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quinta-feira, 14 de março de 2013

É PRECISO IDENTIFICAR O CONCEITO DE POVO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

Por Luiz Cláudio Borges
Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2012
O presente estudo tem por escopo apontar a ideia de povo no regime constitucional democrático, sobretudo no sistema brasileiro. Como marco teórico será utilizado o jurista e filósofo Friedrich Müller, que publicou no Brasil a obra Quem é o Povo?
Considerando que a expressão "povo", assim como o termo "democracia", recebe diversas interpretações, algumas delas equivocadas, se fará necessário a reconstrução da ideia de povo e sua aplicabilidade no regime democrático brasileiro. Não obstante o desafio quase que inatingível proposto por Müller em sua obra Quem é o povo?.
É evidente que o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, até porque a matéria é extensa. Também, nada de inédito será apresentado, pelo contrário, objetiva-se analisar as ideias insertas na obra do jurista alemão e aplicá-las no conceito que entendemos de "povo"; igualmente, não se trata de uma resenha da referida obra, mesmo porque o estudo não se limita aos conceitos trazidos pelo autor, mas expõe, ainda que timidamente, uma visão deste pesquisador sobre o tema aplicado ao nosso sistema constitucional democrático.
Povo: conceito e aplicação no sistema democrático
No discurso de lançamento da obra Quem é o Povo,[i] do jurista e filósofo alemão Friedrich Müller, ficou claro que a questão fundamental da democracia é o povo, mas que povo é esse? As pessoas que vivem legalmente no país? Os titulares dos direitos de nacionalidade? Os titulares dos direito civis? Os titulares dos direitos eleitorais ativos e passivos? Apenas os adultos? Apenas os membros de determinados grupos étnicos, religiosos ou sociais?
O ensaio de Müller publicado no Brasil faz pontuais observações sobre o direito constitucional brasileiro e nos leva a viajar no tempo a desvendar o conceito de povo.
Há muito a noção de povo é conhecida e utilizada na antiguidade clássica, sobretudo em matéria de teoria política e de direito público. Os gregos foram os grandes responsáveis pela construção do que entendemos hoje como democracia. Inspirados nos ideais de que tudo deveria ser debatido e decidido de forma consensual, os iluministas pensaram a substituição das relações feudais de poder pelo "demo" (povo) + "cratos" (regime), formando a expressão democracia, que significa o governo do povo para o povo.[ii]
Fábio Konder Comparato discorre que "a partir do século XVIII, já não se pode eludir a questão fundamental, ligada à própria essência desse regime político: se o poder supremo em uma democracia, como a própria etimologia nos indica, pertence ao povo, como definir este conceito de modo a torná-lo o mais operacional possível e evitar as usurpações de soberania?"[iii]
Povo não é um conceito descritivo, mas claramente constitucional.[iv] Müller sustenta que "povo não é um conceito simples nem um conceito empírico; povo é um conceito artificial, composto, valorativo; mais ainda, é e sempre foi um conceito de combate".[v]
O povo aparece na teoria jurídica da democracia enquanto bloco. Ele é a pedra fundamental imóvel da teoria da soberania popular e fornece como lugar-comum de retórica a justificativa para qualquer ação do Estado.[vi]
Comparato revela que a primeira utilização consequente do conceito de povo como titular da soberania democrática, nos tempos modernos, aparece com os norte-americanos. Thomas Jefferson atribuía ao povo um papel preeminente na constitucionalização do país, pois ao redigir o projeto de Constituição para a Virgínia (1776), propôs que essa lei suprema, após declarar caduca a realeza britânica, fosse promulgada "pela autoridade do povo".[vii]
Mas que povo é esse? Müller busca analisar o conceito de "povo" partindo da seguinte divisão: "povo" como povo ativo; "povo" como instância global de atribuição de legitimidade; "povo" como ícone; "povo" como destinatário das prestações civilizatórias do Estado.
Entendem-se como povo ativo os titulares de nacionalidade de acordo com as prescrições normativas do texto constitucional. "Por força da prescrição expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de nacionalidade".[viii] Essa nacionalidade consubstancia-se na totalidade dos eleitores de um Estado.
Müller, no intuito de fortalecer o conceito de povo ativo, faz alusão à situação dos estrangeiros na União Européia: "Tradicionalmente esse dimensionamento para os titulares da nacionalidade é matéria de direito positivo, mas não se compreende por evidência. Estrangeiros, que vivem permanentemente aqui trabalham e pagam seus impostos e contribuições pertencem à população. Eles são efetivamente cidadãos. (faktisch Inlander), são atingidos como cidadãos de direito (rechtliche Inlander) pelas mesmas prescrições ‘democraticamente' legitimadas. A sua exclusão do povo ativo restringe a amplitude e a coerência da justificação democrática. Especialmente deficitário em termos de fundamentação é o princípio da ascendência (ius sanguinis), que representa uma construção de fantasia, não uma conclusão fundamentável pela empiria (sangue). Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.[ix]".
O autor é enfático ao afirmar que o conceito de "povo das constituições atuais" não deveria ser qualificado por meio das regulamentações do direito eleitoral e conclui: "O povo ativo não pode sustentar sozinho um sistema tão repleto de pressupostos".[x]
O conceito de "povo" como instância global de atribuição de legitimidade, sustenta Müller, torna-se mais acessível a partir da compreensão da ideia de estrutura de legitimação. O autor frisa que o Executivo e o Judiciário estão fundamentalmente interligados com a noção de Estado de Direito e Democracia.
Neste contexto, o povo elege seus representantes, os quais, por sua vez, são responsáveis pela elaboração de textos de normas, que, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo, enquanto população.[xi]
O povo é visto de outra maneira, agora como instancia global de atribuição de legitimidade democrática, pois ele justifica o ordenamento jurídico num sentido mais amplo como ordenamento democrático, "à medida que o aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo."[xii] Salienta o autor que o povo como instância global de atribuição de legitimidade só se justifica quando presente ao mesmo tempo a figura do povo ativo, pois, num sistema autoritário, não obstante o povo seja fartamente invocado como instância de atribuição, "depois só tem (des)valor ideológico, não mais função jurídica."[xiii]
Müller conceitua o povo "como ícone" partindo da ideia de um povo intocável, uma imagem abstrata e discursivamente construída como una e indivisível. Não diz respeito a nenhum cidadão ou grupo de pessoas. Pelo contrário, é um povo que "não existe" na vida real. E é exatamente este povo - o povo ícone - a figura invocada pela minoria detentora do poder; historicamente as políticas xenófobas, discriminatórias e violentas são respaldadas por discursos como "em nome do povo".[xiv]
"Em termos bem genéricos, a iconização reside por igual também nicht zuletzt no empenho de unificar em ‘povo' a população diferenciada, quando não cindida pela diferença segundo o gênero, as classes ou camadas sociais, frequentemente também segundo a etnia e a língua, a cultura e a religião. A simples fórmula do ‘poder constituinte do povo' já espelha ilusoriamente o uno"[xv].
Na elaboração do conceito de "povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado", Müller discorre que: "A função do ‘povo' que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigentes, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de ‘demos', de categorias distintas (enquanto povo ativo, povo como instância de atribuição ou ainda povo-destinatário) e graus distintos. A distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial; ela é relevante com vistas ao sistema. Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima. O respeito dessas posições, que não são próprias da cidadania no sentido mais estrito, também apóia o sistema político, e isso, não apenas na sua qualidade de Estado de Direito. Isso se acerca novamente, dessa vez a partir de um outro ângulo, da ideia fundamental não-realizada no sistema de dominação: ‘on man on vote': do ângulo da ideia do ‘povo' como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal - totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encontram no território do respectivo Estado. Segundo essa proposta (ao lado da figura do povo enquanto instância de atribuição), o corpo de textos de uma democracia de conformidade com o Estado de Direito se legitima por duas coisas: em primeiro lugar procurando dotar a possível minoria dos cidadãos ativos, não importa quão mediata ou imediatamente, de competências de decisão e de sancionamento claramente definidas; em segundo lugar e ao lado desse fator de ordem procedimental, a legitimidade ocorre pelo modo mediante o qual todos, o ‘povo inteiro', a população, a totalidade dos atingidos são tratados por tais decisões e seu modo de implementação. Ambas, a decisão (enquanto co-participação do "povo") e a implementação (enquanto efeitos produzidos "sobre o povo") , devem ser questionadas democraticamente. Os dois aspectos são resultados de uma cultura jurídica desenvolvida, assim como o é a correção, nos termos do Estado de Direito, da observância, por parte do Estado, das circunstâncias de fato de inibição da ação estatal bem como de prestações estatais diante das pessoas atingidas. Podemos denominar essa camada funcional do problema "o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado [zivilisatorisch Staatsleistungen]", como ‘povo-destinatário'"[xvi].
O fato de as pessoas se encontrarem no território de um Estado e ali fixar residência, trabalhar, estabelecer laços pessoais e materiais é suficiente para adquirir, juridicamente, qualidade de ser humano, a dignidade da pessoa humana, a personalidade jurídica. "Estão protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente, i.e., gozam da proteção jurídica".[xvii] Portanto, destinatários de prestações civilizatórias do Estado.
Observa-se na obra "Quem é o Povo?" que a legitimidade do sistema democrático não está somente na busca de uma conceituação jurídico-política de povo, mas principalmente em levar o povo a sério; povo este considerado como uma realidade viva em um mundo concreto. O autor não se preocupou em dar o significado da palavra povo, mas como ela é utilizada. Portanto, o resultado "não são quatro povos nem quatro conceitos de povo." São apenas gesticulações.[xviii]
"Quem é o povo" no regime constitucional democrático brasileiro
Friedrich Müller defende que a referência ao povo é necessária, isto porque o sistema deve poder representar-se como se funcionasse com base na soberania popular, na autodeterminação do povo, na igualdade de todos e no direito de decidir de acordo com a vontade da maioria.[xix]
Neste contexto, podemos concluir que o conceito de povo é inafastável do conceito de democracia, sobretudo porque é o povo quem legitima o poder.
Bonavides conceitua democracia como "aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo".[xx]
Na Constituição de 1988, mais especificamente no parágrafo único do artigo 1º, o constituinte fez constar que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente [...]".[xxi]
Partindo dos ensinamentos de Müller, podemos dizer que no sistema democrático brasileiro, assim como em qualquer sistema democrático, podemos utilizar os quatro conceitos de povo. [xxii] Não obstante a simplicidade de sua aplicação, as peculiaridades do sistema democrático brasileiro a torna complexa.
Hoje, se limitássemos à classificação de povo como "povo ativo", estaríamos excluindo milhões de brasileiros, pois o voto só é obrigatório para os maiores de 18 e menores de 65 anos; para os maiores de 16 e menores de 18, assim como para os maiores de 65 anos, o voto é facultativo. E mais, os estrangeiros, os condenados e os militares constritos são proibidos de votar. Com isso, o "povo ativo" se limitaria a 2/3 da população brasileira.
Se para existir um "povo como instância global de atribuição de legitimidade", que é aquele que se sujeita ao ordenamento jurídico, parte-se do pressuposto de que deva existir um "povo ativo", que elege seus representantes, os quais são responsáveis pela formação do ordenamento jurídico, como se enquadrariam aqueles que residem no Brasil, se sujeitam às nossas normas, mas são estrangeiros?
Para pensar. E o conceito de povo como "povo-destinatário"? No conjunto da obra é fácil perceber que o povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado deveriam ser todos aqueles, ativos ou não, legitimados ou não, mas, que se encontram no nosso território. Entretanto, nesse conceito não se inclui os excluídos e as minorias.
Na visão de Müller, numa sociedade avançada existe uma "disfuncionalidade setorial" provocada por uma cisão segmentária da ordem social e jurídica. Segundo o autor: "Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencialmente e difusamente dos sistemas prestacionais [...] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa ‘marginalização' como subintegração".[xxiii]
Se admitirmos que o povo como ícone não participa do processo democrático ou, se participa, acaba sendo subjugado pela maioria, ficando expostos às suas vontades e sem representatividade no Parlamento, estamos afirmando que essa parcela da população estaria fada a sucumbir-se diante da maioria.
Em 1987, Geraldo Ataliba escreveu um pequeno texto - O Judiciário e as minorias - onde demonstra toda sua preocupação com esta parcela do povo (se é que o conceito de povo admite divisão), onde expõem suas ideias e prevê uma atuação mais efetiva do Judiciário, o que denominamos hoje de o papel contramajoritário da jurisdição: "De nada adianta fazer uma constituição, se ela não for obedecida. Não adiante haver lei [1]para tudo, se não for respeitada. Daí a importância do Poder Judiciário. Este merece especial cuidado dos constituintes, pois é a chave de todas as instituições. Elas só funcionam com o virtual ou atual controle do Judiciário, como demonstra o sábio Seabra Fagundes.
Na nossa sociedade tão deformada, involuída e subdesenvolvida, o Judiciário é mais importante do que nos países adiantados (que, aliás, o são porque têm boas instituições judiciais). É que os fracos, os pobres, os destituídos, os desamparados, bem como as minorias (raciais, religiosas, econômicas, políticas e étnicas etc), só têm por arma a defesa do direito. E direito só existe onde haja juízes que obriguem seu cumprimento.
Na democracia, governam as maiorias. Elas fazem as leis, elas escolhem os governantes. Estes são comprometidos com as maiorias que o elegeram e a elas devem agradar. As minorias não têm força. Não fazem leis, nem designam agentes políticos ou administrativos.
Sua única proteção está no judiciário. Este não tem compromisso com a maioria. Não precisa agradá-la, nem cortejá-la. Os membros do judiciário não são eleitos pelo povo. Não são transitórios, não são periódicos. Sua investidura é vitalícia. Os magistrados não representam a maioria, são a expressão da consciência jurídica nacional.
Seu único compromisso é com o direito, com a Constituição e as leis; com os princípios jurídicos encampados pela Constituição e por ela não repelidos (...)".[xxiv]
O povo, na verdade ainda está por ser criado.[xxv] Podemos tomar esta afirmativa como verdade, partindo do pressuposto que não existe um conceito universal aplicável a toda forma de democracia. Hoje assistimos a um total desinteresse de uma boa parcela do povo brasileiro, que não acredita mais nos representantes que eles escolhem e nas instituições, como o Judiciário, o que, de certa afasta, ainda que discretamente, a essência da democracia, que é o governo do povo para o povo.
Considerações finais
Procuramos apontar neste estudo as ideias do jurista e filósofo Friedrich Müller acerca dos conceitos de "povo" elencados na obra Quem é o povo?, publicada no Brasil, pela Editora Revista dos Tribunais.
Não se discutiu neste trabalho o significado da palavra "povo", mas como ela vem sendo utilizada. O autor alemão aponta que povo pode ser visto como: "povo" ativo (somente aqueles que participam efetivamente do processo eleitoral); "povo" como instância global de atribuição de legitimidade (aqueles que se submetem ao ordenamento jurídico sem questioná-lo, dando legitimidade aos representantes e legisladores); "povo" como ícone (aqueles excluídos, que não participam do processo democrático, mas que são tidos como unificados ao conceito de povo); "povo" como destinatário das prestações civilizatórias do Estado (aqueles que recebem do Estado toda assistência).
No Brasil, vimos que o "povo" inserto no parágrafo único do artigo 1º, da Constituição Federal de 1988, ainda que pudéssemos classificá-lo como ativo, instância global, como ícone ou como destinatário das prestações civilizatória, estaríamos sujeitos a inúmeras críticas, haja vista a falibilidade de nosso sistema democrático e das peculiaridades apontadas, sobretudo quando tratamos do "povo ativo".
Neste sentido, concluímos que no regime democrático brasileiro o conceito de "povo" é abrangente, pois engloba todos aqueles que se encontram no território brasileiro; povo esse, ainda que não detentor de direitos eleitorais, seja porque menor de 16 anos, condenado criminalmente (em cumprimento de pena), militar constrito ou estrangeiro, tem direito de participar do processo democrático e lutar pelos seus interesses; povo esse, ainda que excluído e marginalizado (e ou minorias) encontra no Judiciário uma forma de alcançar o equilíbrio provocado pela ausência de representatividade no parlamento; povo esse que, independente da cor, raça, sexo, idade ou crença merece respeito e deve ser ouvido.
Referências
1. ATALIBA, Geraldo. O Judiciário e minorias. Revista de informação legislativa, v.24, nº 96, p. 189-194, out./dez. de 1987. Disponível em: < http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/181799/1/000433557.pdf
3. COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.31, pp. 211-222. ISSN 0103-4014
4. CHRISTENSE. Ralph/Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009
Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - introdução de Ralph Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavide
[i] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - introdução de Ralph Christensen; tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
[ii] BAHIA, Alexandre de Melo Franco. A democracia grega? Disponível em: http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com/search/label/Coluna%20do%20professor%20Alexandre%20Bahia. Publicado em 10/11/2011. Acesso em 03/1/2012.
[iii] COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estud. av. [online]. 1997, vol.11, n.31, pp. 211-222. ISSN 0103-4014
[iv] Ibid. p. 213.
[v] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. p. 94.
[vi] CHRISTENSE. Ralph/Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 4ª ed. ver. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 93-95.
[vii] COMPARATO. Op. Cit. p. 214.
[viii] Müller. Op. Cit. p. 46.
[ix] Ibid. p. 46-47.
[x] Ibid. p. 47.
[xi] Ibid. p. 49.
[xii] Idem.
[xiii] Ibid. p. 51.
[xiv] Ibid. p. 55-56.
[xv] Ibid. p. 59.
[xvi] Ibid. p. 61.
[xvii] Ibid. p. 60.
[xviii] Ibid. p. 37.

