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terça-feira, 26 de agosto de 2014

METÁFORAS E METONÍMIAS INCONSCIENTES (DES)CONSTROEM SENTIDOS NAS DECISÕES


Metáforas e metonímias inconscientes (des)constroem sentidos nas decisões


Por Marco Aurélio Marrafon


A decisão judicial é, antes de tudo, um ato complexo de produção de sentido de algo. O decidir juridicamente se desenvolve enquanto processo cognitivo que depende de inúmeros condicionantes, muitos dos quais não controláveis racionalmente. No entanto, a exigência de segurança jurídica impõe deveres doutrinários e constrangimentos normativos no intuito de tornar esse ato o menos discricionário possível.

Assim como toda boa receita necessita de um bom diagnóstico prévio, o primeiro grande desafio a ser enfrentado para superar essa problemática é a busca dos vetores de sentido discursivo que são determinantes no resultado final. Ao descrever adequadamente o fenômeno, aumentam-se as chances de uma prescrição adequada.

Nesse contexto, partindo da teoria do signo de Saussure e avançando na análise da linguística e sua importância para o direito, a coluna de hoje busca sintetizar algumas lições do querido mestre Jacinto Coutinho, que tem se dedicado ao estudo aprofundado da relação entre linguagem, psicanálise e decisão judicial em suas aulas no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, desnudando os processos ocultos de (des)construção dos sentidos, especialmente quando giros metafóricos ou metonímicos subvertem a possibilidade de um julgamento racional.

Eixos de combinação e de seleção na formação do sentido
A linguística sincrônica de Saussure se preocupa com o estudo da língua em estado isolado do tempo (corte transversal) como um sistema. Nele, as palavras ganham sentido em razão da função que desempenham na frase, quando relacionadas com os demais elementos do sistema linguístico.

Isso significa que a produção de significado se dá inicialmente no âmbito interno da oração (analítica). Por exemplo, dizer que “Getúlio Vargas foi um grande homem” não é o mesmo que dizer que “Getúlio Vargas foi um homem grande”, até porque a última frase seria facilmente desmentida em face da notória baixa estatura do ex-presidente.

Nesse caso, a simples troca de lugar da palavra “grande” gera uma alteração significativa do sentido da expressão. Essa relação ocorre em virtude da composição de palavras com funções diferentes — sujeito, verbo, predicado e suas adjetivações. Saussure denomina relações deste tipo de sintagmáticas, as quais se realizam no “eixo da combinação” e decorrem do caráter linear dos significantes, que não podem ser simultâneos e se formam na presença de dois ou mais termos, em que o sentido de um depende da posição do outro, que o precede ou o sucede[1], numa série efetiva[2].

A abordagem lógico-analítica do texto, contudo, é insuficiente para a aferição do sentido. O texto demanda o contexto para fazer sentido. Na linguagem heideggeriana, diríamos que o logos apofântico é sustentado pelologos hermenêutico, base material da compreensão no mundo vivido.

Como ainda não estamos avançando nas propostas da hermenêutica filosófica, por ora retomamos Saussure, que percebe a existência de outro eixo, o da seleção, de grande interesse para o estudo das funções do signo e também para a identificação das figuras de linguagem, sustentadas justamente pelo sentido oculto no contexto em que se fala.

No eixo da seleção se desenvolvem as relações associativas (também denominadas paradigmáticas) que ocorrem entre signos suscetíveis de figurarem no mesmo ponto, podendo variar ou não o sentido. O importante é que haja uma associação mental que pode ser de sinônimo, antônimo ou mesmo mera semelhança sonora ou escrita. Por isso, elas se dão na ausência ou substituição[3].

Essas relações podem ser visualizadas da seguinte maneira:



No eixo da combinação, há a junção de palavras com funções diferentes João+é+culpado (sujeito+verbo+predicado) que produzem sentido quando colocadas em conjunto, na presença simultânea de uma com a outra. No exemplo de Getúlio, citado anteriormente, fica claro como uma mudança nesse eixo também produz mudança no sentido.

Já no eixo da seleção, a troca da palavra “culpado” por “inocente” — que desempenham a mesma função na frase — revela uma operação de substituição que inverte completamente o resultado.

Giros metafóricos e metonímicos
Ao investigar as metáforas e metonímias a partir dos eixos da linguística sincrônica de Saussure e aplicá-las ao estudo das funções da linguagem, o linguista russo Roman Jakobson nota que a função poética promove ao menos duas rupturas na análise da estrutura convencional da língua: i) no plano da expressão, onde, em nome da sonoridade, ritmo e entoação, prefere-se a opacidade em detrimento da transparência e ii) no plano das associações de elementos da língua, uma vez que ela combina, no sintagma, elementos similares, fugindo da normalidade em prol da sonoridade.

Essas rupturas acontecem porque, na função poética, existe a possibilidade de projeção do princípio da equivalência (próprio do eixo da seleção, onde normalmente há a substituição de expressões com mesma função), sobre o eixo da combinação (sintagmático), fazendo com que a equivalência seja promovida a recurso constitutivo da sequência. Ou seja, de maneira mais clara: em casos como este, palavras com a mesma função são combinadas[4].

Um exemplo deixa claro esse recurso: a mensagem “Pesque o peixe” — “Pague o peixe”, torna-se simplesmente “Pesque e pague”, onde os elementos similares (pesque – pague) estão combinados sequencialmente. O mesmo recurso poético aparece na célebre frase atribuída a Júlio César: “Vim, Vi e Venci”. Normalmente, uma frase apenas composta de verbos não faz sentido algum.

Tais análises permitem a Jakobson confirmar que a linguagem possui uma estrutura bipolar onde, no desenvolvimento de um discurso, um tema pode levar a outro por similaridade ou por proximidade (contiguidade)[5]. Nesses casos, pode haver mudança no sentido constituído pelo significante convencionalmente posto por meio das duas principais figuras da linguagem: a metonímia e a metáfora[6].

As relações de contiguidade são marcas do processo metonímico que, segundo Jakobson, se realizam “como projeções da linha de um contexto habitual sobre a linha de substituição e seleção; um signo (garfo, por exemplo), que aparece ordinariamente ao mesmo tempo que outro signo (faca, por exemplo) pode ser utilizado no lugar desse signo”[7]. A metonímia também é chamada de sinédoque quando indica a substituição da parte pelo todo, ou vice-versa.

Na música Luz dos Olhos — de Nando Reis e Andréia Martins — encontramos farta utilização desses recursos. A frase “pus nos olhos vidros para poder melhor te enxergar” indica claramente uma metonímia/sinédoque, uma vez que a palavra “vidros” não está ali colocada em seu sentido comum, mas antes aparece combinada com outros elementos na oração que deixam claro se tratar de um substitutivo para “óculos”. É a combinação que permite essa construção de sentido.

Já a metáfora é caracterizada pelas relações de similaridade, nas quais um termo metafórico é substituído por outro[8], operação permitida em razão de algum elemento comum e oculto entre eles, que sustenta a possibilidade da troca de significantes. É o que ocorre, por exemplo, quando dizemos: “Parabéns por mais uma primavera!” referindo-se a “aniversário”. Essa troca só é possível porque algo oculto sustenta o sentido, talvez a ideia de recomeçar/ renovar a vida com um senso de juventude, frescor e esperança, próprios da primavera e da entrada em uma nova idade.

Transpondo essas lições para o campo da psicanálise e suas implicações no problema cognitivo da decisão judicial, compreende-se que, uma vez aceita a tese de Lacan de que o inconsciente é estruturado como linguagem[9] — ou seja, o inconsciente entendido como uma cadeia de significantes constituídos em outra lógica a partir de discursos, opiniões e desejos externos internalizados e organizados paralelamente à cadeia pré-compreensiva do Eu-sujeito consciente[10] — conclui-se que, por vezes, ele [inconsciente] faz irromper sentidos antecipados e expressões das quais não se tem controle, que substituem e tomam o lugar de signos pertinentes na cadeia linguística, gerando novas e diversas significações.

Isso é possível através de processos metonímicos e metafóricos que, aparentemente, se realizam nos moldes já percebidos por Jakobson, ou seja, a partir de novas combinações e/ou trocas de signos nos eixos estruturais da linguagem.

A metonímia se revela na incorporação discursiva do conceito freudiano de deslocamento, que leva ao direcionamento da carga emotiva reprimida para algo que lhe aparece numa relação de contiguidade. No exemplo trazido por Rosenfield, a aversão a um tio que usava bengalas pode ser deslocada para a própria bengala, já que ambos apareciam sempre combinados, justapostos[11].

