quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Precedentes? Decisão de 4 linhas do STF contém três violações ao CPC





10 de novembro de 2016, 8h00

Por Lenio Luiz Streck


De novo: O que são precedentes? É possível que, no Brasil, precedentes sejam teses e que, no common law, sejam outra coisa? Afinal, teses e precedentes são a mesma coisa? E as súmulas? Elas também são precedentes? Na coluna da última semana (veja aqui), diante do recente texto do ministro Roberto Barroso e Patrícia Mello, propusemos (Georges Abboud e eu) que se fizesse um colóquio — e não um solilóquio — a respeito do tema, na medida em que a proposta de transformação dos tribunais superiores em “cortes de teses” parece ser, no mínimo, açodada, para não dizer inconstitucional. Também não é “a saída” continuar sustentando que “teses” feitas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça sejam apelidadas de “precedentes”. Nossas premissas: o CPC não institui um sistema de precedentes; súmulas não são precedentes; teses também não; não somos commonlistas; não temos nada a ver com o common law. Mas se alguém invocar o common law, tem de assumir alguns ônus...! Ó que não dá é querer o melhor dos dois mundos sem “os custos da fundamentação”.

Eis que, nesta semana, enquanto Abboud e eu escrevíamos a coluna mostrando tim tim por tim tim a diferença entre os diversos institutos (sumulas, precedentes, teses, etc), deparo-me com recentíssima decisão do próprio ministro Barroso, que revela uma outra face do problema relativo à utilização irrefletida dos “precedentes” no direito brasileiro. Na medida em que teses, súmulas, decisões vinculantes e outras categorias são habitualmente equiparadas a “precedentes” pelos tribunais superiores, assumindo, com esse status, um selo de “obrigatoriedade” que “independe do seu conteúdo”, essas figuras torna(ra)m-se verdadeiros mantras cuja função é desonerar o órgão julgador do dever fundamental de fundamentação das decisões. Dito de outro modo, “precedentes” tornam-se álibis para facilitar o trabalho de juízes e tribunais, eximindo-os de fundamentar suas decisões. Tudo se transforma em “efetividade quantitativa”. Às favas a efetividade qualitativa.

Vejamos, então, a decisão proferida pelo ministro Barroso no julgamento do agravo em recurso extraordinário 992.299, oriundo de um processo que tramitou perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em que se discutia o direito à indenização por danos morais e materiais decorrente da perda de mandato eletivo e da cassação de direitos políticos com base no Ato Institucional 5. O pedido do autor foi julgado procedente em primeiro e segundo grau de jurisdição, tendo a União Federal interposto recurso extraordinário, ao qual, na origem, negou-se seguimento. Contra essa decisão, a União Federal interpôs agravo, o qual também não mereceu trânsito por parte do Supremo Tribunal Federal, conforma a seguinte decisão, prolatada pelo ministro Barroso:

Trata-se de agravo cujo objeto é decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário. A decisão agravada está correta e alinhada aos precedentes firmados por esta Corte.

Diante do exposto, com base no art. 21, § 1º, do RI/STF, nego seguimento ao recurso.

Publique-se.

Brasília, 15 de setembro de 2016.
Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO - Relator

Qual é o problema da decisão? Certamente que meu objetivo não é adentrar no mérito da questão abordada no recurso extraordinário da União Federal e no seu agravo. O que preocupa é a falta de fundamentação na decisão que negou seguimento ao agravo. Preocupa-me o conjunto de ilegalidades. Sequer é possível saber a matéria versada no recurso, pois o ministro Barroso limitou-se a dizer que a decisão agravada estaria correta e alinhada aos precedentes firmados pelo Supremo. Porém, quais são esses precedentes? Por que a decisão está correta? A menção aos “precedentes” da corte, que sequer são referidos na decisão, supre as exigências do §1º do artigo 489 do Código de Processo Civil Brasileiro?

Uma das principais conquistas do atual Código de Processo Civil brasileiro foi especificar aquilo que já era consagrado na Constituição em seu artigo 93, IX, ou seja, o dever de fundamentação das decisões judiciais. O mérito da legislação processual, no ponto, é estabelecer quando uma decisão judicial não será fundamentada, atacando, com isso, situações que se repetem na prática jurídica brasileira ao arrepio da Constituição.

Com efeito, pelo menos, três dessas situações em que uma decisão não se considera fundamentada podem ser encontradas na decisão de Barroso, quais sejam, “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (artigo 489, §1º, III), “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (artigo 489, §1º, IV) e “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (artigo 489, §1º, VI). Três violações em uma decisão de três/quatro linhas.

Não há dúvida que a decisão do ministro Barroso se baseou em “motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”, não enfrentou os argumentos deduzidos pela União Federal no seu recurso e, estando assentada em “precedente” veio a identificá-lo. Veja-se, já de pronto, o fetiche do precedente. Veja-se o tamanho da ficção que é o precedente à brasileira.

Ainda poderiam ser feitas outras objeções à decisão de Barroso. Com base em Michelle Taruffo, autor que constantemente é lembrado pelos precedentalistas brasileiros, pode-se dizer que a exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais também cumpre uma função extraprocessual, na medida em que possibilita o controle do exercício do Poder Judiciário fora do contexto processual, por parte do povo e da opinião pública em geral, tudo dentro de uma concepção democrática do poder[1]. Note-se que nem isso é possível diante da decisão do ministro Barroso, que sequer permite que aqueles que venham a consultá-la no site do Supremo possam saber do que ela trata.

Nisso tudo transparece o problema de substituir a lei e a Constituição por “precedentes” de maneira irrefletida: o precedente acaba servindo para tudo e, ao mesmo tempo, não significada nada! Com base em supostos precedentes a Corte Suprema desonera-se de fundamentar suas decisões e, com facilidade, cria-se uma barreira para o conhecimento de qualquer recurso que venha a impugnar suas próprias decisões.

