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quarta-feira, 23 de março de 2016

"No processo penal, o Ministério Público não fala em favor da sociedade"





Por Maurício Cardoso e Marcos de Vasconcellos


O Brasil vive uma dicotomia, na qual quem critica atitudes arbitrárias do Judiciário é tachado como alguém “a favor da corrupção”. A partir do momento em que promotores e procuradores promovem na imprensa uma campanha “contra a corrupção”, passam a justificar tudo o que fazem (mesmo seus erros) como um objetivo nobre. E quem vai contra eles — inclusive advogados no exercício de sua função — é automaticamente visto como inimigo da sociedade.

O cenário é traçado pelo advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, que completa 35 anos de carreira este ano. À frente do Toron Advogados, com 28 profissionais do Direito, ele faz questão de dizer, com humor ferino, que é o maior escritório criminal em número de pessoas, mas não em faturamento. Ele é conhecido por sua atuação em casos com grande repercussão nacional, como a Ação Penal 470, o processo do mensalão, a operação satiagraha, a operação “lava jato” e, recentemente, entrou no caso do sítio em Atibaia (SP), que o Ministério Público aponta como sendo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atualmente ele defende Fernando Bittar, o dono do sítio de Atibaia que o Ministério Publico diz que é de Lula. E foi o advogado de defesa do empresário Ricardo Pessoa, presidente da construtora UTC, citada na "lava jato".

Por ter atuado em grandes casos, Toron consegue traçar paralelos entre outros processos e a operação que levou o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba às manchetes dos jornais. Para o criminalista, é claro que a mídia vem sendo, cada vez mais utilizada e de forma deliberadamente ordenada. “Eles usam a imprensa com vazamentos seletivos para criar uma legitimação social de práticas que não são lá muito ortodoxas.”

As mudanças no que diz respeito à Justiça criminal não vêm só da primeira instância. O novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que passou a aceitar que penas sejam cumpridas antes do trânsito em julgado das decisões, também é alvo das críticas de Toron. “Achei bacana o STF promulgar, pontualmente, uma nova Constituição. Só fiquei na dúvida se ele tem legitimidade para isso”, alfineta.

Nem toda novidade é malvista, no entanto, para o criminalista. A delação premiada, criticada por muitos de seus colegas, é vista com bons olhos por Toron. Assim como serve como meio de prova, serve também como forma de defesa para quem decide colaborar, afirma.

Toron começou sua carreira de criminalista como estagiário de Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça, morto em novembro de 2014. Hoje, já conta nos dedos os escritórios formados por profissionais que foram seus estagiários.

Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo desde junho de 2014, Toron já foi também conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Atualmente, entre a atuação na área criminal e na corte eleitoral, escreve um livro sobre Habeas Corpus.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor vê os últimos acontecimentos relativos à condução coercitiva do presidente Lula, autorizada pelo juiz Moro, e o pedido de prisão preventiva feito pelo MP de São Paulo?
Alberto Toron — O pedido de prisão preventiva contra o presidente Lula é técnica e politicamente tão absurdo que teve o único mérito de unir a oposição e a situação no Congresso a criticá-lo. Fiquei emocionado outro dia ao ver o nosso querido professor Miguel Reale Jr., peessedebista militante e ácido crítico do PT em pleno Jornal Nacional não só criticar o pedido de prisão preventiva, mostrando sua inconsistência e ilogicidade, como também defendendo o direito de o presidente Lula externar sua indignação, como cidadão e político que é. Já a justificativa dada para legitimar a condução coercitiva do presidente Lula chega a causar arrepios, menos pela inconsistência técnica e mais pelo cinismo. É duro dizer o óbvio, mas o caldo de cultura da violência estatal, pseudo legitimada pelo combate ao crime organizado e a corrupção, assusta. Sim, foram mais de 100 conduções coercitivas e ninguém falou nada! Ninguém falou nem uma vírgula. Como bem escreveu na Folha de S.Paulo meu querido amigo e grande advogado Luis Francisco Carvalho, (12/3), ninguém reclamou antes porque a condução coercitiva é menos grave que a prisão... Mas a ilegalidade é a mesma: só se conduz coercitivamente quem, devidamente intimado, não comparece para prestar depoimento. Depois, no caso do ex-presidente Lula, houve, com ou sem intenção, uma nítida ação desmoralizadora; uma ação que humilha a pessoa. Isso é inaceitável. Advirta-se, porém, é a cara da "lava jato". As pessoas, salvo o almirante [Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear], que cuidaram de proteger bem — ufa, ao menos um —,foram expostas pela mídia em seus deslocamentos; é o escracho como se fazia na Santa Inquisição. É uma reedição moderna dos Autos de Fé. Minha mulher que é arquiteta, tem preferido assistir o Jornal Nacional, porque ele está parecendo mais uma novela do que as novelas. Sou de opinião que, sim, é preciso combater a criminalidade e com rigor, mas respeitado o devido processo legal e, sobretudo, a dignidade humana.

ConJur — O juiz Sergio Moro poderia determinar a interceptação do advogado de Lula, Roberto Teixeira?
Alberto Toron — Houve dupla violência no caso. Não só à garantia do sigilo do advogado, mas também à letra da Lei 9.296, que não permite a divulgação das conversas interceptadas. Elas são sigilosas. Ainda que o juiz queira abrir o sigilo do inquérito, ele jamais poderia tê-lo feito em relação às interceptações. Essa divulgação me parece marcada por flagrante ilegalidade. É mais uma decisão que causa profunda preocupação. Parece-me muito espúrio que um juiz divulgue isso e permita causar comoção popular. É mais uma prova de que o juiz Sergio Moro busca sua legitimação no movimento popular. Sua aceitação não parece vir da lei, mas da mobilização popular, o que é uma característica do fascismo. O que estamos vendo é um juiz militando pra derrubar o governo, isso parece merecer a atenção do Conselho Nacional de Justiça.

ConJur — Quais foram as causas e quais serão as consequências da decisão do STF de admitir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado do processo penal?
Alberto Toron — Achei bacana o STF promulgar, pontualmente, uma nova Constituição. Só fiquei na dúvida se ele tem legitimidade para isso. (risos) Não entro no mérito de saber se o sistema penal estava disfuncional. Talvez estivesse mesmo, não nego. Mas é de um autoritarismo ímpar fazer justiça com as próprias mãos. O sistema republicano não outorga ao Poder Judiciário tanto poder. Interpretar as leis e a Constituição não é pouco; agora, legislar, francamente, por mais bem intencionados que os juízes sejam, não é, definitivamente, seu papel. Como escrevi na ConJur no artigo Conversa de um criminalista com o ministro Barroso, parafraseando o professor Eros Grau: se os argumentos funcionalistas (excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os normativos, “o perigo de juízos irracionais aumenta”. Hoje, se corrige a Constituição reintroduzindo a sistemática do CPP de 1941, que no artigo 669, I [. Só depois de passar em julgado, será exequível a sentença, salvo quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança], de franca inspiração fascista, tanto quanto a prisão preventiva obrigatória. Amanhã, acabam com o HC no STF a pretexto de que a corte é constitucional. Enfim, se o que vale é “dane-se a Constituição” e viva a interpretação de plantão dos juízes de turno, vamos mal, muito mal. Saímos da ditadura militar, mas não para cairmos na do Judiciário. Ave Maria! — e olha que para um judeu como eu falar Ave Maria, é porque a coisa tá preta (risos).

ConJur — Como o senhor chegou ao caso do sítio em Atibaia, apontado como sendo do ex-presidente Lula?
Alberto Toron — Pelos jornais.

ConJur — Que diferenças o senhor vê entre a Ação Penal 470, o processo do mensalão, e a operação “lava jato”?
Alberto Toron — O mensalão foi um processo conduzido por um colegiado, embora tivesse um relator muito voluntarioso, que dissesse coisas assustadoras do ponto de vista da defesa, seguiu padrões mais tradicionais que os da “lava jato”. A segunda grande diferença é que no processo do mensalão, nós não tivemos réus presos preventivamente. E, muito menos, réus presos para forçá-los a fazer delação premiada. O ministro Teori Zavascki disse, no Habeas Corpus que ganhei (127.186), que é inadmissível utilizarem-se de prisões preventivas — que têm um caráter processual e devem objetivar garantir a ordem pública e evitar problemas na instituição criminal — instrumentalmente para forçar pessoas a falar, num desvirtuamento inadmissível. E esse desvirtuamento foi fundamental para a operação “lava jato”. Enquanto as provas do mensalão eram essencialmente documentais, uma ou outra escuta telefônica, as provas da “lava jato” são essencialmente documentais e decorrentes de delações.

ConJur — As delações estão levando a provas documentais ou são apenas a palavra do delator?
Alberto Toron — Em muitos casos, estão levando a novas provas, inclusive documentais. O que está errado, no meu modo de ver, é a utilização da prisão preventiva para forçar a obtenção das delações. E pior, isso não é uma coisa do juiz Moro, isso é uma coisa que contou com o aval do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e do Superior Tribunal de Justiça. Foi só no Supremo que se discutiu isso. E fora o HC que a Corte concedeu ao Renato Duque, parece que o STF quis se blindar atrás da Súmula 691, para não conhecer de nenhum Habeas Corpus que questionasse a prisão antes de o julgamento. Mesmo que se diga que muitas delações foram feitas por réus soltos, não é menos verdadeiro que tiveram como inspiração as inúmeras prisões e o tempo que duraram.

ConJur — O Supremo tem se anulado?
Alberto Toron — Isso tem a ver com o Supremo querer se resguardar, não querer botar a mão na cumbuca. Eu achei que o Supremo talvez tenha se acovardado em enfrentar essas questões. O Supremo quis enfrentar os diferentes temas no tempo em que ele entendeu devido. Isso o enfraquece como guardião da Constituição e, particularmente, dos Direitos Fundamentais de caráter processual. Essa é outra diferença marcante entre esse caso e o mensalão.

ConJur — O senhor acha que haveria mesmo eficácia nas delações sem as prisões?
Alberto Toron — Seguramente nós não teríamos tantas delações não fossem as prisões. Mas a delação, tanto quanto o interrogatório, tem uma dupla face. A delação é um meio de prova, mas ela também é um meio de defesa. Veja que o empresário Ricardo Pessoa depois de solto continuou o processo de delação, ele podia ter parado, mas continuou mesmo depois de solto. Ou seja, há circunstâncias que fazem a pessoa optar pelo caminho da delação porque é um meio de defesa para ela, antes de ser uma estratégia da acusação. O acusado quer fazer a delação porque ele não vê outro caminho de ter uma pena mais branda, senão por essa via.

ConJur — A atuação do Ministério Público Federal tem sido diferente?
Alberto Toron — No mensalão havia uma denúncia enorme, que tinha vários capítulos. Por exemplo, o então deputado João Paulo Cunha, por razões óbvias, não tinha nada a ver com o caso de corrupção a deputados para que estes votassem projetos do governo. As acusações contra ele foram muito específicas, mas estavam lá naquele conjunto. Na “lava jato” foi completamente diferente. Havia uma massa enorme de informações que não constavam do processo. Estavam dispersas em vários outros feitos. Em uma das defesas preliminares que oferecemos no caso do Ricardo Pessoa, a primeira coisa destacada foi o cerceamento de defesa, por falta de acesso a documentos imprescindíveis para responder à acusação. Documentos que estavam referidos na denúncia e não estavam nos autos. Havia referência a delações às quais, a pretexto de não estarem homologadas, não tínhamos acesso. Como é que vou fazer a defesa do meu cliente, já tendo sido intimado para isso, sem acesso a documentos referidos pela denúncia, delações sobretudo. Além de tudo isso, as narrativas, embora interligadas, estavam repartidas em diferentes denúncias. Essa fragmentação artificial também cerceou as defesas. Mas nossos reclamos não foram ouvidos. Nem os nossos e nem o dos outros advogados. Só havia ouvidos para a importância da acusação e a beleza da atuação do juiz Moro.