Nessa operação, é o “recalque” (a barra entre significante e o significado), que faz com que “dentro de todas as possibilidades de sentidos das combinações da materialidade do significante, só permite produzir ‘um’ sentido”[12], tornando possível a compreensão de que, a metonímia, ao edificar relações contíguas e contextuais, é o mecanismo que doa o sentido permitido pelo recalque, ou seja, o sentido que conseguiu burlar esse filtro de significação[13].

Já a substituição de significantes na metáfora é possível porque Lacan atribui a ela a incorporação do conceito freudiano de condensação, o qual, nas resumidas palavras de Rosenfield, “é o processo psíquico mediante o qual as similaridades são reunidas e enfatizadas, às custas das diferenças.”[14].

Decisão sem compreensão
A partir dessa constatação, é possível perceber porque é bastante comum a ocorrência desses giros linguísticos movidos pelo inconsciente, fazendo com que a antecipação de sentido nada tenha de racional. O exemplo clássico de substituição inconsciente metafórica é o da troca da expressão “meus pêsames” por “parabéns”, ao cumprimentar a viúva em razão da morte do marido que a maltratava — ou ainda, ao alterar o significante no signo sem alterar o conceito — isto é, a pessoa ouve o som “meus pêsames” mas o significa como “parabéns”.

Esses giros podem ocorrer também através da reorganização das palavras (ou de seu conteúdo) no eixo da contiguidade, através de um processo metonímico que promova novas formas de combinação de significantes.

Quando isso ocorre, pode-se afirmar que surge uma decisão a partir da não-compreensão, justamente porque é movido pelo inconsciente que trabalha com outra lógica, com uma racionalidade que foge das nossas possibilidades de entendimento. Nesses casos, como lembra Jacinto Coutinho, as metáforas e metonímias “esvaziam de sentido (ou conteúdo) preestabelecido qualquer palavra que ganhe um giro marcado pela força pulsional, logo, determinada pelo inconsciente”[15]. Uma vez tomada a decisão, o resto é justificação argumentativa.

No processo judicial, especialmente o penal, essa substituição pode ganhar ares dramáticos quando “João” deixa de ser inocente para ser culpado por meio de uma antecipação inadequada, motivada por uma aversão (à pessoa, à roupa, a seu modo de falar) inconsciente que desloca os sentidos: a defesa não é ouvida, toda a acusação é confirmada pelo filtro do desejo — especialmente quando se está diante de um justiceiro que quer preservar a legalidade violando a legalidade.

Imagine-se quantos giros podem ocorrer durante a narração de um crime pela testemunha, enquanto o juiz a ouve e atribui conteúdo às palavras a todo instante. O mesmo vale para o estudo dos fatos e da legislação aplicável.

Sem a percepção desses fenômenos, ainda é comum na práxis judicial a colocação de palavras com eminente caráter retórico (no lugar daquilo que se deveria compreender), utilizadas para justificar decisões judiciais que revelam, tão somente, as idiossincrasias do órgão judicante.



[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 25 ed. , trad. Antonio Chelini et all. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 142-143.


[2] PIETROFORTE, Antonio Vicente. A língua como objeto da lingüística. In: FIORIN, José Luiz (org). Introdução à lingüística: I. objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 88.


[3] Ibid., p. 89.


[4] JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: In: JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. 19 ed. trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 118 e ss.


[5] JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação..., p. 55 e ss.


[6] SOUZA LEITE, Márcio Peter de. A negação da falta: cinco seminários sobre Lacan para analistas kleinianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, p. 49.


[7] Id.


[8] JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia..., p. 61.


[9] LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20: mais ainda. 2 ed. trad. M.D. Magno. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 65-66.


[10] Cf. FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 28.


[11] ROSENFIELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. trad. Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 68.


[12] SOUZA LEITE, Márcio Peter. A negação..., p. 48.


[13] LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. Trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 242.


[14] ROSENFIELD, Michel. A identidade...,p. 61.


[15] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Dogmática crítica e limite lingüísticos da lei. In: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (orgs.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 225.


Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.



Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2014, 18:42

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Gustav Rdbruch e seu pensamento em "Cinco Minutos de Filosofia do Direito"


Gustav Radbruch e seu pensamento em “Cinco Minutos de Filosofia do Direito”


Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o jurista alemão Gustav Radbruch (1878-1949) distribuiu uma circular para seus alunos de Direito na Universidade de Heildelberg[1]. O texto é emblemático, vale como alerta, deve ser recebido com o respeito devido a quem foi afastado da cátedra, ainda em 1933, por opor-se ao nazismo, ainda que, bem entendido, em seus escritos da década de 1920 possa se evidenciar uma adesão quase que ilimitada ao positivismo.

Cinco Minutos de Filosofia do Direito é fragmento que supõe retomada do jusnaturalismo, insumo conceitual que orientará algumas linhas jusfilosóficas da segunda metade do século XX, e que se desdobraram de alguma forma no neoconstitucionalismo, paradoxalmente também batizado de neopositivismo. Com o fim da guerra, Radbruch dirigiu a Faculdade de Direito em Heildelberg. Morreu sem a possibilidade de acompanhar o trabalho do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha.

O humanismo de Radbruch é também marcado por sua passagem pela Cruz Vermelha, onde atuou como voluntário. Sua ação política foi marcada por militância entre grupos socialistas, bem como por sua atuação como deputado e como ministro de Justiça durante a República de Weimar.

Para Radbruch, “ordens são ordens, é a lei do soldado[2]”. A afirmação, tomada isoladamente, justificaria a posição dos alemães julgados em Nuremberg, e de todos os que foram posteriormente processados, inclusive entre os próprios alemães e no que se refere às próprias consciências[3]. Além do que, continua, “a lei é a lei, diz o jurista”[4]. Explicando o tempo que a Alemanha acabava de viver, isto é, os anos do nacional-socialismo, afirmou que “ao passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber que a ordem recebida visa a prática dum crime, o jurista, desde que há cerca de cem anos desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece exceções deste gênero à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes devem[5]”. Concluiu esse primeiro minuto culpando o positivismo pelo pesadelo nazista, do ponto de vista jurídico:


“Esta concepção de lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro”[6] .

No segundo minuto Radbruch criticou outro dogma da filosofia nacional-socialista do direito, para a qual o direito deveria se identificar com uma imaginária utilidade popular. E assim:


“Pretendeu-se completar, ou antes, substituir este princípio por est’outro: direito é tudo aquilo que for útil ao povo. Isto quer dizer: arbítrio, violação de tratados, ilegalidade serão direito desde que sejam vantajosos para o povo. Ou melhor, praticamente: aquilo que os detentores do poder do Estado julgarem conveniente para o bem comum, o capricho do déspota, a pena decretada sem lei ou sentença anterior, o assassínio ilegal de doentes, serão direito. E pode até significar ainda: o bem particular dos governantes passará por bem comum de todos. Desta maneira, a identificação do direito com um suposto ou invocado bem da comunidade, transforma um “Estado-de-Direito” num “Estado-contra-o-Direito”. Não, não deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só o que for direito será útil e proveitoso para o povo”[7].

A obsessão dos teóricos do nacional-socialismo com a tese de que o Führer revelava em suas ações a vontade do povo, o que inclusive fixava um princípio interpretativo do direito (Führerprinzip), marcou um populismo chauvinista que subverteu a ordem jurídica e os comprometimentos dessa com os ideais de justiça e de respeito à pessoa humana. Radbruch aproximou direito e justiça na reflexão que tomava o terceiro minuto, passo no qual repudia todas as leis que carreguem alguma injustiça:


“Direito quer dizer o mesmo que vontade e desejo de justiça. Justiça, porém, significa: julgar sem consideração de pessoas; medir a todos pelo mesmo metro. Quando se aprova o assassínio de adversários políticos e se ordena o de pessoas de outra raça, ao mesmo tempo que ato idêntico é punido com as penas mais cruéis e afrontosas se praticado contra correligionários, isso é a negação do direito e da Justiça. Quanto as leis conscientemente desmentem essa vontade e desejo de justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os direitos naturais da pessoa humana, então carecerão tais leis de qualquer validade, o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os primeiros a recusar-lhes o caráter de jurídicas”[8].

No quarto minuto Gustav Radbruch explicita que o bem comum também é finalidade do direito, ainda que, por força de circunstâncias que fogem ao controle daqueles que tem comprometimento com a justiça, não se consiga retirar a juridicidade de normas injustas:


“Certamente, ao lado da justiça o bem comum é também um dos fins do direito. Certamente, a lei, mesmo quando má, conserva ainda um valor: o valor de garantir a segurança do direito perante situações duvidosas. Certamente, a imperfeição humana não consente que sempre e em todos os casos se combinem harmoniosamente nas leis os três valores que todo o direito deve servir: o bem comum, a segurança jurídica e a justiça. Será muitas vezes, necessário ponderar se a uma lei má, nociva ou injusta, deverá ainda reconhecer-se validade por amor da segurança de direito; ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade lhe deverá ser recusada. Mas uma coisa há que deve estar profundamente gravada na consciência do povo e de todos os juristas: pode haver leis tais, com um tal grau de injustiça e de nocividade para o bem comum, que toda a validade até o caráter de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes ser negados”[9].