Isso não significa que devemos deixar de lado a discussão a respeito dos “precedentes” no direito brasileiro. Porém, isso deve ser levado à sério, e não apenas uma ferramenta para facilitar o trabalho de tribunais e impedir o conhecimento de recursos. Então, de que vale a utilização de conceitos do common law, como é o caso do overruling se o sistema de filtros recursais, aliados à falta de fundamentação das decisões que versam sobre a admissibilidade dos recursos para os tribunais superiores impedem o exercício do direito ao contraditório como direito de influência?

Conforme lembrei na tretralogia sobre os precedentes publicada aqui na ConJur (Ver as quatro colunas Senso Incomum sobre o assunto: um, dois, três e quatro), com base na doutrina de Dierle Nunes, estamos diante do fenômeno que o processualista mineiro chamou de Einzatzgruppen (grupos de extermínio) de recursos no STF, cujo objetivo é justamente não admitir recursos. O problema é que essas decisões, do modo como são lançadas — e a decisão do ministro Barroso é um forte exemplo disso — acabam gerando diversos outros recursos. Trata-se de uma falsa efetividade, de uma efetividade quantitativa que deixa de lado a qualidade das decisões. Que efetividade é essa que multiplica os problemas?

Já falei que mesmo o genuíno precedente não pode ser considerado critério máximo para justificar o raciocínio judicial (ver aqui) e, agora, precisamos acrescentar que precedente não é um álibi para desonerar o julgador de fundamentar suas decisões. Corremos o risco de chamar tudo de precedente — repita-se, teses e ratio decidendi não são a mesma coisa — e, pior ainda, com isso desrespeitar o dever de fundamentação das decisões em favor da bandeira da efetividade (quantitativa) acima de tudo... a decisão do ministro Barroso é um sintoma disso. Urge, portanto, que a comunidade jurídica passe a questionar até onde iremos com essa transformação das cortes supremas em cortes de teses!

Numa palavra: Acredito que nem mesmo os mais ferrenhos defensores dos “precedentes obrigatórios” no Brasil aceitem essa banalização dos precedentes pelo Judiciário brasileiro. É importante repetir que os mecanismos vinculantes do artigo 927 do CPC e as “teses” que o Supremo vem lançado ao final dos seus julgamentos como defende Barroso não são precedentes.

Há tantos assuntos para falar... Mas tinha o dever cívico-epistêmico de trazer essa decisão que simboliza dramaticamente o que se está fazendo no judiciário em nome de efetividades quantitativas. Essa é a função da doutrina, como tenho dito. O silêncio eloquente de setores da doutrina é que reforçam decisões como essa. Assim ocorreu no decorrer destes 28 anos. Começaram a dizer que princípios eram (são) valores (apostando na moral contra o direito), reforçaram o livre convencimento, aplaudiram o ativismo... Ou seja: o que mais se fez foi teoria normativa da política e o que menos se fez foi teoria do direito. Com isso, o direito foi sendo fragilizado, exaurido.

Meu receio (e isso está à nossa porta) é que, quando precisarmos mesmo do direito, ele já não estará. Porque foi predado. Na verdade, por ser pré-dado, acabou sendo predado. Por isso, continuo propugnando por um grau de ortodoxia. Salvemos, pois, o direito.


1 TARUFFO, Michelle. La motivazine della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975, p. 237.

*Texto alterado às 14h34 desta quinta-feira (10/11) para correção. O número do agravo é 992.299 e não 992.229.





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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2016, 8h00

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Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2016, 8h45

TJ-RS autoriza penhora de FGTS de homem que deve pensão alimentícia a filha



Por Jomar Martins


O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado para assegurar o futuro do trabalhador em caso de dispensa, mas pode sofrer penhora, excepcionalmente, se o seu titular for credor de alimentos e não dispor de outros meios para honrar sua obrigação legal. O entendimento levou a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a deferir o pedido de penhora do FGTS para quitar a dívida de pensão alimentícia de um pai inadimplente com a Justiça desde 2011.

No primeiro grau, o juiz da 1ª Vara Judicial da Comarca de Taquari, Rodrigo de Azevedo Bortoli, indeferiu o pedido de penhora dos valores existentes na conta de FGTS do pai, por se tratar de medida excepcional. Ele disse que a parte autora não demonstrou ter esgotado os meios de localização de bens passíveis de penhora. Nesse sentido, citou precedente no Agravo 70040172314. Segundo o acórdão, "embora possível a penhora sobre saldo de FGTS em se tratando de dívida de natureza alimentar, no caso é descabida penhora, tendo em vista existir outro meio para satisfação do crédito".

A procuradora de Justiça Veleda Maria Dobke opinou pelo provimento do Agravo de Instrumento, por entender que o devedor não dispõe de outros bens passíveis de constrição nem há previsão de quando e como poderá quitar o saldo credor. Logo, justifica, excepcionalmente, a penhora sobre eventual valor existente nas contas do FGTS. Afinal, o crédito alimentar é preferencial, por significar a subsistência da filha, embora tenha completado a maioridade.

O relator do Agravo, desembargador Ivan Leomar Bruxel, seguiu na mesma linha do parecer do Ministério Público. ‘‘Tem razão a agravante, quando alega que deve ser deferida a penhora sobre o FGTS, pois se trata de dívida alimentar, e que não há lógica em resguardar o futuro do devedor enquanto o presente da agravante [filha] está sendo ameaçado’’, escreveu no acórdão, lavrado na sessão de 13 de outubro.

Filho protegido
A Justiça brasileira também já entendeu que, para proteger o direito básico do filho de receber alimentos, é possível incluir o nome do devedor de pensão alimentícia em cadastros de restrição de crédito, como Serasa e SPC. A decisão foi tomada neste ano pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao aceitar um recurso movido pela Defensoria Pública de São Paulo.

O entendimento do colegiado é que a inclusão é uma forma de coerção lícita e eficiente para incentivar a necessária quitação da dívida alimentar. Segundo o relator do recurso especial, ministro Villas Bôas Cueva, há precedentes também no próprio STJ (4ª Turma) e que tal possibilidade de inclusão está expressa no novo Código de Processo Civil (artigos 528 e 782).

Clique aqui para ler o acórdão da 8ª Câmara Cível do TJ-RS.



Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2016, 10h10

NJ ESPECIAL: Turma anula, de ofício, processo já em fase de execução ao constatar ausência de curador em ação contra réu com mal de Alzheimer





No mundo atual, cresce o número de pessoas acometidas do "mal de Alzheimer". Essa doença que, pouco a pouco, vai matando o cérebro da pessoa, geralmente idosa e com tantas coisas para contar, é estatística crescente na sociedade moderna. Não se sabe, ao certo, se a causa disso é o excesso de informação da era globalizada, ou o fato de as pessoas estarem vivendo mais ou, de resto, porque antes não se conhecia a doença... Sabe-se apenas que o mal de Alzheimer não tem cura e evolui, pouco a pouco, a ponto de deixar o indivíduo completamente incapaz.
Recentemente, a 10ª Turma do TRT de Minas julgou um caso em que se constatou que o réu na ação trabalhista sofria do "mal de Alzheimer". No recurso analisado pela Turma, a reclamante não se conformava com a sentença que rejeitou seu pedido de reconhecimento de vínculo de emprego com o réu e de pagamento dos direitos trabalhistas decorrentes. Mas, acolhendo o entendimento da relatora, desembargadora Rosemary de Oliveira Pires, a Turma declarou, de ofício, a nulidade absoluta dos atos praticados desde a audiência inaugural e determinou o retorno do processo à Vara de origem, para que fosse nomeado curador especial ao reclamado, em obediência aos artigos 4º, III, do CC/02 e 76, I, do Novo CPC.
É que ficou constatado que, embora o réu fosse pessoa absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil (art. 3º, II, do CCB), não houve nomeação de curador especial para acompanhar o processo, na forma exigida do antigo artigo 8º do CPC/73, correspondente ao artigo 71 do novo CPC.
Nesta NJ Especial, vamos detalhar um pouco dessa rica decisão e, ao final, o leitor poderá conferir mais jurisprudência sobre a matéria.
Entendendo o caso: A execução do réu, portador de AlzheimerAntes de o processo chegar às mãos da 10ª Turma do TRT-MG, um longo caminho foi percorrido. Em seu exame, a relatora nos conta todo o desenrolar do processo, de forma detalhada e esclarecedora. A narrativa nos mostra como a triste doença do réu tornou difícil a solução do caso. E os prejuízos se espalharam por todos os lados: para o réu, para a reclamante e para a aplicação da justiça. Vejamos:
Alegando ter trabalhado para o réu, Sr. Luiz, a reclamante buscou o reconhecimento de vínculo de emprego, com o pagamento dos direitos decorrentes. Já na audiência inaugural, o Sr. Luiz não compareceu, tendo sido substituído por sua cunhada e sobrinha. Elas afirmaram que ele estava doente, sem condições de gerir sua pessoa e bens, encontrando-se interditado. Inclusive, apresentaram um documento em que um médico sugeria o urgente encaminhamento do réu, então com 72 anos, à assistência social, para que fosse alojado em casa de idosos, porque apresentava sinais de Alzheimer. O profissional explicou que o Sr. Luiz morava sozinho e não tinha condições de cuidar de sua pessoa e bens.
Diante disso, o juiz concedeu um prazo para que a sobrinha e cunhada do réu apresentassem o documento comprovando a interdição, mas elas não o fizeram. Determinou-se, então, a intimação do réu por mandado judicial, realizada na pessoa do seu irmão. Mas, mais uma vez, o Sr. Luiz não compareceu à audiência marcada para a instrução do processo e, assim, o juiz declarou sua revelia, aplicando a ele a pena de confissão. Resultado: foi reconhecido o vínculo de emprego pretendido pela reclamante e o réu foi condenado a lhe pagar as parcelas trabalhistas decorrentes.
Após o trânsito em julgado da sentença, o valor do crédito da reclamante foi apurado em R$20.851,71 e o Sr. Luiz foi intimado para pagá-la, no prazo de 5 dias, sob pena de execução e cadastro no BNDT (Banco Nacional de Devedores Trabalhistas). Mas, permanecendo inerte o réu, expediu-se mandado de penhora de bens para a garantia da execução. Ao comparecer na residência do Sr. Luiz para cumprir o mandado, o oficial de justiça se deparou com quadro trágico, narrado em sua certidão:
"Deixei de proceder à penhora de bens do executado Luiz, por não encontrá-los à garantia da execução. Esclareço que trata-se de endereço da residência do Sr. Luiz, que se encontra em péssimo estado de conservação e é guarnecido ao mínimo necessário à sua sobrevivência. Esclareço mais, é idoso, apresenta-se com algum distúrbio mental (AVC?), tendo declarado morar sozinho, ser aposentado por invalidez e uma parente (cunhada) toma conta de sua alimentação, nãos sabendo precisar idade e não sabendo informar corretamente o nome da cunhada (...). E mais, segundo a Sra. Maria Gonçalves, que mora na proximidade, o Sr. Luiz é portador de mal de Alzheimer, não possuindo nenhum bem, móvel ou imóvel, sendo que a casa onde mora pertence aos herdeiros de Geraldo Cornélio Ramos, sobrevivendo com auxílio doença (LOAS) e ajuda humanitária".
Procedeu-se então ao bloqueio das contas bancárias do réu, via Bacenjud, tendo sido penhorado o valor R$685,57, após o que o Sr. Luiz se manifestou para requerer insubsistência da penhora, invocando a impenhorabilidade na forma do art. 833, IV do Novo CPC, por se tratar da única conta bancária que possuía e através da qual recebia o seu benefício de aposentadoria, sua única fonte de sustento.
Nulidade da citaçãoFinalmente, tendo em vista a Semana Nacional da Conciliação Trabalhista, foi realizada audiência de conciliação, na qual, dessa vez, esteve presente apenas o Sr. Luiz. Foi quando o juiz de primeiro grau decidiu anular o processo desde a citação, determinando a realização de nova audiência inaugural e liberação do dinheiro bloqueado, ao constatar que a citação do Sr. Luiz havia sido feita na pessoa de terceiro, seu irmão. Em sua decisão, o magistrado ressaltou que, apesar da doutrina e jurisprudência admitirem a citação não pessoal na Justiça do Trabalho, o caso concreto requer posição diferente: "O reclamado é pessoa física, de poucos recursos, com problemas de fala e audição. Além disso, não há prova de que o Sr. Tito, que recebeu a citação, informou-lhe sobre a audiência. Tenho, assim, que a citação de f. 22 é NULA e sendo esta nulidade absoluta, pode e deve ser conhecida de ofício pelo Juiz", destacou, na sentença.
Mas a coisa não acabou por aí. Após a reclamante recorrer da decisão e não ter seu apelo conhecido, por vícios formais, foi realizada nova audiência de instrução, na qual compareceram a reclamante e sua advogada e o reclamado desacompanhado de advogado. A defesa foi oralmente apresentada pelo réu com assistência de sua sobrinha, oportunidade em que a reclamante requereu a aplicação da pena de confissão ficta ante a deficiência da defesa apresentada. Posteriormente, na audiência em prosseguimento, novamente compareceu a reclamante com seu procurador e apenas a advogada do Sr. Luiz, a qual apresentou atestado médico justificando a ausência do seu cliente, que se encontrava "acamado com impossibilidade de andar devido a fratura no fêmur esquerdo".
Finalmente, ambas as partes compareceram em nova audiência de instrução na qual a reclamante prestou depoimento pessoal e ouviu-se como informante a testemunha do réu. Especificamente com relação ao depoimento pessoal do Sr. Luiz, o juiz de primeiro grau fez constar em ata observações bastante esclarecedoras quanto ao seu estado de saúde: o réu é um senhor de idade que encontra-se numa cadeira de rodas e não consegue compreender as perguntas que lhe são formuladas; embora lhe tenha sido perguntado o número de vezes que a reclamante lhe prestava serviços, ele enumerava fatos sem ligação com a causa, como algo sobre hospital ou sobre sua condição de saúde. Em seguida, o magistrado proferiu sentença, em que julgou improcedentes os pedidos da reclamante.
Recurso da reclamanteInconformada com a improcedência dos pedidos, a reclamante recorreu da sentença. Em síntese, alegou a validade da citação do Sr. Luiz e pediu que se regularizasse a representação processual, já que ele estava em cadeira de rodas e não conseguia compreender as perguntas que lhe eram feitas. Pediu, ainda, que fosse reconhecida a confissão do réu, em razão da deficiência da defesa apresentada por ele, com a procedência dos pedidos formulados na ação. Mas, a Turma acolheu os fundamentos da relatora e foi por outro caminho.

