doutrina deve se dar o respeito. Deve parar de lamber os sapatos dos outros (me entendam no que quero dizer...). Já estou até vendo os futuros lançamentos de compêndios e manuais: “como se interpreta a nova lei da corrupção” ou algo similar. E começará tudo de novo. E eu, provavelmente, procurarei sobreviver com a comida que estou estocando. Ah, e não esqueçamos de Thomas More (1478-1535), que escreve na Utopia (1516): “Você primeiro faz os ladrões, depois os castiga.”

[1] Refiro-me, nesse sentido, a algumas decisões que se enquadram nessa linha do exagero da falta de limites semânticos e de um libertarismo fora do tempo. Por exemplo, a decisão da 5ª Câmara Criminal do RS (ler aqui), que considera crime impossível a tentativa de uma mulher levar drogas, introduzidas na vagina, para o interior do presídio. Trata-se de uma espécie de hermenêutica de exceção, com a suspensão da legislação por argumentos de política e não de princípio.
[2] Durante os debates, foram incluídos, no Projeto original, também como hediondos os crimes de homicídio simples, excesso de exação e peculato (estes últimos com pena mínima aumentada para 4 anos).
[3] Dados extraídos do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – Infopen. Disponível nestelink. Acesso em 25 de maio de  2012.
[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acervo processual. Disponível neste link. Acesso em 28 de junho de 2013.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2013

sábado, 20 de julho de 2013

Trote da UFMG: crônica da impunidade anunciada

Neste Diário de Classe, no início do ano letivo, escrevi sobre o trote racista praticado pelos estudantes da Faculdade de Direito da UFMG e a banalidade do mal (clique aqui para ler). Ao final da coluna, provoquei a seguinte reflexão:

Muitos têm se questionado a partir do polêmico trote: estes serão os juristas de amanhã? Estes serão os juízes, promotores, advogados do futuro? Isto depende, inevitavelmente, de quem são os juristas de hoje e, sobretudo, de qual resposta seremos capazes de dar para este problema ou, se preferirem, para esta “brincadeirinha”.
Pois, bem. O que ocorreu desde então? Quais as providências tomadas pelos órgãos competentes para apurar eventuais abusos e ilegalidades? Quais medidas foram adotadas pela universidade a fim de evitar que incidentes deste naipe voltem a ocorrer nos próximos anos? Enfim, passados quatro meses, resta saber quais foram os desdobramentos administrativos e judiciais do polêmico trote que ocupou os principais noticiários do país?
Ab initio, diante das cobranças públicas por uma resposta institucional, a Direção da Faculdade designou uma comissão de sindicância para apurar as inúmeras denúncias de racismo, sexismo e violação aos direitos humanos, a fim de responsabilizar os alunos que, porventura, praticaram atos atentatórios à dignidade universitária.
Após dois meses, a comissão de sindicância concluiu que “não foi constatada [...] a prática e nem a intenção de cometer atitudes racistas, sexistas, nazistas, ou de qualquer outro modo discriminatórias durante o trote, que poderiam ser condutas incompatíveis com a dignidade universitária”.
Tal conclusão decorreu, por um lado, das versões apresentadas pelos investigados, que negaram qualquer intuito discriminatório nas “brincadeiras”, e dos depoimentos prestados por testemunhas que “abonaram” suas condutas, afirmando serem “pessoas de boa índole, religiosas e sem histórico de agressões”; por outro, do teor das declarações dos calouros, que informaram não ter se sentido constrangidos ou humilhados, além de não considerarem qualquer conotação racista e sexista no trote.
Com base no relatório da sindicância, a diretora da Faculdade de Direito, professora Amanda Flávio de Oliveira, editou a Portaria 59, instaurando processo administrativo disciplinar contra 198 alunos (clique aqui para ler).
Segundo a Portaria, 99 alunos do primeiro semestre responderão ao processo simplesmente porque teriam aderido ao trote que sofreram. Todos foram enquadrados, de maneira indistinta, no mesmo dispositivo — sob o argumento de que não é possível individualizar as condutas imputadas — e podem ser punidos com advertência.
Outros 67 alunos, estes do segundo semestre, responderão porque assumiram que teriam participado do trote aplicado aos calouros, sendo puníveis com a pena de suspensão por oito dias. Da mesma forma, as condutas foram imputadas sem que tenham sido individualizadas.
Por fim, a portaria também prevê o processamento de outros 32 alunos, todos membros da diretoria do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), passíveis de suspensão por oito dias, porque, na ocasião do trote, teriam distribuído gratuitamente e comercializado bebidas alcoólicas em descumprimento às normas e à autorização concedida pela direção da unidade para a “recepção dos calouros”.
Deixa eu ver se entendi bem:
1. os alunos que sofreram o trote poderão ser punidos com advertência, sob a alegação de que consentiram com a “brincadeira”? A culpa, agora, é das vítimas?
2. distribuir cerveja para a calourada tem o mesmo (des)valor que a prática de racismo e fazer apologia ao nazismo?
3. desde quando a responsabilização pela prática de atos discriminatórios e atentatórios aos direitos fundamentais depende da anuência dos ofendidos?
4. é possível imputar, genericamente, a mesma conduta a dezenas de alunos, como se tal responsabilidade fosse objetiva?
5. o processo administrativo disciplinar instaurado está dispensado de observar o devido processo legal? Quando abrimos mão da individualização das condutas?
6. a comissão designada para presidir o processo administrativo disciplinar é a mesma comissão que realizou a sindicância?
7. tal portaria foi editada pela direção de uma das faculdades de Direito mais prestigiadas do país?
Parece uma “pegadinha”, mas não é.
Na verdade, o processo administrativo instaurado pulverizou irrestritamente a responsabilidade e, assim, também a diluiu, de maneira que restaram inatingidos aqueles que notoriamente teriam incorrido nas condutas mais graves: racismo, sexismo e apologia ao nazismo.
Tudo indica, lamentavelmente, que se optou por punir mais de uma centena de alunos, indistintamente, apenas para dar exemplo. Moral da história: “pune-se quem não se deve para não punir quem se deve...”
Por que não processar administrativamente aqueles que incorreram em indignidade universitária? Por que, simplesmente, não punir os culpados de modo individualizado? Isto para não falar das responsabilidades — civil e penal — por violações aos direitos humanos... Aí tem coisa... Certamente, há outros interesses.
Tanto é assim que, perplexos com tamanha arbitrariedade, um grupo de quatro professores — dos departamentos de Psicologia, Ciência Política, Arquitetura, História — interpôs recurso hierárquico perante a Congregação da Faculdade de Direito, nos termos do Regimento Geral da UFMG, contra o processo administrativo disciplinar instaurado pela direção, requerendo a nulidade da Portaria e o imediato desaforamento do processo de sindicância para o Conselho Universitário. Ao recurso interposto aderiram professores da Faculdade de Direito — Marcelo Cattoni, Thomas Bustamante e Daniela Muradas — e de outras unidades, mediante aditamento.
Registre-se que os alunos que inicialmente também figuravam na condição de recorrentes recuaram no momento de assinar o documento diante da possibilidade de anulação da sindicância e da instauração de outra, desta vez pelo Conselho Universitário, com risco de sanções mais graves.
No que isto tudo vai dar? Penso, honestamente, que em nada. Isto porque, ainda vivemos entre acomplacência e o autoritarismo. Parece que estamos fadados a esta velha — e perversa — imbricação que atravessa a história deste país.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.

Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 2013

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Racionalidade do novo CPC trará mais celeridade

O projeto do novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) foi aprovado esta semana pela comissão especial da Câmara dos Deputados criada para analisar a proposta. Elaborado em 2009 por uma comissão de juristas presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, o novo CPC tem como objetivo dar mais celeridade à tramitação das ações cíveis. O projeto ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Câmara e do Senado.
O advogado Mario Gelli, do Barbosa, Müssnich e Aragão (BM&A), diz que o novo CPC busca a simplificação dos procedimentos e a racionalização dos recursos. De acordo com ele, o projeto estimula a utilização dos meios de autocomposição do litígio, como a conciliação e a mediação. “Em regra, o réu passará a ser citado não para oferecer sua defesa, mas sim para comparecer a uma audiência prévia de conciliação/mediação. Apenas na hipótese de o conflito não ser resolvido amigavelmente é que se iniciaria o prazo para defesa”, explica.
O estímulo às negociações amigáveis é elogiada também pelo advogado José Carlos Puoli, do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados. Para ele, esta medida pode propiciar resultados mais rápidos e uma diminuição de processos, porém, ressalta que para que haja esta redução é necessário alterar hábitos.
“As alterações do atual CPC (que foram realizadas, notadamente, desde 1993) foram relevantes para melhorar a fluidez de nosso sistema processual, mas também demonstraram que nenhuma alteração da lei, por si só, é suficiente para reduzir o número de litígios. Para que isto ocorra é necessária uma mudança de cultura”, diz.
Paulo Henrique dos Santos Lucon, vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), diz que o projeto foi muito debatido e só não avançou mais por falta de preparo técnico de muitos congressistas. Apesar de considerar o projeto positivo, ele faz uma crítica e diz que a proposta poderia ter disciplinado a mediação antes do processo. “O Novo CPC poderia ter disciplinado uma fase de mediação pré-processual, ou seja, antes de o autor distribuir sua petição inicial, porque, a partir daí, o conflito já está instaurado”, diz.
Um das novidades que para tentar acelerar a tramitação dos processos é o julgamento em ordem cronológica. De acordo com o texto, os juízes deverão proferir sentença e os tribunais deverão decidir os recursos obedecendo à ordem cronológica de conclusão. A lista de processos aptos a julgamento deverá ser disponibilizada em cartório, para consulta pública.
”Para as preferências estabelecidas em lei, como para os idosos, por exemplo, também deve ser criada uma lista própria, o que ajudará na organização e dará mais transparência à atividade do julgador. Caso o juiz retarde injustificadamente o andamento do processo ou deixe de adotar providência necessária, poderá responder por perdas e danos, para indenizar a parte prejudicada”, explica Ana Carolina Ferreira de Melo Brito, do Trigueiro Fontes Advogados.
Conquistas da avocacia 
Para os advogados, o projeto contempla uma série de conquistas diz o advogado Ulisses César Martins de Sousa, sócio do Ulisses Sousa Advogados Associados e Secretario Geral Adjunto da OAB-MA. Entre os destaques ele enumera o reconhecimento da natureza alimentar dos honorários advocatícios; a possibilidade dos honorários serem recebidos diretamente pelas sociedades de advogados; o estabelecimento de critérios claros para a fixação de honorários nos casos em que a Fazenda Pública for vencida; e a contagem dos prazos processuais apenas em dias úteis.

O advogado Mario Gelli explica que o projeto cria uma tabela de percentuais para os casos em que o Poder Público for condenado. “A lógica da tabela é a de que o percentual a pautar a fixação dos honorários é inversamente proporcional ao valor da condenação sofrida pelo Poder Público”, conta. Também destaca que o projeto estabelece que serão devidos honorários advocatícios sucumbenciais não só no processo principal, mas também, cumulativamente, na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução e nos recursos.
Além disso, o novo CPC garante as férias dos advogados entre 20 de dezembro e 20 de janeiro. As conquistas foram comemoradas pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho. “O fortalecimento do exercício da advocacia é fundamental para a garantia da plena defesa dos direitos do cidadão contra injustiças e arbitrariedades”. 
Sistema de recursos
Outra inovação destacada por advogados é a alteração na sistemática dos recursos. O projeto do novo CPC extingue os embargos infringentes e o agravo retido. Além disso, restringe as hipóteses de interposição do agravo de instrumento, que passará a se chamar apenas agravo, conta Mario Gelli.

Para a advogada Ana Carolina Ferreira de Melo Brito outra medida que pode encolher o tempo de tramitação dos processos é a atribuição de sucumbência na fase recursal. “Isso fará a parte que ‘perdeu a ação’ ponderar sobre esse risco antes de decidir recorrer por uma causa na qual sabe que não terá êxito ao final. Serão devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, de forma cumulativa”, afirma.
O efeito suspensivo também será alterado com o novo CPC. “A apelação deixará de ter efeito suspensivo como regra geral, ampliando-se as hipóteses de imediata execução da sentença”, observa o advogado Mario Gelli.
A medida, considerada benéfica para uns, é criticada por Ulisses César Martins de Sousa. “Se a intenção do projeto é estabelecer um procedimento mais célere, não faz o menor sentido permitir-se que sentença possa ser cumprida (executada) antes do julgamento do recurso de apelação”, diz.
Outro ponto que Ulisses Sousa conisdera incompreensível, com o advento do processo eletrônico, é que seja mantida a previsão de que o agravo de instrumento deverá ser instruído com cópias de peças do processo. “Se o processo eletrônico estará inteiramente disponível no site do tribunal, qual a razão de exigir-se que o recurso seja acompanhado de cópias? Tal exigência é, no mínimo, incompatível com a realidade do processo eletrônico”.
Demandas repetitivas
“Com certeza vai acelerar a tramitação e finalização de processos, com a redução de recursos, diminuição de formalidades e criação de uma ferramenta específica para tratar das ações repetitivas que, certamente, coibirá o ajuizamento em massa de demandas idênticas”, afirma a advogada Ana Carolina Remígio de Oliveira, sócia do Marcelo Tostes Advogados.

O incidente de resolução de demandas repetitivas é uma das principais inovações do projeto. Esta medida permitirá que juízes de primeira instância, ao identificar muitos processos sobre a mesma questão de Direito, possam provocar o tribunal de segunda instância (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) para que ele decida a controvérsia. Sendo seu resultado aplicado a todas as ações.
“Se houver sucesso no processamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, haverá enorme economia de recursos (pessoais e materiais) do Judiciário, de maneira que com um único julgamento inúmeras demandas semelhantes poderão ser resolvidas”,complementa José Carlos Puoli.
A advogada Ana Carolina Melo Brito também acredita que esta medida deve ajudar na redução de processos. “Além disso, os litigantes com grande número de processos semelhantes, isto é, Poder Público, concessionárias de serviços públicos e grandes fornecedores de bens de consumo, terão uma maior previsibilidade quanto às decisões que serão proferidas, possibilitando-lhes gerenciar melhor os processos e decidir sobre a continuidade ou não do litígio, nos casos cabíveis”, complementa.
Morosidade da Justiça
Apesar de acelerar a tramitação dos processos, os advogados alertam que a nova lei não irá acabar com a lentidão da Justiça. "A demora na solução de processos judiciais é fenômeno complexo que decorre de vários fatores. A falta de investimento na gestão da estrutura Judiciária é um destes fatores e de importância muito mais relevante do que o nosso atual CPC, cujo texto já vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo", explica o advogado José Carlos Puoli.