No quinto minuto, último dessa rápida reflexão, Gustav Radbruch invoca um direito supralegal, protestando por princípios fundamentais que orientam o direito e que transcenderiam o direito positivo, retomando um jusnaturalismo que também nominou de jusracionalismo:


“Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direto natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em graves dúvidas. Contudo o esforço de séculos conseguiu extrair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações dos direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá ainda levantar quaisquer dúvidas. Na linguagem da fé religiosa estes mesmos pensamentos acham - se expressos em duas passagens do Novo Testamento. Está escrito numa delas (S. Paulo, Aos romanos, 3,1): “deveis obediência à autoridade que exerce sobre vós o poder”. Mas, numa outra (Atos dos Apost., 5, 29) está escrito também: “deveis mais obediência a Deus do que aos homens”. E não é isto aí, note-se, a expressão dum simples desejo, mas um autêntico princípio jurídico em vigor. Poderia tentar-se resolver o conflito entre estas duas passagens, é certo, por meio de uma terceira, também do Evangelho, que nos diz: “dai a Deus o que é de Deus e a César que é de César”. Tal solução é, porém, impossível. Esta última sentença deixa-nos igualmente na dúvida sobre as fronteiras que separam os dois poderes. Mais: ela deixa afinal a decisão à voz de Deus, àquelas voz que só nos fala à consciência em face de cada caso concreto”[10].

Esse pequeno excerto de Radbruch, e que pode ser lido em cinco minutos, é permanente convite para uma compreensão humana do Direito, no sentido de que seu reconhecimento dependa prioritariamente do sentido absoluto de justiça que possa qualificar.

Nesse sentido, a guinada de Radbruch para o jusnaturalismo, para alguns uma correção de rota, e para outros a continuidade de uma linha conceitual que se aperfeiçoava e qualificava[11], é sintoma muito nítido de que a apologia ao jusnaturalismo é recorrente em instantes que sucedem a ditaduras, o que poderia identificar no neoconstitucionalismo um roteiro histórico parecido, a exemplo de sua ressonância em países como Espanha, Portugal, Itália, Argentina, Colômbia e, principalmente, no Brasil.
[1] Há versão desse excerto em Radbruch, Gustav, Filosofia do Direito, Coimbra: Antonio Amado, 1979, pp. 415-418. Tradução de L. Cabral de Moncada.
[2] Radbruch, Gustav, cit., p. 415.
[3] Conferir, no caso, Kempowski, Walter, Haben sie dabon gewusst?, Hamburg: Albrecht Knaus Verlag, 1979.
[4] Radbruch, Gustav, cit., loc. cit.
[5] Radbruch, Gustav, cit., loc. cit.
[6] Radbruch, Gustav, cit., loc. cit.
[7] Radbruch, Gustav, cit., p. 416.
[8] Radbruch, Gustav, cit., loc. cit.
[9] Radbruch, Gustav, cit., p. 416.
[10] Radbruch, Gustav, cit., loc. cit.
[11] Esse tema é objeto de ensaio de Vigo, Rodolfo Luís, La injusticia extrema no es derecho (de Radbruch a Alexy), Buenos Aires: La Ley- Universidad de Buenos Aires, Faculdad de Derecho, 2006.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.



Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2014, 08:00h

sábado, 21 de junho de 2014

Teoria do Direito deve contemplar principais discussões contemporâneas


Teoria do Direito deve contemplar principais discussões contemporâneas






No mês passado, foi publicada pela editora Revista dos Tribunais, a segunda edição do livro, Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito que escrevi em parceria com Georges Abboud e Henrique Garbellini Carnio. A obra conta, ainda, com o prefácio de Nelson Nery Júnior e o posfácio de Lenio Streck.





O livro foi pensado a partir de um diagnóstico claro com relação ao estado das disciplinas de formação nos quadros do curso de Direito. Em especial, a Filosofia e a Teoria do Direito. Há um certo descompasso entre aquilo que é objeto de debate na contemporaneidade e aquilo que compõe as ementas institucionalizadas nos diversos cursos de Direito deste país. Há fatos que servem de amostra para isso. A perplexidade expressada em alguns comentários à coluna de Lenio Streck dessa última quinta-feira (19/6) serve como um bom exemplo. Ora, apesar de tudo o que se discute e se discutiu sobre o problema da decisão judicial desde o início do século XX, somos ainda bombardeados por acepções que separaram ser de dever ser, prescrição de descrição etc., em afirmações do tipo: “isso — a decisão variar de acordo com a alimentação ou a problemas familiares — é assim mesmo”. Ou ainda, “o juiz não é uma máquina”; “o juiz é gente como a gente”... Minha perplexidade é: porque precisamos de pesquisas para dizer algo que, pelo menos desde a discussão em torno do problema das lacunas, do realismo jurídico e do movimento do direito livre, já sabemos no âmbito da Teoria do Direito?


A resposta começa, certamente, por tentativas de reconstruir o discurso em torno da Teoria do Direito e pontuar aquilo que são as principais discussões que nos envolvem em nossos dias atuais.


É a isso que a obra citada se propõem. Trata-se, na verdade, de um livro preparado com o objetivo de introduzir aos problemas fundamentais do conhecimento jurídico os estudantes e pesquisadores do Direito. O livro pretende-se como uma espécie de “guia de leitura” que objetiva posicionar corretamente tanto o calouro que ensaia os primeiros passos no universo da juridicidade, quanto o profissional que se lança nos tortuosos caminhos da pós-graduação, no interior do discurso teórico-filosófico articulado contemporaneamente no campo do direito.


Cuida-se de uma introdução ao Direito que não foi pensada como um inventário de matérias acumuladas historicamente pelo conhecimento jurídico em torno dos temas que classicamente compõem os interesses da Teoria Geral do Direito e da filosofia jurídica, como justiça, hermenêutica, metodologia, teoria da norma, fontes, moral e interpretação.


Não optamos, portanto, pela facilidade oriunda de uma exposição linear e cronologicamente simplificada de tais temas, pois entendemos que uma tal abordagem não se mostra apta a depreender toda a complexidade do fenômeno jurídico. Mais importante do que ter contato perfunctório sobre os mais diversos aspectos do pensamento jurídico é conseguir colocar-se em condições de diálogo com este pensamento.


Nessa medida, Martin Heidegger[1] afirmava que: “introduzir à filosofia significa pôr o filosofar em curso”, isto é, o fundamental para se aprender a filosofia é filosofar, daí sua metáfora de que não seria possível aprender a nadar por meio de manual de natação, mas tão somente nadando.[2] De modo similar, nosso intuito é justamente estabelecer a aproximação do pensamento jurídico que possibilite aos leitores um manejo adequado das principais polêmicas que povoam a contemporaneidade jurídica.


Ou seja, não se pode aprender Direito simplesmente observando-o do lado de fora. Mais precisamente, não se compreende o Direito a partir de mero receituário com diversos conceitos abstratos e superficiais. Conscientes de que no conhecimento jurídico não existem posicionamentos teóricos unânimes e incontroversos, optamos por encará-lo a partir de sua complexidade e de sua predisposição para a polêmica. Tal qual já afirmou Dworkin, a controvérsia é o coração do argumento jurídico. Daí que a melhor forma de se trabalhar seus conceitos é a partir dos problemas que a própria operacionalidade do Direito propicia.


Isso significa projetar o horizonte adequado para abrir os contextos significativos em que os problemas do conceito e definição do direito; da fundamentação e da validade jurídica e de como são decididas as questões jurídicas. Tais pontos não podem ser pensados fora da dimensão filosófica que os abarca e que apresenta como questão principal a relação entre saber teórico e saber prático e suas consequências para o conhecimento jurídico.


Assim, optamos por estruturar a obra a partir do eixo fundamental de três perguntas: O que é o Direito? O que fundamenta o Direito? Como são decididas as questões jurídicas? Cada uma dessas perguntas é respondida no desenrolar de dez capítulos.