ConJur — A denúncia já falava da delação que não tinha sido homologada?
Alberto Toron — Isso era muito grave. Também tivemos problemas com download de processos, atos processuais e eventos. Não faltaram problemas para subir arquivos no sistema. E os juízes só falavam que não tinham nada a ver com aquilo. Os advogados também não tinham, mas era preciso se resolver o problema para se ter um processo justo. Outra coisa que deu um problema enorme foi o seguinte: a montanha de informações era enorme e o prazo para defesa era de dez dias. Isso também cerceia a defesa, porque a investigação vinha de coisas de 2006 e perdurou até 2014 quando começou a fase ostensiva da operação. O Ministério Público está acompanhando aquilo em tempo real desde o início, mas o advogado não. Houve casos em que o download de arquivos levou oito dias, de tão pesados que eram. Então como é possível fazer a defesa em dez dias? O tempero da razoabilidade indica que o que fez o Supremo no mensalão, dando mais tempo para o procurador-geral da República fazer a sustentação oral, deveria ser feito em relação ao prazo da defesa para apresentar sua peça. Mas, para a defesa o prazo é peremptório.

ConJur — O STF também ampliou o prazo para apresentar a defesa.
Alberto Toron — Sim, apontando que no Processo Civil a previsão normativa de que quando há mais de um litisconsorte passivo — leia-se corréus no Processo Penal — o prazo conta em dobro. O juiz Moro nem esse prazo em dobro deu. Ele não queria dar mais tempo. Eu acho que é porque ele estava fazendo um jogo — inclusive argui a suspeição dele mais de uma vez — de cartas marcadas. A defesa era chamada só para cumprir tabela. Tanto faz como será a defesa, ele já está pronto para receber a denúncia do mesmo jeito. Já estava tudo pronto.

ConJur — Esse jogo combinado já foi apontado em outros momentos?
Alberto Toron — Tem um exemplo concreto importante: o Ministério Público dizia, no início de 2015, que o acusado atuava em organização criminosa, associando-se com administradores das empreiteiras da Odebrecht e OAS, de forma ordenada e permanente com divisão de tarefas com o objetivo de praticar os crimes de cartel e fraude ao caráter competitivo da licitação. Acontece que ninguém da Odebrecht estava denunciado no começo de 2015. Essas outras pessoas referidas não haviam sido denunciadas por falta de prova? Então eu tenho que entender que é uma referência inócua, sem valor, anódina. Ou que, embora existam elementos, por razões particularíssimas o Ministério Público não as denunciou. Então eu quero saber quais são essas razões particularíssimas. Questionamos isso e a resposta que tivemos foi, em resumo: “Não te interessa”. Não deram a mínima. O plural é porque vale para o TRF da 4ª Região, em Porto Alegre.

ConJur — E isso se repete?
Alberto Toron — A denúncia sustenta que a dita organização criminosa era constituída, entre outras, pelas empresas Odebrecht e Andrade Gutierrez. Ocorre que não se vê nenhum controlador ou mesmo executivo dessas empresas no polo passivo dessa ação penal. Temos aí o mesmo problema. E depois, ao tratar da imputação de organização criminosa, diz: “O colaborador Júlio Camargo afirmou que houve pagamento de propina no consórcio TUC, do qual participava a UTC na obra da Comperj, tendo o colaborador intermediado o pagamento da propina para a diretoria de serviço”, leia-se, para o Renato Duque. Só que o Renato Duque não estava denunciado, então o acusado praticou corrupção, corrompeu o Renato Duque, mas o próprio não estava denunciado. E mais, fez isso por meio de um funcionário da Odebrecht e que também não estava denunciado. A operação envolvendo a Odebrecht eclodiu muito tempo depois. Mas até lá, eu tinha referências a essas pessoas na denúncia e elas não estavam denunciadas. Então é um processo penal que estão chamando de eficientista, mas, na verdade, acaba com pressupostos mínimos que garantem a um acusado o exercício da defesa. A fragmentação do todo permitiu ao Ministério Publico criar uma dificuldade quase intransponível para a defesa.

ConJur — Haveria a possibilidade de se fazer como no mensalão, uma ação penal só para todo o caso?
Alberto Toron — Talvez não houvesse a possibilidade de fazer uma só ação penal, mas não poderiam ter feito como fizeram. E o tribunal chancelou isso. Não se pode denunciar corruptor e corrupto em processos diferentes, porque a corrupção é um ato bilateral. Outra coisa que esse fatiamento criou é a possibilidade de uma pessoa ser acusada de associação criminosa e, depois, de cartel. Mas o cartel é uma modalidade de associação criminosa. Então, facilita-se o bis in idem e dificulta-se a discussão da consunção. Jogo bruto, mas não somos tão burros. Embora impotentes, víamos as coisas e as denunciávamos.

ConJur — Atuar como advogado ficou mais malvisto pela opinião pública durante a “lava jato”?
Alberto Toron — Sim. O advogado, obrigatoriamente, tem um papel de se contrapor à acusação. Isso significa que eu vou apontar erros, segurar a marcha do processo para entender melhor, para ir atrás de provas... À medida que condutas típicas da defesa são apontadas como chicanas, somos retratados como profissionais do diabo, péssimos para a sociedade... E na “lava jato” manipulou-se muito as opiniões para apontar tudo aquilo que a defesa fazia como uma coisa ruim, que queria encobrir a corrupção, e tudo aquilo que o juiz fazia era exaltado como uma ação cívica, para reprimir a corrupção que desvia dinheiro de hospitais, escolas etc.

ConJur — Qual exemplo o senhor citaria disso?
Alberto Toron — Tem um interessante: Ricardo Pessoa e os executivos da Camargo Correa já estavam presos há uns cinco meses. A [revista] Veja publicou, então, uma história dizendo que os advogados foram até o José Eduardo Cardozo, [então] ministro da Justiça e meu colega de turma, para que ele intercedesse junto aos ministros do Supremo para revogarem a prisão preventiva. Primeiro: isso é uma bobagem, é ilusório pensar que o ministro da Justiça vai fazer isso; ainda mais acreditar que advogados tenham ido até o ministro para pedir isso. Mas foi com base nessa notícia, sem nenhuma comprovação, que o juiz Moro decretou uma segunda prisão preventiva daqueles que já estavam presos há mais de cinco meses. Aliás, é uma característica desse juiz, ele sempre decreta uma nova prisão preventiva quando o Supremo está prestes a julgar a anterior, que é uma forma de manter o acusado preso. Mas, voltando ao caso da Veja, não tinha provas de que aquilo ocorreu. Em segundo lugar, se tivesse ocorrido qualquer infração ou crime, teria sido do advogado, não do cliente dele. Então não poderiam punir quem estava preso. Na semana seguinte, a Veja refaz a história, dizendo que o ministro é que foi até os advogados, para pedir que eles evitem delações de seus clientes. Passaram-se 20 dias até o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que nunca dá nada para os réus da “lava jato”, conceder a ordem e revogar a prisão preventiva, que era uma excrescência. Mas, dessa vez, todo mundo que deu a notícia da prisão, como o Jornal Nacional, a Folha de S.Paulo, o Estado de S. Paulo, ficou calado. Não publicaram uma linha sobre a revogação.
Só é publicado na imprensa o que exalta a figura desse herói nacional que é o juiz Sergio Moro.

ConJur — O mensalão começou com uma denúncia do Roberto Jefferson na Folha de S.Paulo. Mas parece que a “lava jato” aparece mais na imprensa do que o mensalão. A imprensa tem sido mais usada?
Alberto Toron — A mídia tem sido muito mais utilizada e de uma forma seletiva e ordenada. Eles usam a imprensa com vazamentos seletivos para criar uma legitimação social de práticas que não são lá muito ortodoxas. Eu vejo aqui um desprezo solene por garantias processuais, como é o caso que a Dora Cavalcanti [advogada da Odebrecht] mostrou, de que informações da Suíça foram obtidas sem que se cumprisse o figurino legal, o procedimento adequado — que era uma cooperação judicial. Esse caso da Suíça é um exemplo de desobediência ao figurino, mas que, para o grande público, passa como uma questiúncula. Bem, ou respeitamos as formulas do processo ou nem precisamos do processo! E voltamos para a barbárie. Na decisão sobre isso, o juiz Moro diz que o Ministério Público brasileiro “não pode ser responsabilizado por medidas falhas de órgãos públicos suíços”. Ele esqueceu que quem pediu isso foi o Ministério Público Federal daqui. Quem trouxe a prova foi o MP brasileiro. Isso mostra como ele, juiz, prejulga certas coisas. Ele já tem o processo todo formatado na cabeça.

ConJur — Mas, para a opinião pública, ele passa uma imagem de eficiência.
Alberto Toron — Na imprensa, colocam como se houvesse uma contraposição entre eficientismo e garantismo. E que, a pretexto de sermos eficientes, rompam-se com todas as garantias. Isso é muito ruim para o Brasil, um país que já tem uma tradição de truculência. Procuradores da República fazendo diligência como se fossem investigadores de polícia, ouvindo pessoas, intimidando, é algo muito ruim. E a partir do momento em que os procuradores fazem uma campanha contra a corrupção, quem falar contra o procurador está a favor da corrupção. Nesse “pacote anticorrupção”, eles propõem o estreitamento do Habeas Corpus e, na grande mídia, quem falar contra a proposta é porque é a favor da corrupção. É aquela ideia absurda de dicotomia, “ame-o ou deixe-o”.

ConJur — Na “lava jato”, o Alberto Youssef, que é apontado como operador, parece que vai ficar com uma pena menor que os outros acusados, enquanto o Marcos Valério que era apontado como o operador do mensalão, ficou com a pena maior do que todos os acusados (40 anos). Por que essa diferença?
Alberto Toron — Aí são opções de defesa. O Marcos Valério não fez delação, o outro fez. É parte do jogo. E isso não pode ser apontado como incentivo ao crime. Teve delator que, no acordo, teve que pagar multa de R$ 55 milhões. Isso não incentiva ninguém. A delação é um meio de prova na investigação, mas é também uma estratégia da defesa. A pessoa sofre consequências também. Ela mostra que a Justiça pode ser mais eficiente.

ConJur — Os advogados da “lava jato” estão sentindo falta de uma centralização para articular as defesas, como era feito pelo Márcio Thomaz Bastos no mensalão?
Alberto Toron — Márcio Thomaz Bastos não fazia isso no Mensalão. É um mito que se criou de que ele era um articulador. Ele tinha uma liderança natural, mas a única reunião geral que tivemos foi para decidir se faríamos a defesa oral no Plenário ou não. Nós até perguntávamos coisas para ele aqui e ali, mas não havia uma defesa central e organizada. Quem assistiu o julgamento pela TV e ouviu as diferentes defesas pode perceber o que digo com clareza.

ConJur — E hoje também não há qualquer centralização?
Alberto Toron — Não vou dizer que aqui ou ali os advogados não conversam sobre o processo, mas acho que estão muito mais focados nos seus próprios processos e clientes. Na minha opinião, até faltou na “lava jato” uma união maior — apesar de não saber se se isso teria qualquer eficácia. Juliano Breda, então presidente da OAB-PR teve um grande papel na assistência aos advogados de fora.

ConJur — A carta dos advogados apontando os problemas da “lava jato” teve o efeito esperado?
Alberto Toron — Não. Obviamente faço uma ressalva, pois é fácil falar depois que aconteceram as coisas, mas acho que a carta não teve o efeito desejado porque ela deveria ter sido escrita por um publicitário para atingir o grande público, não por um advogado.

ConJur — O senhor falou que o discurso da defesa está perdendo a guerra na opinião pública. Qual é a lição de casa a ser feita pelos advogados?
Alberto Toron — Em primeiro lugar, a OAB tem que ser mais atuante. Reconheço, sim, que a OAB também encontra dificuldades. Eu fui diretor da Ordem e sei que quando a entidade fala que o índio é massacrado e que os direitos humanos são desrespeitados, sua voz ecoa. Mas quando ela fala de um problema específico da advocacia, isso não interessa aos jornais. A OAB precisa fazer um programa de conscientização da importância do direito de defesa, até mesmo nas escolas. Do mesmo jeito que é importante ter segurança contra a criminalidade, é importante ter segurança contra o arbítrio dos agentes estatais, contra a prepotência dos agentes estatais. O papel do advogado é exatamente esse, conter o arbítrio.