Para advogada Ana Carolina Ferreira de Melo Brito vários fatores que podem contribuir para a morosidade na tramitação dos processos, tais como o número reduzido de funcionários, baixa capacitação de pessoal ou inadequada gestão administrativa, inclusive de recursos financeiros. “No entanto, o CPC cumprirá em boa medida seu papel no combate a um desses fatores de lentidão, ao dar condições ao juiz e às partes de resolverem o litígio de forma mais ágil”, diz.
Já Ana Carolina Remígio de Oliveira destaca que diversos fatores como a modernização dos tribunais, a implantação de processos eletrônicos, contribuem para agilizar a tramitação dos processos, mas é necessário também adequar as leis à realidade do país.
Clique aqui para ler a íntegra do novo CPC aprovado pela comissão
*Notícia alterada às 9h13 do dia 19/7 para acréscimo de informações
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2013

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Norma permite decidir milhares de ações de uma só vez

Por Rodrigo Haidar
O texto do Novo Código de Processo Civil aprovado nesta quarta-feira (17/7) por uma comissão especial da Câmara dos Deputados traz uma novidade que, se usada na medida correta, pode revolucionar o tratamento de ações sobre o mesmo assunto que chegam aos milhares no Judiciário brasileiro. A novidade responde pelo nome de incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em termos mais simples, trata de permitir que processos idênticos tenham resultados iguais, independentemente do juiz que irá julgar o caso. A medida pode acabar com o caráter muitas vezes lotérico da Justiça, que permite que um cidadão vença determinada demanda e seu vizinho, com um processo exatamente igual, perca a ação.
A ideia não é nova e já funciona com sucesso no Superior Tribunal de Justiça, por exemplo. Mas agora as questões poderão ser uniformizadas antes de levar anos até chegar aos milhares ao tribunal superior. O novo CPC permite que quando juízes de primeira instância identifiquem enxurradas de processos sobre a mesma questão de Direito, possam provocar o tribunal de segunda instância (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) para que ele decida a controvérsia. Seu resultado seria aplicado, então, a milhares de ações idênticas que tramitam nas varas do país.
De acordo com Bruno Dantas, membro do Conselho Nacional de Justiça e um dos autores do novo código, já que integrou a Comissão de Juristas do Senado que elaborou o texto agora aprovado pela comissão da Câmara, a ideia foi trazer racionalidade e celeridade para o sistema e impedir injustiças com decisões diferentes para casos idênticos. “O incidente é uma boa alternativa ao processo coletivo, que ainda não funciona bem no Brasil, e prestigia os princípios constitucionais da segurança jurídica e da isonomia”, sustenta Dantas.
O advogado José Miguel Garcia Medina, autor de um Código de Processo Civil Comentado usado como referencial no meio jurídico, compartilha da mesma opinião: “Esse projeto tem como uma de suas mais importantes características a de estar alinhado com garantias constitucionais. O incidente de demandas repetitivas, se bem aplicado, realizará em plenitude o princípio da isonomia”.
Pelas regras do projeto, não apenas o juiz, mas também o membro do Ministério Público, o defensor público ou até uma das partes pode provocar o presidente do tribunal de segunda instância sobre a existência de múltiplos processos que discutem a mesma tese jurídica. O presidente do tribunal, então, distribui a causa para um dos desembargadores.
O desembargador faz o chamado juízo de admissibilidade. Verifica se a questão de direito é a mesma e se repete em múltiplos processos. Avalia, então, se já é o momento conveniente para se adotar uma solução que sirva de paradigma para todos os casos idênticos. “É importante permitir esse juízo político porque o tribunal pode avaliar que a questão ainda não está madura para ser decidida de maneira uniforme”, afirma Bruno Dantas.
Se a questão é admitida, automaticamente todas as ações que tratem do mesmo tema têm o andamento suspenso até a decisão do tribunal. O prazo para que o tribunal decida a questão é de 180 dias. Depois de decidida a ação, seu resultado produz efeito vinculante para todos os demais processos que versem sobre a mesma controvérsia: ou seja, o juiz é obrigado a aplicar automaticamente o resultado em todas as ações idênticas sob sua guarda. Se o julgamento não é concluído no prazo, os processos voltam a tramitar.
Para que a uniformização da matéria ganhe caráter nacional, o texto do projeto prevê que as partes também podem acionar o Superior Tribunal de Justiça, nos mesmos moldes. No caso de o Tribunal de Justiça da Bahia já ter fixado tese sobre uma controvérsia que ainda está em aberto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o STJ pode ser provocado para pacificar o tema em todo o país.
As regras, no caso, são as mesmas. Todos os processos são suspensos por 180 dias em território nacional e os ministros têm esse prazo para decidir a ação escolhida como paradigma. Em caso de discussão de matéria constitucional, o procedimento é o mesmo, mas foro é o Supremo Tribunal Federal. Decidida a questão, os juízes aplicam seu resultado aos processos. Em caso de desobediência, cabe Reclamação direta ao tribunal que pacificou a matéria.
Exemplo internacional
A resolução de demandas repetitivas é um exemplo que já deu certo em países como Alemanha e Inglaterra. Os alemães se depararam com a necessidade de discutir esse modelo de enfrentamento de processos em 2001, como lembra Bruno Dantas. Na época, a empresa Deutsche Telecom foi alvo de 18 mil ações individuais sob acusação de maquiar seu balanço e causar prejuízos financeiros aos acionistas.

Para os padrões alemães, 18 mil processos sobre o mesmo tema era algo inimaginável. A Justiça não conseguia dar resposta à demanda. Depois de quatro anos sem que sequer as primeiras audiências dos processos fossem realizadas, um grupo de advogados reclamou à Suprema Corte do país alegando que havia, no caso, negação de justiça.
A Suprema Corte determinou as medidas necessárias para fazer os processos andarem. E o Parlamento se reuniu para discutir o problema. Foi criado, então o incidente de julgamento de causa modelo. Lá se permite julgar pelo sistema, inclusive, questões de fato. Por exemplo, a prova produzida em uma ação pode ser usada para todas as outras idênticas. Pelo texto do novo código brasileiro, apenas questões de direito cabem no sistema de julgamentos de massa.
A experiência também é usada com sucesso na Inglaterra, garante Bruno Dantas. Guardadas as especificidades de cada sistema, o que está para ser criado no Brasil se assemelha às chamadasTest Claims: uma ação é escolhida, julgada e sua decisão é aplicada de forma vinculante a todos os processos idênticos.
No Brasil, se encaixariam perfeitamente na regra, para citar apenas dois exemplos, casos como os dos milhares de ações que contestavam a cobrança de assinatura básica de telefones fixos ou dos processos que tratam das diferenças monetárias do índice de correção da poupança por conta de planos econômicos dos governos de Fernando Collor e José Sarney.
Para José Garcia Medina, a possibilidade de aplicar o julgamento de demandas repetitivas em segunda instância evita injustiças. Isso porque muitos casos — a maioria, na verdade — não chegam aos tribunais superiores. As pessoas sequer recorrem à segunda instância depois de perder as ações. Assim, os beneficiados são sempre aqueles que têm mais recursos financeiros ou conseguem se organizar melhor por meio de associações.
“Sabemos bem que a esmagadora maioria das ações não chega aos tribunais superiores. Ao permitir que um tribunal de segunda instância resolva a questão antes de esperar anos para chegar aos tribunais superiores o Código prestigia o princípio da isonomia. Situações idênticas se resolvem do mesmo modo”, sustenta Medina.
Segundo ele, a experiência revela que muitas vezes questões polêmicas de Direito Bancário, do Consumidor ou referentes a telefonia são resolvidas de maneira diferente ao longo dos anos. “Só muito tempo depois o entendimento sobre a questão é uniformizado. Antes de gastar tanto tempo e dinheiro, melhor uniformizar a orientação jurisprudencial sobre a questão logo que possível”, defende. Mas, como todo remédio, o incidente deve ser usado na dose certa: “Não se pode usar o mecanismo para questões semelhantes. Têm de ser para casos idênticos”.
Direito claro
Bruno Dantas destaca outros pontos que considera relevantes no texto do novo CPC. Ele oficializa a suspensão dos prazos processuais de 20 de dezembro a 20 de janeiro e, com isso, garante férias para advogados que trabalham sozinhos. Muda a contagem dos prazos recursais. Hoje, o prazo é corrido. Pelo texto aprovado na Câmara, passa a contar apenas nos dias úteis.