De todo modo, fato é que, para muitos juristas, o jurídico está para o direito assim como a “cavalice”[3] está para o cavalo. De nosso ponto de vista, contudo, o Direito é complexo, dinâmico, histórico e conflituoso, o que impede a formulação de qualquer estratégia essencialista para definição de um único conceito que defina toda a gama de possibilidades que se projetam a partir do jurídico. Sendo assim, uma, ainda que simples e breve, introdução ao Direito, para cumprir seu desiderato, de forma teoricamente honesta, não pode ser esquematizada, simplificada, condensada, entabulada, plastificada etc.[4]


Aliás, como já afirmado, vivemos hoje um momento de apreensão com relação às assim chamadas disciplinas de formação do curso de Direito. Um breve euforia inicial em face do reconhecimento oficial da dignidade de tais disciplinas em concursos para carreiras jurídicas — cujo marco foi a Resolução 75/2009 do CNJ — foi substituído por um sentimento de receio na medida em que o modo como os examinadores de tais concursos lidam com tais conteúdos é altamente questionável.


Os famosos cursinhos preparatórios — que se alastraram no universo jurídico como uma erva daninha, dando a impressão de que o encerramento da faculdade de direito seria uma espécie de segundo turno do ensino médio — passaram a incorporar em sua grade de matérias as disciplinas humanísticas. Evidentemente que o rescaldo desse fenômeno foi a tentativa de manipular tais conteúdos a partir dos esquemas, quadro mentais, resumos e outras tantas metodologias despistadoras que já eram empregadas para a análise das disciplinas técnicas ou dogmáticas.


Todavia, as disciplinas de formação estão inseridas no projeto daquela que, talvez, seja a mais imponente das utopias: o humanismo e seu ideal de formação do ser humano. Será que todo esse nobre propósito cabe nas caixas conceituais que, tradicionalmente, nos foram impostas para lidar com o conhecimento jurídico? Por certo que a resposta é negativa.


Com efeito, como nos lembra Peter Sloterdijk[5], em seu polêmico Regras para o Parque Humano, o humanismo está ligado à intenção de se formar uma grande comunidade de leitores; de seres humanos que deixam o estado da pura barbárie e se civilizam por meio da leitura de textos que transmitem, através de elos inscritos no passado, a tradição cultural que nos conforma. O autor nos lembra que, desde os dias de Cícero, aquilo que se chamahumanitas faz parte, no sentido mais amplo e no mais estrito, das consequências da alfabetização e se aperfeiçoa com o exercício da leitura. Ou seja, da possibilidade que se abre a partir da comunicação realizada à distância pela escrita.


O sempre aberto diálogo entre leitor e escritor é um convite à toda dimensão de complexidade que a vida engloba. Através desse diálogo somos chamados a refletir sobre angustias, frustrações, sucessos e problemas morais. A ideia é que a leitura nos torna mais humanos e nos distancia de nossa herança animal.


Não é a toa que grandes distopias como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley[6]; 1984, de Georg Orwell[7]; e Fahrenheit 451, de Ray Badbury[8]criavam um tipo de sociedade em que os livros — e consequentemente a escrita e a leitura — estavam banidos das atividades sociais e os seus indivíduos, justamente por isso, acabavam moldados por um coletivo acrítico e, portanto, aculturado. Não deixa de ser igualmente sintomático nesse sentido que, no livro de Huxley, por exemplo, é o Selvagem — alguém que está situado fora da ordem pré-estabelecida — quem descobre Shakespeare, lê suas obras e, a partir de então, começa a questionar as estruturas do establishment. Há um diálogo, extremamente marcante nesse sentido, no qual Mustafá Mond — o grande Dirigente daquela sociedade distópica de Huxley — afirma que a leitura de livros como os de Shakespeare era uma atividade proibida. O Selvagem, então, questiona o todo poderoso a respeito da proibição, ao que responde o dirigente: “porque é velho; — eis a principal razão. Aqui não temos aplicações para coisas velhas”.


As disciplinas, chamadas de formação humanística, são exatamente recheadas de “coisas velhas”. São elas que nos ligam ao passado. E é esse diálogo literário com o passado que nos constitui culturalmente.


Na verdade, não é apenas o ódio ao “velho” e o culto acrítico ao “novo” que marca o estilo dessas distopias. No livro de Ray Badbury, por exemplo, logo no início da narrativa, o Bombeiro Montag — lembrando que, na sociedade criada por Badbury, os bombeiros não combatiam incêndios. As casas eram “à prova de fogo”. Sua função era queimar os livros que, eventualmente, ainda existissem nas casas das pessoas — faz a seguinte consideração: “Os livros são o caminho da melancolia”. Eles seriam, enfim, um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino de uma humanidade conformada. Nessas sociedades distópicas, a ausência da leitura homogeiniza a todos.


Por certo que a simplificação, os quadro sinóticos, os quadros mentais, as rimas, as aulas travestidas, não queimam livros. Pelo menos não na sua literalidade. Todavia, produzem um certo tipo de atividade de pastoreio, de arrebanhamento que, paradoxalmente, é contraditória com qualquer princípio humanístico que guarnece a estrutura dessas disciplinas de formação.


Enfim, essa nossa introdução passa bem longe dessas pretensões. Ela trata o leitor com o respeito que ele merece e o convida para participar de um diálogo que nós não iniciamos e também não encerraremos. Todos somos apenas parte dessa comunidade intergeracional de leitores.


[1] Martin Heidegger. Introdução à filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2008.


[2] Martin Heidegger. Los problemas fundamentales de la fenomenologia.Madrid: Editorial Trotta, 2000.


[3] Cavalice é a essência de todo cavalo. James Joyce. Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 227.


[4] Sobre a “estandardização” do ensino jurídico, cf. Lenio Luiz Streck. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010, passim.


[5] Cf. Peter Sloterdijk. Regras Para o Parque Humano. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.


[6] Cf. Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Globo, 2009.


[7] Cf. George Orwell. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


[8] Cf. Ray Badbury. Fahrenheit 451. Rio de Janeiro: Globo, 2009.






Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).





Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2014, 08:00h

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Importância do pensamento de Hugo Preuss na Constituição de Weimar


Importância do pensamento de Hugo Preuss na Constituição de Weimar


Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Hugo Preuss (1860-1925) foi um dos principais mentores da Constituição de Weimar. Em 15 de novembro de 1918 foi alçado ao posto de Secretário do Interior (Staatssekretär des Inneren), nomeado pelo presidente Freiderich Erbert. Tinha a responsabilidade de redigir o núcleo do texto constitucional que se discutiria. A empreitada envolveu outros nomes importantíssimos do direito público alemão, a exemplo de Erich Kauffmann e de Max Weber.

Kauffmann era nacionalista e monarquista. Max Weber defendia uma maior aproximação entre o governo e a maioria parlamentar. A Alemanha vivia o fim da primeira guerra mundial e a transição de uma ditatura militar para um sistema parlamentar que então se esboçava. Em janeiro de 1919 convocou-se uma Assembleia Nacional que discutiria o novo texto constitucional, engendrado a partir das postulações de Preuss.

Hugo Preuss era um social-democrata, defensor da soberania dos órgãos locais e comunais. Burguês identificado com a esquerda liberal, Preuss afeiçoava-se a ideias liberais, democráticas e socialistas. Defendia o fim do Estado autoritário (Obrigkeitsstaat) e pregava um Estado republicano (Volksstaat). Questionava a existência dos pequenos Estados alemães, cuja legitimidade era apenas dinástica. Seu interesse central estava em um modelo de auto-organização de uma cidadania livre, cujas diretrizes politicas seriam fixadas por comandos locais[1].

Hugo Preuss era de uma família de judeus. Sua mãe enviuvou quando Preuss ainda era criança, tendo posteriormente se casado com um cunhado, um bem sucedido negociante. Estudou Direito em Berlim e em Nuremberg. Sua fonte de inspiração intelectual fora o juspublicista Otto Von Gierke. Doutorou-se pela Universidade de Göttingen, onde apresentou tese sobre a evicção, que compôs com base em estudo de textos do Direito Romano. Sua tese de Habilitationsschrift (mais alto nível título acadêmico conferido na Alemanha, que guarda semelhanças com a tese de livre-docência que há no Brasil) tratou sobre as relações federativas, a partir da hipótese de que municípios, unidades federadas e unidade central funcionariam como corporações territoriais. A tese foi defendida na Universidade de Berlim, em 1890, carregado com o pomposo título “Gemeinde, Staat und Reich als Gebietskörperschafen” (“Municipalidade, Estado e União como Corporações Territoriais”).

Hugo Preuss casou-se com a filha de um professor de química. Teve três filhos. Ao que consta, por ser judeu e liberal, teria enfrentado muita resistência para obter uma cátedra. Em 1906 foi acomodado na Berliner Handelschochshule, um colégio de comércio, que não detinha o prestígio das grandes universidades alemãs. Em 1915 publicou “Das deustche Volk und die Politik” (“O povo alemão e a política”). No fim da monarquia afiliou-se ao“Deutsche Demokratische Partei- DDP”, o partido democrático alemão.