ConJur — O drible do MPF para trazer as provas da Suíça, o contato direto da Polícia Federal com a BlackBerry no Canadá e as omissões nas transcrições de delações podem acabar anulando a “lava jato”?
Alberto Toron — São coisas vergonhosas, mas não anularão a operação. Anularão, quiçá, aqueles documentos, aquelas delações, e tudo que depender deles.

ConJur — O Judiciário brasileiro é paternalista com o Ministério Público?
Alberto Toron — Olha, o Ministério Público tem uma posição muito privilegiada em relação ao Judiciário. Primeiro, o cara senta ao lado do juiz, o que é um absurdo. Rompe-se no plano simbólico a ideia de igualdade. No Júri isso é fatal. Depois, os dois são funcionários públicos, seguem carreiras paralelas, eventualmente passam pelas mesmas comarcas. Há uma crença de que o Ministério Público é mais imparcial, não faz trapaça, e a “lava jato” está mostrando que, quando quer, faz sim. Exemplo disso foi a supressão do trecho da fala de uma testemunha em favor de Marcelo Odebrecht. O Ministério Público é encarado como defensor da sociedade. No processo penal, isso é uma falácia. No processo penal, o Ministério Público é parte, ele não fala em favor da sociedade, mas em favor da tese acusatória que ele defende. A se pensar ao contrário, toda vez que um juiz absolvesse um acusado, estaria julgando contra a sociedade — o que é uma bobagem. Essa ideia de que o MP é sempre o representante da sociedade precisa ser urgentemente revista. Ele está mais para representante do Estado, sem dúvida nenhuma, o que é uma coisa diferente, sem demérito.

ConJur — A “lava jato”, assim como o mensalão, está criando uma nova jurisprudência?
Alberto Toron — Estão criando um novo padrão de atuação. Eu vejo hoje juízes muito propensos a decretar prisões, a repetir o modelo da “lava jato”. Como me disse uma vez o atual ministro Barroso: Hard cases make bad Law [casos difíceis fazem leis ruins, em tradução livre], no sentido de jurisprudência ruim. Nunca esqueci isso.

ConJur — O comportamento do júri mudou?
Alberto Toron — Mudou muito. Outro dia, conversando com o ex-presidente do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, Adib Casseb, ouvi que o júri tem absolvido muito mais PMs acusados de assassinatos, do que a Justiça Militar. Isso se explica porque o júri vê aquele como “o cara que mata bandido”. É um jogo a favor da segurança, mesmo que condenando um inocente (quando ele é “pobre e preto”, para usar um antigo jargão) ou absolvendo um culpado (quando ele é de um grupo de extermínio). Ou seja, é o punitivismo servindo para absolver alguém, mas aquele alguém que fez “justiça” da forma mais terrível possível.

ConJur — O senhor concorda que o Brasil vive a criminalização da riqueza?
Alberto Toron — Isso precisa ser melhor entendido. Eu chamo atenção desde os anos 1990 para o fato de que o modelo do sistema penal mudou. Classicamente, a visão marxista do Direito Penal é que ele é um instrumento de dominação da burguesia sobre o proletariado. Depois, se percebeu que o Direito Penal pode ser um instrumento eficaz, não apenas para perseguir “pretos, pobres e putas”, os três Ps, mas para perseguir outros segmentos sociais. Então, na redemocratização do Brasil, sobretudo a partir de 1988, o que nós temos é a utilização do Direito Penal para alcançar novas situações, como o crime do colarinho branco, crime fiscal, crime ambiental, concorrência desleal e outras tantas práticas. Mas não basta apenas a previsão normativa. É necessária a vontade política de perseguir esses crimes. Com a redemocratização assistimos isso. Também nos EUA e na Europa houve uma ascensão do Direito Penal para perseguir crimes de uma camada social que antes era infensa a persecução penal e que hoje se senta não apenas no banco dos réus, como vai para a cadeia também.
Eu vejo no Brasil, nessa operação “lava jato”, o cruzamento de uma estrutura político-econômica podre, que é o que propicia o tipo de corrupção noticiada, com a estrutura judicial e do Ministério Público absolutamente moderna e independente. Esse cruzamento de vetores das estruturas deu na repressão a que assistimos. Mas é preciso muito cuidado ao fazer previsões sobre o resultado disso. Quando se teve o processo do mensalão, alardearam que seria um marco contra a corrupção. E, aparentemente, quando o processo do Mensalão ocorria, as práticas noticiadas hoje, se elas realmente existiram, estavam acontecendo. Isso se dá porque a base real que permitia essas práticas não foi tocada. Então, se não se tocar nessa estrutura que é política e econômica, a repressão por si só não mudará o cenário brasileiro — talvez sofisticará a prática.

ConJur — A legislação penal é instrumento para mudar essa estrutura?
Alberto Toron — É, também. Mas é ilusório, é místico, é ingênuo até, pensar que a lei penal sozinha vai mudar isso. Não vai. Precisa ter uma vontade política de mudar a estrutura do Estado.

ConJur — Como tem sido a experiência de ser juiz no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo?
Alberto Toron — O exercício de ser juiz é uma coisa muito árdua para mim, pois meu treino como advogado é de examinar as coisas pelo ângulo da parte. A advocacia, sobretudo a criminal, é uma profissão que exercita a visão unilateral. O advogado “escaneia” o processo procurando onde quer chegar, o que é defender. Já como juiz, o exercício é olhar todos os lados e ver o desfecho mais justo. Foi muito bom para mim, mas foi penoso. Ampliou minha visão. Uma das coisas que eu mais aprendi é: diga muito falando pouco. Escreva pouco. Quanto menos você escrever, será mais contundente. Saber expor os fatos é a coisa mais importante que tem para o juiz. Se você citar uma doutrina, um julgado, ok. Mas, o mais importante é expor bem os fatos. Eu aprendi também que a sustentação oral é uma coisa muito importante. A sustentação oral bem feita pode virar o caso. Eu já desconfiava disso como advogado e, como juiz, confirmei.

ConJur — O senhor concorda com a ideia do vice-presidente Michel Temer de importar o modelo português de semipresidencialismo?
Alberto Toron — Eu sou a favor do parlamentarismo. Acho que ele aliviaria muitas crises. Mas esse modelo “nem lá nem cá”, “café com leite”, tenho minhas dúvida. Parece uma solução meio golpista, como fizeram com o João Goulart para ceifar-lhe os poderes. Como quer que seja, o Brasil não pode ficar como está. É necessário um rearranjo político para que o governo volte a assumir as rédeas do país.

ConJur — O ministro Dias Toffoli defende a redução no número de partidos para ter representação no Congresso, com a imposição de uma cláusula de desempenho. O senhor concorda?
Alberto Toron — Concordo. Tem que ter um mínimo de representatividade para se constituir um partido. A gente saiu do oito para oitenta e hoje alcançamos uma coisa absolutamente irreal.

ConJur — Quando o Supremo estava julgando o fim das doações eleitorais por empresas, o ministro Gilmar Mendes disse que isso transformaria o Brasil em um laranjal, porque as empresas parariam de doar e poriam CPFs para doarem em nome delas. Estamos correndo esse risco?
Alberto Toron — Sim. Eu sou a favor da doação das empresas, com a imposição de limites. Acho errado não poder doar. Também entendo que a Lei da Ficha Limpa representa uma espécie de tutela indevida do Estado sobre o cidadão eleitor. Na minha opinião, cabe ao eleitor dizer: “esse cara está condenado, é ficha suja, não serve”. E não caberia ao Estado, a priori, impedir a candidatura desse ou daquele candidato por conta da ficha. O povo é que tem que ter discernimento para escolher quem irá representa-lo no Parlamento.

ConJur — O senhor é favorável à legalização das drogas?
Alberto Toron — Eu acho que tem que ser descriminalizado o consumo e, no futuro, que ainda está distante, a própria produção e comercialização também devem se subordinar a um modelo que não é o penal. Acho interessante a solução que o Uruguai deu. E estou firmemente convencido de que, ao contrário do que muitos apontam, a legalização não vai aumentar o número de usuários. Eu dou um exemplo simples: você bebe?

ConJur — Sim.
Alberto Toron — Eu também bebo. Você bebeu antes de vir para cá conversar comigo?

ConJur — Não.
Alberto Toron — Você não bebe normalmente durante seu trabalho? Eu também não. Mas nós poderíamos ter bebido. Ter tomado quatro uísques e vindo para esta entrevista completamente bêbados. Por que a gente não veio bêbado? Porque você tem um compromisso com o seu trabalho e com o seu nome e eu também.

ConJur — E não seríamos presos se estivéssemos bêbados...
Alberto Toron — O contraestímulo ao uso da droga lícita não é o encarceramento ou a ação penal. Contraestímulos são os vínculos que eu tenho com certos valores. O valor profissional e familiar e meus compromissos me obrigam a ter certos comportamentos que eu, naturalmente, desempenho. Isso muda o nosso foco.
O adultério foi descriminalizado e quantas vezes alguém falou: “Eu não vou ter um caso com aquela mulher, porque a pena é de um a seis meses de detenção?”

ConJur — Acho que nunca.
Alberto Toron — E podemos inverter esse pensamento. Ninguém diz “vou ter um caso com aquela mulher porque agora não dá mais cadeia”. O que impede (ou permite) a pessoa de ter um caso fora do casamento são os vínculos pessoais e compromissos sociais. Voltando ao caso das drogas, eu poderia ter comprado um baseado antes de vir para cá. É facílimo de conseguir maconha. Eu podia ter dado um tapa, dois, três... Não dei pelas mesmas razões que não vim bêbado.
Com a legalização, em um primeiro momento, haveria uma maior visibilidade, as pessoas iam “sair do armário”, mas não iria necessariamente aumentar o número de usuários. As pessoas continuariam trabalhando, continuariam fazendo suas coisas. Quem vai dirigir não pode usar droga, do mesmo jeito que é crime beber e dirigir. Mas para quem está na praia relaxando, qual é a diferença de tomar uma caipirinha ou fumar um baseado? Precisamos aprender a lidar com as diferenças e superar preconceitos. Do contrário, insistiremos em fórmulas inadequadas para enfrentar o grave problema que as drogas podem representar nos casos de dependência. O crack está e não nos deixa mentir. Mas uma coisa é a dependência, que tem que ser encarada como doença, e outra é a utilização recreativa. Em ambos os casos o Direito Penal, mais dificulta do que ajuda a encaminhar as situações. Digo isso, desde os anos 70, quando estava na faculdade e fico feliz quando vejo alguém como o presidente Fernando Henrique Cardoso defender a descriminalização do uso das drogas. “Estamos juntos” (risos).


Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico

Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 20 de março de 2016, 6h55

segunda-feira, 14 de março de 2016

"OAB quer massificar a aplicação dos Direitos Humanos no Brasil"





Por Giselle Souza


Violações aos direitos da infância e juventude, das mulheres ou da terceira idade, assim como em diversos outros conflitos, costumam ser julgados pelos tribunais brasileiros com base na legislação específica — no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha e o Estatuto do Idoso. Mas a Ordem dos Advogados do Brasil quer estimular o Poder Judiciário a fazer também um uso maior de outro importante arcabouço jurídico na hora de solucionar esses litígios: as leis que integram o conjunto dos direitos humanos.

Para isso, a OAB preparou o Manual dos Direitos Humanos, para incentivar os advogados a apontarem, nas causas que patrocinam, como uma questão aparentemente individual tem repercussão na sociedade justamente por tratar de um direito humano. Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro e um dos idealizadores do projeto, explica que o objetivo é “massificar” esse ramo do Direito no Brasil.

“Muitas vezes, o advogado se depara com uma questão criminal, ou que tem relação com gênero e a sexualidade, e não sabe inserir isso nesta plataforma dos direitos humanos. Não porque ele não quer, mas porque, às vezes, desconhece essa possibilidade, assim como os instrumentos normativos que podem ser levados para o Judiciário”, explica.