Réu com doença incapacitante: ausência de curador para acompanhar o processo gera nulidade absolutaConforme ressaltou a desembargadora, com a publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/ 2015), foram revogados os incisos I, II e III do artigo 3º do Código Civil de 2002, que trata das pessoas absolutamente incapazes, e introduzido ao artigo 4º, que dispõe sobre as pessoas relativamente incapazes, considerando como tais: "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade" (art. 4º, III).
Prosseguindo em sua análise, a relatora registrou que, de acordo o artigo 70 do Novo CPC, (correspondente ao artigo 7º do CPC/73), possui capacidade processual, ou seja, capacidade para estar em juízo: "Toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos". Já o artigo 71 do Novo CPC (antigo art. 8º do CPC/73) dispõe que: "O incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na forma da lei". Neste mesmo sentido, o artigo 84, §1º da Lei 13.146/2015: "Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei".
No caso, ficou demonstrado que o Sr. Luiz, réu na ação, é senhor de idade (72 anos), portador de doença grave (Alzheimer), que o impossibilita de exercer os seus direitos sem a devida assistência. Tanto que o estado do réu constatado em audiência, foi justamente o argumento utilizado pelo juiz de primeira instância para declarar nula a citação e anular todos os atos processuais até ali praticados. Diante desse quadro, a julgadora ponderou que deveria ter sido nomeado curador especial para acompanhar processo, o que não foi feito, culminando na nulidade de todos os atos processuais.
"Constatando-se no decorrer do processo que uma das partes apresenta dificuldade na compreensão dos seus atos e falta de discernimento quanto aos fatos tratados no processado, inserindo-se na hipótese prevista no artigo 4º, III do CC/02 supra, deve o julgador, com vistas a regularizar a representação processual da parte, nomear curador especial para acompanhar o processo, na forma do artigo 9º do CPC/73 (atualmente disposto no art. 72 do Novo CPC), sob pena de nulidade de todos os atos processuais praticados nos autos, visto se tratar de vício insanável", destacou a desembargadora, em seu voto. É que o inciso I do aludido artigo 9º (atual art. 72) estabelece a obrigação de o juiz nomear curador especial ao incapaz despido de representante legal (curador), o que se amolda perfeitamente ao caso julgado.
Por fim, a desembargadora lembrou que a irregularidade verificada no caso, por defeito de representação de incapaz, configura nulidade absoluta e, sendo assim, pode ser levantada de ofício (independente de pedido da parte) e em qualquer instância. Por tais razões, acolhidas pela Turma revisora, foi reconhecida, de ofício, a nulidade de todos os atos praticados no processo desde a audiência inaugural, determinando-se seu retorno à Vara de origem para que fosse nomeado curador especial ao reclamado, após o quê, o processo deverá prosseguir, como se entender de direito.
00116-2014-102-03-00-7 RO - acórdão em 24/08/2016

Clique AQUI para ler a jurisprudência do TRT-MG sobre nulidade do processo por irregularidade na representação de incapaz

Outra matéria envolvendo o Mal de Alzheimer na Justiça do Trabalho - VÍDEO produzido pelo TST

Conheça mais sobre o mal de Alzheimer AQUI e AQUI

Para se aprofundar sobre o tema, leia AQUI o artigo "O Estatuto da Pessoa com Deficiência e suas repercussões na capacidade civil", de autoria da desembargadora Taísa Maria Macena de Lima, disponível na JusLaboris e na Revista do TRT-MG (Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 60, n. 91, p. 223-234, jan./jun. 2015). 