Muito influenciado pelo liberalismo alemão que remontava à Constituição de Frankfurt (1848), Preuss rejeitava o conceito clássico de soberania, reputando-o como “uma relíquia da tradição monárquica-burocrática-absolutista”[2]. Lutava pela mudança da sociedade alemã valendo-se das armas que possuía: caneta, estudo e pesquisa[3].

Obstinado com o tema do auto-governo (Selbstverwaltung), Hugo Preuss pregava o localismo contra a centralização que marcou o direito público alemão desde o movimento pela unificação, conduzido por Bismarck, e concluído ao fim da guerra franco-prussiana em 1871. A pequena burguesia e os trabalhadores industriais, insistia Preuss, deveriam participar da gestão da política local, com forte inspiração nos princípios de autonomia municipal. Em 1899 Preuss havia defendido uma professora judia de uma escola municipal a quem o Ministério da Educação pretendia dispensar. Invocava na defesa da professora que a autonomia educacional local não poderia ser desrespeitada por intrusão das autoridades centrais.

Preuss entendia que o direito público decorria do momento no qual a vontade do Estado deveria ser diferenciada da vontade de um soberano particular; isto é, para o nascimento do direito público fora necessário aoposição a senhores feudais que governavam seus territórios do mesmo modo que conduziam negócios e propriedades particulares. Foi ministro até 1919, quando o gabinete ao qual pertencia renunciou, protestando contra os termos e a aceitação do Tratado de Versalhes.

Hugo Preuss morreu em 1925. Não viveu os inúmeros problemas que a Constituição de Weimar suscitou na Alemanha, e que de alguma forma levaram ao triunfo do nacional-socialismo em 1933. Foi quando começou mais uma longa noite da história.
[1] A propósito de Hugo Preuss, conferir Stolleis, Michael, A History of Public Law in Germany- 1914-1945, Oxford and New York: Oxford University Press, 2008, pp. 53 e ss. Tradução de Thomas Dunlap. Schoemberger, Cristoph,Hugo Preuss, in Jacobson, Arthur J. e Schlink, Bernhard (ed.), Weimar- A Jurisprudence of Crisis, Berkeley: University of California Press, 2002, pp. 110 e ss. Tradução de Belinda Cooper. Sosa Wagner, Francisco, Maestros Alemanes del Derecho Publico, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2005, pp. 420 e ss. O presente ensaio foi concebido e redigido tendo essas três obras como fontes.
[2] Cf. Schoemberger, Cristoph, cit.
[3] Cf. Sosa Wagner, Francisco, cit.




Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.Topo da página

Revista Consultor Jurídico, 15 de junho de 2014, 08:00h

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O jurista Carl Schimitt e os experimentos de Von Pettenkofer

O jurista Carl Schmitt e os 
experimentos de Von Pettenkofer


Conta-nos Francisco de Sosa Wagner que em abril de 1945, logo após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em Berelim, um oficial russo prendeu o jurista Carl Schmitt. Schmitt, que faleceu em 1985, recorrentemente acusado de ter sido o defensor jurídico do ideário nazista, ainda que se reconheça, também recorrentemente, suas qualidades de juspublicista fino e argumentativo. O vínculo com o nacional-socialismo revela-se como uma maldição que acompanhou a tragetória desse pensador solitário, de poucos amigos, especialmente a partir do fim da guerra.

O oficial russo que interrovaga Schmitt centrava as perguntas na ligação do interrogado com o regime derrotado. Schmitt teria respondido que sua participação no regime nazista dera-se exatamente de acordo com o experimento de um sábio, Max von Pettenkofer,  químico e higienista bávaro, que viveu de 1818 a 1901.
Evidentemente, o oficial russo desconhecia o experimento do então citado sábio. Schmitt explicou que von Pettenkofer havia demonstrado que as infecções não se contraem apenas pela presença de um bacilo, mas também pela predisposição do sujeito que o aloja. Schmitt ainda explicou ao oficial russo que von Pettenkofer teria ingerido o bacilo da cólera na frente de alguns alunos, e que, provando a tese defendida, não contraiu a doença.
O oficial russo ainda nada teria entendido. A comparação, em princípio, não fazia sentido. Schmitt então concluiu que o mesmo havia ocorrido com ele. Isto é, ainda que ingerido o bacilo do nacional-socialismo, por essa moléstia não fora infectado... Portava o mal, porém a doença nele não se manifestara. Isto é, ainda que portador do bacilo do nacional-socialismo, argumentava Schmitt, essa patologia nele jamais se revelara. Sosa Wagner também nos conta que o oficial russo riu da pilhéria e que em seguida liberou o jurista.
Questiono se Schmitt de fato dissera a verdade. É dúvida que sugere excerto de texto de Schmitt, “O Füher protege o Direito” (que se encontra traduzido no belíssimo livro de Roberto Porto Macedo Júnior, agora em segunda edição, livro primoroso).
E ainda admitindo que Schmitt ao oficial russo falara a verdade, no sentido de que o nazismo não o afetou, o que provavelmente muitos disseram no contexto da desnazificação, verdadeira ou maliciosamente, essa instigante passagem retratada por SosaWagner provoca-nos uma reflexão em torno das relações éticas entre os intelectuais e o poder.