Outro ponto importante, segundo o conselheiro do CNJ, é o dispositivo que obriga os juízes a fundamentar adequadamente as suas decisões. E estabelece parâmetros para isso. Não é fundamentada, por exemplo, a decisão que se limita a fazer a paráfrase de um dispositivo de lei. Ou que poderia dar suporte a qualquer outra decisão. Como os despachos que trazem o seguinte: “Presentes os pressupostos legais, concedo o pedido”.
O texto também muda as regras para as decisões de antecipação de tutela. Hoje, juízes só podem conceder liminar em casos de urgência. Nos casos em que o direito da parte é claro, mas a questão não é urgente, é necessário esperar o trâmite completo da ação. Mas quando a parte que reclama tem diversos precedentes em favor de sua tese ou uma súmula do Supremo que abrace sua causa, é justo esperar o desfecho de toda ação?
A redação do novo CPC muda a situação e permite que, nestes casos, o juiz conceda a antecipação de tutela para garantir o direito da parte. Nas palavras de Bruno Dantas, a regra inverte uma lógica perversa: “Hoje, temos um processo civil do réu. Procuramos criar o processo civil da parte que tem razão”.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2013

Joaquim Barbosa suspende criação de TRFs

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, concedeu na noite desta quarta-feira (17/7) liminar para suspender a Emenda Constitucional 73, que cria quatro tribunais regionais federais. A decisão foi concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada na tarde desta quarta pela Associação Nacional de Procuradores Federais (Anpaf) contra a criação dos TRFs. Com isso, a criação dos tribunais fica suspensa até que seja julgado o mérito da ADI.
Na ação, entre outros argumentos, a Anpaf reclama que a EC 73/2013 padece de vício de iniciativa, pois foi proposta ao Congresso pelo próprio Legislativo. O que os procuradores alegam é que, em seu artigo 96, inciso II, alíneas “a” e “b”, a Constituição Federal estabelece que projetos de lei, ou de emendas constitucionais, que tratam da criação ou extinção de tribunais, bem como da administração da Justiça, devem ser propostas ao Congresso pelo Supremo ou por tribunais superiores.
E foi justamente esse o ponto abordado pelo ministro Joaquim Barbosa em sua liminar. Ele afirma que há indícios que dão respaldo ao argumento do vício de iniciativa, e por isso a questão, eminentemente constitucional, deve ser analisada pelo Plenário do Supremo. O relator da ADI é o ministro Luiz Fux, mas, como havia pedido de liminar e o Supremo está em recesso, a análise cabe ao presidente do tribunal.
O presidente da Anpaf, Rogerio Filomeno Machado, comemorou a decisão desta noite. Disse que “agora é que aparece a oportunidade de apreciar se há a necessidade de novos TRFs ou não”. “Nossa reclamação é que os outros ministros do STF não foram ouvidos na questão, e aí o problema do vício de iniciativa. Agora vamos ter tempo de esperar o retorno dos ministros e apreciar a questão com calma, de maneira mais aprofundada”, afirmou o procurador à revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2013

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - RIDB nº 9 - 2013



 
 
Nº 9 (2013)

CAPA, ÍNDICE - PDF

Pedro de Albuquerque, "O Direito ao Cumprimento de Prestação de Facto, o Dever de a Cumprir e o PrincípioNemo ad Factum Cogi Potest. Providência Cautelar, Sanção Pecuniária Compulsória e Caução" - 8981

Gilmara Maria de Oliveira Barbosa, "Anomia, Direito e Pós-Modernidade" - 9043

Ana Silvia Marcatto Begalli, "Biodireito e Bioética: Entre o Poder e o Dever de Conter os Avanços da Ciência" -9083

Patricia Bianchi, "A Responsabilidade Socioambiental das Empresas" - 9103

Luciana Briedis, "Aplicação dos Procedimentos Investigatórios Previstos na Lei n. 9.034/95: Enfoque a Partir das Novas Técnicas de Apuração da Criminalidade Econômica" - 9133

Bruno Leonardo Câmara Carrá, "A Essencia Revolucionária do Direito Ambiental e a Filosofia da Precaução" -9163

Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho, "A Hermenêutica Constitucional entre a Estabilidade e a Dinâmica: Elementos para uma Compreensão do Conceito de Mutação Constitucional" - 9187

Eliza Cerutti & Marcos Catalan, "Alimentos, Irrepetibilidade e Enriquecimento Sem Causa: Uma Proposta de Convergência de Figuras Aparentemente Excludentes" - 9221

Daphne Constantinopolos, "Âmbito de Proteção da Patente: A Doutrina dos Equivalentes" - 9255

Leonardo Carneiro da Cunha, "O Processo Civil no Estado Constitucional e os Fundamentos do Projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro" - 9293

Cibele Fernandes Dias, "A Interpretação Evolutiva da Constituição: Mutação Constitucional" - 9329

Talden Farias, "Regulação Jurídica dos Biocombustíveis no Brasil: O Caso do Álcool Combustível e do Biodiesel" - 9343

Tânia Luísa F. e Faria, "Medidas Antidumping e Cartéis de Exportação - Uma Missão para o Direito da Concorrência" - 9373

Phillip Gil França, "Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil e Escolhas Públicas: Perspectivas de Caminhos Constitucionais de Concretização do Desenvolvimento Intersubjetivo" - 9407

Paola Coelho Gersztein, "O Direito Fundamental de Acesso à Justiça na Perspectiva Luso-Brasileira" - 9421

Melissa Zani Gimenez, "Uma Questão de Cidadania: Reflexões acerca da Inclusão do ECA nos Currículos Escolares como Possibilidade de Prevenção de Atos Infracionais junto à Escola" - 9497

Rafael Glatzl, "A Inconstitucionalidade da Dispensa de Licitação nos Contratos de Gestão Celebrados entre Administração Pública e Organizações Sociais" - 9521

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, "Agências Reguladoras: Origens, Fundamentos, Direito Comparado, Poder de Regulação e Futuro" - 9541

Luciana Helena Gonçalves, "O Ultrapassar as Fronteiras entre Quatro Paredes" - 9561

Cláudia Maria Resende Neves Guimarães, "A Justa Causa Prevista no Art. 1.848 do Código Civil Brasileiro para Clausulação da Legítima" - 9583

Lucas Cilli Horta, "O Homem e o Direito à Licença-Maternidade. Análise Principiológica e Teleológica da Constituição Federal do Brasil, da Diretiva 96/34 da União Europeia e do Código do Trabalho de Portugal" -9627

Regma Janebro, "Os Deveres de Conduta Prévia dos Provedores de Internet" - 9661

Martiane Jaques La Flor, "Extensão da Imunidade de Livros, Jornais e Periódicos. Interpretação da Expressão “Papel”. O Livro Eletrônico" - 9741

Ricardo Alves de Lima, "A Aquisição do Vínculo de Filiação pela Adoção: Comparações entre os Institutos Brasileiro e Português" - 9791