[xix] MÜLLER, Friedrich. Democracia e exclusão social em face da globalização. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_72/artigos/Friedrich_rev72.htm. acesso em: 21/2/2012.
[xx] BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 13
[xxi] Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 21/12/2012.
[xxii] Para definir um sistema democrático, pode-se começar verificando empiricamente os modos lingüísticos de utilização da palavra "povo" nos textos das normas do direito vigente, sobretudo nas constituições. Dessa análise, resultam vários modos de utilização. O primeiro deles é, também, o único que, até agora, foi usado na bibliografia da Ciência do Direito como conceito jurídico de "povo": os titulares dos direitos eleitorais. Denomino esse modo de utilização "povo ativo". Isso basta para o Poder Legislativo, na medida em que se compreende, graças à idéia de representação, que "o povo" é, indiretamente, a fonte da legislação. Mas isso não funciona no caso das atividades dos Poderes Executivo e Judiciário, que, afinal de contas, também devem ser "demo"craticamente justificadas. O povo ativo decide diretamente ou elege os seus representantes, os quais co-atuam, em princípio, nas deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, devem ser implementadas pelo governo e controladas pelo Judiciário.
Na medida em que isso é feito corretamente em termos do Estado de Direito, aparece, no entanto, uma contradição no discurso da democracia: por um lado, faz sentido dizer que os governantes, os funcionários públicos e os juízes estariam democraticamente vinculados; mas não faz sentido dizer que, aqui, o povo ativo ainda estaria atuando "por intermédio" de seus representantes. Onde funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, a concretização de leis não basta para torná-los representantes deste mesmo povo. O ciclo da legitimação foi rompido, ainda que de forma democrática; mas ele foi rompido. Os vínculos são cortados de forma não-democrática quando a decisão executiva ou judicial for ilegal; aqui, o povo invocado pelo titular do respectivo cargo ("em nome do povo, profiro a seguinte sentença...") produz somente o efeito de um ícone, de um mero passepartout[xxii] ideológico.
No caso já mencionado, ou seja, na decisão defensável em termos do Estado de Direito, o papel do povo apresenta-se diferentemente: como instância de uma atribuição global de legitimidade. Tal papel transcende, na sua abrangência, o povo ativo; abrange todos os que pertencem à nação.
Além disso, as decisões dos órgãos que instituem, concretizam e controlam as normas afetam a todos aqueles aos quais dizem respeito: o "povo" enquanto população efetiva. Uma democracia legitima-se a partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território - não importa se elas são ou não cidadãs, ou titulares de direitos eleitorais. Isso se aproxima, finalmente, da idéia central de democracia: autocodificação, no direito positivo, ou seja, elaboração das leis por todos os afetados pelo código normativo. O princípio "one man, one vote" (pensado em outra acepção) também pode ser compreendido não com vistas a uma camada social específica, mas com vistas à qualidade humana de cada pessoa afetada, independentemente da cidadania. Desse povo-destinatário, ao qual se destinam todos os bens e serviços providos pelo Estado Democrático de Direito, fazem parte todas as pessoas, independentemente, também, de idade, estado mental e status em termos de direitos civis. MÜLLER, Friedrich. Democracia e exclusão social em face da globalização. Op. Cit.
[xxiii] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. p. 72.
[xxiv] ATALIBA, Geraldo. O Judiciário e minorias. Revista de informação legislativa, v.24, nº 96, p. 189-194, out./dez. de 1987. Disponível em: < http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/181799/1/000433557.pdf
[xxv] Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia p. 98.

