A pergunta acima poderia estar em um concurso público. E poderia ser rapidamente respondida, sem muito esforço. A resposta por óbvio, é, não. Mas se as palavras “valer” e “medida provisória” vierem entre aspas, então poderemos discutir o assunto. Explico: na verdade, estou fazendo uma alegoria jurídica. Assim: um pedido cautelar em ADI, por exemplo, pode ser deferido liminarmente por um ministro, segundo o artigo 10
[1] da Lei 9.868. No recesso, ela valerá durante esse período. Isso quer dizer o quê? Muito simples: uma tutela cautelar concedida monocraticamente deve, em períodos de não recesso, ser levada de imediato ao plenário. Terminado o recesso, deve ser levada a full bench (decisão do plenário em banca cheia). Logo, fazendo um raciocínio lógico: uma cautelar originária de recesso só pode vale durante esse período (30 dias, supondo que ela seja deferida no primeiro dia do recesso).
Mas o que a alegoria com a medida provisória (entre aspas) tem a ver com isso? A questão é óbvia: uma lei aprovada pelo parlamento e devidamente sancionada pode vir a ter a sua validade suspensa por uma Medida Cautelar em ADI. Se for no recesso, logo após o término do recesso, deve ser submetida ao plenário. Mas, se não o for? E se a suspensão perdurar no tempo indefinidamente sem que o plenário a confirme? Então os efeitos da ADI são semelhantes aos de uma medida provisória, uma vez que, segundo o parágrafo segundo do artigo 10 da Lei 8.868, entre outras coisas a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário. Isto é: uma MC, além de suspender a validade (se se quiser, pode-se até falar em vigência) de um ato normativo (inclusive Emenda Constitucional), pode “repristinar” lei anterior. Há, ainda, algo mais grave: a MP tranca pauta e tem prazo para ser votada. Só que no STF — como explicarei adiante —, a não submissão da MC ao full bench não tranca a pauta do tribunal. Simples assim.
O exemplo privilegiado da ADI dos Royalties
Embora essa situação se repita em muitos outros casos — que relato na sequencia —, há uma ADI da e na qual pende de remessa ao full bench uma Medida Cautelar há um ano de oito meses. Falo da ADI 4917-RJ, que tratou da inconstitucionalidade da Lei dos Royalties (Lei 12.734/2012). Foi concedida MC, com o que a lei, cujo veto havia sido derrubado no Congresso Nacional, foi invalidada de imediato por decisão monocrática. Não vou discutir o mérito de quem deva receber os royalties ou de como deve ser distribuído esse butim financeiro. Disso poderei tratar em outro momento.
O que importa, aqui, é tratar do não cumprimento — frequente — por parte do Supremo Tribunal Federal de uma lei que trata exatamente dos procedimentos das ações de sua competência, a propalada Lei 9.868/98. No caso da ADI 4.917, há uma MC concedida não em período de recesso e que pende de apreciação em full bench há quase dois anos. Veja-se que a Medida Cautelar suspendeu os efeitos dos artigos 42-B; 42-C; 48, II; 49, II; 49-A; 49-B; 49-C; parágrafo 2º do artigo 50; 50-A; 50-B; 50-C; 50-D; e 50-E da Lei Federal 9.478/97, com as alterações promovidas pela Lei 12.734/2012, até o julgamento final da ADI 4.917. Só que essa MC deveria ter sido levada ao Plenário em seguida, o que significaria alguns dias, apenas. Na verdade, essa Medida Cautelar, por ter sido deferida em período normal (não recesso), sequer poderia ter sido deferida, porque a única exceção para a concessão de Medida Cautelar em ADI é estar a corte em período de recesso.
Só para termos uma ideia daquilo que denomino, alegoricamente, de “efeitos similares aos de medida provisória”: o resultado da demora na decisão pelo STF em modo full bench tem gerado um enorme prejuízo aos cofres públicos dos Estados. Com exceção de Rio de Janeiro e Espírito Santo, todos os demais estados vêm deixando de receber valores substancias da distribuição dos royalties.