Fonte: TRT3

terça-feira, 8 de novembro de 2016

NJ ESPECIAL: Turma anula, de ofício, processo já em fase de execução ao constatar ausência de curador em ação contra réu com mal de Alzheimer





No mundo atual, cresce o número de pessoas acometidas do "mal de Alzheimer". Essa doença que, pouco a pouco, vai matando o cérebro da pessoa, geralmente idosa e com tantas coisas para contar, é estatística crescente na sociedade moderna. Não se sabe, ao certo, se a causa disso é o excesso de informação da era globalizada, ou o fato de as pessoas estarem vivendo mais ou, de resto, porque antes não se conhecia a doença... Sabe-se apenas que o mal de Alzheimer não tem cura e evolui, pouco a pouco, a ponto de deixar o indivíduo completamente incapaz.
Recentemente, a 10ª Turma do TRT de Minas julgou um caso em que se constatou que o réu na ação trabalhista sofria do "mal de Alzheimer". No recurso analisado pela Turma, a reclamante não se conformava com a sentença que rejeitou seu pedido de reconhecimento de vínculo de emprego com o réu e de pagamento dos direitos trabalhistas decorrentes. Mas, acolhendo o entendimento da relatora, desembargadora Rosemary de Oliveira Pires, a Turma declarou, de ofício, a nulidade absoluta dos atos praticados desde a audiência inaugural e determinou o retorno do processo à Vara de origem, para que fosse nomeado curador especial ao reclamado, em obediência aos artigos 4º, III, do CC/02 e 76, I, do Novo CPC.
É que ficou constatado que, embora o réu fosse pessoa absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil (art. 3º, II, do CCB), não houve nomeação de curador especial para acompanhar o processo, na forma exigida do antigo artigo 8º do CPC/73, correspondente ao artigo 71 do novo CPC.
Nesta NJ Especial, vamos detalhar um pouco dessa rica decisão e, ao final, o leitor poderá conferir mais jurisprudência sobre a matéria.
Entendendo o caso: A execução do réu, portador de Alzheimer
Antes de o processo chegar às mãos da 10ª Turma do TRT-MG, um longo caminho foi percorrido. Em seu exame, a relatora nos conta todo o desenrolar do processo, de forma detalhada e esclarecedora. A narrativa nos mostra como a triste doença do réu tornou difícil a solução do caso. E os prejuízos se espalharam por todos os lados: para o réu, para a reclamante e para a aplicação da justiça. Vejamos:
Alegando ter trabalhado para o réu, Sr. Luiz, a reclamante buscou o reconhecimento de vínculo de emprego, com o pagamento dos direitos decorrentes. Já na audiência inaugural, o Sr. Luiz não compareceu, tendo sido substituído por sua cunhada e sobrinha. Elas afirmaram que ele estava doente, sem condições de gerir sua pessoa e bens, encontrando-se interditado. Inclusive, apresentaram um documento em que um médico sugeria o urgente encaminhamento do réu, então com 72 anos, à assistência social, para que fosse alojado em casa de idosos, porque apresentava sinais de Alzheimer. O profissional explicou que o Sr. Luiz morava sozinho e não tinha condições de cuidar de sua pessoa e bens.
Diante disso, o juiz concedeu um prazo para que a sobrinha e cunhada do réu apresentassem o documento comprovando a interdição, mas elas não o fizeram. Determinou-se, então, a intimação do réu por mandado judicial, realizada na pessoa do seu irmão. Mas, mais uma vez, o Sr. Luiz não compareceu à audiência marcada para a instrução do processo e, assim, o juiz declarou sua revelia, aplicando a ele a pena de confissão. Resultado: foi reconhecido o vínculo de emprego pretendido pela reclamante e o réu foi condenado a lhe pagar as parcelas trabalhistas decorrentes.
Após o trânsito em julgado da sentença, o valor do crédito da reclamante foi apurado em R$20.851,71 e o Sr. Luiz foi intimado para pagá-la, no prazo de 5 dias, sob pena de execução e cadastro no BNDT (Banco Nacional de Devedores Trabalhistas). Mas, permanecendo inerte o réu, expediu-se mandado de penhora de bens para a garantia da execução. Ao comparecer na residência do Sr. Luiz para cumprir o mandado, o oficial de justiça se deparou com quadro trágico, narrado em sua certidão:
"Deixei de proceder à penhora de bens do executado Luiz, por não encontrá-los à garantia da execução. Esclareço que trata-se de endereço da residência do Sr. Luiz, que se encontra em péssimo estado de conservação e é guarnecido ao mínimo necessário à sua sobrevivência. Esclareço mais, é idoso, apresenta-se com algum distúrbio mental (AVC?), tendo declarado morar sozinho, ser aposentado por invalidez e uma parente (cunhada) toma conta de sua alimentação, nãos sabendo precisar idade e não sabendo informar corretamente o nome da cunhada (...). E mais, segundo a Sra. Maria Gonçalves, que mora na proximidade, o Sr. Luiz é portador de mal de Alzheimer, não possuindo nenhum bem, móvel ou imóvel, sendo que a casa onde mora pertence aos herdeiros de Geraldo Cornélio Ramos, sobrevivendo com auxílio doença (LOAS) e ajuda humanitária".
Procedeu-se então ao bloqueio das contas bancárias do réu, via Bacenjud, tendo sido penhorado o valor R$685,57, após o que o Sr. Luiz se manifestou para requerer insubsistência da penhora, invocando a impenhorabilidade na forma do art. 833, IV do Novo CPC, por se tratar da única conta bancária que possuía e através da qual recebia o seu benefício de aposentadoria, sua única fonte de sustento.
Nulidade da citação
Finalmente, tendo em vista a Semana Nacional da Conciliação Trabalhista, foi realizada audiência de conciliação, na qual, dessa vez, esteve presente apenas o Sr. Luiz. Foi quando o juiz de primeiro grau decidiu anular o processo desde a citação, determinando a realização de nova audiência inaugural e liberação do dinheiro bloqueado, ao constatar que a citação do Sr. Luiz havia sido feita na pessoa de terceiro, seu irmão. Em sua decisão, o magistrado ressaltou que, apesar da doutrina e jurisprudência admitirem a citação não pessoal na Justiça do Trabalho, o caso concreto requer posição diferente: "O reclamado é pessoa física, de poucos recursos, com problemas de fala e audição. Além disso, não há prova de que o Sr. Tito, que recebeu a citação, informou-lhe sobre a audiência. Tenho, assim, que a citação de f. 22 é NULA e sendo esta nulidade absoluta, pode e deve ser conhecida de ofício pelo Juiz", destacou, na sentença.
Mas a coisa não acabou por aí. Após a reclamante recorrer da decisão e não ter seu apelo conhecido, por vícios formais, foi realizada nova audiência de instrução, na qual compareceram a reclamante e sua advogada e o reclamado desacompanhado de advogado. A defesa foi oralmente apresentada pelo réu com assistência de sua sobrinha, oportunidade em que a reclamante requereu a aplicação da pena de confissão ficta ante a deficiência da defesa apresentada. Posteriormente, na audiência em prosseguimento, novamente compareceu a reclamante com seu procurador e apenas a advogada do Sr. Luiz, a qual apresentou atestado médico justificando a ausência do seu cliente, que se encontrava "acamado com impossibilidade de andar devido a fratura no fêmur esquerdo".
Finalmente, ambas as partes compareceram em nova audiência de instrução na qual a reclamante prestou depoimento pessoal e ouviu-se como informante a testemunha do réu. Especificamente com relação ao depoimento pessoal do Sr. Luiz, o juiz de primeiro grau fez constar em ata observações bastante esclarecedoras quanto ao seu estado de saúde: o réu é um senhor de idade que encontra-se numa cadeira de rodas e não consegue compreender as perguntas que lhe são formuladas; embora lhe tenha sido perguntado o número de vezes que a reclamante lhe prestava serviços, ele enumerava fatos sem ligação com a causa, como algo sobre hospital ou sobre sua condição de saúde. Em seguida, o magistrado proferiu sentença, em que julgou improcedentes os pedidos da reclamante.
Recurso da reclamante
Inconformada com a improcedência dos pedidos, a reclamante recorreu da sentença. Em síntese, alegou a validade da citação do Sr. Luiz e pediu que se regularizasse a representação processual, já que ele estava em cadeira de rodas e não conseguia compreender as perguntas que lhe eram feitas. Pediu, ainda, que fosse reconhecida a confissão do réu, em razão da deficiência da defesa apresentada por ele, com a procedência dos pedidos formulados na ação. Mas, a Turma acolheu os fundamentos da relatora e foi por outro caminho.