José Francisco Dias da Costa Lyra, "O que Protege o Direito Penal? Bens Jurídicos ou Vigência da Norma?" -9825

Emanuelle Mendes, "Adoção Homoafetiva: Os Desafios de uma Nova Expressão Familiar" - 9881

Luana Casagrande Calomeno Moro & Frederico E. Z. Glitz, "Apontamentos sobre as Joint Ventures Societárias Constituídas sob Regime das Sociedades Limitadas" - 9907

Damião Alexandre Tavares Oliveira, "Contributos (E Perigos) da Rotulagem Ambiental para o Desenvolvimento Sustentável no Brasil (Parte I)" - 9937

Pedro Accioly de Sá Peixoto Neto, "Superação do Positivismo Tradicional Ante os Direitos Fundamentais no Pós-Positivismo: Uma Nova Interpretação Jurídica" - 9981

Gleydson Gleber Bento Alves de Lima Pinheiro, "O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proibição da Proteção Deficiente à Luz da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Brasileiro" - 10029

Oriana Piske, "Reflexões Sobre o Sistema Eleitoral no Brasil e na Argentina" - 10087

Daniela Portugal, "O Estado Democrático de Direito e a Moderna Legislação Penal: O Princípio da Taxatividade e a Eficácia na Tutela de Novos Bens Jurídicos" - 10115

Adir Ubaldo Rech, "Direito Urbanístico e Políticas Públicas de Ocupação Socioambientalmente Sustentáveis do Planeta" - 10151

Lidiane Maurício dos Reis & Thiago Alves Miranda, "A Formação do Processo de Execução sob o Prisma Constitucional" - 10169

Mauricio Martins Reis, "A Ontologia Deflacionária no Direito: A Decisão Pode Ser Múltipla para o Mesmo Caso Concreto?" - 10195

Carlos Eduardo D’Elia Salvatori, "Contrato de Doação: Análise da Cláusula de Reversão e Considerações sobre a Doação Conjuntiva a Cônjuges e a Companheiros" - 10209

Rafael da Silva Santiago, "O Conflito Real entre Regras e Princípios e a Reserva do Possível no Regime Jurídico-Administrativo: Uma Reinterpretação do Caso Concreto" - 10239

Rodrigo Victor dos Santos, "Cláusula do Não Obstante: Uma Alternativa ao Modelo Institucional Vigente" -10285

Ana Paula da Silva, "Aplicação do Ponto por Exceção a Luz da Lei de Ponto Eletrônico" - 10315

Carlos Sérgio Gurgel da Silva, "Federalismo Cooperativo Ambiental no Brasil: Breves Notas Sobre a Lei Complementar 140/2011" - 10329

José Fernando Simão, "Natureza Jurídica do Dízimo e da Doação: Aparente Semelhança, mas Grandes e Insuperáveis Diferenças" - 10357

Sônia Barroso Brandão Soares, "Poder de Polícia, Regularização Fundiária e o Princípio Constitucional do Direito à Moradia" - 10387

Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza, "A Aplicação Direta das Normas Constitucionais e a Liberdade Associativa no Direito Civil Brasileiro" - 10431

Maurício Dalri Timm do Valle, "O Princípio da Seletividade do IPI" - 10475

Marco Anthony Steveson Villas Boas, "Fragilidades do Sistema Difuso de Controle de Constitucionalidade na Justiça Eleitoral" - 10501

domingo, 7 de julho de 2013

Nenhuma sociedade se organiza com 100 milhões de ações


Gilmar Mendes foi procurador da República, advogado-geral da União e hoje ocupa uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal. Tornou-se conhecido por sua disposição para embates e por seu conhecimento constitucional. Mas sua trajetória mostra característica que não costuma ser objeto de notícias a seu respeito: ele é estudioso dos sistemas de gestão, da racionalidade de meios e efetividade nos fins.

Na AGU baixou grande número de súmulas para que os advogados da União deixassem de cuidar de casos irrelevantes para concentrar atenção e energia nos grandes casos. Ao chegar ao STF, dedicou-se na adoção dos mecanismos de efeitos vinculantes, foi um dos mentores da repercussão geral, do amicus curiae e da ADPF.
No momento em que passeatas e tumultos acuaram as autoridades da República, Gilmar Mendes é cético em relação a medidas tópicas sacadas de afogadilho para aplacar a ira da multidão. E insiste, como num mantra, no seu diagnóstico: os grandes dramas da população subordinam-se à ineficiência do poder público. E essa ineficiência é um problema de falta de gestão.
Assim, não será aumentando a pena para o crime de corrupção ou classificando-o como hediondo que algo mudará no funcionamento das instituições. O ideal é que se faça o caminho contrário: a partir de ações pontuais para enfrentar os problemas de mau funcionamento da máquina pública é que se descobrem os gargalos e, a partir desse diagnóstico, propõem-se medidas para corrigir as distorções.
A experiência já mostrou resultados em convênios firmados entre o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Ministério da Justiça. É o caso da Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), que depois de analisar 135 mil inquéritos que investigam homicídios dolosos instaurados no Brasil até o final de 2007, descobriu que apenas 43 mil foram concluídos. Dos concluídos, pouco mais de oito mil se transformaram em denúncias. Ou seja, mais de 80% dos inquéritos de homicídio foram arquivados. A partir do diagnóstico, as autoridades passaram a adotar as soluções para enfrentar o problema.
Gilmar Mendes estava à frente do CNJ quando a Enasp foi criada. E defende que esse modelo seja estendido para todos os setores da administração pública. “É necessária uma integração de vontades do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para dar efetividade à Justiça criminal, que tem graves problemas de funcionalidade”, afirma. “Dessas ações surgem questionamentos, por exemplo, quanto à adequada dotação de recursos humanos”, completa.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o ministro disse que o altíssimo grau de judicialização das controvérsias no Brasil é uma das raízes do problema e que sem respostas administrativas adequadas a demanda tende a se tornar infindável. Mendes sugere, por exemplo, a instituição de um serviço civil no país e a adoção efetiva de um sistema de advocacia voluntária para atender a cidadãos carentes. Os bacharéis em Direito ou advogados recém-formados poderiam fazer uma espécie de residência para dar vazão às demandas. “A questão é vital no momento atual, em que nós temos uma brutal carência. O país tem cinco mil defensores públicos para atender a massa de demanda da população carente em todos os temas, em questões de família, de Direito Civil, etc. Só presos nós temos mais de 500 mil no país”, ressalta o ministro.
Em suma, mais efetivo do que legislar, seria aproveitar o momento para aparar arestas na área administrativa que provocam a falta de funcionalidade dos serviços públicos no país. Como mais um exemplo, o ministro cita que há no Supremo 5 mil conflitos federativos, entre a União e os estados. Muitos deles provocados mais por desorganização da burocracia do que por controvérsias relevantes.
Entre outras sugestões para enfrentar o excesso de judicialização, Gilmar Mendes propõe o fortalecimento dos Procons e a criação, dentro das agências reguladoras, de modelos de ouvidoria que dirimissem controvérsias entre consumidores e prestadores de serviços públicos. “O momento é bastante oportuno para estudar essas propostas. Há certo desconforto da alma porque as pessoas têm uma realidade muito dura, especialmente nas suas relações com os serviços públicos. Aqueles que dependem do serviço público de transporte, de saúde ou educação, se veem às voltas com enormes dificuldades. É preciso estimular essas soluções em busca de respostas efetivas. Do contrário, a judicialização é a única alternativa. E, muitas vezes, ela é ineficiente”.
Leia a entrevista
ConJur — Em meio às respostas para as manifestações que tomaram o país nas últimas semanas, a Câmara aprovou regime de urgência na tramitação do projeto de lei que torna a corrupção crime hediondo. Mudar a classificação de um crime ou aumentar a pena para o criminoso, sem medidas que possam tornar efetiva a persecução penal, adianta?
Gilmar Mendes — Eu tenho a impressão que isso é o tradicional apelo, que não é incomum aqui ou em outros lugares, da chamada legislação simbólica. Isso tem sido objeto de estudo na própria teoria do Direito. É comum, diante de quadros graves, crimes graves, jogar para o público uma solução melífica. “Então, vamos agora agravar as penas”. Na Alemanha, apontou-se a reação aos casos de derramamento de óleo no Mar do Norte. “Ah, agora vamos tratar isso de forma mais grave”. Entre nós é a história do crime hediondo, em algum momento também é a pena de morte. Nós já tivemos deputados que anunciavam a toda hora emendas e até plebiscito para aprovar a pena de morte.