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O descumprimento da Lei 9.868 e do artigo 97 da CF
Esse problema de o relator de MC em ADI não submeter a decisão concessiva ao full bench já havia sido denunciada pelo ministro Gilmar Mendes quando de seu voto na ADI 4.638, em 2011. Ali ele já elencou uma dezena de casos em que isso ocorreu e vinha ocorrendo. Hoje, um rápido levantamento mostra uma dezena de Medidas Cautelares concedidas e que estão pendentes de full bench, algumas com vários anos de atraso: ADI 4.232, de 19.05.2009; ADI 4.598, de 23.2.2012); ADI 4.628, de 18.03.2013; ADI 5.091, de 21.03.2014; ADI 5.086, de 28.01.2014; ADI 4.874, de 13.09.2013; ADI 4.843, de 30.1.2014; ADI 4.707, de 30.1.2014; ADI 4.258, de 3.07.2009; ADI 4.144, de 7.02.2104; ADI 5.171, de 21.11.2014.
Por todo o exposto, destaca-se o velho problema da morosidade judicial, que, por meio de uma medida cautelar, torna-se “(in)satisfativa” por vias oblíquas. Entra em questão a usurpação tácita de uma competência: a decisão monocrática se substitui no tempo à do colegiado (e a outro Poder, negando-se validade à lei sob mero “juízo de aparência”). Pense-se, ademais, em casos de liminares concedidas em mandados de segurança com ampla repercussão (coletiva) ou ações ordinárias que atingem milhares de pessoas, como a MC na AO 1.773, que trata do auxílio moradia, que, embora não abrangida pela determinação do artigo 10 da Lei 9.868, tem e gera efeitos similares aos de uma MC em ADI. Não se trata, aqui, de uma crítica aos eminentes relatores de qualquer ADI — minha crítica é reflexiva e visa a aprimorar o sistema —, mas, sim, à dependência pessoal em que muitas vezes se encontram os cases na Suprema Corte. Ora, a necessidade de remessa ao colegiado busca justamente garantir uma melhor deliberação, ao propiciar a transcendência heterorreflexiva no julgamento de causas complexas.
Há muito critico os abusos doutrinários e forenses no apelo à celeridade judicial. Por óbvio, não o faço por acreditar que a prestação jurisdicional brasileira seja célere ou por negar que a morosidade constatada seja um problema. Antes, preocupa-me o não dito nesses discursos: as propostas concretas de aceleração do trâmite processual frequentemente recorrem a expedientes autoritários e acabam perdendo de vista direitos e garantias fundamentais estruturantes do nosso ordenamento. O sistema de justiça tem que ser pensado de modo sistêmico, jamais fora do marco democrático que conquistamos.
Sob certas perspectivas, porém, a morosidade não levanta qualquer falsa dicotomia entre efetividade judicial quantitativa e qualitativa. Nesse caso, por exemplo: falha-se em dar resultados práticos definitivos aos jurisdicionados e falha-se também numa perspectiva interna à formação da decisão democrática, ao retardar a deliberação constitucionalmente garantida (e suspendendo a validade de lei ou até de emenda constitucional aprovada) em prol de decisão individual.
A Medida Cautelar em sede de controle concentrado de constitucionalidade é uma adaptação darwiniana do sistema jurídico. Mas não pode ser usada para substituir a decisão no modo full bench. Por isso deve ser bem observada a sua operacionalização monocrática apenas em “recesso” judiciário — que é a exceção —, sendo em regra por “maioria absoluta dos membros do Tribunal” (artigo 10, Lei 9.868/99 e artigo 97 da CF). Por isso, é certo que uma MC em sede de ADI deve ser referendada em plenário, conforme firmaram precedentes (por exemplo ADI 1.898, 1.899, 4.307, 4.635 e etc.).
Por tudo isso, não se pode perder de vista a primazia do colegiado, autonomizando esse poder do relator. Na decisão do caso dos royalties, por exemplo, em 18 de março de 2013, isso vai registrado na própria ementa (excepcional urgência configurada a impor deferimento cautelar ad referendum do plenário (ipsis literis).
Numa palavra
Minha crítica é, pois, sistêmica. Objetiva a preservação dos direitos constitucionais dos que são atingidos e pelos que são beneficiados por uma decisão em sede cautelar. Há um direito fundamental dos cidadãos no sentido de que sejam cumpridos os artigos 10 da Lei 9.868 e 97 da CF. Parece-me que o legislador foi sábio no sentido de permitir que, no recesso, a cautelar possa ser emitida monocraticamente. Mas me parece, também, que foi mais sábio ainda ao exigir que, imediatamente, essa mesma decisão seja submetida aos demais membros do STF.