 é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2014, 08:00h

terça-feira, 13 de maio de 2014

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

 
Em recentes acontecimentos que tiveram lugar no território nacional, só possíveis no incrível realismo fantástico tupiniquim, tomamos conhecimento de que um número considerável de brasileiros não viram mal algum em trucidar, em linchamento público, uma pobre dona de casa, vizinha dos justiceiros, mãe de duas belas crianças, suportados na suspeita improvável e logo após desmentida de que a vítima, identificada pelos carrascos através de retrato falado de alguns anos, fosse praticante de uma mal explicada seita onde se sequestravam crianças para rituais de magia negra. É bom que se diga que a morta, sacrificada em holocausto à ignorância que pontifica em boa parte de nossa sociedade cordial, portava no momento do justiçamento público uma Bíblia, pois voltava, segundo o que divulgaram, de um culto evangélico. Quase no mesmo dia, torcedores de um grande time nordestino, confirmando a barbárie em que se transformaram os estádios brasileiros, revolucionaram a conhecida crueldade que informa a nossas “bem comportadas” torcidas organizadas, promovendo o arremesso de um vaso sanitário sobre a cabeça de torcedores rivais, matando um pobre e indefeso transeunte. Dias antes, duas mulheres teriam confessado, segundo a imprensa, a morte de uma criança de 11 anos.
Como todos sabem, não são eventos isolados. São apenas os exemplos mais próximos. Portanto, não podemos nos enganar: numa sociedade como a brasileira, sem dúvida das mais diversificadas do mundo (tanto do ponto de vista racial, como econômico, cultural, educacional e político), vai se tornando cada vez mais improvável que alguma instituição (igreja, estado, educação ou mesmo a família) tenha a capacidade de integrar minimamente os seus cidadãos. E ninguém quer compartilhar a responsabilidade pelo outro e pela esfera pública. A impressão que se forma é a de que somos todos campeões de direitos, mas temos incrível dificuldade de administrar os compromissos que os deveres correspondentes a esses direitos nos impõem. Mais do que isso, a sociedade não quer se vincular a valores mínimos que possam coordenar minimamente seu comportamento.
O mal não é só nosso, não obstante ganhe aqui notas de paroxismo. A ideia de que exista um fundamento último, uma ética essencial a atravessar a moral, a política e o Direito, com o qual poderíamos, em cada caso concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela melhor proposta política, ou sobre a melhor conduta no plano moral, ou sobre a melhor decisão no plano jurídico, funda-se na mesma perspectiva de uma mundo governado por uma razão única, em que, existindo boa vontade, poderíamos divisar sempre, e de forma indiscutível, o que é certo e o que é errado. A partir do ponto de vista que nos permitiria a representação da única resposta correta, torna-se possível moralizar a política e até mesmo o Direito. Assim se mostraria possível perscrutar no voto, ou na opinião, ou na decisão divergente, não apenas o desacordo do olhar, mas a imoralidade de não pensar corretamente, isto é, “de não pensar como nós, os intelectualmente capacitados e moralmente incorruptíveis, pensamos”. Contudo, e esse é o lado positivo, a realidade atual não é composta de uma verdade única. Esse é um mundo, com certeza, que não existe mais.
I. O lado bom da tolerância e da diversidadeComo bem sintetizado por Kundera, a verdade está mais para uma narrativa ambígua e insegura dos personagens de um romance do que para a certeza e a univocidade de uma teoria totalizante que se pretenda impor de fora da vida e da história pela autoridade indiscutível de algum filósofo predestinado (cito)[1]: “Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza, isso não exige menos força. (...) O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado. Nesse ‘ou — ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”
O mundo mudou. As ações morais já não podem contar com um ponto de referência certo e igualmente vinculativo em tudo e para todos. Com a incrível diferenciação funcional das complexas sociedades contemporâneas, os seus subsistemas (direito, política, imprensa, economia etc) passam a autogovernar-se por meio de códigos próprios e autônomos, que prescindem de critérios morais externos de uniformização. No quadro de uma moral fragmentada e cada vez mais sem capacidade de comunicar-se com os outros subsistemas (Niklas Luhmann)[2], a mesma conduta pode encontrar diferentes coeficientes de legitimação. O servidor público que se transformou em fonte de um jornalista para falar e expor toda a verdade de um fato tem uma conduta positiva no âmbito do subsistema da imprensa e da informação, mas, ao romper o sigilo profissional (artigo 154, do CP), ou quebrar o segredo de justiça de uma interceptação telefônica (artigo 10, da Lei 9.296/96), pratica uma conduta negativa no subsistema do direito e pode, inclusive, ser punido por isso.
II. As dificuldades jurídicas e morais da fragmentação dos valoresNum mundo mais tolerante e diversificado, já não temos uma moral que nos assegure a unidade de pensar e de agir, o que é bom, mas nos impõe seriíssimos desafios. Como será possível a coordenação (inclusive jurídica) de condutas com base em parâmetros comuns numa sociedade de valores tão fragmentados? E, mesmo num quadro de fragmentação moral, muito embora exigíveis limites mínimos, já necessários à própria sobrevivência da sociedade, como dizer e impor o que é certo e errado a grupos de pessoas cuja miséria (indigência) é menos econômica do que cultural e ética?
Antes, as condutas morais podiam, por exemplo, fundamentar-se na figura de Deus e impor-se pela revelação dos comandos que partiam do amor divino, ou do medo provocado pela ira divina[3]. Hoje, contudo, a moral de fundo cristã perdeu, em todo o Ocidente, para o bem ou para o mal, a sua força socialmente vinculativa. A impressão que se tem é que a própria comunicação não conseguirá superar sua contingência imanente e as pessoas estarão verdadeiramente sozinhas. De fato, como será possível duas pessoas se comunicarem em um universo de valores, regras e comportamentos, além de discursos e semânticas (linguagens) tão diversificados? A questão, pois, é saber como a sociedade contemporânea poderá lidar com essa drástica fragmentação moral e, já agora, até mesmo de sua linguagem[4].
Parece mesmo duvidoso, como bem deduzido por Detlef Horster, que diante de uma tal fragmentação de valores, exista “um ponto de referência comum para todas as condutas e regras morais e, mais do que isso, para todas as regras e decisões jurídicas, que possa valer, como base e condição contextual, para a interação dos indivíduos que vivem em sociedade”. Em uma sociedade em que se idolatra o individualismo, o normal é que não exista mesmo um ponto comum de consenso como nas comunidades mais antigas, baseadas na revelação de origem cristã[5]. Como se viu, isso é bom e ao mesmo tempo ruim.
Não se pode mais partir, numa sociedade radicalmente diferenciada em suas funções de “uma identidade abrangente (umfassender Identität ) do indivíduo com a sociedade”. Por isso, ainda segundo Detlef Horster, “A não-identidade do indivíduo e sociedade reflete-se na diversificação do direito e moral, de uma forma que era impensável à época de Sócrates, já que para ele (consoante o que podemos intuir do seu díalogo com Criton 53) a virtude individual e o direito da comunidade eram um e a mesma coisa, e uma violação ao direito seria também ilegítimo e indigno (unanständig) do ponto de vista moral” [6].
Não parece existir hoje qualquer instituição, como a Igreja na Idade Média, que consiga ligar as pessoas de uma mesma comunidade, ao longo de suas vidas, por intermédio de valores ou de objetivos comuns. Mais do que nunca, sabemos da existência de outros territórios, de outras visões de mundo, de outros valores e até mesmo de linguagens e de comportamentos ao mesmo tempo diferentes, mas também legitimados. As pessoas estão livres para associarem-se a grupos, valores e comportamentos, permanecendo vinculadas a eles enquanto estiverem satisfeitas.
Resumindo, ao fim a sociedade torna-se vítima de suas próprias virtudes: quanto mais tolerante, mais fragmentada, desunida e, infelizmente, no nosso caso, mais violenta.
Governos e instituições, aí incluído o Poder Judiciário, desorientam a comunidade com mensagens contraditórias, subtraindo da própria ordem jurídica a capacidade — sua principal característica — de estabilizar expectativas e comportamentos. Não é de surpreender, pois, que sejamos confrontados cotidianamente com comportamentos e valores que julgávamos inexistentes ou extintos da história de nossa cultura (linchamentos e todos os tipos perversos de violência contra a pessoa). Nada indica que esse estado de coisas encontrará um adversário à altura, sobretudo, se continuarmos insistindo com a ideia de que o mal está exclusivamente no Estado, e não na sociedade como um todo; e com o dogma de que o problema é a qualidade dos agentes públicos brasileiros, e não de formação e de comportamento de todos os indivíduos que compõem a sociedade, estejam ou não no Estado. Enquanto esses (auto)enganos servirem de alívio à consciência e à hipocrisia nacional, todos nós teremos uma ponta de responsabilidade por acontecimentos tão nefastos como aqueles que introduziram o presente artigo.

[1] Milan Kundera. A arte do romance. Tradução Teresa Bulhões. Carvalho da Fonseca. — São Paulo : Companhia das Letras, 2009, p. 14/15.
[2] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[3] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[4] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[5] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 1 (367 – 389).
[6] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 2 (367 – 389).
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2014