ConJur — No que isso resulta, na prática?
Mendes — Até pouco tempo a jurisprudência do Supremo validava a ideia de que o cumprimento da pena dar-se-ia em regime integralmente fechado nos casos de condenação por crime hediondo. Hoje, nem isso. Pode resultar eventualmente na elevação de pena e cumprimento, talvez, de um período mais longo, se for o caso, em regime fechado. Agora, as questões que se colocam nas ruas, que as pessoas reivindicam, são cobranças contra a impunidade. Quantos inquéritos, investigações se transformam em denúncias? Quantas denúncias viram condenações? Essa é a questão.

ConJur — Quantas condenações são efetivamente executadas...
Mendes — Isso. Temos, por exemplo, um elenco de mandados de prisão não cumpridos, de condenações e de prisões provisórias. A rigor, seria importante aproveitar o momento para avançar nesse quadro. É mais difícil porque exige um concerto entre vários setores, mas que se fizesse uma integração de vontades do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para dar efetividade à Justiça criminal, que tem graves problemas de funcionalidade.

ConJur — O senhor pode dar exemplos?
Mendes — Basta ver que há prescrição, e isso são dados do Conselho Nacional de Justiça, em crimes da competência do Tribunal do Júri. Estamos falando, portanto, basicamente de homicídio e de tentativa de homicídio, casos de crimes dolosos contra a vida. Temos prescrição nestes casos. Por quê? Porque não se consegue julgar em tempo adequado. Nós estamos julgando casos com o do Carandiru e outros semelhantes depois de 20 anos. Então vamos priorizar a Justiça criminal, dar-lhe condições, automatizar, diagnosticar o que falta. Esse seria o caminho. O CNJ já vem fazendo isso, por exemplo, nos crimes chamados atos de improbidade. Dando prioridade ao acompanhamento desses processos. É preciso verificar qual é a estrutura adequada para as varas criminais. Nesse sentido, me parece que um diálogo entre autoridades do Ministério da Justiça, CNJ e CNMP, contribuiria muito para o avanço. Até porque esses órgãos são, hoje, gestores do sistema.

ConJur — Já há diagnósticos sobre inquéritos policiais?
Mendes — Nos casos de homicídios, a Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, parceria firmada em 2010 entre o CNMP, o CNJ e o Ministério da Justiça) fixou a meta de levantar a quantidade de inquéritos em que se apura a autoria e materialidade do crime. Separaram os inquéritos que investigam homicídio e estudaram os mais antigos. A taxa de resolução é absurdamente baixa [leia reportagem sobre o tema: Brasil arquiva 80% das investigações de homicídios]. Isso nos casos de homicídios. Imagine em relação aos inquéritos que investigam corrupção.

ConJur — Esse diagnóstico foi obtido exatamente por conta da ação integrada.
Mendes — Quando estávamos à frente do CNJ, pensamos nessa estratégia nacional de segurança pública e demos prioridade ao estudo e resolução dessas ações. O acordo com o Ministério da Justiça foi assinado na gestão do ministro Luís Paulo Barreto. O foco era a solução de crimes graves. Portanto, o homicídio. A ideia era levar os inquéritos à conclusão, porque a taxa de desvendamento, de conclusão, é muito baixa. Isso revela que a questão é basicamente de gestão. Claro que a partir dessas ações se percebe a necessidade de alguns aperfeiçoamentos legislativos. No que diz respeito ao júri, por exemplo, hoje se exige o trânsito em julgado da sentença de pronúncia. E, muitas vezes, a defesa fica esgrimindo com recursos para simplesmente evitar o trânsito em julgado e retardar a conclusão. Então, talvez fosse o caso de fazer um ajuste na legislação para permitir que de fato houvesse o julgamento em tempo adequado. É necessário dar continuidade ao trabalho de metas do CNJ, que acabou flexibilizado hoje.

ConJur — Hoje, é quase uma simples recomendação.
Mendes — O interessante é que, à época, se dizia que o volume de trabalho estava mantendo os juízes um tanto quanto estropiados, que estavam sendo forçados a trabalhar muito. Mas o que vimos foi uma cooperação enorme. E o resultado foi prático, de dar andamento a processos que estavam parados há muito tempo. Evidentemente que isso, depois, permite um diagnóstico, permite avaliar a situação de determinadas varas que podem estar com uma distribuição descompensada, distorções que ocorrem no sistema. Isso ajuda a Justiça estadual a conhecer os seus próprios gargalos. Essa é uma grande contribuição.

ConJur — Ou seja, é mais efetivo partir de ações concretas, que ataquem e diagnostiquem os problemas, para então propor soluções?
Mendes — Sim, dessas ações surgem questionamentos, por exemplo, quanto à adequada dotação de recursos humanos. Há um projeto interessante da Polícia Federal no que diz respeito à informatização do inquérito como processo eletrônico. Isso poderia ser expandido para toda Justiça e com subsídios do próprio governo federal. Hoje nós temos recursos suficientes, no próprio Ministério das Ciências da Tecnologia. Mas o ponto é que a própria ação administrativa permite o diagnóstico. Quando fixamos as metas de julgamento, descobrimos que no Rio de Janeiro os inventários não terminavam.

ConJur — Por quê?
Mendes — Porque havia uma exigência tributária. Nós separamos. O processo está terminado. A questão tributária é outra discussão. Mas os processos estavam lá como inconclusos, embora já tivessem sentença. Havia o entendimento de que enquanto não houvesse o pagamento do tributo não se arquivavam os autos. A vantagem desse trabalho, mutirão, meta, é exatamente diagnosticar problemas como esses.

ConJur — Há outros exemplos?
Mendes — Detectamos em alguns estados a questão da falta de exames de DNA em investigação de paternidade. Os processos ficavam parados porque não havia laboratório público e ninguém que arcasse com os custos do exame. É preciso tomar medidas. O exame de DNA pode ser feito em uma universidade pública, por exemplo, por meio de convênios administrativos. Então, são problemas que aparecem e podem ser atacados com as medidas corretas a partir desse tipo de ação.

ConJur — Como o senhor vê a discussão em torno do foro privilegiado?
Mendes — Acho válido examinar a redução do rol das autoridades com prerrogativa de foro pela função. Mas não me parece justificada a supressão do mecanismo sob o argumento de obter maior efetividade da justiça criminal. Nós pudemos ver a funcionalidade do sistema com o julgamento do chamado mensalão.

