quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Juízes como heróis, soldados, mudos ou… minimalistas:



Publicado 4 de Novembro, 2015





Por Mario Cesar AndradeProfessor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

Por Siddharta LegaleProfessor Assistente da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

Por Margarida Maria Lacombe CamargoProfessora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pesquisadora do CNPq.

Por Jose Ribas VieiraProfessor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Pesquisador do CNPq.


No dia 09 de outubro de 2015, o Professor norte-americano Cass Sunstein lançou, em Havard University, sua mais recente obra, Constitutional Personae (Oxford University Press, 2015, 171 páginas). Nesse estudo, definido pelo próprio autor como resultado do amadurecimento de sua teoria, Sunstein refina sua tipologia de personas constitucionais, detalhando mais minuciosamente os perfis básicos que os juízes da Suprema Corte recorrentemente assumem.

Para Sunstein, os perfis dos juízes da Corte podem ser categorizados em quatro tipos, a saber : o herói, o soldado, o minimalista e o mudo. Osheróis são aqueles que entendem ser dever da Corte fazer a sociedade avançar. Para isso, eles devem se valer da Constituição como parâmetro para invalidar leis, políticas públicas e decisões judiciais, redirecionando a atuação estatal e a própria sociedade. Partindo da interpretação de princípios constitucionais, eles pretendem colaborar para reformas sociais, abrindo caminhos de vanguarda em meio à letargia e morosidade dos processos político-institucionais. O chamado ativismo judicial parece decorrer diretamente da atuação de juízes com essa persona. Diversamente, os soldados caracterizam-se por maior deferência ao processo político, entendendo como seu dever promover a concretização das normas produzidas pelos poderes politicamente legitimados. Os juízes soldados querem concretizar a Constituição, leis e atos governamentais como quem dá cumprimento a ordens superiores, entendendo não lhes competir a redefiniçao das valorações presentes em tais ordens. Já os minimalistas assumem uma postura essencialmente cautelosa. Sob a alegação de um dever de prudência, eles procuram evitar intervenções intensas ou abrangentes, privilegiando as práticas e tradições socialmente sedimentadas. Nesse sentido, os minimalistas preferem atuações mais centradas nos casos sob julgamento, receando da produção de repercussões potencialmente perturbadoras do processo sociopolítico, cujo ritmo próprio de maturação deve ser respeitado. Por sua vez, os mudos optam pelo silêncio diante de grandes controvérsias constitucionais, preferindo manter, sempre que possível, casos altamente problemáticos fora do Tribunal, a fim de deixar o espaço aberto para a ação do processo político. Em suma, o mudo é aquele que “não quer falar nada” (SUNSTEIN, 2015, p. 24). Entretanto, quando o pleno silêncio torna-se insustentável, eles resistem a revisões valorativas, adotando fundamentações superficiais para suas decisões, que tendem a continuar a jurisprudência sedimentada.

O livro traz o contributo de evidenciar que grandes controvérsias sobre a interpretação constitucional e as consequentes decisões dos tribunais constitucionais podem ser interpretadas como uma disputa entre esses quatros tipos de personas. As decisões sobre temas como direitos civis, aborto, união homoafetiva, liberdade de expressão e separação de poderes resultam das competições entre esses perfis. Por outro lado, a recorrência de cada persona e as interações entre elas definem o perfil da Corte em dado período histórico, permitindo ao autor identificar, por exemplo, a Corte Warren como uma Corte heroica.

Nessa obra, Sunstein detalha ainda mais a tipologia que já levantara no seminal On case at time, de 1999, no influente Radicals in robes, de 2005, e em A constitution of many minds, de 2009, o que justifica o entendimento de Constitutional personae como resultado de um processo de revisão e amadurecimento. O tipo do herói, por exemplo, aparece agora, subdividido em heróis de primeira ordem, empenhados em acatar as decisões advindas do processo político, e os de segunda ordem, comprometidos em proteger o significado original da Constituição de destoantes interpretações conjunturais. Em razão dessa tendência originalista, Sunstein denomina os soldados de segunda ordem como heróis-soldados, admitindo, assim, personas intermediárias. A inclusão dessas personas híbridas ou limítrofes enriquece a tipologia, ainda que aumente a complexidade da categorização e consequentemente a possibilidade de divergência no enquadramento dos juízes nas diversas personas.

Porém, a maior inovação desse livro em relação às obras anteriores é o refinamento da persona minimalista. O autor dedica um longo capítulo a uma especificação dessa persona: o minimalista burkeano. Identificando-o com as teses do filósofo político irlandês Edmund Burke, Sunstein atribui a essa espécie de minimalista maior respeito aos costumes e tradições socialmente sedimentadas, os quais traduziriam o resultado da experiência de gerações. Para o autor, essa persona possui a vantagem de evitar equívocos que poderiam advir de voluntarismos da Corte, ao mesmo tempo em que sua ênfase na resolução do caso concreto deixa amplo espaço para a deliberação social e possível revisão da tradição. Contudo, reconhecendo que tradições podem ser injustas, Sunstein considera a persona burkeana adequada para a decisão sobre temas institucionais como separação de poderes e federalismo, mas devendo ser relativizada para casos envolvendo o direito de igualdade. Assim, para o minimalista burkeano, a tradição é considerada como ponto de partida, cabendo ao juiz, a partir das particularidades do caso sob julgamento, refletir sobre a racionalidade da prática tradicional.