Segundo Chalréo, os direitos humanos são como um “enorme guarda-chuva de proteção dos direitos da cidadania”. Contudo, esse conjunto normativo passou a ser mal compreendido e encarado como "coisa para bandidos". Em uma ação individual, explica, é possível apontar lesões a direitos humanos, que devem ser indicadas desde a primeira instância. "Não basta o Supremo Tribunal Federal dizer que as pessoas têm direito à relação homoafetiva. É preciso que isso seja praticado junto à primeira instância do Poder Judiciário”, destaca.

Com relação ao Poder Judiciário, aliás, o advogado afirma que a atuação tem deixado a desejar. “O Judiciário avança, mas também comete um monte de retrocessos. Por exemplo: avançamos na discussão do direito homoafetivo no Brasil. Mas as punições que a Justiça aplica, talvez até mesmo por desconhecimento da implicação disso com a questão mais geral dos Direitos Humanos e do efeito social, quando existem em casos de agressões homoafetivas, são irrisórias. Como o Judiciário se porta diante desses casos? Geralmente, de uma maneira preconceituosa e muito distante da realidade”, critica.

Leia a entrevista:

ConJur — Por que lançar um manual de direitos humanos para os advogados?
Marcelo Chalreo — O currículo das faculdades de Direito não têm disciplinas referentes a Direitos Humanos. O Roberto Caldas [advogado brasileiro], que tomou posse [no último dia 15/2] na presidência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, diz que sequer o Direito Internacional Público é estudado nas nossas faculdades de Direito. O Direito Internacional Público é, digamos, a linha mestra que guia a intervenção dos países, os acordos, os protocolos, as convenções, inclusive referentes a questões de Direitos Humanos.

Quando existe alguma coisa sobre Direitos Humanos nas grades curriculares, é absolutamente lateral, periférico. Isso já revela o pouco interesse da ciência jurídica no Brasil por essa categoria, por esse grande guarda-chuva que são os Direitos Humanos. No entanto, volta e meia esse é um assunto que está na mídia, na imprensa, na sociedade.

A partir da constatação de que a formação da advocacia é muito precária na área dos Direitos Humanos, achamos que a Ordem dos Advogados do Brasil poderia, de alguma forma, tentar ajudar a advocacia nacional na compreensão do que é o sistema nacional e internacional de Direitos Humanos.

ConJur — Como o material deve impactar a vida do advogado?
Marcelo Chalréo — Muitas vezes, o advogado se depara com uma questão criminal, ou que tem relação com gênero e a sexualidade, e não sabe inserir isso nesta plataforma dos Direitos Humanos. Não porque ele não quer, mas porque, às vezes, desconhece essa possibilidade, assim como os instrumentos normativos que podem ser levados para o Judiciário. É importante levar ao conhecimento do Judiciário que aquela agressão é também uma violação de um Direito Humano. Isso precisa ser compreendido de uma forma mais extensa — o que, infelizmente, não ocorre. Temos a expressão direitos humanos publicada de forma recorrente na imprensa. Por outro lado, temos uma compreensão distorcida do que são direitos humanos. É muito comum você ouvir que é coisa para bandido, quando não é. Na verdade, são um enorme guarda-chuva de proteção aos direitos da cidadania. E quanto mais a cidadania for protegida, melhor para a advocacia.

ConJur — O manual dá instruções sobre como ir à Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Marcelo Chalréo — Mais que isso. Mostra como é possível capitular, por exemplo, uma questão que tem a ver com gênero, sexualidade ou raça, também sob o paradigma dos direitos humanos, fazendo alguns links. Por exemplo, temos, na Constituição da República, o rol de direitos humanos e sociais. No artigo 5º e 7º, estão as questões referentes ao Direito Social, Trabalhista e Previdenciário. Enfim, é importante que o advogado faça a ligação entre aquela questão que, aparentemente, tem só a ver com o Direito de Família, Criminal ou da Criança e Adolescente, com estes princípios dos Direitos Humanos, que estão estabelecidos na Constituição da República. Isso não só é nossa obrigação enquanto cidadãos, advogados e militantes dos direitos humanos. É uma forma de chamar a atenção do Estado para que seja mais criterioso na hora de fixar uma punição pra quem transgride princípios ou normas de direitos humanos. Essa é uma forma de trabalhar a desconstrução dessa imagem negativa que os direitos humanos têm. As pessoas reclamam de coisas como transporte, saúde, e educação, sem saber que elas dizem respeito aos direitos sociais, aos direitos humanos.

ConJur — Como o advogado pode defender os Direitos Humanos em ações individuais?
Marcelo Chalréo — Em uma situação de estupro de vulnerável, por exemplo, é preciso apontar que aquilo é uma violação de direitos humanos, assim como à integridade física e à saúde daquela criança. É preciso "linkar" essas coisas desde a primeira instância até a Corte Constitucional brasileira. Não basta o Supremo Tribunal Federal dizer que as pessoas têm direito à relação homoafetiva. É preciso que isso seja praticado junto à primeira instância do Poder Judiciário. Quando ocorre uma violação a um direito homoafetivo, isso tem que ser levado ao juiz de primeiro grau como uma denúncia de violação a um direito humano.

ConJur — Por que isso é importante?
Marcelo Chalréo — Porque não se trata apenas de uma mera ou simples ofensa a um direito individual. É, também, uma ofensa a um direito humano. E uma ofensa a um direito de natureza humana ofende toda a coletividade. O combate ao feminicídio, por exemplo. Em alguns países, como a Argentina, o Uruguai e o México, onde há campanhas avançadas e estatutos de proteção diferenciados que enquadram o homicídio de uma mulher nesse quadro dos direitos humanos, o Estado é chamado a ter um cuidado melhor com relação a essa situação. Então, podemos e devemos fazer uma junção dessas regras, das normas infraconstitucionais com as constitucionais e internacionais de proteção.

Não precisa ir à Corte Internacional para denunciar uma ofensa a um princípio de Direitos Humanos. O Brasil é signatário de um conjunto de tratados, que foram ratificados e têm vigência no território nacional. É possível também apontar a ofensa a essas convenções como uma ofensa a uma lei da qual o Brasil é signatário e que conta com um patamar de juridicidade imediatamente abaixo da Constituição. Então, o objetivo desse manual é começar, também, a construir, na advocacia cotidiana, a interpretação e aplicação conjunta dessas regras infraconstitucionais com as constitucionais e também com as de Direito Internacional. E assim, de certa forma, contribuir para, na medida do possível, dar uma massificada nos Direitos Humanos. Massificada no sentido de que é preciso fazer com que a nossa sociedade conheça melhor o que são os Direitos Humanos e como ela pode usá-los como instrumentos para reivindicar, cobrar. A função do advogado não é só a litigiosa. É também a orientadora e a preventiva. Então, se um advogado orienta uma associação de bairro ou movimento social a se portar diante de uma determinada situação, ele estará contribuindo para a disseminação dos direitos humanos. E a advocacia se fortalecerá, pois à medida em que se expande o patamar civilizatório de uma sociedade, aumentando o conhecimento dessa sociedade em relação aos seus direitos, isso volta de maneira positiva para a advocacia.

ConJur — Na ditadura militar, a visão dos direitos humanos era bem diferente. Por que o senhor acha que hoje esse conjunto de normas passou a ser visto como algo para “defender bandidos”?
Marcelo Chalréo — São coisas um pouco diferentes. Passamos por um momento de supressão de direitos, onde o estado de exceção, que ainda vige para as comunidades e populações periféricas, era praticado pelo nosso próprio Estado. As pessoas não tinham liberdade de se manifestar e se expressar, não havia Habeas Corpus, que só foi estabelecido a partir das pressões feitas na gestão do Raymundo Faoro como presidente do Conselho Federal, junto ao general Geisel. Foi uma redução dos patamares mínimos de cidadania, que nos habituados a conviver a partir de 1946, com a reconstitucionalização do Brasil após a ditadura varguista, do Estado Novo. E isso foi ainda mais rebaixado a partir de 1968, sobretudo com o AI-5. Então, havia a necessidade das pessoas, na medida em que os governos ditatoriais iam se deteriorando, de se expressar, reivindicar, postular. E elas encontravam essa barreira no estado de exceção. Daí a expressão direitos humanos ter sido muito vinculada, também, aos direitos políticos de participação, manifestação, ao voto. Para além da própria questão da anistia, que dizia respeito ao perdão e à reintegração à vida civil brasileira de milhares de pessoas que tinham sido afastadas por atos de exceção. E partir daí, nós retomamos a rotina que tínhamos.

Como eu disse, há falta de conhecimento do que são os Direitos Humanos. O Brasil só ratificou o Pacto de San José da Costa Rica no final dos anos 1990 e foi um dos últimos países da América a ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1992. Isso já em plena democracia, depois da Constituição de 1988. Tudo bem que nós não tivéssemos feito isso durante a ditadura militar, que acabou formalmente em 1985, mas por que não fizemos isso em 1986, 1987, 1988? Não temos nem 25 anos de ratificação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos entre nós. Isso é um profundo atraso. E isso explica muito do que acontece hoje, até mesmo do desconhecimento do que são os direitos humanos.

ConJur — Como o senhor avalia a atuação da OAB com relação à defesa dos direitos humanos?
Marcelo Chalréo — Acho que avançou bastante no que diz respeito ao compromisso com essa pauta. Basta dizer que a Comissão de Direitos Humanos é uma das poucas comissões estatutárias. A OAB tem poucas comissões previstas na sua lei de regência.

ConJur — Mas previsão e atuação são coisas diferentes...
Marcelo Chalréo — O fato de ter isso no estatuto legal de uma corporação é um grande avanço. Temos as comissões OAB Mulher, de Prerrogativas da Advocacia e de Direitos Humanos como algumas das poucas comissões estatutárias. Por serem estatutárias, a Ordem está obrigada a impor à advocacia a execução das tarefas pertinentes [a elas]. Acho que a OAB tem avançado bastante, tanto no plano do Rio de Janeiro como nacional. Obviamente que, como toda e qualquer entidade que sofre as idas e vindas da nossa sociedade, às vezes um pouco mais progressista, às vezes mais atrasada, a Ordem também sofre esse tipo de consequência. Mas há uma coisa muito importante: a entidade tem reafirmado, durante todo esse período, o seu absoluto compromisso com a defesa da Constituição da República e com os princípios da lei justa. Nesta seara, a Ordem está afirmando o seu compromisso com os direitos humanos. A Constituição brasileira é uma das mais avançadas do mundo. Se conseguimos ou não alcançar esses direitos, é outra coisa. E não conseguimos, tanto que estamos aqui falando sobre isso. Mas o fato da Ordem ter esse compromisso sinaliza para a sociedade brasileira que essa entidade tem um compromisso indelével com a pauta. O lançamento desse manual, esclarecedor e instrumentalizador, me parece um sinal desse compromisso da Ordem dos Advogados do Brasil com direitos humanos. Os advogados devem ter a atenção para o fato de que um país com uma pauta civilizatória horizontal, que atinge todas as camadas sociais, se reflete positivamente na advocacia. A advocacia não vive do retrocesso social, político ou econômico. Quanto mais democrática é uma nação, mais o advogado tem participação nesse mercado cidadão.

ConJur — Quem procura a Comissão de Direitos Humanos e por quê?
Marcelo Chalréo — Temos muitas demandas. O guarda-chuva dos direitos humanos é praticamente infindável. Então, temos pessoas que nos procuram por questões ligadas a homoafetividade, sexualidade, cárcere, raça, credo, crianças e adolescentes, saúde educação. As vezes tem gente que bate aqui atrás de uma cadeira de rodas ou de um medicamento especial.

ConJur — Como essas pessoas são atendidas?
Marcelo Chalréo — Quando não podemos atender diretamente, encaminhamos para a Defensoria Pública, Ministério Público. Ninguém que bate aqui sai sem uma resposta. Ainda que essa resposta seja uma orientação para procurar outro órgão. Temos um trabalho e nesse aspecto os funcionários e os advogados são sensacionais. O trabalho dos advogados, aliás, é voluntário. É comum os colegas pagarem [para trabalhar], usando o próprio telefone etc. Mas o fato é que são tantos os assuntos que não há como classificar. Recentemente houve o episódio dos grafiteiros [torturados por policiais no Saara, mercado popular que fica no centro do Rio de Janeiro]. Isso saiu a imprensa. Mas o que não dá mídia é nossa atuação em relação ao Jardim Gramacho [bairro na Baixada Fluminense que tem um lixão], para que seja feita um saneamento básico decente na região.