ConJur — Esse julgamento não atrapalhou demais o funcionamento do Supremo? Isso não foi prejudicial?
Mendes — Mas, por outro lado, se estivesse a cargo da justiça de primeiro grau não terminaria nunca. Se a justiça criminal fosse mais célere e eficiente não teria casos em julgamento por décadas, como há hoje. Agora, é claro que o tribunal tem sido prudente ao declinar da competência quanto a acusados que não têm prerrogativa de foro. Por outro lado, a PEC que pretende retirar a competência do STF pode levar a outra armadilha, que seria levar esses casos para a justiça estadual, onde os políticos têm grande influência. É uma questão digna de maior análise.

ConJur — Como o senhor vê o caso do uso de jatinhos da FAB para fins particulares?
Mendes — Tenho impressão que há certo exagero na exploração desse assunto. Talvez fosse mais justo discutir os custos do Legislativo. Verificar se o orçamento das duas casas está de acordo com suas reais necessidades. Mas imaginar que o presidente da Câmara dos Deputados ou o presidente do Senado, eventuais substitutos na Presidência da República não possam usar aeronaves em compromissos me parece exagerado. É preciso tomar certo cuidado para não cair no populismo simplório e irracional. Eu sempre imaginei que os presidentes da Câmara, do Senado ou do STF tivessem essa prerrogativa por razões de segurança. Mas acho que esse aspecto está sendo ignorado.

ConJur — O fim da vitaliciedade de juízes (PEC 53) nos termos propostos no Congresso reduziria o grau de desvios na Justiça?
Mendes — Aqui também vejo um grave equívoco. Tanto mais quando se contempla a possibilidade de se romper a vitaliciedade pela via administrativa. O que se pode admitir, isso sim, é tornar o rito judicial para essa questão mais funcional. Agora, impensável imaginar que o instituto da vitaliciedade, uma garantia fundamental para o jurisdicionado, seja posto abaixo. Ao contrário, deve ser valorizado.

ConJur — O senhor já lançou uma ideia de se criar no país o serviço civil, como alternativa ou não ao serviço militar obrigatório. Como seria isso?
Mendes — Um país com perfil tão diversificado como o Brasil poderia estimular um tipo de serviço civil, que fosse por alguns meses, mas que estivesse nas mais diversas áreas, como na da assistência judiciária. Médicos poderiam atuar na área de perícia, por exemplo. Estariam desenvolvendo a sua habilidade profissional e ao mesmo tempo prestando um serviço de relevante interesse social. Poderiam ser vinculados a determinadas instituições ou organizações sociais não governamentais. Não precisariam estar necessariamente vinculados ao serviço público, mas prestando uma atividade social.

ConJur — Especificamente na área jurídica, bacharéis e estudantes, ou advogados recém-formados, poderiam atuar?
Mendes — Sempre defendi a ideia da advocacia voluntária, que é o modelo já praticado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, nos juizados especiais federais. Como não há defensores públicos em número suficiente para atender a todos os carentes, o tribunal coloca as suas instalações à disposição, seleciona pessoas qualificadas para atender quem procura os juizados e dá uma assistência adequada. O CNJ chegou a aprovar resolução nesse sentido. É uma iniciativa bastante positiva que poderia estar conexa com a ideia do serviço civil. Seria extremamente interessante. A questão é vital no momento atual, em que nós temos uma brutal carência. O país tem 5 mil defensores públicos para atender a massa de demanda da população carente em todos os temas, em questões de família, de Direito Civil, etc. Só presos nós temos mais de 500 mil no país. A maioria é carente. Logo, esse quadro é insuficiente se levarmos em conta somente a área penal. Isso sem levar em conta a distribuição dos cargos em âmbito nacional.

ConJur — Haveria, de fato, acesso à Justiça...
Mendes — Se houvesse um trabalho de articulação com a advocacia voluntária, que tivesse também a presença de pessoas que já cumpriram parte do seu curso, creio que nós daríamos um salto enorme. Meu sonho é que pudéssemos dizer: “Há advogados trabalhando em cada delegacia, em cada presídio”. Creio que nós mudaríamos de estágio em termos de direitos humanos. E eles poderiam estar vinculados a organizações não governamentais e supervisionados pela Defensoria Pública, mas atuando na realização desses direitos básicos.

ConJur — Seria uma espécie de residência para o bacharel em Direito?
Mendes — Sim. Poderia ser um ponto para qualificação nos concursos públicos que fazem, até no Exame de Ordem por conta do compromisso social que traduziria essa ação. E com resultados práticos, porque desenvolveriam as pessoas, que teriam sensibilidade para essa temática. E hoje nós temos um modelo exitoso, no TRF-4. Funciona bem nos juizados especiais federais. Universidades fazem convênios e levam professores, estagiários e advogados vinculados àquele programa. advogados recém-formados que vão adquirir experiência.

ConJur — Mesmo que essas ideias sejam colocadas em prática, os números do CNJ mostram que há mais de 90 milhões de processos em andamento no país. É praticamente um processo para cada dois habitantes. Como diminuir esse grau de litigiosidade?
Mendes — Temos que ter programas de mudança dessa cultura. Mas para isso é preciso que desenvolvamos alternativas. Só para se ter uma ideia, hoje, nós temos no Supremo, ou tínhamos até recentemente, 5 mil conflitos federativos. São basicamente litígios entre a União e estados. Quem vê esse retrato pensa: “É uma federação em frangalhos. Está todo mundo guerreando”. Mas quando entramos no detalhe verificamos que, em muitos casos, se trata de discussões sobre certidões negativas de débito que os entes federados precisam para celebrar um empréstimo. Muitas vezes, um empréstimo que é até avalizado pela União, incentivado pela União, junto ao próprio BNDES.

ConJur — Os órgãos internos da própria União criam entraves?
Mendes — Por conta de inscrições nos sistemas de cadastro da União, como o Cadin (Cadastro informativo de créditos não quitados do setor público federal) e o Cauc (Cadastro Único de Convênios). E aí temos de conceder liminares em Mandado de Segurança ou Ação Cautelar. Temos a toda hora esse tipo de discussão. A falta de prestação de direitos, do fornecimento de determinados bens, assistência social ou matéria de Previdência Social estimulam essa litigiosidade. Temos que integrar mais os sistemas para diminuir a judicialização. Alguns órgãos não cumprem bem essa função. As agências reguladoras deveriam dirimir controvérsias, seja nas situações concretas, expedindo orientações vinculantes para os prestadores de serviço, seja de forma geral, arbitrando as situações. Mas isso não ocorre.

ConJur — Os processos que discutem serviços de telefonia são os campeões, não?
Mendes — Em termos de expressão numérica, um dos maiores motivos de litigiosidade são os casos de telefonia, pulso, tarifa básica e coisa desse tipo. E na medida em que a sociedade vai sendo integrada por outras camadas, com o desenvolvimento dessa chamada nova classe média, se nós não estruturarmos novas formas de enfrentamento dessas relações, vamos ter muito mais demandas. É muito provável que essa população traga ao Judiciário seus pleitos relativos ao Código de Defesa do Consumidor. Nós temos uma boa experiência com o Procon. Deveríamos fortalecer as decisões do Procon, pensar soluções administrativas. É preciso que o Judiciário melhore o seu modelo de gestão, seja critico com relação a isso, mas que também pense em alternativas juntamente com outras instituições para que possamos mudar o modelo de judicialização exacerbada. Nenhuma sociedade pode se organizar com quase 100 milhões de processos. E não adianta criar mais estruturas para responder a essa demanda, porque ela será infindável.