A democracia em Ingeborg Maus

Luiz Cláudio Borges

Publicado na Revista Constitucional do Ambito Jurídico (01/5/2012)
 
Resumo: Conceituar o termo democracia desafia os estudiosos, sobretudo pelos desdobramentos e pela constante tensão existente com o constitucionalismo. Para muitos, democracia representa "o governo do povo para o povo". Na visão de Ingeborg Maus a democracia é fundada na soberania popular (soberania + vontade popular), que dá ao "povo", representado pelo legislativo, um status de soberania. O presente estudo tem por escopo apresentar a visão e o pensamento da jurista alemã, para tanto faremos um breve estudo de como o termo democracia foi e vem sendo empregado pelos pensadores clássicos e contemporâneos.
Palavras-chaves: democracia - constitucionalismo - soberania popular
Abstract: Conceptualize the term democracy challenges scholars, especially by the developments and the constant tension with constitutionalism. For many, democracy is "government of the people for the people." In view of Ingeborg Maus democracy is founded on popular sovereignty (sovereign will of the people +), which gives the "people", represented by the legislature, a status of sovereignty. The scope of this study is to present the vision and thought of the German jurist, for that will make a brief study of how the term democracy was and is being used by the classical and contemporary thinkers.

Keywords: democracy - constitutionalism - popular sovereignty
Sumário: 1.- Introdução 2.- Democracia 3.- A democracia na visão de Ingeborg 4.- Conclusão
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar o pensamento da socióloga e jurista Ingeborg Maus sobre a democracia. Entretanto, será necessário reunir as ideias e conceitos de diversos pensadores clássicos e contemporâneos, como Rousseau, Hobbes, Lock, Friedrich Muller, Habermas, Menelick, Chantal Mouffe e outros.
O tema democracia é atual e desafia os estudiosos, sobretudo pela constante tensão existente com o constitucionalismo. Na concepção de Menelick quanto mais democrático é um regime político, tanto mais a vontade popular impera e, portanto, tanto menos limites constitucionais são impostos a essa vontade e as suas decisões. Por outro lado, quanto mais limites constitucionais houver tanto mais estreita é a possibilidade de se dar livre curso a tal vontade; tanto menos campo é deixado à deliberação dos representantes da vontade popular eleitos para o exercício cotidiano da tomada de decisões[1].
Considerando que o objetivo é estudar o pensamento de Maus, o referencial teórico é o livro "O Judiciário como superego da sociedade", publicado pela Editora Lumen Juris, o qual reúne diversos artigos da autora. O esforço a que me propus não é fácil, pois pouco, ou quase nada foi escrito sobre o pensamento da jurista e socióloga alemã. Como Ingeborg Maus vê a democracia? Como seus pensamentos podem influenciar ou já estão influenciando no processo democrático brasileiro? Estas serão algumas das perguntas que tentarei responder neste artigo.
O trabalho está sendo dividido em dois tópicos: o primeiro tratará do conceito e ideia de democracia na visão de alguns pensadores; e o segundo, abordará a democracia na visão da Ingeborg Maus. Não temos a menor pretensão de esgotar o assunto, até porque entendemos que, assim como os direitos humanos estão sendo construídos, a democracia também, portanto, o que se fará aqui é apenas o início de uma proposta para aguçar futuros debates.
2. DEMOCRACIA
O termo democracia, de origem grega, fora utilizado para designar uma forma de governo em que o conjunto de cidadãos tem a titularidade do poder político. Isto é uma forma em que a administração da coisa pública é responsabilidade do povo e está sob o seu controle.[2]
É importante salientar que os gregos foram os grandes responsáveis pela construção do que entendemos hoje como democracia. Inspirados nos ideais de que tudo deveria ser debatido e decidido de forma consensual, os iluministas pensaram a substituição das relações feudais de poder pelo "demo" (povo) + "cratos" (regime), formando a expressão democracia, que significa o governo do povo para o povo.[3]
BONAVIDES conceitua democracia como "aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo".[4]
Para Müller, o termo democracia é uma expressão bastante indeterminada, isto é, utilizada de vários modos, freqüentemente opostos. [5] O vocábulo oferece os significados de "governo" e "povo"; mas se isso resulta em algo como "governo do povo", é, justamente, a questão". [6] Müller vai além ao questionar quem é esse povo. O tema é instigante, entretanto, em razão do esforço aqui proposto, será relegado para um outro momento.
Chantal Mouffe quando trata do tema "Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt", texto traduzido por Menelick, mostra sua preocupação com o termo:
"No momento em que é anunciada a vitória definitiva da democracia liberal, incongruentemente, é necessário que salientemos que sabemos cada vez menos do que se trata a distância é tão grande entre o "sujeito do enunciado" e o "sujeito da enunciação" que se torna cada vez mais difícil termos uma ideia clara do que seja a democracia liberal. O significante "democracia" funciona agora como horizonte imaginário no qual se inscrevem reivindicações extremamente díspares, e o consenso para o qual aparentemente aponto pode muito bem ser uma ilusão".[7]
Hoje, quando pensamos a democracia, nossos esforços se concentram num governo representativo, em um Estado constitucional, de garantias das liberdades individuais, o que tem pouca semelhança com a cidade-república dos gregos - a polis - que teve seu apogeu entre os séculos VI e IV a.C., onde os cidadãos se reuniam em assembléia para discutir e deliberar sobre as leis e organização da vida coletiva (democracia direta).[8]
Para Locke a criação de sociedades civis dá início a diversas formas de governo. Se há a nomeação de pessoas de tempos em tempos para a elaboração das leis, nos deparamos com uma democracia.[9]
Rousseau, ainda que indiretamente, parte da ideia de "vontade geral" imaginando um Estado onde não houvesse intermediários ou representantes, mas, o próprio povo ditasse as normas aos órgãos executivos.[10] Isto é impossível nos dias de hoje, pois a democracia é de "massa", em territórios bem mais extensos que as "polis", logo, representativa.[11]
Hobbes compartilhava a ideia de uma democracia deliberativa. Em sua obra Do Cidadão aborda o tema nos seguintes termos:
"Onde a monarquia mais se distingue da aristocracia e da democracia é no fato de que nestas duas últimas têm de estar marcados lugares e datas para a a deliberação e consulta dos negócios, isto é, para assegurar seu exercício efetivo em todos os lugares e datas. Pois tanto o povo quanto os nobres, não constituindo pessoas naturais, necessariamente precisam reunir-se". (Hobbes, 1992, p. 147)
Sobre o pensamento de Hobbes segue a contribuição de LEIVAS:
"A Democracia é, portanto, uma espécie de governo em que o soberano-representante é o próprio povo reunido em assembléia (uma assembléia de todos). As deliberações públicas do povo são inseridas no que mais tarde ficou conhecido como democracia representativa. Enfim, a teoria da democracia de Hobbes contém elementos deliberativos e representativos que nos permitem chamá-la de democracia representativa deliberativa."[12]
O professor Alexandre Bahia, em artigo recém publicado, faz referência à democracia representativa nos seguintes termos:
"No entanto, a despeito de ser "representativa", a soberania popular permanece com o povo. Todas as Constituições atuais consagram essa ideia iluminista que, de alguma forma, mantém, implicitamente, o ideal forjado já em fins da Idade Média do direito do "povo" se rebelar contra governos que violassem as normas (sagradas, imutáveis e "naturais") do bem comum. Esse é um dado importante: por todo o globo as democracias representativas enfrentam problemas de legitimidade: os canais de comunicação entre a "periferia" (povo) e o "centro" (parlamento), em geral, não têm funcionado como deveriam".[13]
No debate sobre democracia deliberativa as contribuições de Habermas são oportunas. Ele pode não ter sido o primeiro a escrever sobre deliberação, entretanto é um dos defensores da teoria deliberativa da democracia.[14]
Habermas demonstra certa atenção com os pressupostos, os arranjos institucionais e os mecanismos de controle político, isto porque pensa em uma democracia em termos institucionais, procedimental e deliberativa. Constrói uma teoria da democracia a partir de duas tradições teórico-polícitas: i) concepção de autonomia pública da teoria política republicana (vontade geral, soberania popular); ii) concepção de autonomia privada da teoria política liberal (interesses particulares, liberdades individuais).[15]
O pensamento habermasiano é sofisticado e demanda um estudo profundo de todos os institutos e teorias propostos pelo autor, o que foge do alcance do presente trabalho, portanto, limitaremos apenas à concepção procedimental da democracia, até porque Habermas é procedimentalista.[16]
Para LUBENOW:
"A concepção procedimental de democracia é uma concepção formal e assenta nas exigências normativas da ampliação da participação dos indivíduos nos processos de deliberação e decisão e no fomento de uma cultura política democrática. Por ser assim, esta concepção está centrada nos procedimentos formais que indicam "quem" participa, e "como" fazê-lo (ou está legitimado a participar ou fazê-lo), mas não diz nada sobre "o que" deve ser decidido. Ou seja, as regras do jogo democrático (eleições regulares, princípio da maioria, sufrágio universal, alternância de poder) não fornecem nenhuma orientação nem podem garantir o "conteúdo" das deliberações e decisões".
Habermas não descarta os modelos de democracia existentes (liberal e republicano), mas propõe um alternativo, o procedimental, que se utiliza da deliberação para a tomada de decisão. É nesse caminho, via procedimento e deliberação, que constitui o cerne do processo democrático. Para Habermas procedimentos democráticos proporcionam resultados racionais na medida em que a formação da opinião e da vontade institucionalizada é sensível aos resultados de sua formação informal da opinião que resulta das esferas públicas autônomas e que se formam ao seu redor.[17]
Muito se debateu e ainda se debate sobre a democracia, mas, conforme Müller e Mouffe, o termo e suas inúmeras facetas não são de fácil entendimento, razão pela qual o objetivo deste primeiro ponto limitou-se a apontar o pensamento de alguns doutrinadores. Essa construção foi necessária até mesmo para compreender melhor o pensamento de Ingeborg Maus.
3. A DEMOCRACIA NA VISÃO DE INGEBORG
Partindo das construções anteriores é possível alcançar a essência do pensamento de Ingeborg Maus, entretanto, é importante salientar que seus escritos são endereçados ao direito alemão, mas também se aplica e aproveita a nossa concepção de democracia.
Maus não procura conceituar o termo democracia ou inseri-lo no debate, mas estuda seus efeitos no processo democrático, sobretudo na soberania e no poder estatal.[18] Parte-se do princípio de que a democratização da soberania provoca a separação das funções de soberania e poder estatal, as quais no absolutismo eram indivisíveis.
Segundo a autora, a soberania é idêntica à função do legislativo. Utilizando os pensamentos de Bodin, afirma que o monarca absoluto não é soberano por deter o assim chamado monopólio do poder, mas em sua qualidade de fonte de todo o Direito. Sustenta que a ação do poder estatal deve ser controlada e dirigida pela base social, isto porque a atividade legislativa incumbe exclusivamente ao "povo", ou seja, aqueles que não são funcionários, em oposição aos titulares de funções públicas dos aparelhos estatais (soberania popular). [19]
Com isso, constrói-se o entendimento de que o legislativo não é um "poder", mas uma soberania[20], o que justifica sua importância no sistema de separação de poderes.
Maus[21] enfatiza que a "soberania não é senão o exercício da vontade comum na atividade legislativa, ela só pode ser representada por si mesma". É una, indivisível, inalienável e imprescritível. Pertence à nação; pertence ao povo. Tal soberania não está separada da noção de vontade popular, onde supõe-se a existência de um sujeito coletivo de decisão.[22]
Fazendo menção ao artigo 20, §2º da Lei Fundamental,[23] o qual preceitua que "[t]odo poder estatal emana do povo",[24] Maus rechaça a ideia de que a distinção fundamental entre soberania e poder estatal ou poder tenha se perdido de todo. Revela que o povo recebe a chancela de que nada pode detê-lo e que isso só ocorre num Estado de Direito, cujo esquema de separação dos poderes repousa na estrita separação de funções entre soberania e poder estatal, afastando qualquer interpretação equivocada de que isso inviabilizaria a democracia, pelo contrário, torna-se condição absoluta de sua garantia.[25]
Nesse contexto, escreve a autora
"o "Estado constitucional" é confrontado, hoje, à democracia soberana, para contestar-lhe o caráter constitucional. Na visão da autora, o conceito de constitucionalismo, que, até então, designava o tipo específico de Constituição do século XIX, também é empregado de modo um tanto quanto traiçoeiro na teoria constitucional atual, como termo geral para a existência da codificação constitucional moderna, expressando-se assim a suplantação do tipo contrário de Estado de Direito democrático. Contudo, não é mais o princípio monárquico que deve ser constitucionalizado - como ainda acontecia nas constituições do século XIX - mas a soberania democrática".[26]
Partindo dessas concepções, podemos dizer que da junção entre a soberania e vontade popular nasce a soberania popular, que "é reduzida a um ato único do poder constituinte do povo, o qual se esgota nesse significado mais simbólico e constitui uma Constituição, ao qual se atribui progressivamente "soberania"."[27]
4. CONCLUSÃO
Tentou-se construir neste artigo o pensamento de Ingeborg Maus acerca da democracia, mas averigou-se logo no início que a autora não procura conceituar o termo democracia, apenas discorre de forma bem detalhada sobre a soberania popular, termo presente em todos os textos do livro "O judiciário como superego da sociedade".
Não obstante a própria dificuldade na conceituação da expressão soberania popular, Maus esclarece que a "soberania não é senão o exercício da vontade comum na atividade legislativa, ela só pode ser representada por si mesma". E mais, é una, indivisível, inalienável e imprescritível; pertence à nação; pertence ao povo. Tal soberania não está separada da noção de vontade popular, onde supõe-se a existência de um sujeito coletivo de decisão.
Conclui-se, portanto, que a democracia, assim como a soberania popular coexistem em sim mesma, esta não inviabiliza aquela, pelo contrário é pressuposto, é condição sem a qual não se pode garantir a primeira. Isto na visão da autora.
BIBLIOGRAFIA
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LUBENOW, Jorge Adriano. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas: modelo teórico e discursos críticos. Kriterion [online]. 2010, vol.51, n.121, pp. 227-258. ISSN 0100-512X. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2010000100012&lang=pt. Acessado em 11/1/2012.
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VILANI, Cristina. Democracia antiga e democracia moderna. In Cadernos de História> PUC MINAS. V. 4. Nº. 5. Out./1999. P. 37-42.
Notas:
[1] CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 88. dez./2003.
[2] VILANI, Cristina. Democracia antiga e democracia moderna. In Cadernos de História> PUC MINAS. V. 4. Nº. 5. Out./1999. P. 37-42.
[3] BAHIA, Alexandre de Melo Franco. A democracia grega?. Disponível em: http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com/search/label/Coluna%20do%20professor%20Alexandre%20Bahia. Publicado em 10/11/2011. Acesso em 03/1/2012.
[4] BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 13
[5] MÜLLER, Friedrich. Democracia e exclusão social em face da globalização; Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_72/artigos/Friedrich_rev72.htm.%20Acesso%20em%2003/1/2012.
[6] Ibid.
[7] MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia com, e contra Carl Schmitt. Em "Revue Française de Science Politique, vol. 42, nº. 1, Fevereiro - 1992. Tradução de Menelick de Carvalho Neto.
[8] VILANI, Cristina. Op. Cit.
[9] Locke, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil/JohnLocke; introdução de J.W. Gough; tradução de Magda Lopes e Marisa Loboda Costa.-Petrópolis, RJ:Vozes,1994. p. 160.
[10] BAHIA, A. F. M. Op. Cit.
[11] Ibid.
[12] LEIVAS, Cláudio R. C.. Paixão, democracia e deliberação em Hobbes e Walzer. Trans/Form/Ação [online]. 2009, vol.32, n.2, pp. 63-74. ISSN 0101-3173. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732009000200003&lang=pt. Acessado em 30/12/2011.
[13] BAHIA, A. M. F. Op. Cit.
[14] LUBENOW, Jorge Adriano. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas: modelo teórico e discursos críticos. Kriterion [online]. 2010, vol.51, n.121, pp. 227-258. ISSN 0100-512X. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2010000100012&lang=pt. Acessado em 11/1/2012.
[15] Ibid.
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: Do Estado de Direito ao Estado Constitucional da Crítica da Obstrução Jurídica da Democracia. Coleção Conexões Jurídicas. Direção de Luiz Moreira. Tradução de Geraldo de Carvalho e Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro. Editora Lumem Juris, 2010. Pg. 133-151.
[19] Ibid. p. 138.
[20] Ibid. p. 139.
[21] Citando Rousseau.
[22] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: Sentido e Significado da Soberania Popular na Sociedade Moderna. Coleção Conexões Jurídicas. Direção de Luiz Moreira. Tradução de Geraldo de Carvalho e Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro. Editora Lumem Juris, 2010. Pg. 153-171. p. 153.
[23] Lei alemã
[24] O referido dispositivo guarda certa semelhança com a Constituição Brasileira de 1988: "Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. [...]. art. 1º, Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição." Grifo nosso.
[25] MAUS, Op. Cit. p. 139.
[26] Ibid. p. 143.
[27] Ibid. p. 153.

DIA MUNDIAL DO CONSUMIDOR: UMA REFLEXÃO



Por Luiz Cláudio Borges

 

            Amanhã comemoraremos mais uma data importante no calendário mundial, o Dia Mundial do Consumidor, mas será que realmente temos motivo para comemorá-la? Será que houve avanços nos estudos do direito do consumidor? É possível dizer que o consumidor de hoje está mais consciente de seus direitos? Estas e outras indagações darão a tônica deste singelo artigo, mas que tem como proposta levar o leitor, que também é consumidor, à reflexão.