ConJur — A entidade move ações populares?
Marcelo Chalréo — Não entramos com ação popular. Mas todas as ações de representação são feitas pela Ordem. A gente presta assistência judiciária para pessoas em situações de extrema vulnerabilidade, muitas vezes vítimas de ações brutais, como nos casos de assassinatos pelas forças de segurança. Também entramos como amicus curiae em determinadas ações.

ConJur — Esse guarda-chuva enorme dos direitos humanos não atrapalha um pouco a atuação?
Marcelo Chalréo — Atrapalha a minha cabeça [risos]. Às vezes, tenho que passar, em um mesmo dia, quinhentos assuntos.

ConJur — Mas a OAB tem comissões sobre temas específicos.
Marcelo Chalréo — A segmentação é importante, pois permite ter um conhecimento mais aprofundado do assunto, mas, por outro lado, acho que o problema não é resolvido se não houver articulação. Os problemas também estão relacionados. Na comissão [de Direitos Humanos], mantemos um relacionamento muito estreito com as demais comissões temáticas, como a OAB Mulher, da Igualdade Racial, das Pessoas Portadoras de Deficiência e assim por diante.

ConJur — O senhor acha que os direitos humanos ganharam mais espaço depois dos protestos de junho de 2013?
Marcelo Chalréo — Não, infelizmente. Os protestos não resultaram em organização, em formação ou construção de uma massa crítica e organizada, capaz de fazer avançar o movimento social e popular. O Brasil é um país profundamente carente no que diz respeito aos direitos básicos da sua gente. Isso diz respeito aos direitos ao saneamento básico, à saúde, à educação, à terra. O direito à terra, aí, não é só a reforma agrária, mas também a reforma urbana. São grandes dívidas que o Estado brasileiro tem com a sua gente. Tem a questão de gênero, racial e assim por diante. Essas pautas ainda são pessimamente tratadas no Brasil. Nós temos um país onde 100 milhões de pessoas não têm direito a esgotamento sanitário e a coleta de lixo. Isso é quase metade da população brasileira. Inclusão social, ao contrário do que muitos dizem, se faz com a entrega de direitos. Essa coisa de que inclusão social se faz pelo consumo, porque você pode ter um crediário para pagar em 72 meses um carro 1.0, é conversa pra boi dormir. E a prova disso está aí: na crise, na recessão, no desemprego. Isso tudo é efêmero, mas quando o povo é dotado de direitos sociais fundamentais, começa haver a inclusão social. E é essa inclusão social que faz com que avancemos no patamar dos Direitos Humanos.

ConJur — Na sua avaliação, qual é a parcela de responsabilidade do Poder Judiciário na efetivação dos direitos humanos?
Marcelo Chalréo — A parcela de irresponsabilidade do Poder Judiciário é gigantesca. Não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário brasileiro, como em qualquer país do mundo, faz parte de uma superestrutura de Estado, assim como o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Não podemos pensar os poderes de maneira isolada. O Judiciário avança? Avança, mas também comete um monte de retrocessos. Por exemplo: avançamos na discussão do direito homoafetivo no Brasil. Mas as punições que a Justiça aplica, talvez até mesmo por desconhecimento da implicação disso com a questão mais geral dos Direitos Humanos e do efeito social, quando existem em casos de agressões homoafetivas, são irrisórias. Como o Judiciário se porta diante desses casos? Geralmente, de uma maneira preconceituosa e muito distante da realidade.

ConJur — A resposta é insatisfatória?
Marcelo Chalréo — A resposta é muito lenta e insatisfatória na maior parte das vezes. Há associação de magistrados que já foi ao Supremo contra a resolução do Conselho Nacional de Justiça que estabeleceu a obrigatoriedade da audiência de custódia. Não são incomuns as notícias de que alguém foi sentenciado a uma pena menor do que o período que ele passou encarcerado. O Judiciário vive hoje, lamentavelmente, em busca de penduricalhos, auxílio moradia, auxílio educação, auxílio transporte, auxílio paletó. Será que esse Judiciário não vê qual é a média de rendimento da população brasileira? Como que se coloca o Judiciário quando você tem tribunais superiores chancelando esse tipo de conduta? Andamos pelos tribunais brasileiros, são obras faraônicas, gigantescas. Esse Judiciário não está comprometido com a pauta cidadã e civilizatória.

ConJur — Mas iniciativas como as audiências de custódia não sinalizam uma mudança?
Marcelo Chalréo — Espero que mudem para melhor. Não sou um pessimista, busco ser realista. Desejo que melhore, mas tem sido difícil. Ao mesmo tempo que você tem um conselho que chancela as audiências de custódia, e o fez a partir de provocações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, deve-se assinalar esse aspecto positivo, temos o mesmo órgão chancelando essas sem-vergonhices de remuneração.


Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 13 de março de 2016, 7h24

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

"Supremo é muito sensível a argumentos que apontam risco para governabilidade"






O que é óbvio não é necessariamente dito. Para quem pensa no Direito, é cristalino que a condição humana dos advogados, promotores e juízes faz com que não seja uma ciência exata. O Supremo Tribunal Federal, com sua competência constitucional, é influenciado por, por exemplo, por questões políticas, econômicas e até pelo restante do Judiciário.

Pois foi para mostrar como esses fatores externos moldam as decisões do Supremo que a professoraPatrícia Perrone Campos Mello, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), desenvolveu sua tese, agora publicada sob a forma do livro Nos Bastidores do STF. “Isso é muito óbvio, mas não é dito. E aí se constrói no imaginário popular uma percepção equivocada do que é o processo de decisão do Supremo”, comenta.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Patrícia explica que há três formas com que os ministros do STF se comportam. O “comportamento legalista” é quando o ministro se pauta apenas pelo que dizem a Constituição Federal e os precedentes dos tribunais. O “comportamento ideológico” é quando ele se deixa levar por suas convicções políticas e suas concepções de mundo.

É na terceira forma de comportamento que a professora encontra os resultados mais interessantes. Ela classifica como “comportamento estratégico” quando o ministro tem uma convicção política definida, mas percebe, pelo comportamento do colegiado, que, se defender determinada tese, vai ficar vencido. Portanto, ajusta o voto para uma posição entre o que ele acredita e o que ele calcula que será bem aceito pelos colegas, de maneira a levar o tribunal em determinada direção.

Foi algo parecido com o que o ministro Luís Roberto Barroso fez durante o julgamento da constitucionalidade de se considerar crime a posse de drogas para consumo próprio. Apesar de o pedido falar de drogas, genericamente, o voto do ministro foi para que o Supremo legalizasse apenas a posse de maconha.

“Não sei bem qual é a posição do tribunal. Temos um estilo de deliberação em que as pessoas não conversam internamente. Achei que uma posição um pouco menos avançada teria mais chance de conquistar a maioria”, disseBarroso, à época.

O episódio não está no livro de Patrícia — até porque ela não comentou casos recentes. Mas ela é assessora do ministro Barroso, que foi o orientador tanto do mestrado quanto do doutorado da agora doutora pela Uerj.

E foi o próprio ministro quem a encorajou a levar tal pesquisa adiante. Quando começou a desenvolver a tese, Patrícia ainda não trabalhava no gabinete do ministro, mas já tinha nele sua referência acadêmica. Foi consultá-lo e disse: “Vou escrever para dizer o óbvio...” Ao que ele respondeu: “Pois é, mas é um óbvio que ninguém diz e que precisa ser dito”.

Leia a entrevista:

ConJur — Não é um tanto óbvia a conclusão de que outros fatores além do jurídico influenciam nas decisões do Supremo?
Patrícia Perrone Campos Mello — É muito óbvio! Mas isso não é dito, e aí se constrói no imaginário popular uma percepção equivocada do que é o processo de decisão do Supremo Tribunal Federal. Primeiro de tudo: não está tudo escrito. As soluções não estão todas previstas e outros elementos interferem. É muito importante que o leigo compreenda isso. Segundo: a opinião pública é capaz de interferir. Mobilize-se! E não estou nem dizendo que isso é positivo sempre, porque pode não ser. Os julgamentos precisam ser imparciais. Se todos os ministros se sentem extremamente constrangidos por uma opinião pública que quer ver sangue, isso não é bom. Mas se não tem como um julgamento não ser político, a opinião pública e os outros poderes também podem exercer constrangimento sobre o Supremo Tribunal Federal. Isso é tão óbvio para o jornalismo, mas na academia não se enfrenta a questão.

ConJur — Isso não é dito por um defeito da academia?
Patrícia Perrone Mello — Ninguém diz que “o juiz decidiu assim porque o momento político era ruim”. Existe uma figura que se chama Juiz Hércules, definida pelo Robert Alexy, um pensador genial. Seria o juiz que analisaria sempre todas as questões e todos os conflitos e seria capaz de lutar contra tudo e contra todos para fazer uma decisão absolutamente neutra. A academia trabalha com essas categorias como se o juiz fosse um ser abstrato que está fora da confusão e vai decidir sempre de maneira neutra. Quer dizer, determinadas decisões não poderiam ser tomadas sem antes se fazer um diagnóstico completo. Então, a gente está discutindo como as decisões deveriam ser tomadas sem discutir como elas são tomadas, entende? O Supremo é livre para contrariar o Congresso? Até a página cinco. Contraria e depois não consegue o reajuste dos servidores. Essa é a lógica da separação dos poderes.

ConJur — Como surgiu o livro?
Patrícia Perrone Mello — Muito por conta da minha experiência de procuradora do estado do Rio de Janeiro. Litigando pelo estado, eu fui percebendo que nem sempre aqueles argumentos jurídicos que a gente considerava irretorquíveis eram acolhidos em juízo. Às vezes o texto da lei era muito claro, e mesmo assim o entendimento que saía vencedor não era a interpretação mais óbvia do texto. Portanto, claramente existiam outros elementos que influenciavam a decisão dos juízes, sobretudo no caso de alteração de jurisprudência, ou de jurisprudência vacilante. O desafio da minha tese de doutorado era responder a esta pergunta: quais são os elementos que efetivamente influenciam as decisões judiciais?

ConJur — Foi possível mapeá-los?
Patrícia Perrone Mello — Fiz uma pesquisa e descobri que tinha muita coisa na literatura norte-americana e alguma na europeia sobre esse assunto, e que de um modo geral se falava em três grandes modelos de comportamento judicial: o comportamento legalista, o ideológico e o estratégico. O que eles chamam legalista, que nem é um termo muito bom para comportamento judicial em matéria constitucional, porque Constituição não é lei, é para tentar antecipar como uma corte vai decidir um caso com base nos precedentes, no texto da norma ou com base na interpretação. Eu já antecipava que esse seria o modelo predominante na minoria dos casos, mas para a minha surpresa não foi assim.

ConJur — E tem alguma explicação?
Patrícia Perrone Mello — Quando o Supremo Tribunal Federal implementou a repercussão geral e a súmula vinculante, teve uma redução no volume de recursos que ele recebe na ordem de 63%. Fez-se uma conta que o Supremo tinha um número de repercussões gerais e essas repercussões versavam sobre tantas matérias. Portanto, a cada decisão, o Supremo decidia 210 casos, na verdade. Ou seja, mesmo que um precedente sobre um tema fosse decidido com base em qualquer outro critério que não o jurídico, mesmo que fosse decidido politicamente, a reiteração nos outros 209 casos era uma decisão com base no critério legalista, de reiteração de jurisprudência. Mas quando o Direito não é plenamente determinado, quando é possível usar argumentos constitucionais para se justificar decisões tanto num sentido quanto no outro, claramente você não vai conseguir antecipar uma decisão com base no comportamento legalista, porque ele não existe. 

ConJur — E aí entram os outros modelos de comportamento judicial?
Patrícia Perrone Mello — Entram outros dois modelos de comportamento judicial que são estudados pela literatura: o ideológico e o estratégico. O modelo ideológico é quando os juízes decidem com base nas suas convicções políticas. Os casos que são relativamente indeterminados são julgados pelos juízes com base nas convicções políticas deles. O estudo sobre esse modelo deu muito certo nos Estados Unidos, um ambiente ideológico muito bem definido que se divide entre os democratas, que são os progressistas, e os republicanos, que são os conservadores. Aqui no Brasil é impossível fazer isso, porque a gente é ideologicamente muito mal definido. Nossos partidos são pouco definidos, nosso ambiente político é pouco definido. E mesmo nos pontos em que o ambiente é definido, são pontos que não têm projeção em matéria constitucional. 