Réu com doença incapacitante: ausência de curador para acompanhar o processo gera nulidade absoluta
Conforme ressaltou a desembargadora, com a publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/ 2015), foram revogados os incisos I, II e III do artigo 3º do Código Civil de 2002, que trata das pessoas absolutamente incapazes, e introduzido ao artigo 4º, que dispõe sobre as pessoas relativamente incapazes, considerando como tais: "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade" (art. 4º, III).
Prosseguindo em sua análise, a relatora registrou que, de acordo o artigo 70 do Novo CPC, (correspondente ao artigo 7º do CPC/73), possui capacidade processual, ou seja, capacidade para estar em juízo: "Toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos". Já o artigo 71 do Novo CPC (antigo art. 8º do CPC/73) dispõe que: "O incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na forma da lei". Neste mesmo sentido, o artigo 84, §1º da Lei 13.146/2015: "Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei".
No caso, ficou demonstrado que o Sr. Luiz, réu na ação, é senhor de idade (72 anos), portador de doença grave (Alzheimer), que o impossibilita de exercer os seus direitos sem a devida assistência. Tanto que o estado do réu constatado em audiência, foi justamente o argumento utilizado pelo juiz de primeira instância para declarar nula a citação e anular todos os atos processuais até ali praticados. Diante desse quadro, a julgadora ponderou que deveria ter sido nomeado curador especial para acompanhar processo, o que não foi feito, culminando na nulidade de todos os atos processuais.
"Constatando-se no decorrer do processo que uma das partes apresenta dificuldade na compreensão dos seus atos e falta de discernimento quanto aos fatos tratados no processado, inserindo-se na hipótese prevista no artigo 4º, III do CC/02 supra, deve o julgador, com vistas a regularizar a representação processual da parte, nomear curador especial para acompanhar o processo, na forma do artigo 9º do CPC/73 (atualmente disposto no art. 72 do Novo CPC), sob pena de nulidade de todos os atos processuais praticados nos autos, visto se tratar de vício insanável", destacou a desembargadora, em seu voto. É que o inciso I do aludido artigo 9º (atual art. 72) estabelece a obrigação de o juiz nomear curador especial ao incapaz despido de representante legal (curador), o que se amolda perfeitamente ao caso julgado.
Por fim, a desembargadora lembrou que a irregularidade verificada no caso, por defeito de representação de incapaz, configura nulidade absoluta e, sendo assim, pode ser levantada de ofício (independente de pedido da parte) e em qualquer instância. Por tais razões, acolhidas pela Turma revisora, foi reconhecida, de ofício, a nulidade de todos os atos praticados no processo desde a audiência inaugural, determinando-se seu retorno à Vara de origem para que fosse nomeado curador especial ao reclamado, após o quê, o processo deverá prosseguir, como se entender de direito.
00116-2014-102-03-00-7 RO - acórdão em 24/08/2016

Clique AQUI para ler a jurisprudência do TRT-MG sobre nulidade do processo por irregularidade na representação de incapaz

Outra matéria envolvendo o Mal de Alzheimer na Justiça do Trabalho - VÍDEO produzido pelo TST

Conheça mais sobre o mal de Alzheimer AQUI e AQUI

Para se aprofundar sobre o tema, leia AQUI o artigo O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUAS REPERCUSSÕES NA CAPACIDADE CIVIL, de autoria da desembargadora TAISA MARIA MACENA DE LIMA, disponível na JusLaboris e na Revista do TRT-MG (Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 60, n. 91, p. 223-234, jan./jun. 2015). 