ConJur — Seria viável criar uma espécie de Procons dentro das agências reguladoras?
Mendes — As agências precisam ser vitalizadas. Talvez, no âmbito da própria administração, criar modelos de ouvidoria que dirimissem controvérsia. Veja o exemplo que nós temos hoje com a questão de saúde. É necessário o sujeito obter uma liminar por conta de um tratamento básico? Isso não poderia ser encaminhado pela via das ouvidorias, dos órgãos que supervisionam esse serviço? Hoje existem câmaras de conciliação no âmbito da Advocacia-Geral da União e é preciso estimular essas soluções em busca de respostas efetivas. Do contrário, a judicialização é a única alternativa. E, muitas vezes, ela é ineficiente.

ConJur — Não seria importante regular ações coletivas ou pensar de forma diferente as ações civis públicas, para enfrentar demandas de massa com mais efetividade?
Mendes — No que diz respeito às ações civis públicas, seria importante discutirmos políticas públicas. Não pensar em soluções imediatas, mas talvez discutir a implementação de políticas públicas no tempo. Isso envolve outra noção no que diz respeito à questão política. É necessário discutir modelos, contribuir para que determinados serviços sejam desenvolvidos. Uma construção interessante poderia se desenvolver a partir de uma reformulação da legislação da ação civil pública, com a participação do Ministério Público e do próprio Judiciário. Mas é preciso ter uma compreensão de que não se está dando um provimento concreto ou oferecendo um bem da vida pretendido, mas contribuindo para essa avaliação.

ConJur — Tudo, então, passa por uma avaliação estratégica de efetividade?
Mendes — Sim. Hoje temos um grande instrumento para fazer isso, que é o CNJ. O Judiciário também pode contribuir muito no que diz respeito à questão da política criminal não só julgando os processos, mas evitando também as medidas desnecessárias, aplicando a legislação penal de forma adequada, evitando o abuso das prisões provisórias. O departamento de monitoramento do sistema prisional do CNJ precisa ser vitalizado. Há mecanismos eletrônicos que permitem o controle de todo o sistema. Eu vi, por exemplo, na audiência pública que nós realizamos para discutir os regimes aberto e semiaberto de detenção, a exposição da secretária de Justiça do Paraná, Maria Tereza Gomes, que tem toda visão do seu sistema a partir de um programa informatizado. Ela acompanha todo o sistema prisional: sabe quantos presos existem, quantos estão para sair, quais as medidas que estão em atraso por conta, às vezes, da não decisão por parte da Justiça. Acredito que o CNJ poderia ter essa visão e fazer até correições virtuais. Nós temos um grave, gravíssimo problema de gestão.

ConJur — Bastaria adotar o modelo em território nacional, não?
Mendes — É uma das ideias. Copiar modelos de sucesso. Um órgão central como o CNJ poderia levar esse controle do Paraná para o país inteiro. O CNJ e o CNMP instituíram algumas metas. A primeira delas foi o controle nacional de mandados de prisão, efetivado inclusive por meio de lei. Funcionou maravilhosamente bem. O sistema hoje está totalmente interligado. É possível saber que alguém no Distrito Federal é procurado com mandado de prisão da Bahia ou do Amazonas. Por que, então, não instituir um cadastro nacional de presos? A lei já permite isso.

ConJur — Neste caso, já há ao menos um diagnóstico por conta dos mutirões carcerários inaugurados na sua gestão frente ao CNJ. Quais falhas eles revelaram?
Mendes — As mais diversas. Por exemplo, pessoas com alvará de soltura há 30 ou 60 dias que não haviam sido soltas. Isso ainda acontece. Veja o tamanho do desrespeito com os direitos humanos para presos que deixam de evoluir na progressão de regime porque não há decisão judicial. Do ponto de vista institucional, tenho defendido também a necessidade de que haja, pelo menos onde isso for possível, a apresentação imediata do preso ao juiz, como forma até de evitar o abuso das prisões provisórias. Isso está na Convenção Interamericana de Direitos Humanos e é uma prática comum em vários modelos constitucionais. Já avançamos razoavelmente exigindo que haja um prazo para o juiz decidir sobre o flagrante. Essas medidas já constam de resoluções do próprio CNJ e estão na legislação. Ou seja, o foco deve ser a gestão integrada. Trabalhar com a ideia de uma estratégia de segurança que envolva as autoridades de segurança, a administração, Judiciário e o Ministério Público. Com a existência de órgãos de organização como o CNMP e o CNJ, essa tarefa se tornou muito mais fácil, porque eles podem decidir de forma vinculante para seus próprios âmbitos.

ConJur — Sem isso, a litigiosidade tende a aumentar. Com a iminência da aprovação da Lei de Defesa do Usuário de Serviços Públicos, é crível que as pessoas passem a acionar ainda mais a Justiça contra o estado?
Mendes — Talvez valesse a pena ter grupo para avaliação, no próprio comitê de elaboração da lei, ter pessoas que representem a visão do Judiciário. Não precisa ser necessariamente juízes, mas também ex-juízes, um corpo técnico de assessores que tenha experiência e a visão da Justiça, para apostar em soluções que não levassem, necessariamente, à judicialização. É necessário pensar em mecanismos de solução administrativa. A figura do ombudsman é sempre razoável, de alguém que possa arbitrar nos conflitos. Alguns sistemas na Europa adotam a figura do ombudsman até para as relações privadas. Seguros de bancos passam a ter um supervisor das relações, que faz criticas sobre as práticas e recomenda novas ações. Talvez pudéssemos ter algo semelhante especialmente no âmbito do serviço público. Depois da reforma administrativa, houve essa previsão no parágrafo 3º do artigo 37 da Constituição Federal, para que haja disciplina legal de questões ligadas à qualidade do serviço público, a forma de prestação, e questões até ligadas à participação do usuário do serviço público na prestação do serviço ou no seu controle.

ConJur — É possível instituir formas de incentivo ao servidor público por meio da meritocracia?
Mendes — Temos de insistir na avaliação do serviço público e, neste caso, é fundamental a meritocracia. O texto constitucional contém elementos para qualificar o ocupante dos cargos em comissão. Isso precisa ser examinado para não partidarizar necessariamente a ocupação desses cargos. É preciso exigir determinada qualificação. O ocupante do cargo pode ser até integrante de uma dada organização, mas que antes de tudo seja um técnico que atenda àquele requisito. A profissionalização do serviço público e a cobrança de metas de expansão, de melhorias, que a própria ordem constitucional permite, resultaria positivo.

ConJur — É justo que dois servidores públicos que ocupem o mesmo cargo recebam o mesmo salário quando um tem compromisso com a qualidade de seu trabalho e o outro não? É possível criar critérios objetivos para avaliar a qualidade e instituir gradações salariais ou prêmios por desempenho?
Mendes — Isso tem sido pensado, principalmente no âmbito dos estados. Considero possível, sim, modelos de gratificação, desde que se criem critérios objetivos de avaliação. Pelo menos para a equipe, para o grupo, para o setor que logrou cumprir uma meta ou até a superou. É preciso realmente introduzir essa avaliação. A reforma administrativa foi muito feliz no que diz respeito a vários desses mecanismos. O momento é bastante oportuno para estudar essas propostas. Há certo desconforto da alma porque as pessoas têm uma realidade muito dura, especialmente nas suas relações com os serviços públicos. Aqueles que dependem do serviço público de transporte, de saúde ou educação, se veem às voltas com enormes dificuldades. Muitas vezes, discutimos questões do gênero apenas na perspectiva de melhoria de remuneração dos integrantes de uma dada corporação. Não é só isso. Há exemplos de remunerações bastante compensadoras, elevadas por vezes, e o serviço não funciona. É preciso estar bastante atento à necessidade de nos avaliarmos, termos metas e avaliarmos os serviços que nós prestamos. E o que fazer para melhorá-lo.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 7 de julho de 2013

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