domingo, 27 de abril de 2014

ROSCOE POUND E A DIFERENÇA DO DIREITO DOS LIVROS E DA VIDA REAL

Roscoe Pound e a diferença do Direito dos livros e da vida real

 
O jurista norte-americano Roscoe Pound nasceu em 27 de outubro de 1870 e morreu em 1º de julho de 1964. Estudou botânica na Universidade de Nebraska, seu estado natal. Devido à insistência do pai, que era advogado, Pound estudou Direito em Harvard e depois estagiou no escritório do pai. Reputava a prática do Direito como fonte de muito tédio, porém apreciava a filosofia jurídica. Defendeu tese de doutorado em botânica, obtendo o PhD em 1897. Porém, simultaneamente, começou a lecionar Direito Romano na Universidade de Nebraska, sua alma mater. Posteriormente ensinou Direito na Nortwestern Law School, foi contratado pela Universidade de Chicago, em seguida foi lecionar em Harvard, cuja faculdade de direito dirigiu de 1916 a 1936. Pound lecionou em Harvard até 1964, ano de sua morte.
Pound capitaneou um conjunto de reflexões que levam o epíteto de jurisprudência sociológica. É de Pound a apreensão da diferença entre o direito que há nos livros e o Direito que se desdobra na vida real (“the law in books and the law in action”), explicitada em texto seminal de 1910. Pound chamava a atenção para as discrepâncias que há entre as regras que abstratamente normatizam as relações e as normas que efetivamente governam os homens. Pound ilustrava a assertiva comentando princípio que indica presunção de constitucionalidade de todas as normas jurídicas, o que a Suprema Corte norte-americana, no início do século, parecia não levar em conta como dogma absoluto. Para Pound, simplesmente, as cortes declaram inconstitucionais as leis que não aprovam.
A cultura norte-americana se jactava de matizar um país governado por leis, e não por homens. A presunção indica suposta objetividade do Direito, racional e prospectivo, à luz de uma imagem tirada de categorias weberianas de dominação. Adiantando-se naquilo que hoje apenas ingênuos e mal intencionados não reconhecem, ou cismam em não reconhecer, Pound escreveu que “o rosto da lei pode ser salvo por um ritual elaborado, porém são os homens, e não as regras, que administram a justiça”. Trata-se de fixar e de adaptar os casos ao modelo, juízo de subsunção que na verdade se opera de modo invertido, na medida em que os modelos são efetivamente adaptados aos casos. É o sentido pessoal de justiça que marca a subjetividade característica do julgamento, que é o reflexo do julgador. E para Pound o problema não suscitava nada de novo.
Pound criticava os hábitos dos juristas norte-americanos de seu tempo; preocupava-se também com o direito legislado, que reputava de atrasado. Desconfiava de uma Filosofia do Direito que era histórica e analítica, e que sempre iniciava e terminava quaisquer discussões com repertório de casos dos direitos inglês e norte-americano. Enquanto a filosofia, a política, a economia e a sociologia já haviam deixado de lado as premissas naturalistas do pensamento oitocentista, queixava-se Pound, os advogados norte-americanos ainda persistiam nos mesmos paradigmas. Pound apontava problemas gravíssimos na administração da justiça dos Estados Unidos, a exemplo de uma hiperdimensão individualista. Para Pound, o direito norte-americano apenas concebia doutrinas e regras de proteção ao individualismo. Pound também indicava uma exagerada confiança na administração da justiça.
O direito dos livros se distanciava do Direito da vida real, segundo Pound, na medida em que aquele primeiro não havia conseguido se libertar das premissas supostamente equivocadas do Direito pensado no século XVIII. Com firmeza, Pound sugeria que se estudasse economia e sociologia e que se parasse de se achar que o direito é autossuficiente. Em ensaio de 1931 Roscoe Pound propunha chamada geral para uma filosofia jurídica realista.
Pound conhecia a sociologia jurídica defendida por Eugen Ehrlich, à qual a se reportava, ao comentar a influência dos detentores do capital na formação de regras jurídicas. Pound propunha sete passos a serem seguidos, com o objetivo de se redefinirem as práticas e concepções do realismo jurídico, que a seu ver tomava caminho que se distanciava do sentido inicial que o forjou. No ensaio de 1931 Pound sugeria: 1) uma atitude funcional, isto é, o estudo não só dos preceitos e das doutrinas do direito, porém, e principalmente, um estudo de como o direito efetivamente funciona; 2) o reconhecimento de elementos irracionais, ilógicos e subjetivos nas instâncias reais do direito, isto é, no modo como o direito efetivamente é aplicado; 3) o reconhecimento de circunstâncias únicas e individualizadas, em oposição ao universalismo conceitual do século XVIII; 4) o abandono da ideia de que há uma sequência necessária de acontecimentos, que parte de uma causa única e que caminha para um único resultado possível, no sentido de se admitir que exista apenas uma única solução soberana para um determinado caso levado à justiça; 5) a leitura do direito a partir da psicologia, sem que necessariamente se aderisse a alguma escola específica do pensamento psicológico; 6) a adoção de axiologia que levasse em conta o jogo de interesses a partir da psicologia e da filosofia, sem que, mais uma vez, se aderisse a qualquer dogma dominante nos campos psicológico e filosófico e, 7) o reconhecimento de que há muitas abordagens e possibilidades para se chegar a uma verdade jurídica, sendo que todas elas são significativas em relação aos vários problemas aos quais se referem.
Esses sete itens elencam um programa. Os passos de número 4 e 7 sugerem que há várias soluções jurídicas para um mesmo problema, tese que será retomada com vigor por Benjamin Cardozo, outro grande precursor do realismo jurídico norte-americano. Esse relativismo jurídico é o ponto central no realismo, dado que refuta o dogma da certeza que se desdobra do positivismo. Pound não era exclusivista nem excepcionalista, na medida em que admitia também o valor e a contribuição de todas as tendências da filosofia jurídica, inclusive aquelas que ele criticava.
Pound problematizava, ainda em 1919, quando em artigo referente à liberdade contratual denunciava a falácia da igualdade, tema que é tabu no entorno democrático norte-americano, especialmente no início do século XIX, quando a ingenuidade política era provavelmente mais acentuada. Pound citava famoso julgado que teria anunciado que a liberdade do empregado deixar o trabalho, quando quisesse, era, e deveria ser, igual à liberdade do empregador dispensar o empregado. Era essa a liberdade contratual que o Direito norte-americano consagrava, impregnado que estava de interesses de economia que se desenvolvia, nos moldes do regime de laissez-faire. Valendo-se de estudo de sociólogo, Pound percebia que essa igualdade não detinha nenhuma sinceridade. E perguntava: até quando as cortes persistiram acreditando nessa falácia?
Criticando uma decisão da Suprema Corte, de 1908, que considerou padrões e empregados partes iguais em assuntos de transporte ferroviário, Pound lembrou de presidente norte-americano que havia afirmado que juízes projetam seus valores individuais e suas idiossincrasias sociais e econômicas quando decidem. Pound lembrou que o modelo constitucional norte-americano fora concebido em período no qual a escola jurídica do direito natural estava em seu zênite, bem como o momento de maior desenvolvimento do direito nos Estados Unidos coincidia com o ápice do individualismo na ética e na economia. Escreveu que ainda se citava Blackstone, jurista inglês, para quem “o bem público não está essencialmente mais interessado em nada além do que a proteção de todos os direitos individuais.”
Pound compartilha de uma holmesmania, de uma veneração pelos julgados de Oliver Wendell Holmes Jr., em tradição jusfilosófica norte-americana que até hoje persiste. Pound criticava uma jurisprudência mecânica que não levava em conta os fatos para os quais se dirigia. Defendia a produção de uma legislação de forte conteúdo social, que contrariasse as tendências retrógradas que eram reveladas pelo judiciário norte-americano. Seu texto mais importante, An Introduction to the Philosophy of Law (Uma Introdução à Sociologia do Direito), dá os contornos do seu realismo jurídico. Prioritariamente, o Direito, segundo Pound, deve ser ajustado às condições sociais concretas e reais. Pound repudiava jusfilosófos, juízes e advogados que se perdiam em controvérsias abstratas a propósito de temas de direito.
A injustiça de uma lei seria aferida por sua incapacidade para promover os interesses sociais. Pound desconfiava da tirania de um direito estático, bem como do dogma da ficção da tripartição dos poderes e da soberania popular, enquanto conteúdos jurídicos indiscutíveis. Sardonicamente, Pound argumentava que um Direito distante da vida real lembra-nos o escritor a quem se encomendou que escrevesse sobre a metafísica chinesa, e que recolheu material para seu texto lendo na Enciclopédia Britânica os verbetes “China” e “metafísica”...
 
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade de Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 27 de abril de 2014