            No dia 15/3/1962, o então Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy deu uma declaração ao Congresso norte-americano dizendo que, consumidores, por definição, somos todos nós. Eles são o maior grupo econômico, e influenciam e são influenciados por quase toda decisão econômica publica ou privada. Apesar disso, ele são o único grupo importante, cujos pontos de vista, muitas vezes não são considerados[1].


            Na ocasião, o Presidente ainda proclamou quatro direitos básicos do consumidor: i) direito à segurança; ii) direito à informação; iii) direito à escolha; e iv) direito de ser ouvido. O impacto dessa declaração foi muito positivo e acabou influenciando a elaboração de inúmeras leis protetivas do consumidor.


            Em 1973, em Genebra, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, em sua 29ª Sessão, reconheceu os direitos fundamentais do consumidor, partindo daqueles elencados pelo Presidente americano. Seguindo o mesmo exemplo, inúmeros países passaram a editar Códigos de Defesa do Consumidor.


            No Brasil, não obstante a existência de alguns movimentos em prol dos consumidores, ainda não existia nenhuma legislação específica. Os conflitos envolvendo consumidor e fornecedor (sujeitos, até então desconhecidos do ordenamento) eram resolvidos pela legislação cível, mais precisamente pelo Código Civil de 1916. Com a Constituição de 1988, considerada a Constituição “cidadã”, o direito de defesa do consumidor foi inserido como direito fundamental, previsto no artigo 5º, inciso XXXII[2]. E mais, o direito do consumidor foi elevado como princípio da ordem econômica, artigo 170, V, da Constituição Federal[3].


            O Congresso Nacional, por força do artigo 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi desafiado a elaborar um código de defesa do consumidor. Nasce, com isso, o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº. 8.078/1990. O mencionado Código entrou em vigor em 15/3/1991.


            Dentre os princípios que norteiam a Política Nacional de Relações de Consumo, artigo 4º, do CDC[4] está a “educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres”, tudo com o objetivo de melhorar o mercado de consumo.


            José Geraldo Brito Filomeno assevera que


“A educação e informação de fornecedores e consumidores quanto aos seus direitos e deveres é objeto do inciso IV do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor. A educação formal, no caso, deve iniciar desde os primeiros passos da criança nas escolas, até porque, como sempre fazemos questão de assinalar, os direitos do consumidor são uma face dos próprios direitos da cidadania. Não que deve existir, necessariamente, uma disciplina específica para tanto. Basta a preocupação de professores ao embutirem nos conteúdos curriculares de disciplinas como a matemática, por exemplo, a matéria de cálculo de juros e percentuais; em ciências, a preocupação com a qualidade dos alimentos, prazos de validade, a responsabilidade pelo consumo sustentável etc. no que diz respeito à educação informal, devem ser objeto de preocupação não apenas dos órgãos de defesa e proteção ao consumidor, bem como entidades não governamentais, como também dos meios de comunicação de massa (televisão, rádio, jornais, revistas, sites na Internet etc.). Quanto à informação, cremos que devam ser objeto das comunicações de modo geral, feitas pelas entidades governamentais ou não governamentais, tudo com vistas à melhoria do mercado de consumo.”[5] 

                  Segundo Filomeno, o direito à educação sobre os direitos e deveres inerentes à relação de consumo pode ser dividida em educação formal e informal. No primeiro caso, o ensino é reservado à criança e ao adolescente, com a inclusão da disciplina, de forma isolada ou não; no segundo, é reservada aos órgãos de defesa e proteção do consumidor e dos meios de comunicação.


            É notória a relevância do trabalho realizado pelos órgãos de defesa e proteção do consumidor (PROCON, Associações (IDEC, BRASILCON etc.) e do próprio DPDC, entretanto, um número muito pequeno de consumidores é alcançado.


            No Brasil, em pleno século XXI, era da tecnologia e informação a velocidades inimagináveis, existem pessoas que sequer sabem da existência do Código de Defesa do Consumidor, razão pela qual a inserção do ensino do direito consumidor nos anos iniciais é medida imprescindível para a formação de consumidores conscientes e responsáveis.

            Um estudo elaborado pelo professor Jessé Souza, sociólogo brasileiro, denominado de “Ralé brasileira: quem é e como vive”, aponta que cerca de um terço da população brasileira, um total de aproximadamente 60 milhões de brasileiros, não tem acesso a bens de cultura, informação e educação. Ora, é possível afirmar, e o faço por conta e risco meu, que uma parte muito maior sequer sabe dos direitos que tem como consumidor.


           Onde está o problema?

           Não canso de dizer que o dever de informar e levar a educação dos direitos e deveres aos consumidores e fornecedores é do Estado. Neste quesito o Estado é falho, como também o é nas questões da saúde e até mesmo da educação.

           Como mencionado no início, amanhã comemora-se mais um ano de existência do Código de Defesa do Consumidor. Passaram-se mais de 22 anos, muito se fez, mas há muito a se fazer. Entretanto, sem uma educação adequada, pouco provavelmente o consumidor estará preparado para compreender e fazer valer seus direitos.

 
            Rogo, pois, que não só o Estado, mas a iniciativa privada (já que o primeiro não consegue exercer bem suas funções), possam, em conjunto, intensificar a divulgação dos direitos do consumidor e a conscientização para um consumo responsável e, consequentemente sustentável.






[1] AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do direito do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 19.


[2] O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.


[3] A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existentes digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]; v- defesa do consumidor.


[4] Código de Defesa do Consumidor


[5] Filomeno, José Geraldo Brito, Manual de direitos do consumidor/José Geraldo Brito Filomeno.- 10ª Ed.- São Paulo: Atlas, 2010, p. 15.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

INTERPRETAÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E DECISÃO JURÍDICA: O EMBATE ENTRE MACCORMICK E DWORKIN

Luiz Cláudio Borges[1]
Larissa Fátima Carvalho[2]


RESUMO

Um dos maiores expoentes da teoria da interpretação, argumentação e decisão jurídica, sucessor da cátedra de Herbert L. A. Hart, Ronald Dworkin, ao estudar o positivismo jurídico de Austin, Kelsen e Hart, passa a criticá-lo severamente. Para Dworkin o direito é interpretação e não análise lingüística. Estabelece distinções importantes sobre regras, princípios e políticas públicas, bem como sustenta que as decisões jurídicas só comportam uma decisão correta. Neil MacCormick levanta-se em defesa de Hart e faz duras críticas à teoria de Dworkin.

PALAVRAS-CHAVES: DWORKIN– MACCORMICK - PRINCÍPIOS – REGRAS –POLÍTICAS PÚBLICAS

ABSTRACT
One of the greatest exponents of the theory of interpretation, argument and legal decision, the successor to the chair of Herbert L. A. Hart, Ronald Dworkin, studying the legal positivism of Austin, Kelsen and Hart goes on to criticize it severely. For Dworkin is the right interpretation, and not linguistic analysis. Establishes important distinctions about the rules,principles and policies, and argues thatlegal decisions contain only a correct decision. NeilMacCormick stand up in defense of Hart and is critical of Dworkin's theory.


KEYWORDS: DWORKIN - MACCORMICK - PRINCIPLES - RULES- PUBLIC POLICY


1.-CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Opresente estudo tem por finalidade trazer, ainda que em breve síntese, uma recapitulação das ideias básicas construídas por Ronald Dworkin, quando da discussão do positivismo jurídico, sobretudo aquelas que renderam as críticas do jurista Neil MacCormick.

O trabalho será exposto em dois tópicos: o primeiro abordará as principais ideias de Dworkin, como a concepção de regras, princípios e políticas públicas e a resposta certa do direito; no segundo, apontaremos as críticas de Maccormick às teorias de Dworkin.

Não pretendemos aqui, esgotar o assunto, até porque pelo espaço e estrutura do trabalho (paper) seria impossível descer a minúcias cada item da teoria dos autores. O objetivo é apenas apresentar ao leitor o embate entre MacCormik e Dworkin.


2.- INTERPRETAÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E DECISÃO JURÍDICA EM RONALD DWORKIN

O Professor Rafael Simioni pesquisou os grandes pensadores contemporâneos do direito, como Hans Kelsen, Robert Alexy, Castanheira Neves, Jürgen Habermas, Niklas Luhmann, Ronald Dworkin e muitos outros. Sobre Dworkin, antes de expor de forma minuciosa as teorias do autor, conseguiu sintetizar suas principais contribuições:

Ronald Dworkin foi sucessor da cátedra de Hart na Oxford University, na Inglaterra, onde se aposentou. Atualmente é professor da New York University e da University College London. É também membro da Academia Americana e da Academia Britânica de Artes e Ciências Cinematográficas. A sua contribuição para o direito ocorreu já na década de sessenta, com várias publicações demonstrando a insuficiência prática do positivismo jurídico e sustentando que, mesmo nos casos difíceis, há um direito a respostas corretas. Dentre vários artigos, ensaios e livros, suas principais publicações são a coletânea de artigos e ensaios reunidos no takin rights serioulsy (1977) e no A matter of principle (1985), e especialmente o livro que consolida todo o seu pensamente a respeito do direito como integridade, que é o Law´s empire, publicado em 1986. Na década de noventa, Dworkin dedicou suas pesquisas mais para o campo da fundamentação política de princípios, especialmente os princípios da igualdade no Soverign virtue e o da liberdade no Freedom´s Law. Desde então, os esforços de Dworkin foram direcionados à fundamentação hermenêutica de uma theory of political marality, uma teoria da moralidade política, que não é nem procedimentalista, como a teoria discursiva de Jürgen Habermas, tampouco supõe um contrato social e um certo grau de consenso desvinculado de pressupostos éticos, como a teoria política da justiça de John Rawls. Os seus trabalhos mais recentes assumem o compromisso com a fundamentação de uma teoria da moralidade política para o direito, discutindo questões ligadas à democracia, à política e à justiça. Ao contrário da linha procedimentalista de Alexy e Habermas, Dworkin assume uma perspectiva jurídica hermenêutica substantiva, que procura entender o direito como uma prática interpretativa, como uma atitude interpretativa, comprometida com princípios e convicções morais da comunidade, que transcendem os textos legais e jurisprudenciais, e que por isso devem ser tratados como uma exigência de integridade (integrity) e coerência (consistency). Mas o que mais chama a atenção no pensamento de Dworkin, sem dúvida, é a sua proposta de superação do positivismo jurídico por meio do abandono daquela visão do direito como interpretação semântica de textos jurídicos e a sua substituição por uma visão do direito como integridade em relação a princípios de moralidade política importantes na comunidade. O que vai permitir a Dworkin sustentar, contra toda a tradição positivista do direito, não só a possibilidade, mas sobretudo a existência que a teoria de Dworkin apresenta para a atividade jurisprudencial não apenas condições para respostas corretas no direito, mas sobretudo condições essenciais para a equidade, para a justiça o devido processo legal e para os processos democráticos em geral. Para a pergunta sobre a possibilidade ou não de uma única resposta correta no direito, Dworkin vai responder que só na armadilha do positivismo jurídico é possível justificar aquela discricionariedade da decisão jurídica dentro da moldura do ordenamento jurídico. Pois ao se assumir o direito como integridade, no qual não só os textos jurídicos, mas também os princípios e convicções de moralidade política passam a ser importantes para a solução adequada dos casos práticos, é possível sim encontrar a resposta correta do direito.[3]

Para facilitar a compreensão do presente estudo, abordaremos somente as idéias de Dworkin que foram objeto das críticas de MacCormick. Antes, porém, faz-se necessário trazer alguns apontamentos sobre as críticas de Dworkin ao positivismo jurídico.

O filósofo Jonh Austin (século XIX), teórico da linguagem jurídica, influenciou o positivismo jurídico norte-americano e britânico. Com Ele, o direito passou a ser entendimento como um conjunto histórico de decisões tomadas pelos soberanos, quer dizer, tomada por aqueles que detêm o poder político em uma sociedade.[4]Essa teoria ganhou inúmeros adeptos, sobretudo dos “juristas mais ativos e de orientação mais acadêmica”, como é o caso de Herbert L. A. Hart.[5]

Entretanto, em 1961, Hart refuta a proposição de Austin, sobre a autoridade jurídica de ser um fato puramente físico, puramente empírico, de ordem e obediência habituais, e a reformula para afirmar “que os verdadeiros fundamentos do direito não estão em costumes empíricos entre alguém que ordena e outros que obedecem, mas sim na aceitação, pela comunidade, de uma regra fundamental que ele chamou de rule of recongnition de regra de reconhecimento.”[6]

Segundo Dworkin, o problema de todas as perspectivas teóricas apontadas por Austin e Hart está no fato delas serem prisioneiras da armadilha semântica, que é uma armadilha do próprio positivismo jurídico, fundado na linguagem. Ora, se o direito se encontra ou deveria se encontrar nas convenções lingüísticas dotadas de força de lei, então qualquer desvio dessas convenções já poderia ser visto como um problema.[7]

Se para Austin, Kelsen e Hart, o direito é fundado na análise lingüística, para Dworkin o direito é interpretação. Na teoria desenvolvida por Dworkin não é só possível uma única decisão jurídica correta (o que no positivismo é impensável), mas também é exigida por uma questão de coerência e que a escolha de uma interpretação adequada é uma escolha política. “Mas essa escolha não é política no sentido das análises semânticas do direito e sim política no sentido da coerência e integridade com o projeto político de uma comunidade baseada em princípios, baseada em convicções de moralidade políticas comuns. [8]

2.1.- Regras, princípios e políticas públicas

Dworkin estabelece uma distinção importante entre regras (rules), princípios (principles)e políticas públicas (policies).[9]Para Dworkin, as decisões, sobretudo nos casos difíceis (hard cases) obrigam os julgadores a recorrerem a regras não presentes no direito positivo, como os princípios morais e objetivos políticos.[10]

Simioni lembra que

[d]epois da teoria pura do direito de Kelsen, esses padrões morais, políticos, religiosos etc. foram afastados do direito como questões de política jurídica, não de proposições científicas sobre o direito. Mas apesar desses padrões ficarem de fora da teoria pura do direito de Kelsen como questões exteriores ao direito, esses padrões são, de fato, utilizados na prática das decisões jurídicas, especialmente na prática das decisões sobre casos difíceis, casos que não têm uma resposta simples no direito positivo.[11]

Para Dworkin regras ou princípios[12]podem desempenhar papéis bastante semelhantes e a diferença entre eles ser reduzida a aspectos meramente formais,

[a] diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.[13]
Observa-se que as normas jurídicas escritas, que impõe direito e obrigações são regras, ou elas se aplicam ou não (tudo-ou-nada). Já os princípios são todos os demais padrões de moralidade transcendentes ao direito positivo, isto é todos aqueles padrões morais e políticos que as decisões jurídicas recorrem para decidir os casos que não são suficientemente solucionados pelas regras do direito positivo. “Os princípios são todos os demais padrões normativos que não são regras do direito, que estão para além do direito positivo.”[14]

Princípios não são questões de tudo-ou-nada, pois não estabelecem as condições prévias de sua aplicação, como acontece com as regras. Para Dworkin os princípios são questões de peso na justificação de uma decisão jurídica, que se revelam na forma de razões que inclinam a decisão para uma ou outra decisão.[15]“Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso e da importância.[16]

2.2.- Princípios morais e políticas públicas

Não obstante a importância dos princípios, estes não estão acima das regras. Não existe nenhuma relação hierárquica entre princípios e regras. “Os princípios estão em outro nível, outra dimensão, que é a dimensão hermenêutica, a dimensão da prática da interpretação. Os princípios estão nas convicções que guiam a interpretação das regras na direção do melhor direito possível para o caso.”[17]

Segundo Dworkin os princípios abrangem não só os princípios morais como os objetivos políticos do governo. Há de se fazer uma distinção entre princípios morais e políticas públicas, isto porque poderá haver uma colisão entre eles.[18]Os objetivos políticos, na linguagem jurídica brasileira, podem ser identificados sob o nome de políticas públicas, como as políticas econômicas, as políticas afirmativas, as políticas ambientais, as políticas de segurança pública, de desenvolvimento agrário etc. Esses objetivos políticos não são regras jurídicas, mas são padrões que, de fato, as decisões judiciais utilizam para justificar suas conclusões, afirma Simioni.

2.3.- A única resposta correta do direito

Para Dworkin apenas uma resposta é correta, ainda que questão apresente duas ou mais interpretações aceitáveis. Os casos difíceis se apresentam quanto a análise preliminar do caso, pela decisão jurídica, “não consegue discriminar entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de uma linha de precedente.[19]Tratam-se dos casos nos quais, mesmo depois de cumpridas as quatro etapas do juiz Hércules, restam duas ou mais hipótese de interpretação igualmente aceitáveis.[20]

Neste sentido, pode-se concluir que ainda que existam duas interpretações aceitáveis, apenas uma é correta. Segundo Dworkin, somente uma resposta é correta, aquela que melhor se adequar ao caso concreto, que atenda ao ponto de vista da moral política.

Simioni escreve que

[n]aturalmente, os juízes de verdade podem divergir a respeito dessas concepções de moral política. Mas o fato é que esse julgamento político de escolha da interpretação adequada, entre as interpretações aceitáveis, provoca uma convergência entre as opiniões pessoais dos juízes a respeito da moral política e as convicções de ordem superior sobre a necessidade de equilíbrio coerente entre a virtude da equidade e a virtude da justiça. Uma decisão jurídica pode, por exemplo, decidir respeitar a opinião pública da maioria para um caso, embora esse mesmo padrão de decisão possa ser modificado sob a circunstância de que estão em jogo direitos constitucionais que devem prevalecer inclusive contra a vontade da maioria. A escolha de uma interpretação adequada entre as várias interpretações jurídicas aceitáveis, é uma escolha política.[21]

Em linhas gerais, esses são alguns dos pontos centrais da teoria de Dworkin que receberão as críticas de Neil MacCormick.

3.- INTERPRETAÇÃO JURÍDICA EM NEIL MACCORMICK: CRÍTICAS A DWORKIN

Pela análise das ideias de Dworkin, sobretudo das críticas que fez ao conceito de direito de Herbert Hart, difundiu-se a visão de que o positivismo jurídico é uma matriz teórica cuja fragilidade encontra espaço em sua teoria da interpretação. Seja por não reconhecer a devida importância que têm os princípios na prática do direito, seja por descrever mal aquilo que juízes e juristas fazem nos casos difíceis (hard cases), o positivismo seria uma corrente teórica que padeceria de falhas analíticas graves.

Neil MacCormick[22]tem como objetivo principal em sua obra Argumentação jurídica e teoria do direito, publicada no Brasil pela Editora Martins Fontes, em 2006, mostrar que não é preciso, para ser positivista, partilhar dessa fragilidade que lhe é imputada por Dworkin. É evidente que MacCormick empreende um esforço especial em responder às críticas Dworkiniana às teorias positivistas do raciocínio e da decisão.

No capítulo IX da obra em comento, MacCormick faz uma crítica à teoria substancialista de Dworkin e exposição suas ideias em três subtítulos: i) Princípio e positivismo, ii) Arbítrio, direitos e respostas certas e iii) Direitos e respostas certas.