Sunstein não disfarça sua preferência pelo minimalista, o qual julga como a persona mais adequada às sociedades democráticas, em que os temas públicos estão sob a deliberação coletiva de pessoas livres. Não sendo um devoto da supremacia judicial na interpretação constitucional, ou pelo menos não de sua versão mais ativista, mas também criticando o originalismo, o autor ressalta a necessidade de as decisões considerarem o contexto social e institucional ao invés de se fundamentarem exclusivamente em teorizações abstratas. Sunstein parece considerar o minimalista como o prudente meio termo entre os extremos contrapostos da ação (o herói e o soldado) e uma alternativa ao extremo da inação (o mudo).

A tipologia de personas permite a categorização de juízes, Cortes, doutrinadores e até mesmo políticos. Para o autor, os icônicos juízes John Marshall (1755-1835) e Earl Warren (1891-1974) e o doutrinador Ronald Dworkin são notórios heróis. Os juízes Oliver Holmes Jr. (1841-1935) e Antonin Scalia (1936) são exemplos de soldado, que tem atualmente no professor de Harvard Adrian Vermeule sua mais sofisticada fundamentação teórica. Os juízes Felix Frankfurter (1882-1965), John Marshall Harlan (1833-1911) e Sandra O’Connor (1930) são exemplos de juízes predominantemente minimalistas. Já os mudos são personas pouco frequentes no drama constitucional, diante da impossibilidade de os juízes se manterem sempre silentes, daí porque Sunstein não identifica nenhum juiz da Suprema Corte como tipicamente mudo. Porém, entre os doutrinadores, o professor de Yale Alexander Bickel é apontado como o principal teórico da mudez jurisdicional.

Sunstein critica diretamente Bickel, sendo este o autor que mais detidamente confronta, enquanto outros autores, como Dworkin, são apenas citados. O autor praticamente qualifica a proposta de Bickel, de cultivo das virtudes passivas no controle de constitucionalidade, como uma espécie de covardia, ainda que o termo seja respeitosamente evitado. A forte crítica de Sunstein chega a surpreender, tendo em vista que Bickel é comumente lembrado pelo seu perfil contramajoritário. Portanto, o livro de Sunstein, além de seu contributo tipológico, lança uma nova perspectiva crítica sobre a obra de Bickel e, consequentemente, sobre seu estilo de contramajoritarismo. Porém, cumpre frisar que, para sua crítica, Sunstein faz referência apenas a uma obra de Bickel (The Least Dangerous Branch, de 1965) e a um livro de Gerald Gunther, reconhecido crítico desse autor. A intensidade da crítica mereceria mais ampla fundamentação.

As personas de Sunstein funcionam como tipos ideais, logo, a identificação de um juiz com uma persona não é estanque, podendo variar conforme o tema sob apreciação e também quanto à intensidade. Assim, por exemplo, um juiz pode ser herói em relação a uniões homoafetivas, mas soldado em relação à judicialização do direito à saúde. Diferentes juízes heróis podem atuar com diferentes intensidades de reformismo social e político, da mesma forma que nem todo soldado é um originalista estrito. Ainda que essa flexibilidade traga problemas para a objetividade da categorização dos juízes, ela abre as personas para a complexidade psicológica dos decisores, permitindo a identificação de suas incoerências e inconstâncias.

A despeito de ter como objeto exclusivo a Suprema Corte americana, seu contributo não se limita ao cenário daquele país, uma vez que sua análise evidencia que as decisões de questões constitucionais essenciais para a vida em sociedade podem resultar mais do perfil psicológico dos juízes do que de determinada teoria constitucional. Sunstein promove uma espécie de revolução copernicana na análise da atuação da jurisdição constitucional, para usarmos a conhecida expressão com que Kant defendeu a centralidade do sujeito cognoscente no processo de conhecimento. Similarmente, na análise das decisões das cortes constitucionais, a identificação das personas dos decisores possui uma centralidade que deve ser considerada. Afinal, muitas vezes escondida sob discussões teóricas abstratas, encontra-se a variável das personas dos juízes e suas determinantes visões sobre o papel dos tribunais constitucionais no atual Estado Democrático de Direito. Assim, a tipologia revisada de Sunstein fornece um novo e rico repertório para a análise crítica da jurisprudência das cortes constitucionais.

No entanto, o autor ressalta que sua tipologia de personas não deve ser compreendida isoladamente, sendo necessário considerá-la conjuntamente com os mecanismos característicos do processo decisório da Suprema Corte. Lembra Sunstein que, no inicio da trajetória institucional da Corte, o Chief Justice John Jay adotou o sistema seriatim para as decisões, reunindo em série os votos proferidos isoladamente por ordem de senerioridade (SUNSTEIN, 2015, p. 116). Porém, sob a presidência de Marshall, o sistema seriatimfoi substituído pelo principio da unanimidade, a fim de produzir uma decisão que significasse o inegável entendimento da Corte, e não somente obra uma maioria conjuntural, revestindo-lhe, assim, de maior legitimidade institucional e prestígio.

Portanto, a inovação e as possibilidades de análise descortinadas pelo recente livro de Cass Sunstein testemunham sua importância e instigam o público brasileiro a questionar a aplicabilidade e os efeitos dessa tipologia de personas ao processo decisório do nosso Supremo Tribunal Federal, tão vinculado ao modelo seriatim. Talvez sejam necessários algumas revisões e adaptações que tornem a tipologia mais condizente com o civil law, em que o argumento tradicionalista e seu arauto filosófico, Edmund Burke, não têm a mesma relevância que os anglo-saxões lhes atribuem. Em síntese, devemos nos perguntar quais os tipos de persona estariam mais presentes na jurisdição constitucional brasileira? Nossos Ministros são mais minimalistas ou mudos, soldados ou heróis?

Fonte: Jota

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