No específico, em face do exemplo privilegiado da ADI dos royalties, não quero, nem de longe, incrementar uma guerra entre os estados pelo recebimento dos royalties. Poderia registrar, por exemplo, o valor que o Piauí — talvez o que mais necessite dos aportes dos royalties — perdeu no período (mais de R$ 300 milhões). Apenas trago o assunto à colação pelo amor ao debate e ao direito constitucional. Penso que isso é um dever cívico da doutrina de terrae brasilis.
Em resumo: Por se tratar de situação excepcional, a decisão monocrática que concede liminar e em procedimento abreviado só faz sentido quando for levada rapidamente ao plenário (full bench). O constrangimento para sua colocação em pauta deveria ser tanto maior. Por isso, posso afirmar que não há o que “ponderar” (Abwägung de Alexy); há, sim, apenas o “dever” (has a duty de Dworkin) de decidir. Penso, desse modo, estar colaborando com a Suprema Corte de meu país, além de contribuir — e essa, repito, é a tarefa da doutrina — para uma melhor prestação da jurisdição constitucional, na busca de uma melhor relação entre os Poderes da República.
Post scriptum: Ainda a separação judicial e o novo CPC
Li a tréplica à minha posição sobre a inconstitucionalidade da ressuscitação da separação no novo CPC feita pelos ilustres Professores
Venceslau T. Costa Filho e Torquato Castro Jr. Dou uma palavra sobre isso. Concordo que intérpretes não devem mesmo estender a Constituição para além do seu sentido ("pam-constitucionalização"), sobretudo porque este “puxadinho hermenêutico” é feito pelo recurso externo à moral (axiologismos) em caráter pretensamente corretivo ao direito, “cavando-se por baixo da lei”. Concordo com Habermas, que visualiza a cooriginariedade entre direito e moral, a partir de onde seguem caminhos distintos.
Mas tampouco podemos ficar aquém do sentido que sabemos (e sabemos que sabemos) em questão, em deferência a “liberdades de conformação”. É preciso levar textos “em sério”, se não quisermos ser lesados no uso de nosso maior patrimônio público: os sentidos. Não existe linguagem privada, estando os sentidos lançados numa rede simbólica comunitária. Exatamente por isso é que a redação/interpretação legal não é um espaço para jogos artificiosos, armadilhas e pegadinhas. Do contrário, para revogar um instituto por Emenda Constitucional teríamos que estilhaçar a Constituição com algo do tipo: "fica revogada a separação judicial", colocando um parágrafo único assim:
“Fica revogada, mesmo, inclusive se a doutrina e a jurisprudência forem recalcitrantes e o NCPC dispuser sobre prazos para a ação”.
[1] Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias
[2] Após a suspensão liminar da Lei 12.734/2012 eles deixaram de receber em um ano os seguintes valores: Acre –R$ 193.406.356,00; Alagoas – R$ 258.349.043,00; Amazonas – R$ 199.958.610,00; Amapá – R$ 186.827.262,00; Bahia – R$ 707.535.775,00; Ceará – R$ 527.609.273,00; Distrito Federal – R$ 41.709.142,00; Goiás – R$ 299.327.049,00; Maranhão – R$ 539.078.045,00; Minas Gerais –R$ 764.492.095,00; Mato Grosso – R$ 194.382.497,00; Mato Grosso do Sul – R$ 131.641.564,00; Pará – R$ 461.035.749,00; Paraíba – R$ 355.544.030,00; Pernambuco – R$ 489.672.006,00; Piauí – R$ 329.811.936,00; Paraná – R$ 434.726.107,00; Rio Grande do Norte – R$ 179.635.629,00; Rondônia – R$ 177.927.815,00; Roraima – R$ 139.226.897,00; Rio Grande do Sul –R$ 323.546.138,00; Santa Catarina – R$ 186.805.671,00; Sergipe – R$ 138.152.166,00; São Paulo – R$ 93.389.160,00; Tocantins – R$ 277.574.795,00.
Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2014, 8h00