É curioso notar que, em complementação ao capítulo IX, MacCormick concorda com Dworkin a respeito do importante papel que os princípios desempenham na argumentação jurídica e a respeito de existir“arbítrio fraco” nos julgamentos, [23]doutrinando que o “arbítrio é, portanto, um arbítrio limitado: é um arbítrio de proferir a decisão que seja mais bem justificada dentro desses requisitos, e esse é o único arbítrio que existe, não importa que sofra ou possa com freqüência sofrer abusos ou transgressões”,[24]porém contesta a dimensão interpretativa lecionada por Dworkin de que as regras são aplicadas como “tudo-ou-nada” em virtude desta tese deixar sem explicação o uso das regras na argumentação por analogia, ademais afirma que as regras podem competir com os princípios e não são invalidadas pela derrota na competição. [25]MacCormick

[...] Não está envolvida a asserção de que um princípio que seja um princípio de caráter jurídico deixe com isso de ser um princípio moral ou político, pela qual estamos mais uma vez gratos a Dworkin pela vigorosa expressão da verdade negligenciada. [...] Os princípios que são princípios jurídicos são também políticos no sentido em que dizem respeito ao bom governo da sociedade organizada; não são políticos no sentido estreito e específico daquilo que é foco de controvérsia partidária –como na doutrina da “questão política.[26]

MacCormick apresenta os princípios jurídicos como normas gerais postas em função de “racionalizar” as regras. Nestes termos nega que as regras existam em virtude de princípios jurídicos, ao invés de princípios morais ou políticos, a ser os princípios postos tão somente em função de legitimar a justificação consequêncialista.

3.1.-Direitos e respostas certas

MacCormick aponta que Dworkin sustenta que as decisões dizem respeito a direitos e que o positivismo banaliza esses direitos ao afirmar efetivamente que em casos exemplares (difíceis) os direitos são alocados arbitrariamente a um lado ou ao outro depois do acontecimento. Isto é insustentável, afirma MacCormick. Ter um direito legal pressupõe a existência de uma norma jurídica pertinente.

Os direitos morais e políticos são em sua maioria baseados em princípios; mas alguns direitos jurídicos são baseados em norma enquanto outros, em princípios. Para MacCormick, de acordo com o princípio do próximo, todos têm o direito a que terceiros em relações “próximas” demonstrem um cuidado razoável por sua segurança; de acordo com o princípio da relação contratual(que naturalmente não tem vigência no direito escocês), todos têm o direito de só responder por contratos em relação a quem também seja parte do contrato; de acordo com os princípios da justiçanatural, todos têm direito a um julgamento justo e a um juiz imparcial; e assim por diante.[27]

MacCormick abre um parêntese para dizer que Dworkin prestou um relevante serviço ao chamar efetivamente a atenção do mundo jurídico para a importância dos direitos baseados em princípios.[28] Lembra MacCormick que o litígio, ainda que em casos exemplares (hard cases), diz respeito a direito. Como decisões justificadas em casos exemplares exigem o amparo de princípios, e como cada lado tem certos princípios ou norma a que recorrer (se não fosse assim, o litígio não seria de difícil solução), a decisão no final é a confirmação do direito de alguém com base em princípio ou com base em normas.

MacCormick assim como Dworkin entende que os princípios são parte genuína do direito e que podem ocasionalmente entrar em conflito.

Neste sentido, MacCormick levanta o seguinte questionamento: um mesmo caso, dois princípios diferentes. Um legitima os interesses do autor ou outro legitima os interesses do réu. Qual deles deve prevalecer? O que tem preferência? Qual é o melhor direito?

Na visão de Ross os princípios determinam deveres prima facie[29]; mas em qualquer situação específica, devemos ponderar a importância de todos os nossos princípios morais a fim de concluir, entre nossos deveres prima facie, o que é realmente nosso dever fazer (nosso dever “levando em conta todos os aspectos”).[30]

MacCormick entende que essa mesma terminologia resolve, de um modo muito reconhecível, o aparente paradoxo jurídico:

Princípios do direito determinam direito prima facie, da mesma forma que interpretações rivais de normas ambíguas determinam direitos prima facie (baseados em normas). Casos exemplares envolvem conflitos de direitos prima facie – essa é somente uma forma de dizer que servirão de exemplo – e sua decisão envolve estabelecer o direito de quem há de ser preferido como o (melhor) direito, sendo todos os aspectos levados em consideração.

Um direito será acatado. Um princípio há de prevalecer. É preciso que seja feita uma escolha real. A teoria da argumentação jurídica aqui apresentada confere total peso à operação de princípios e outras normas no processo jurídico e revela que os juízes nunca têm mais do que um arbítrio limitado em casos exemplares – ou em qualquer outro caso.[31]

3.2.- Princípios e políticas (adendo ao capítulo IX)

MacCormick critica os conceitos propostos por Dworkin dizendo que “estipulações que atribuam significado especial a palavras de uso comum e geral são propensas a desorientar os leitores, quando não também o próprio autor.” O autor vai além: “A estipulação de Dworkin de que os princípios são sempre e exclusivamente outorgadores de direitos está carregada desse tipo de perigo”.[32]

MacCormick aponta diversos princípios que na teoria Dworkiniana não poderiam ser chamados de princípios, a saber: i) princípio da utilidade; ii) princípio do direito consuetudinário de que são nulos os contratos que restrinjam os negócios de uma forma adversa ao interesse do público; ii) princípio do menor esforço (de que sempre se deveria escolher o mais simples entre os possíveis meios alternativos para obter um determinado fim).

Critica, igualmente, a definição do termo “política” empregado por Dworkin, dizendo que a proposta Dworkiniana não se aplica.

Segundo o MacCormick, “Seria de uma excentricidade singular adotar as prescrições de Dworkin referentes ao emprego dos termos “princípio” e “política”, pois fazê-lo de modo constante tornaria indizíveis no contexto do emprego usual de advogados, filósofos e naturalmente leigos.[33]

O curioso é que MacCormick conceitua princípio como “norma geral” à qual é desejável aderir e que, desse modo, possui efeito explanatório e justificatório em relação a decisões particulares ou a regras particulares para a tomada de decisões.

Segundo MacCormick os princípios podem ser tão variados em suas modalidades como qualquer outra norma legal ou moral. Nos itens abaixo aponta algumas normas que, no seu entender, são princípios, entretanto, na teoria de Dworkin não, sobretudo os das letras “e” a “h”.

a) Um proprietário de imóvel tem a liberdade de fazer o que quiser com o que lhe pertence, respeitadas quaisquer restrições legais específicas. (Este princípio, tão característico do direito capitalista ortodoxo, delineia uma área de “liberdade” ou “privilégio”hohfeldiano).

b) Todo ser humano tem o direito de ser considerado inocente de um crime até que seja provada sua culpabilidade nos termos da lei. (Este princípio, característico do direito penal liberal, afirma um“direito de reivindicação” e por esse motivo serve de base para estabelecer deveres de policiais, promotores, juízes em processo etc)

c) Os tribunais chamados Queens Courts têm jurisdição sobre todas as questões jurídicas, a menos que sejam excluídos por dispositivos inequívocos da lei. (Este princípio característico do direito consuetudinário inglês, cujo estabelecimento foi confirmado pelo Acordo da Revolução, diz respeito ao que Hohfeld e outros chamam de “poderes”.)

d) Nenhuma pessoa pode ser reduzida a um estado de escravidão, nem mesmo com seu próprio consentimento. (Este princípio, não menos fundamental para o direito consuetudinário, estabelece uma “imunidade” geral, protegida por uma “incapacidade” auto-referente)

e) Todo cidadão deve auxiliar as autoridade constituídas no controle de insurreições e distúrbios civis. (Não se trata simplesmente de não estar esse princípio do direito inglês no modo de enunciação de deveres; o dever que ele enuncia é um bom exemplo de um “dever absoluto” em termos austiniano, e até mesmo o partidário mais entusiasta de teorias de “correlatividade jurídica” onipresente enfrentaria dificuldade para encontrar um direito correlato convincente. Veja porém (f) abaixo.)

f) Os seres humanos têm o dever de buscar a perfeição espiritual por meio da mortificação da carne. (Esse princípio de ascentismo moral esta incluído finalmente como refutação aos que acatam a opinião excêntrica de que um “dever” sempre implica um ”direito”)

g) I) Não há jurisprudência moral. II) a Rainha não pode impor tributos sem a autorização do parlamento. (Esse dois princípios dizem respeito a incapacidades hohfeldianas: o primeiro é um principio moral admirado pelos defensores da autonomia; segundo, um princípio do direito constitucional britânico. A categoria “incapacidade” é portanto tão pertinente à moralidade quanto ao direito, e é uma possível modalidade de princípios de qualquer desses tipos.)

h) A preferência do Estado deveria ser protegida de preferência a direitos particulares. (Esse princípio político de ampla aceitação não pertence a nenhuma das modalidades hohfeldiana. Trata-se mais de um princípio de “deve-recomendação” do que de dever obrigação – como por exemplo, o de que é um dever do cidadão abdicar a direitos particulares quando está em risco a segurança do Estado. Ressalte-se, porém, que segundo Dworkin “salus populi suprema Lex” não pode, pela lógica, ser considerado um princípio de modo algum.)