sábado, 5 de abril de 2014

ALEXY E OS PROBLEMAS DE UMA TEORIA JURÍDICA SEM FILOSOFIA

Alexy e os problemas de uma teoria jurídica sem filosofia

 
A coluna deste sábado é em parceria. O tema merece. E o título é uma provocação a partir da qual se propõe, mais uma vez, refletir a respeito do modo como a teoria jurídica de Robert Alexy vem sendo aplicada por aqui. Na última semana, o renomado jurista alemão retornou ao Brasil, desta vez à Universidade do Oeste de Santa Catarina, onde recebeu o título de doutor honoris causa e ministrou três conferências em seminário voltado à discussão de sua obra.
O evento tinha como principal objetivo a compreensão, a partir do próprio autor — uma espécie de voluntas auctor —, dos pilares teóricos de sua teoria dos direitos fundamentais. O debate contou com a presença de importantes nomes do direito brasileiro que adotam – de um modo ou de outro – as ideias de Alexy e que, na ocasião, tiveram a oportunidade de dialogar com o jurista alemão.
Infelizmente não pudemos prestigiar o evento, mas recebemos em primeiríssima mão o relato do professor doutor Fausto Santos de Morais — a quem, desde já, agradecemos pela parceria —, que é um dos maiores estudiosos da teoria de alexyana na atualidade. Assim, considerando a importância dos temas abordados e, sobretudo, o teor das respostas formuladas por Alexy, aproveitamos o espaço desta coluna para difundir um breve balanço do que foi discutido. Afinal, este é precisamente um dos compromissos deste Diário de Classe.
Ao contrário da sua última visita ao Brasil, em outubro de 2013, quando se limitou a apresentar sua fórmula do peso, desta vez, Alexy surpreendeu o público por vários motivos. Segundo Fausto, três foram as questões que chamaram atenção e merecem uma reflexão mais aprofundada: a) a rigorosidade conceitual que Alexy confere à Ciência do Direito; b) o problema da aplicação da sua teoria no Brasil; c) o ataque à hermenêutica filosófica, de Gadamer, e à coerência, de Dworkin.
Logo na conferência inaugural, Alexy mostrou a ênfase depositada num modelo analítico que oriente a Ciência do Direito. Para ele, sua teoria dos direitos fundamentais busca, analiticamente, apresentar o modelo de aplicação dos direitos fundamentais realizado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht). Assim, o papel da Ciência do Direito seria o de precisar, rigorosamente, os conceitos empregados nas decisões da Corte alemã, identificando os modelos normativos que representam o direito positivo. Desse modo, o tratamento conferido pela dogmática à jurisprudência retroalimentaria o conhecimento dos limites normativos do Direito. Sobre este tema, Alexy foi bastante enfático: não existe conhecimento jurídico sem rigorosidade conceitual. Mais do que isto, afirmou: “a falta dessa rigorosidade me deixa furioso”. Aqui, já podemos indagar: apesar desse rigor, a análise de Alexy das decisões do Bundesverfassungsgericht não aponta para equívocos feitos por aquele tribunal. Isso apenas para começar porque o tema merece uma coluna própria.
Outro problema decorre da aplicação da proporcionalidade no Brasil, como um destaque a ser feito. Ou melhor, os problemas. O primeiro delas seria a falta de rigorismo conceitual e operacional da proporcionalidade. O segundo remete à rudimentar relação entre teoria e prática. O terceiro, e certamente o mais grave dos problemas, diz respeito à falta de racionalidade verificada nas decisões judiciais.
Como se sabe, no Brasil, a aplicação da proporcionalidade tornou-se uma vulgata (leia aqui). Essa vulgata nasceu na doutrina pátria que importou, parcialmente, a teoria de Alexy e piorou quando os tribunais passaram a utilizar o argumento da proporcionalidade sem qualquer tipo de critério. A partir de então, proliferaram-se os trabalhos que se utilizam do “princípio” da proporcionalidade na condição de suporte central da tese para o desenvolvimento científico-jurídico dos mais diversos direitos fundamentais. Aliás, proporcionalidade e ponderação passaram a andar sempre juntas, como se fossem gêmeas siamesas. Disso resultam, costumeiramente, dois outros problemas: primeiro, o sentido da proporcionalidade assume a direção que o intérprete quer dar, independentemente da proposta de sistematização reclamada por Alexy, o que exige “testes” diferentes quando se tratam de direitos de liberdade e direitos prestacionais; segundo, esquece-se que estes “testes” da proporcionalidade são apenas estruturas formais do pensamento. Como disse o próprio Alexy, o procedimento argumentativo não envolve, por si só, os necessários elementos materiais que devem fazer parte da justificação racional e legítima.
Na jurisprudência, por sua vez, os abusos são ainda maiores, o que torna o cenário ainda mais caótico, uma vez que todo rigor científico proposto por Alexy vai por água abaixo. Como num passe de mágicas, de repente, todas as questões jurídicas a serem resolvidas passam a envolver uma colisão de princípios. A justificação racional e legítima perseguida por Alexy reduz-se a petições de princípios e à referência meramente retórica do “princípio da proporcionalidade”. Em tempo: Alexy ratificou, novamente, que a proporcionalidade é uma regra — e, portanto, deve ser aplicada como tal —, embora “com nome de princípio” (sic).
Ainda sobre a escatologia da justificação racional das decisões judiciais que ponderam princípios, teria sido impressionante a reação de Mathias Klatt (discípulo de Alexy) quando tomou conhecimento de que o Supremo Tribunal Federal, ao exercer a função de corte constitucional, não apresenta um parecer decisório único e dialogado, mas compõe a deliberação com a soma de votos dos ministros, muitas vezes, completamente contraditórios entre si. Um clássico exemplo desse problema são os votos proferidos na decisão do famoso caso Ellwanger (HC 82.424/RS). Ocorre que, na soma, nem sempre, vence o melhor argumento racional. Pois é. De há muito denunciamos isso por aqui em terrae brasilis. Marcelo Cattoni foi o primeiro a levantar essa lebre depois do caso Elwanger.
Aliás, é importante deixar claro que é muito difícil saber em que sentido a proporcionalidade é empregada pelo STF e, igualmente, se as suas decisões atendem à exigência de justificação racional reclamada por Alexy. Também é impossível saber em que sentido o STF emprega a ponderação. Essa questão da (ir)racionalidade das decisões tomadas a partir da aplicação da proporcionalidade é, precisamente, o problema enfrentado na tese de doutorado do Fausto, a ser publicada muito em breve, em que ele faz uma contundente crítica à jurisprudência do STF.
O mais impressionante, ao menos a nosso ver, fica por conta do ataque alexyano à hermenêutica, no finalzinho do evento — aqueles que saíram antes perderam esta parte —, após ser questionado pelo professor Rogério Gesta Leal sobre o modo como sua teoria se relaciona com outras — mais especificamente aquelas que se valem dos aportes teóricos de Gadamer e Dworkin —, no que diz respeito ao enfrentamento do problema da racionalidade nas decisões judiciais.
Para ele, a hermenêutica não basta para o Direito. Muito embora reconheça que o círculo hermenêutico é inafastável, Alexy acredita que, tal como teria feito Gadamer em Wahrheit und Methode, a hermenêutica colocaria inúmeros pontos de vista para um problema, sem dar a solução e teorizá-la com o rigor necessário. Rigor, aqui, significa a possibilidade de se estabelecer, analiticamente, uma fórmula lógico-matemática como passo inicial para a fundamentação racional da decisão judicial.
Tal resposta evidencia o déficit filosófico que atravessa a teoria alexyana. Tudo indica que o jurista alemão não compreendeu os avanços que o giro ontológico-linguístico produziu sobre a questão do “método”. Isto porque, na hermenêutica filosófica, o que está no centro da reflexão é a relação intersubjetiva que é condição de possibilidade para todo conhecimento. É por isso que se fala em ser-no-mundo, por exemplo. E também é por isto que, para a hermenêutica, o Direito não pode operar apenas no plano argumentativo. Observa-se, assim, que Alexy ignora a dobra da linguagem e, consequentemente, do discurso jurídico. A crítica, absolutamente apressada e equivocada, de Alexy à hermenêutica vai no mesmo nível de quem confunde a hermenêutica com qualquer teoria relativista, esquecendo que Gadamer odiava que confundissem a hermenêutica com qualquer apego à irracionalidade. Verdade contra o Método não quer dizer “estado de natureza ou relativismo”. Ao contrário: se Deus morreu, agora é que não podemos fazer qualquer coisa!
Em relação à exigência de coerência, nos termos propostos de Dworkin em sua teoria do Direito como integridade, Alexy entende que não existe um critério unívoco para tal finalidade, de maneira que “os critérios de coerência poderiam ser ponderados” (sic). Eis, de novo, o principal problema de Alexy. Para ele, tudo pode ser ponderado! E isto é ainda mais problemático no Brasil, onde sequer se presta atenção àquilo que Alexy chama de princípios formais, mais resistentes à ponderação. Em suma, a coerência não faz sentido para Alexy porque o seu modelo jurídico é composto por princípios jurídicos — mandados de otimização que sequer são deontológicos —, e não por questões de princípio. Entre essas duas concepções existe uma diferença que é abissal. Isto porque, quando se está diante de uma questão de princípio, o intérprete não tem a sua disposição um repositório de princípios ponderáveis. Alexy desconhece que decisão jurídica não é escolha. O intérprete (juiz) não está livre porque possui uma responsabilidade político-jurídica. É a necessidade de coerência que faz com que o jurista se lembre de que ele não está sozinho no mundo. Por isto, ele precisa conhecer (e bem) as questões de princípio de uma ordem jurídica compromissada com o Estado Democrático de Direito, por exemplo.
Este rápido balanço permite concluirmos duas coisas. Primeiro que é preciso estudar mais o que diz Alexy para se combater o uso de Alexy que se faz no Brasil. Algo do tipo: Alexy contra Alexy. Com isto, colocar-se-ia um fim à aplicação de uma teoria alexyana darwinianamente-mal-adaptada, em que os princípios tornaram-se verdadeiros álibis teóricos na medida em que passaram a ser empregados como enunciados performativos que se encontram à disposição dos intérpretes para que, ao final, decidam de acordo com sua vontade.
Segundo, e mais triste, precisamos mostrar e dizer que é impossível fazer Teoria do Direito sem Filosofia. Pelas críticas superficiais feitas por Alexy a Gadamer, fica nítido que ele quer fazer teoria sem filosofia. Em Alexy, parece que está proibido falar em paradigmas filosóficos. Nele, por exemplo, discricionariedade parece ser uma coisa natural e que nada tem a ver com o paradigma da filosofia da consciência (ou suas vulgatas voluntaristas). Sua apreciação filosófica parece ter ficado no neopositivismo lógico e na relação sintaxe-semântica-pragmática, com alguma ênfase na tentativa de racionalização da pragmática.
Mais ainda, tudo está a indicar que Alexy não se dá conta de que Gadamer trabalha em um nível e as teorias analíticas — como a teoria da argumentação jurídica por ele proposta — em outro nível, o da mera justificação (que, na hermenêutica, se chama de nível apofântico da linguagem).
Por isso, não é fácil falar de Teoria do Direito. Por vezes, escapar desse imbróglio com uma linguagem lógica de segundo nível, herdada do neopositivismo, parece ser um caminho (quiçá um atalho) mais fácil para fugir da coisa mais importante na interpretação: o plano compreensivo, que sempre antecede a mera justificação. E disso Alexy não quer saber, bastando para tanto ver o que ele disse de (e sobre) Gadamer, desqualificando, com poucas frases, toda a obra do mestre de Tübingen.
Numa palavra: se é verdade que a argumentação é importante para o processo de aplicação das normas jurídicas, é preciso reconhecer que não se faz direito sem hermenêutica. E isto é incontornável, mein Freund.
 
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália) e coordenador do Programa de Pos-Graduação em Direito da IMED.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2014

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