ConJur — Mas o livro fala desse comportamento ideológico no Brasil?
Patrícia Perrone Mello — De alguma maneira, a visão de mundo dos ministros interfere no julgamento desses casos sensíveis em que o direito é muito pouco pré-determinado, e eles mesmos reconhecem isso abertamente. Eu fiz, então, um estudo do que eu chamei de background dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não fiz para todos, fiz para três que para mim eram bem claros: o ministro Ayres Britto, o ministro Joaquim Barbosa e o ministro Gilmar Mendes. Aí fiz um estudo das entrevistas deles, dos principais casos paradigmáticos de que eles participaram e da vida pregressa, como passagem pelo Ministério Público e pela Advocacia-Geral da União, o que isso poderia interferir na visão de mundo desse ministro etc. Nas entrevistas do ministro Joaquim Barbosa quando ele veio para o Supremo, ele declarava que queria levar ao tribunal a visão de mundo dele, de uma pessoa que vinha de uma classe social mais baixa e que enfrentou preconceito para chegar onde tinha chegado, falava também de simplificar a linguagem para tornar o tribunal mais acessível.

ConJur — Qual a conclusão sobre os ministros Britto e Gilmar?
Patrícia Perrone Mello — O ministro Ayres Britto era claramente progressista. Foi relator de células-tronco embrionárias, das uniões homoafetivas, da ADPF sobre a Lei de Imprensa. Já o ministro Gilmar Mendes escreveu muito sobre o controle da constitucionalidade, tem toda aquela vivência da Alemanha, da Corte Constitucional da Alemanha, que é muito presente nas decisões dele. E ele é responsável por algumas decisões defendendo a utilização de instrumentos em matéria de controle de constitucionalidade que foram importantes para organizar essa matéria no STF, como a súmula vinculante.

ConJur — E o modelo estratégico?
Patrícia Perrone Mello — Esse é o mais interessante. É o seguinte: realmente o juiz decide com base em critérios ideológicos e políticos, só que nem sempre ele produz a decisão que considera ideal, que gostaria de dar se fosse uma decisão monocrática. Como ministro, para ele decidir e fazer o Direito andar em uma determinada direção, ele depende dos colegas de corte. Ele pode chegar à conclusão de que se votar puramente de acordo com as convicções dele, ficará vencido, e aí não contribui para o Direito avançar. Então ele vai procurar aquela decisão mais próxima das convicções dele, mas que em alguma medida tenha chances de ser aprovada pela maioria. Ou seja, ele vai votar moderadamente de maneira ideológica para não ficar vencido e para fazer com que o Direito caminhe na direção que ele considera a melhor.

ConJur — Isso explica muito do funcionamento de um colegiado.
Patrícia Perrone Mello — Isso pode acontecer tanto internamente no Supremo (onde o ministro depende do voto dos outros ministros para criar uma maioria em um determinado sentido) quanto pode acontecer com o Supremo como instituição na relação com os outros poderes, com a opinião pública e com a imprensa.

ConJur — Como é essa influência dos outros poderes?
Patrícia Perrone Mello — O Executivo detém o monopólio da força, então, ou o Executivo adere a uma decisão do Supremo, estando convencido pelos argumentos de que aquilo não é um impedimento meramente autoritário, ou ele resiste ao cumprimento. O Supremo precisa do Executivo para fazer valer uma decisão dele, seja em face do próprio Executivo seja em face de outros poderes. O Legislativo, em alguma medida, pode interferir no Supremo. O Senado aprova as indicações de ministros, aprova o orçamento do Judiciário, aprova um aumento de remuneração, o Congresso Nacional aprova a criação de novos cargos, por exemplo. O Legislativo é capaz de medidas de represália, e no limite pode descumprir as decisões ou simplesmente superá-las através de emenda constitucional. Então, o Supremo, ao interagir com cada um dos poderes, precisa antecipar se aquela decisão vai ser cumprida ou não, e se vale a pena o ônus.

ConJur — No caso do Executivo, é sempre o argumento do erário, não é?
Patrícia Perrone Mello — O Supremo é de fato muito sensível aos argumentos de perigo para a governabilidade e de perigo econômico. Esses argumentos freiam o Supremo, efetivamente. Primeiro por cautela, porque realmente tem alguns juízos de prognose e consequências que talvez os representantes eleitos estejam mais aparelhados para fazer. Segundo porque, se no fim do dia a decisão conduzir o país à bancarrota, talvez ela vá ser descumprida e não tenha valido a pena o desgaste.

ConJur — E com o Legislativo?
Patrícia Perrone Mello — Não é a mesma relação. Havia uma percepção do Supremo até bem pouco tempo, de que o Legislativo tinha se omitido na regulamentação de alguns direitos previstos na Constituição, e de que o Congresso é relutante em corrigir algumas falhas do processo eleitoral que resultaram em disfunções. E aí o Supremo talvez se permita avançar mais, por entender que o Legislativo não está disposto a fazer determinadas mudanças, e assume os riscos de ter as suas decisões descumpridas — e tem várias descumpridas. Por exemplo, a decisão em que o o STF reconheceu a inconstitucionalidade da criação de municípios foi superada por emenda constitucional. A que tentou limitar o número de vereadores por município também foi superada por emenda constitucional. Diversas questões tributárias foram superadas por emenda constitucional.

ConJur — Como funciona o Supremo com a opinião pública?
Patrícia Perrone Mello — A opinião pública preocupa muito o Supremo Tribunal Federal, e é um elemento fortemente impactante. Os ministros são selecionados por um processo que também é político. São pessoas de notório saber, mas selecionadas pela presidente e aprovadas pelo Senado. São pessoas que circulam bem nessa fronteira, e por isso são sensíveis a questões políticas. Depois, os ministros estão sujeitos às mesmas influências que a população em geral. Eles têm uma preocupação com a legitimidade e com a credibilidade do Supremo, e tem matérias que são muito delicadas, como quando se discute a impunidade. A imprensa deve ter percebido isso no julgamento do mensalão, por exemplo.

ConJur — A imprensa, então, deve ser o fator que mais influencia.
Patrícia Perrone Mello — A imprensa é o principal intermediário entre os ministros e todos os grupos caros a eles. Tem ministros mais sensíveis ao que pensa a academia, outros ao que pensa a opinião pública como um todo, como o ministro Joaquim Barbosa. Mas entre todos esses grupos e os ministros tem a imprensa no meio. A fotografia que existe dos ministros não é o que eles são realmente, é o que é relatado pela imprensa. Por isso ela é um grupo muito sensível e estratégico para os ministros. Ela constrói a percepção que todos esses grupos vão ter sobre a atuação dos ministros. Portanto, a atuação dos deles, mesmo quando é política, é limitada não apenas pelo texto escrito, mas pela capacidade de interação dos demais poderes com o Supremo e pela reação que se espera vir da opinião pública. Isso é interessante porque a gente conclui que nos casos mais divididos as decisões são políticas, e não puramente jurídicas, mas também porque a gente vê que não há tanta liberdade assim.

ConJur — Como assim?
Patrícia Perrone Mello — Os ministros são limitados, sim, pela reação que eles acreditam que virá da opinião pública e pela reação que eles acreditam que virá da imprensa. Eles têm uma preocupação com as consequências das decisões deles sobre o cenário econômico, sobre a governabilidade, e isso entra em questão quando eles produzem uma decisão. Eles não estão em um mundo ideal, em que são simplesmente livres para decidir só porque é uma questão de princípios constitucionais, que são cláusulas abertas, e que não tem um comando prévio expresso sobre o que soluciona aquele conflito de interesse.

ConJur — É sempre um jogo de equilíbrio.
Patrícia Perrone Mello — Basta lembrar, por exemplo, quando se discutiu a competência do Conselho Nacional de Justiça para processar disciplinarmente os magistrados, se seria concorrente ou subsidiária. Havia, aparentemente, uma tendência pela competência subsidiária, foi até deferida uma liminar. E a opinião pública estava em cima, a Ordem dos Advogados do Brasil organizou manifestação defendendo a competência concorrente, na qual estava presente a Associação Brasileira de Imprensa, e não por acidente voltou-se atrás na liminar e ela não foi referendada pelo Plenário. Era a presidência do ministro Cezar Peluso e ele até falou desse caso como tendo havido uma interferência da opinião pública sobre o julgamento, o que ele considerou condenável.

ConJur — Do ponto de vista da segurança jurídica, isso não é ruim? Se há o precedente, o que deveria prevalecer não é a jurisprudência em vez de a opinião pública ou a ideologia de cada um?
Patrícia Perrone Mello — Vamos falar, então, do novo Código de Processo Civil. Foi feita uma opção radical em favor dos precedentes vinculantes em casos repetitivos. Se você vai ter precedentes vinculantes, não pode mudar de opinião o tempo inteiro, senão é o caos instaurado. É pior do que não ter precedente vinculante, porque uma hora vincula para um lado, outra hora para o outro. E quando muda de entendimento, como é que faz? Por isso é muito importante para o Supremo como instituição, para a credibilidade do Judiciário, para funcionar o novo Código do Processo Civil, para a sociedade e para todo mundo que se ache um meio termo. Um caminho que costure a inevitabilidade de o momento e de a visão de mundo influenciarem os julgamentos com o respeito aos precedentes. Essa é a reflexão pela qual o Supremo vai precisar passar, porque tem um grande desafio pela frente, que é aprender a reverenciar os seus próprios precedentes.

ConJur — Isso é interessante não só do ponto de vista acadêmico. Para o advogado é também importante saber o que chama atenção ou não dos ministros, não é?
Patrícia Perrone Mello — No meu trabalho não faço juízo de valor. O meu objetivo não é dizer se é bom ou ruim julgar dessa ou daquela forma. O meu objetivo é fazer um diagnóstico do que interfere. Eu como advogada tenho que saber o que influencia um juiz, para saber por onde argumento. Se eu entrar no Judiciário partindo do pressuposto de que é só o Direito, eu não vou chamar atenção para os aspectos econômicos, por exemplo, que são fundamentais para as consequências daquela decisão. Por isso tenho que entrar na Justiça sabendo quais são os fatores que interferem. Eu, parte que preciso litigar, também preciso saber quais são os riscos que tenho ao entrar com uma ação judicial.

ConJur — A pesquisa chegou a captar o que interfere mais ou menos entre os ministros? Por exemplo, se o fator econômico interfere mais, ou se são questões sociais.
Patrícia Perrone Mello — Isso é individual, mas existem momentos políticos mais delicados para a politica ou para a economia. Por exemplo, quando o país passou pelo Plano Collor. Claramente aquelas medidas que bloqueavam os recursos das pessoas violavam o direito de propriedade. Mas o Supremo não deferiu a liminar para a afastar as medidas do plano econômico e depois o Pleno manteve a decisão. Ali tinham várias particularidades: era o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois de anos de ditadura, o país passava por um momento de caos econômico e havia uma grande apreensão de qual seria a consequência de, naquele momento, interferir no jogo político. E o tribunal não interferiu. Do ponto de vista estritamente jurídico, havia todos os elementos para uma interferência, mas a corte exerceu a autocontenção.

ConJur — Pode falar de mais alguns exemplos descritos no livro?
Patrícia Perrone Mello — Teve alguns casos em que a economia influenciou, como o Plano Collor, ou a privatização da Vale do Rio Doce. Nada mais polêmico e o Supremo não interferiu. Crédito presumido de IPI, em que o Supremo tinha um entendimento fixado por nove a dois, e depois virou para um entendimento antagônico. Essa virada veio logo depois de algumas publicações da imprensa. Lembro bem de um artigo contundente da Miriam Leitão dizendo “será que o Supremo ainda não entendeu que o país vai quebrar?”, alguma coisa assim. Teve também o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, previsto na Constituição, mas nunca regulamentado. Quando o STF disse que ia regulamentar, o Congresso aprovou uma lei. Na Lei de Imprensa e em todos esses casos de liberdade de expressão, a opinião pública tem um poder de fogo enorme, e a corte é bastante defensora da liberdade de expressão por conta a liberdade de imprensa.


Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 6h21

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

"Não é função da arbitragem impedir as pessoas de procurarem o Judiciário"








A máxima popular de que momentos de crise também é oportunidade nunca pareceu fazer tanto sentido como no caso da arbitragem. Em vigor há apenas seis meses, a Lei 13.129, que regula o procedimento, tem sido cada vez mais utilizada para resolver conflitos decorrentes da má fase pela qual passa a economia brasileira, avalia o advogado José Antonio Fichtner, que participou da comissão de juristas responsável pela elaboração da norma.

“Não é uma questão de achar, é um fato. O número de arbitragens tem crescido tanto nas instituições locais quanto nas instituições sediadas no exterior. O Brasil hoje é o terceiro país do mundo em número de arbitragens na ICC [International Chamber of Commerce]”, respondeu o especialista à revista Consultor Jurídico, quando questionado se a crise poderia fomentar o instituto.

A nova Lei de Arbitragem, que reformou a legislação acerca do procedimento, forma, ao lado da Lei de Mediação e do Código de Processo Civil, a tríade de normas jurídicas sancionadas em 2015 com a promessa de agilizar a solução de conflitos no Brasil. A Lei de Mediação entrou em vigor em dezembro, já o novo CPC passa a valer a partir de março deste ano. 

Segundo Fichtner, a lei avançou em diversas frentes ao regular o uso da arbitragem na área societária, definir prazos para um eventual pedido de anulação da decisão arbitral, autorizar os árbitros a modificar liminares concedidas por juízes em medidas cautelares e permitir à Administração Pública utilizar o instrumento. 

A Lei de Arbitragem foi aprovada quase que da mesma forma que fora proposta pela comissão de juristas. Os vetos foram dois: com relação ao procedimento para resolver problemas de consumo e conflitos trabalhistas. Mas isso não frustrou os elaboradores do anteprojeto de lei, disse o advogado.

“O propósito da comissão era proteger algumas espécies de trabalhadores, mas o veto veio e temos que trabalhar com a lei que existe e não com a lei que queríamos. Quanto ao outro veto, não houve grande alteração porque a interpretação que se faz da lei hoje, baseada em um precedente do Superior Tribunal de Justiça, é que o consumidor, querendo, pode instituir a arbitragem”, afirmou.

Para o advogado, a via arbitragem também não tem a missão de impedir que o cidadão procure o Judiciário. Essa alternativa, defende, “tem que ser vista como um remédio para questões complexas, para contratos que exigem uma solução rápida de um expert na matéria e que contenha um grau de pacificação entre as partes considerável.” Gera resposta mais rápida, em média 14 meses depois. E geralmente é confidencial, embora o segredo não precise ser regra. 

Leia a íntegra da entrevista:

ConJur — O projeto de lei sugerido pela comissão foi aprovado praticamente na íntegra, mas houve dois vetos: um com relação à arbitragem nas ações de consumo e outro para as relações trabalhistas. Isso frustrou a comissão?
José Antonio Fichtner — A perspectiva era melhorar a vida de algumas classes de trabalhadores. No anteprojeto, havia um dispositivo que tinha por finalidade permitir que determinados empregados, como os que têm função de gerência ou de diretoria, pudessem utilizar a arbitragem como forma de solução para os litígios contra seus ex-empregadores. Em alguns segmentos da economia, se você entrar na Justiça contra o seu empregador, não consegue mais emprego em área nenhuma. A arbitragem tem como característica o sigilo e a privacidade, o que permitiria resolver as questões sem macular a vida do trabalhador. Então, o propósito da comissão era proteger algumas espécies de trabalhadores, mas o veto veio e temos que trabalhar com a lei que existe e não com a lei que queríamos.

Quanto ao outro veto, não houve grande alteração porque a interpretação que se faz da lei hoje, baseada em um precedente do Superior Tribunal de Justiça, é que o consumidor, querendo, pode instituir a arbitragem. Esse é o entendimento do STJ. O que fizemos foi simplesmente transpor para uma regra legal e positiva aquilo que o STJ já estabelecia como sendo a interpretação correta do Código de Defesa do Consumidor. Então, quanto a esse ponto, não houve grande prejuízo.

ConJur — A arbitragem será possível nos casos de consumo por causa do entendimento jurisprudencial?
José Antonio Fichtner — Exato. O entendimento atual do STJ diz que isso [a arbitragem] é possível se for por iniciativa do consumidor. Imagine uma empresa que comprou um avião, por exemplo, e que esse avião apresentou um defeito. Ela pode resolver isso tranquilamente através de arbitragem, que talvez seja o meio mais adequado para a solução dessa controvérsia, e não por meio do sistema judicial, que é muito mais demorado, ineficiente e, muitas vezes, sem pessoas preparadas para o tipo de litígio complexo que está sendo colocando.

ConJur — O senhor diz que a arbitragem na área de consumo e do trabalho se destinava ao consumidor de alto padrão ou trabalhador mais especializado. Essa restrição estava clara nos dispositivos vetados?
José Antonio Fichtner — No caso do trabalhador era restrita a essas situações excepcionais. E veja: sempre como uma faculdade do empregado resolver o seu conflito através de arbitragem. Já no caso das relações de consumo não porque é uma decisão puramente econômica: a pessoa decide se quer ou não aquele caminho. Já que é só o consumidor que pode escolher, então ele vai fazer os cálculos dele e vai definir quando é bom a arbitragem e quando é melhor a via judicial.

ConJur — Uma das críticas à arbitragem nos conflitos de consumo é que ela ameaçava as ações coletivas. O senhor concorda?
José Antonio Fichtner — Acho que cada instrumento tem a sua área de atuação. Houve uma certa reação das pessoas ligadas à área de consumo, que pretendiam que se mantivesse o sistema do Código de Defesa do Consumidor, mas a nossa ideia foi apenas de colocar mais um instrumento para o consumidor.

ConJur — Na sua avaliação, o veto à arbitragem na área trabalhista pode desestimular investimentos nesse momento de crise?
José Antonio Fichtner — O dispositivo do anteprojeto de lei se referia a um grupo muito restrito de empregados e não acho que isso vá interferir na decisão do investidor em colocar ou não o seu recurso no Brasil. Agora, se você me perguntar se uma mudança na legislação trabalhista brasileira mais profunda e mais liberalizante traria mais investimentos para o Brasil, não tenho dúvida que sim. Não acho que esse caso específico seja relevante, mas acho que pensar em liberalizar um pouco a matéria trabalhista, assim como organizar o sistema fiscal, daria ao Brasil um porto muito interessante para investimentos estrangeiros — investimentos esses que não temos capacidade de fazer atualmente por razões já conhecidas.

ConJur — Na sua avaliação, quais foram os principais avanços da lei?
José Antonio Fichtner — Em primeiro lugar, uma abrangência maior com relação ao uso da arbitragem na área societária, com a possibilidade de inseri-la nos estatutos das sociedades anônimas e de usá-la para resolver pendências entre os sócios ou entre a sociedade e os sócios. Esse é um passo importante dentro do sistema brasileiro, um dos grandes avanços que a lei trouxe. A lei também trouxe avanços técnicos em relação à questão de como se conta o prazo para anulação das decisões arbitrais, assim como a possibilidade de se proferir sentenças parciais. Imagine que dentro de um litígio haja uma parcela que não há conflito. Então o árbitro, assim como o juiz, vai poder, a partir de março, com o novo Código de Processo Civil, proferir uma sentença para resolver uma parcela do litígio.

ConJur — Como assim?
José Antonio Fichtner — Imagine que uma pessoa está cobrando R$ 100 em uma determinada disputa e vem a outra parte e diz que estava, na verdade, devendo R$ 40. O que o árbitro pode fazer, assim como o juiz também vai poder: condenar a parte a pagar os R$ 40, para o qual não há conflito, e continuar com a disputa em relação aos R$ 60 remanescentes. Isso faz com que as pessoas se concentrem na área do conflito em que de fato há uma disputa, uma resistência entre as partes. A doutrina já falava sobre isso e agora isso ficou esclarecido na lei. Tratamos também da necessidade da confirmação das liminares dadas em juízo pelos árbitros nos casos em que houver uma medida cautelar no Judiciário previamente à instauração da arbitragem. E outro fator fundamental também foi a possibilidade ampla da Administração Pública fazer arbitragem. A média de duração de um processo arbitral hoje, no Brasil, é de cerca de 14 meses. Boa parte do que se paga às vezes em disputas de grande envergadura, no valor final, são os juros e correção monetária. Então, entendemos que essa é uma forma de termos decisões mais rápidas, menos custosas e talvez mais eficientes nesse tipo de disputa.

ConJur — A Lei da Arbitragem deu poder coercitivo para o árbitro ao permitir que ele conceda liminares?
José Antonio Fichtner — Na verdade isso já existia. O que a lei veio foi só clarear essa situação. Esse era um poder que o árbitro já tinha, mas como havia uma discussão sobre se os árbitros podiam modificar liminares dadas previamente por magistrados em medidas cautelares, a lei veio deixar claro que podem. Mas boa parte da doutrina já entendia assim. Foi só para tirar uma dúvida do plano doutrinário e jurisprudencial. 

ConJur — Na sua opinião, o reconhecimento da decisão arbitral estrangeira é burocrático no Brasil? 
José Antonio Fichtner — A Constituição brasileira dá a mesma proteção para a sentença judicial estrangeira e a sentença arbitral estrangeira. E o STJ tem sido extremamente eficiente e tem proferido decisões muito importantes no sentido de reconhecer decisões estrangeiras, principalmente entendendo que as condições de anulação devem ser observadas no país onde a decisão foi proferida, de modo que aqui, para homologar, o STJ faz apenas uma análise formal da decisão. Toda vez que se tem tentado recentemente no Brasil resistir à homologação com base em uma questão de mérito, o STJ tem dito que isso é matéria para o país onde a decisão original foi proferida. Então, há um princípio de colaboração, de reciprocidade importante e de respeito às condições do país onde a arbitragem se desenvolveu.

ConJur — E com relação ao tempo para se analisar? É moroso?
José Antonio Fichtner — A média é em torno de 12 a 14 meses. Dentro da prática internacional, isso não é considerado absurdo.

ConJur — Nos EUA tornou-se uma tendência os contratos com cláusulas prevendo a arbitragem individual como único meio de solucionar conflitos. O senhor acha que o Brasil também pode seguir por esse caminho?
José Antonio Fichtner — Se não me engano, foi uma decisão muito apertada da Suprema Corte Americana que provocou uma reação ao impedir que, em determinadas categorias e situações de consumo, as ações coletivas pudessem ser utilizadas e que os contratos indicariam a solução de arbitragem individual para cada uma das pessoas envolvidas nas situações de consumo tipificadas. Sinceramente acho que essa não é uma decisão definitiva da Suprema Corte Americana. Não pode ser assim e acho que não será assim. Acho que da próxima vez que a matéria for levada àquela corte, em um futuro próximo, é possível que tenhamos uma decisão diferente. Mas estou falando com uma distância bastante considerável. Não me parece função da arbitragem impedir que pessoas venham individualmente buscar a solução dos seus problemas na via judiciária. A arbitragem tem que ser vista como um remédio para questões complexas, para contratos que exigem uma solução rápida de um expert na matéria e que contenha um grau de pacificação entre as partes considerável.

ConJur — O ministro Luís Felipe Salomão, que presidiu a comissão de juristas, defende que as questões muito técnicas sejam resolvidas pela arbitragem.... 
José Antonio Fichtner — Não tenho a menor dúvida de que contratos complexos na área de construção e societária, que envolvam relações de longo prazo e que sejam afetados de alguma forma pela variação da moeda ou regras regulatórias, são os mais adequados para uma solução arbitral. No entanto, temos uma quantidade grande de alternativas que podem substituir a decisão judicial com um custo menor e com uma capacidade de solução bastante considerável.