MacCormick é duro:

Vou de imediato admitir que (e) até (h) não são princípios para ele, que não se dispõe a aceitá-los como princípios de sua substantiva filosofia moral/política/jurídica. Talvez seja somente isso o que ele quer dizer. Deveríamos, entretanto, ter consciência do risco de sequer parecer definir como inexistentes posições com as quais desejemos entrar em divergência filosófica substantiva. Que P não é um princípio meu não significa que ele não possa ser um princípio de modo algum, nem mesmo seu eu tiver bons argumentos que sugiram que se trata de um péssimo princípio a acatar.[34]

MacCormick salienta que o princípio da letra “h” seria refutado pela teoria Dworkiniana por pertencer ao que ela chama de categoria de “políticas”. Mais uma vez MacCormick critica o conceito de Dworkin do termo “política” e aponta o significado trazido pelo dicionário inglês: “política” refere-se a uma linha de ação adotada por ser vantajosa ou oportuna, sendo especialmente aplicável a linhas de ação adotadas por órgãos governamentais.[35] Para MacCormick a política é a complexa linha de ações articuladas no sentindo de atingir o objetivo postulado (que também pode ser chamado de “meta da política”)

Contrário ao entendimento adotado pela teoria Dworkiniana as esferas do princípio e da política não são distintas e mutuamente opostas, mas irremediavelmente entrelaçadas:

Expressar a conveniência de alguma meta geral de política e enunciar um princípio. Enunciar um princípio é estruturar uma possível meta política. Faz, portanto, total sentido (e corresponde à verdade) dizer tanto que os tribunais britânicos têm uma política permanente de garantir a imparcialidade em determinações judiciais e quase judiciais de todos os tipos, como que os princípios da justiça natural são princípios importantes do direito inglês e escocês.[36]

MacCormick discorda, mais uma vez, de forma veemente quanto ao emprego dos termos “princípio” e “política”. Salienta que endossa a teoria substantiva da moral e da política, segundo a qual os princípios fundamentais são os que determinam direitos (direitos de reivindicação).

Finaliza ponderando que suas críticas não o obrigam a definir princípios como algo que diz respeito exclusivamente a direito, assim como não o obriga a conceituar política, sob pena de gerar uma oposição artificial. Também não exigiria que ele declarasse que defensores de teoria opostas estão errados por definição, pois não é assim que se põe termo a discussões proveitosas.[37]

4.-CONSIDERAÇÕES FINAIS


Neste estudo analisamos os pontos de divergências entre a teoria do positivismo jurídico de Austin e Hart com a teoria de Dworkin, enquanto para os positivistas clássicos o direito é analise lingüística, para Dworkin é interpretação. Vimos que a construção doutrinária de Dworkin é sofisticada, mas, ainda sim, rendeu críticas de Neil MacCormick.

O ponto de embate dos autores está na distinção estabelecida por Dworkin sobre regras, princípios e políticas públicas e como esses fenômenos podem influenciar na decisão jurídica. Outro ponto, não menos importante, está na afirmação de Dworkin no sentido de que para as decisões jurídicas só existe uma decisão correta.

MacCormick, por sua vez, apresenta os princípios jurídicos como normas gerais postas em função de“racionalizar” as regras; nega que as regras existam em virtude de princípios jurídicos, ao invés de princípios morais ou políticos; para o autor, os princípios são postos tão somente em função de legitimar a justificação consequêncialista. Critica a distinção de princípios e políticas públicas de Dworkin, sustentando as esferas do princípio e da política não são distintas e mutuamente opostas, mas irremediavelmente entrelaçadas.

4.- REFERÊNCIAS


DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.Cap.2:

MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. In:_______. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Bastos. São Paulo. Martins Fontes. 2006, p. 299-344

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Seminário de Teoria da Interpretação e da Decisão Jurídica. In:_________. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Agosto-2011. P.268-338.



[1] Mestrando em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil pelo CEPG, Faculdade de Direito de Varginha; advogado militante e professor universitário pelo Centro Universitário de Lavras – UNILAVRAS.
[2] Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário de Lavras – UNILAVRAS.
[3] SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Seminário de Teoria da Interpretação e da Decisão Jurídica. In:_________. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Agosto-2011. pp. 268-269.
[4] Ibid. p. 270.
[5] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério; trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 27.
[6]HART, H. L. A. The concept of Law. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 100. Apud SIMIONI, Op. Cit. p. 271.
[7] Para Simioni: O problema do positivismo é que ele reduz o direito à lei ou a textos que representam convenções políticas e mais: reduz o conteúdo desses textos a uma questão empírica de verdade ou falsidade. A pergunta positivista então fica reduzida à questão dos diversos significados possíveis de um texto jurídico, de um lado, e ao ajuste – subsunção – desse significado com os fatos empíricos. Ela não permite questionar a influência que as convicções morais do intérprete exerce sobre a sua prática de interpretação. Mas o direito não é somente uma questão de fato, tampouco é somente uma questão de interpretação semântica de textos jurídicos. O direito é também uma questão de convicção moral, uma questão de princípio. E as divergências na prática do direito não são só divergências empíricas, são também divergências a respeito dos próprios fundamentos do direito e divergências sobre convicções morais importantes. De modo que, se o direito não é somente uma questão empírica, então as soluções jurídicas não são somente questões de prova da verdade ou de argumentação racional. Mas que isso, se o direito é também uma questão de justificação adequada e de coerência com convicções morais importantes, então a prática do direito só pode ser uma prática interpretativa. (SIMIONI. Op. Cit. p. 272)
[8] Ibid. p. 272.
[9] Ibid. p. 276.
[10] Ibid. p. 277.
[11] Ibid. p. 277.
[12] “Segundo Humberto Ávila regra e princípio são institutos diversos, cada um deles tem características e finalidades próprias, tendo por conseguinte modos de interpretação diferentes. A expressão regra vem de regula que significa padrão e norma vem de normal. Toda regra tem como finalidade dispor acerca de situações que normalmente acontecem. Sendo assim, a regra muitas vezes pode abranger casos demais, mas nunca casos de menos, situações normais que deverá incidir.” (ÁVILA, Humberto, em aula ministrada na Escola Judicial do TRT da 4ª Região, 2009. Apud SANTOS JÚNIOR, Rubens Fernando Clamer.PRINCÍPIOS E REGRAS: AS LIÇÕES TRAZIDAS POR DWORKIN)
[13] DWORKIN. Op. Cit. p. 39.
[14] SIMIONI. Op. Cit. pp. 277-278.
[15] Ibid. p. 278.
[16] DWORKIN. Op. Cit. p. 42.
[17] SIMIONI. Op. Cit. p. 280.
[18] Ibid. p. 280.
[19]DWORKIN, Ronald. Law`s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 255-256 (tradução livre) apud SIMIONI. Op. Cit. p. 328.
[20]SIMIONI. Op. Cit. p. 328.
[21] Ibid. p. 329.
[22] Neil MacCormick nasceu em 27 de maio de 1941, na cidade Glasgow, Escócia, formou-se em Filosofia e Língua Inglesa pela Universidade de Glasgow e cursou Direito na Snell Exhibitioner to Balliol College, Oxford. Em 1972, MacCormick foi indicado como professor da Universidade de Edinburgh, onde permaneceu até 2008, lecionando matérias de direito público e direito internacional. O professor também atuou na Royal Society of Edinburgh, como vice-presidente entre 1991 e 1994, recebendo a medalha real em 2004. Representou a Escócia no Parlamento europeu, foi membro da Convenção sobre o Futuro da Europa e diretor do Partido Nacional Escocês (SNP). Deixou amplo legado para a filosofia e teoria do direito. Teve duas obras publicadas no Brasil, ambas pela editora Martins Fontes, uma delas em 2006, a “Argumentação jurídica e teoria do direito”,traduzida por Wáldea Barcelos. MacCormick faleceu em 05 de abril de 2009.
[23] MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. In:_______. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Bastos. São Paulo. Martins Fontes. 2006, p. 321.
[24] Ibid. p. 327.
[25] Ibid. p. 197.
[26] Ibid. p. 311.
[27] Ibid. p. 333.
[28] Ibid. p. 333.

[29] Este conceito foi proposto por Sir David Ross, em 1930. Ele propunha que não há, nem pode haver, regras sem exceção. O dever prima facie é uma obrigação que se deve cumprir, a menos que ela entre em conflito, numa situação particular, com um outro dever de igual ou maior porte. Um dever prima facie é obrigatório, salvo quando for sobrepujado por outras obrigações morais simultâneas. Esta proposta já havia sido utilizada pelo Tribunal Constitucional Alemão.

Bellino denomina os deveres prima facie de deveres penúltimos. Cattorini propos que os deveres prima facie são válidos, geralmente, de maneira relativa. Quando ocorre um conflito entre deveres deve ser tomada a decisão de qual deve ser tomado como prioritário, nesta circunstância. Cada dever deve ser cotejado com os demais e, dentro da complexidade inerente ao sistema, analisado em conjunto para evitar conflitos de ações e efeitos indesejados.
A melhor denominação talvez seja a de deveres priorizáveis, isto é, que quando comparados entre si podem ser priorizados de acordo com a circunstâncias.
Segundo Ross, os deverem prima facie podiam ser categorizados como:

1. Deveres para com os outros devido a atos prévios de você mesmo

Fidelidade (manter as promessas...)

Reparação (compensar as pessoas c=por danos ou lesões causadas)

Gratidão (agradecer às pessoas pelos benefícios que conferiram a você)

2. Deveres para com os outros não baseados em ações prévias

Beneficência (ajudar aos outros em necessidade)

Não Maleficência (não causar danos a outros sem uma razão poderosa)

Justiça (tratar os outros de forma justa)

3. Deveres para consigo mesmo

Aprimorara-se física, intelectual e moralmente para alcançar o seu pleno potencial

[30]Ibid. p. 335.
[31]Ibid. p. 336.
[32]Ibid. p. 337.
[33]Ibid. p. 338.
[34] Ibid. p. 341.
[35] Ibid. p. 341.
[36] Ibid. p. 343.
[37] Ibid. p. 344.

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...