Fonte: TRT3

Empregada que trabalhou em período de licença médica será indenizada por danos morais




A prestação de serviços pelo empregado doente, por ordem do empregador, traduz evidente afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção da saúde, afrontando direitos de personalidade do trabalhador, o que impõe a obrigação de indenizar. Esse o entendimento da juíza convocada Sabrina de Farias Fróes Leão, em sua atuação na 7ª Turma do TRT mineiro, ao dar provimento ao recurso de uma trabalhadora, condenando a empregadora, uma empresa de transportes, a indenizá-la pelos danos morais que sofreu ao ser obrigada a trabalhar no período em que estaria em licença médica.
Conforme apurado, embora afastada por motivos de saúde, a empregada trabalhou nos dias 27/03/2012 e nos 12 a 14/09/2012. Para a julgadora, a empresa ignorou o fato de que a trabalhadora estava impossibilitada de exercer suas atividades, situação em que a prestação de serviços é impedida pela ordem jurídica, implicando em prática de ato ofensivo à legislação trabalhista. Como esclareceu, a vedação do trabalho nos dias de afastamento por motivo de doença justifica-se em razão do direito do empregado à recuperação da sua saúde e, consequentemente, da capacidade laborativa. A magistrada não teve dúvidas de que, em razão dessa conduta patronal, a trabalhadora experimentou sentimentos que afetam a higidez psicológica, tais como, angústia, tristeza, insegurança, constrangimentos, entre outros.
Para a julgadora, "não é crível imaginar-se que o empregado, de posse de um atestado médico recomendando o afastamento de suas atividades laborais, deixasse de entregá-lo ao empregador", ponderou, rejeitando a tese patronal nesse sentido. Diante desse contexto, entendeu mais aceitável a alegação da empregada no sentido de que a empregadora recusou-se a aceitar os atestados médicos.
Acompanhando o entendimento da relatora, a Turma julgadora acresceu à condenação o pagamento da indenização pelos danos morais no valor de R$3.000,00, a ser corrigida na forma da Súmula 439 do TST.
( 0001379-03.2013.5.03.0069 RO )

Fonte: TRT3

Supermercado terá que indenizar empregada que sofreu assédio moral de colegas e desenvolveu transtorno de ajustamento




Uma rede de supermercados foi condenada a pagar indenização por danos morais a uma técnica de alimentos assediada moralmente por colegas de trabalho e que, em razão das dificuldades enfrentadas no ambiente de trabalho, passou a sofrer doença psiquiátrica denominada "transtorno de ajustamento". A condenação foi imposta pelo juiz José Nilton Ferreira Pandelot, titular da 1ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora. A decisão foi confirmada pelo TRT de Minas que, reconhecendo a chamada "concausa" entre a doença e as condições de trabalho, manteve o valor fixado para a indenização por danos morais em R$10 mil e reduziu a relacionada ao assédio moral para esse mesmo valor.

Após analisar as provas, o magistrado constatou que a trabalhadora era responsável pela assepsia na produção, mas suas orientações não eram bem recebidas pelos funcionários. Muito pelo contrário, eram questionadas de forma desrespeitosa e agressiva. Nesse sentido, a prova testemunhal apontou, por exemplo, que os padeiros mais antigos não queriam mudar o jeito de trabalhar. Por sua vez, o encarregado do setor queria usar produtos que estavam com prazo de validade para vencer. Segundo relatado, a trabalhadora foi apelidada de "Bob Esponja", "galinha", entre outros termos pejorativos, sendo tratada aos gritos diante das orientações repassadas por ela. Uma testemunha disse já ter visto a técnica de alimentos chorando. Várias humilhações foram descritas nos depoimentos, que também apontaram que a chefia nada fazia para solucionar os conflitos.

Para o julgador, mesmo que a trabalhadora não fosse superiora hierárquica, sua função era supervisionar, cabendo aos demais empregados observar as orientações por ela indicadas. Mas não era isso o que acontecia, já que a empresa indicava medidas diversas, em inobservância das regras básicas de higiene e saúde dos consumidores, expondo a técnica a situações constrangedoras.

"O empregador é responsável por fornecer condições adequadas de serviço, devendo zelar pelo meio ambiente saudável de trabalho", alertou o juiz, ressaltando não ter encontrado nas provas qualquer indicação de que a técnica de alimentos adotasse conduta arbitrária perante os demais funcionários. As provas revelaram justamente o contrário: a excelência das funções por ela desempenhadas.

"A conduta que inobserva o tratamento digno entre os funcionários sem qualquer medida reparadora por parte do empregadora, encerra causa direta e eficaz para imposição de obrigação de reparar o dano extrapatrimonial", destacou, condenando a rede de supermercados ao pagamento de indenização por assédio moral no valor de R$ 20 mil, montante reduzido para R$10 mil em grau de recurso.

Por outro lado, uma perícia médica concluiu que o trabalho atuou como "concausa" (causa que se junta a outra para a produção de um resultado) para o aparecimento de uma doença psiquiátrica denominada "transtorno de ajustamento". O perito avaliou se tratar de quadro de evolução benigna e favorável em período de cerca de um ano, orientando que a trabalhadora retornasse à área de atuação profissional ou em funções compatíveis com aptidão normal para o trabalho.

No entender do juiz sentenciante, a exposição a situações constrangedoras no ambiente de trabalho justificam o quadro de saúde da trabalhadora, portadora de quadro fóbico residual. "Patente a culpa patronal que deixou de adotar procedimentos imprescindíveis à humanização do trabalho", registrou, decidindo condenar o patrão ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$10 mil, o que foi mantido pelo TRT mineiro, por maioria de votos. ( 0001072-20.2014.5.03.0035 ED )



Fonte: TRT3

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O solilóquio epistêmico do ministro Roberto Barroso sobre precedentes


Por Lenio Luiz Streck e Georges Abboud


Recentemente, o ministro Roberto Barroso publicou, em coautoria com Patrícia Perrone Campos Mello, artigo intitulado “Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro”. No referido trabalho, há diversas inconsistências teóricas e sincretismos que denunciamos, tanto no nosso livro O que é isto – O Precedente Judicial e as Súmulas Vinculantes[1] quanto nos Comentários ao Código de Processo Civil.[2]

Em síntese, o ministro Barroso e Mello fazem uma apologia aos mecanismos vinculatórios do Direito brasileiro, sem praticamente enfrentar nenhum argumento de quem se opõe ao tema tal qual ele é apresentado no Brasil. Aliás, o artigo não dialoga. Seguindo certo tipo de modelo de doutrina brasileira, ignora a história institucional acerca do fenômeno. Ora, dezenas de juristas têm posição contrária. Mas Barroso e Mello preferem o solilóquio epistêmico. Basicamente, o artigo incorre nos dois chavões tradicionais: 1) o CPC-2015 aproxima o Brasil do common law; e 2) os provimentos do artigo 927 são considerados de forma simplificada como “precedente”. Deveriam ter lido o caso Marbury v. Madison, de mais de 200 anos atrás. Uma lei ordinária não pode alterar a competência e função dos tribunais prevista originalmente na Constituição. Interessante é que eles afirmam que o CPC nos aproxima do common law, mas não querem o compromisso (ônus) do common law. Só a parte boa.