ConJur — Por que essas questões teriam uma solução mais adequada na arbitragem: por causa do tempo ou porque é mais provável encontrar um julgador especializado na matéria do conflito?
José Antonio Fichtner — Não posso reclamar. Na minha história profissional, as questões complicadas nas quais o Judiciário interveio, o fez de maneira absolutamente satisfatória. Fui responsável pela maior briga societária da história do Brasil, em uma época em que pouca gente sabia o que era execução específica de obrigações, e tivemos um sucesso muito grande. Estou me referindo à disputa dos fundos de pensão contra o Daniel Dantas, há uma década e meia atrás. A capacidade de solução, inclusive em tempo bastante razoável do Judiciário foi enorme. Mas hoje temos como realidade 102 milhões de processos em curso. Essa é uma situação que o Judiciário está tentando enfrentar, mas não é simples. Então, a mediação vem aí como uma tentativa para desafogar esse volume de processos. A arbitragem trata apenas de um percentual muito pequeno desse universo, mas tira da mão dos juízes, por escolha das partes, processos que tomariam muito tempo de solução de cada magistrado. Então, é um veículo que também é bastante importante na hora de administrar o tempo daqueles que distribuem justiça no Brasil.

ConJur — O senhor acha que a arbitragem pode ganhar fôlego com a crise que a gente vive? 
José Antonio Fichtner — Essa não é uma questão de achar, é um fato. O número de arbitragens tem crescido tanto nas instituições locais quanto nas instituições sediadas no exterior. O Brasil hoje é o terceiro país do mundo em número de arbitragens na ICC [International Chamber of Commerce], é considerado hoje um caso de destaque no mundo internacional da arbitragem. O modo como a lei se fez prevalecer no Brasil, nesse pouco espaço de tempo, com esses resultados de aceitação, utilização e reconhecimento pelos tribunais... Isso tudo tem feito do Brasil um caso a ser estudado.

ConJur — O que a lei diz sobre a fiscalização das câmaras arbitrais, para fiscalizar eventuais fraudes?
José Antonio Fichtner — Estamos falando de uma coisa eminentemente privada, em que duas partes escolhem uma instituição arbitral ou apenas os árbitros, que decidem e aquilo vira coisa julgada. Se alguém utilizar esse instrumento para fins ilícitos, para cometer fraude, é uma questão que está à margem da arbitragem. Está mais para as delegacias, para o Direito Penal, do que propriamente para o direito que estamos tratando. A lei não intervém.

ConJur — Como fica a arbitragem com a entrada em vigor do novo CPC?
José Antonio Fichtner — São normas complementares. Se tivéssemos que classificar, dar um adjetivo, esse CPC é o do precedente. Aquele que procura criar nos tribunais superiores uma fórmula de solução para demandas idênticas, que se espraie por todo o Judiciário cadeia abaixo, impedindo a renovação de demandas idênticas. Acho que isso é muito importante, e o novo CPC prestigia a arbitragem tratando a sentença arbitral como se fosse a própria sentença judicial. Também reconheceu que a arbitragem tem um foco de atuação bastante restrito. Por isso, elegeu a mediação como grande instrumento para resolver os conflitos na acepção de quantidade. Vamos ver se a mediação vai se apresentar como um instrumento eficaz para isso.

ConJur — Quais são as hipóteses de nulidade na arbitragem?
José Antonio Fichtner — A nova lei e o CPC também não alteraram as hipóteses de anulação. Elas continuam as mesmas do artigo 32 da Lei 9.307 [Lei de Arbitragem]: é nula a sentença arbitral se for nulo o compromisso e se o acordo para fazer a arbitragem, de alguma maneira, for nulo; se emanou de quem não poderia ser árbitro — a lei tem hipóteses que definem que algumas pessoas não podem ser árbitras em determinadas situações; não contiver os requisitos do artigo 26 — que é o relatório, a fundamentação, a data e o local em que foi proferida; não decidir todo o litígio; tiver sido proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; tiver sido proferida fora do prazo ou em desrespeito aos princípios que tratam o artigo 21, parágrafo 2º, que são os princípios processuais do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e do nível de convencimento. 

Conjur — Uma das críticas à arbitragem é a possibilidade de uma das partes, quando insatisfeita, ir ao Judiciário. A Lei de Arbitragem ou o novo CPC preveem algo contra isso?
José Antonio Fichtner — Não há propriamente um recurso. A medida que a parte tem, uma vez proferida a decisão arbitral, é propor uma ação, mas que tem um conteúdo muito limitado. Não houve praticamente alteração com relação a isso e a possibilidade de a parte fazer exceção de arbitragem se mantém presente. O que está se discutindo ainda é qual o melhor instrumento para isso. Existia no projeto do novo CPC a exceção de arbitragem. A parte, então, teria a oportunidade de entrar com uma exceção de arbitragem e dizer “isso não é para ser discutido pelo Poder Judiciário”. E o juiz poderia extinguir.

ConJur — Mas isso no meio do processo judicial?
José Antonio Fichtner – Isso. Imagine que você tenha contratado comigo a arbitragem. Aí, um dia, resolve que vai entrar na Justiça. Então você diz que há exceção de arbitragem, que estava prevista no projeto do CPC....

ConJur — Como uma exceção de competência?
José Antonio Fichtner — Exatamente. Você entraria com a exceção e o juiz falaria que não era competência dele, que a arbitragem havia sido escolhida e extinguiria o processo. Só que no final do processo legislativo, o Congresso eliminou essa possibilidade da exceção e resolveu que essa defesa teria que ser feita na contestação.

ConJur — E isso é ruim?
José Antonio Fichtner — É que no sistema que vai entrar em vigor, você entra com a ação, depois tem uma audiência de mediação. Não obtida a mediação, depois de um prazo, você oferece a sua contestação. Então, pelo que está proposto, você vai exigir que o juiz tenha, no conjunto de audiências de mediações que está fazendo, algo que não é da competência dele. E isso até ele verificar que de fato aquilo é para ser resolvido através de arbitragem e não pela via judicial. Por isso, sugiro que se estabelecesse a possibilidade dessa exceção de conhecimento para que o juiz possa resolver aquilo. Não faz sentido nenhum esperar seis meses para eliminar o que nunca deveria estar na frente do juiz.

ConJur — Em que momento o senhor defende a propositura dessa exceção?
José Antonio Fichtner — Estou falando especificamente de uma ação em substituição à arbitragem.

ConJur — Ou seja, quando as partes desistem da arbitragem no meio do caminho e entram com a ação.
José Antonio Fichtner — É. Por exemplo: surgiu uma possibilidade de conflito e a parte, ao invés de ingressar com a arbitragem, entra em juízo. Aí vem a outra [parte] e diz que a exceção de arbitragem seria a solução prevista. Mas eliminaram isso e colocaram como parte da contestação, o que não me parece adequado.

ConJur — Quanto tempo leva até uma resposta?
José Antonio Fichtner — Vai levar uns seis meses. Isso não faz sentido nenhum, é um contrassenso ao próprio código, que se propõe à celeridade e às soluções rápidas. 

ConJur — Tem algum projeto de lei em vista para mudar isso?
José Antonio Fichtner — A gente está sugerindo a construção jurisprudencial, como existia em relação à exceção de pré-executividade para os casos em que alguém entra com uma execução contra você, mas não é você quem deve, é outro. Ao invés de garantir em juízo com um bem e depois entrar com embargos para dizer que a parte é ilegítima, a pessoa dizia “não sou eu”, então o juiz extinguia e redirecionava. Estamos usando esse precedente como algo a ser manuseado nessa hipótese. Vamos ver se vai funcionar.

ConJur — O senhor é a favor da divulgação da jurisprudência arbitral? Como isso seria possível com as cláusulas de confidencialidade?
José Antonio Fichtner — Estamos falando de um mercado privado. Então, temos que combinar com o cliente. Ele que escolhe a arbitragem, o advogado, o árbitro. Não adianta a gente querer criar um sistema de divulgação em que o dono do problema não compartilha da mesma decisão. É óbvio que é bom ter um sistema jurisprudencial que sirva de referência, mas isso tem que ser dividido com os donos dos casos, eles têm que autorizar a publicação dessas referências jurisprudenciais. Algumas instituições arbitrais preveem isso. A facilidade dessa situação é que, uma vez que as partes escolham aquela instituição arbitral, elas já estariam concordando com a divulgação dos casos, mas isso não é a regra. Sou partidário, filosófica e teoricamente, da posição de que a confidencialidade não é uma qualidade intrínseca da arbitragem, ela tem que ser contratada. A arbitragem não é por natureza confidencial. As partes podem estabelecer, no procedimento arbitral, o princípio da confidencialidade. Então, não tenho problema nenhum quanto à divulgação, só acho que tem que combinar com o dono do problema.

ConJur — A divulgação de uma jurisprudência arbitral vincularia os árbitros a segui-la, como ocorre no Judiciário?
José Antonio Fichtner — Acho que não. O árbitro tem liberdade para decidir. Uma questão mais complexa é se os árbitros estão vinculados às súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo. Isso é algo que se debate no plano doutrinário e que tem implicações filosóficas profundas porque implicaria, dependendo da resposta, dois sistemas jurídicos distintos. 

ConJur — Qual é sua expectativa com relação à arbitragem na Administração Pública?
José Antonio Fichtner — Acho que toda situação nova provoca uma reação. No âmbito do Direito Administrativo e da área pública, a arbitragem já vinha sendo prevista em algumas legislações específicas, como a lei das PPPs [Parcerias Público-Privadas] e na Lei dos Portos. O que faltava era uma regra geral que admitisse a utilização da arbitragem como meio de solução das questões envolvendo a administração pública. A aprovação, pelo Congresso, de uma norma autorizando a utilização da arbitragem em caráter amplo e geral no âmbito da Administração Pública mudou o cenário legislativo e as pessoas estão agora se acomodando: as procuradorias dos estados e a Advocacia-Geral da União estão adaptando a sua estrutura e regras internas para fazer os procedimentos arbitrais. Acho que isso vai ser bom para o futuro do Brasil. Temos agora que estar vigilantes para que essas arbitragens sejam feitas no mais alto padrão e para que o instituto seja tratado na via pública como vem sendo tratado na via privada: com a maior correção e com excelentes resultados.

ConJur — A legislação dá tratamento diferenciado ao poder público na arbitragem, a exemplo do prazo em dobro e da remessa necessária existentes no processo judicial?
José Antonio Fichtner — Não. Na arbitragem, isso é contratado. As partes, ao organizarem os termos de referência de uma arbitragem específica vão definir os prazos para cada uma delas e as peculiaridades da administração serão obviamente preservadas.

ConJur — O procurador terá liberdade para deliberar sobre os termos da arbitragem?
José Antonio Fichtner — Se não houver uma regra interna da administração estabelecendo o contrário, sim. Mas os árbitros serão as pessoas mais preocupadas em garantir prazos adequados para o poder público.

ConJur — Como fica a questão da confidencialidade nessa situação?
José Antonio Fichtner — A nova Lei de Arbitragem teve o cuidado de dizer que as arbitragens serão públicas quando a Administração Pública estiver envolvida. Ou seja, nada há de inconstitucional. Foi proposital que assim se fizesse, porque a luz é o melhor tipo de remédio para evitar que um instrumento bom seja utilizado para maus propósitos. 

ConJur — Em um momento de crise e denúncias crescentes de corrupção nas organizações públicas, a resolução de um conflito pela via não estatal, que seria o Judiciário, é bem visto pela sociedade?
José Antonio Fichtner — Acho que a arbitragem vale pela qualidade dos seus atos e pela postura que as partes tomam no curso do procedimento. Acho que as pessoas têm que ter o cuidado de escolher árbitros que possam proferir as melhores decisões possíveis em cada caso concreto. E acho que a imprensa especializada tem que acompanhar o que vai ser feito, discutir os resultados e avaliar isso. Mas é difícil a opinião pública como um todo poder aferir a qualidade desse instrumento. Acho que se nós tivermos o apoio da imprensa especializada, acompanhando de perto os resultados, estaremos entregando para a nação um instrumento mais eficaz do que vínhamos com relação à solução de demandas complexas envolvendo a Administração Pública.


Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.



Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2016, 8h30

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Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...