Não fosse por outro argumento, este nosso texto poderia ser resumir ao seguinte: se a tese de Barroso e Mello está baseada no conceito de que o sistema brasileiro se aproximou do common law, então eles mesmos não poderiam dizer que os provimentos do artigo 927 são precedentes. A contradição é flagrante. Por quê? Porque precedentes do common law não admitem, nem de longe, isso que querem estabelecer aqui no Brasil. Por uma razão simples: precedentes do common law não-são-feitos-para-resolver-casos-futuros; precedentes não nascem precedentes; sua aplicação posterior é contingencial. Simples assim.

Mas, por amor ao debate, vamos aprofundar as demais contradições do texto de Barroso e Mello. As conclusões, por serem carreadas por ministro do STF, evidenciam a importância dos alertas que constantemente lançamos em nossos escritos sobre o tema (diversos outros autores têm demonstrado preocupação com essa simplificada transposição que que querem fazer do common law para os mecanismos vinculatórios brasileiros, e.g. Dierle Nunes, Alexandre Bahia, Marcelo Cattoni, Flávio Quinaud, Nelson Nery Jr., Cassio Scarpinella Bueno, José Miguel Garcia Medina, Maurício Ramires, Júlio Rossi, Marcos Cavalcanti, Eduardo Fonseca, Lucio Delfino, Francisco Borges Motta e tantos outros). O fetiche pelo precedente é tamanho que toda decisão judicial, para Barroso e Mello, é precedente. Incrível. Se isso é verdade, como tratar uma súmula vinculante? De todo modo, para os autores, o precedente se dividiria em três: persuasivo, que vincula apenas as partes; com eficácia normativa forte, que deve obrigatoriamente ser observado; e o intermediário, que seria uma categoria residual. Sinceramente, perguntamos: qual a relevância de afirmar que tudo é precedente? Permitimo-nos até a fazer uma ironia respeitosa: De que modo o Direito brasileiro sobreviveu até hoje sem a categoria, por exemplo, do precedente que vincula apenas as partes?

De forma resumida, Barroso e Mello glorificam a nova “era precedentalistas” pretensamente trazida pelo CPC-2015, para, em seguida, passar a tratar todos os provimentos vinculantes do artigo 927 como “precedentes”. Aqui já se inicia o sincretismo: decisões de IRDR, RE/REsp repetitivos são equiparadas a decisões de controle abstrato de constitucionalidade que, por sua vez, são equiparados às súmulas simples e vinculantes. Com a devida vênia, esse equívoco é imperdoável. Ou seja, tudo vira precedente, como se todos esses provimentos – por se tornarem de observância obrigatória por lei – já virariam assim precedentes do common law do dia para noite. Aliás, trata-se de retrocesso doutrinário. A própria súmula vinculante, em seu início, era frequentemente equiparada ao precedente. Essa errônea equiparação foi objeto de nossa constante crítica (pelo menos desde 1993), depois de muita confusão, a maior parcela da doutrina, fundamentada principalmente, nos textos de Castanheira Neves sobre assentos começou a efetivar a devida distinção. Agora devemos retroceder? Novamente equiparar precedente a súmula e ao julgamento de questões repetitivas?

Conforme já demonstramos em nossos comentários ao CPC (op.cit), diferenciar súmula do genuíno precedente e do julgamento de causas repetitivas não se faz para afirmar qual é melhor que o outro. Pelo contrário, essa diferenciação deve ser feita porque efetivamente são institutos jurídicos diferentes que comportam operacionalização distinta. Não é porque assim queremos. É porque é assim. Não nos esqueçamos, o próprio Código diferencia os institutos. Simples assim.

Após fazer essa equiparação sincrética dos provimentos, o texto de Barroso e Mello passa a expor a necessidade de compreensão do que é dicta, ratio decidendi e holding. Nesse ponto, são tratadas algumas exposições do Direito alienígena acerca desses institutos. Aqui já fica uma dúvida: se súmula é a mesma coisa que um precedente, o que é holding e o que é dicta em uma súmula? Eis a questão. Mais: uma “tese” (dessas que o STF e o STJ fazem) é “precedente”?

Voltando à temática, o artigo expõe: “A ratio decidendi ou a tese é uma descrição do entendimento jurídico que serviu de base à decisão. (...)Nos Estados Unidos, embora as decisões da Suprema Corte contenham um syllabus, a providência de explicitação da tese jurídica do julgamento é menos necessária. Isto porque o modelo de decisão naquele país é deliberativo: os justices se reúnem reservadamente, in conference, e produzem uma decisão unânime ou majoritária” (op.cit, p. 22/23).

Não nos parece adequado simplesmente equiparar ratio decidendi a uma tese jurídica repetitiva presente em RE e REsp. E nem equiparar precedente a qualquer tese jurídica que o STF e o STJ façam. Não sabem que a genuína ratio decidendi vai se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo em função dos futuros casos em que o “genuíno” precedente passa a ser replicado? Não sabem que a ratio decidendi não é imposta pelo tribunal superior prolator da decisão? Não sabem que ela se estrutura pelo trabalho dos causídicos e das instâncias inferiores? Ou alguém imagina o justice Marshall finalizando o voto e escrevendo: doravante, está criado o controle difuso de constitucionalidade?

Vamos exemplificar: O parágrafo 11 do artigo 1.035 estabelece, claramente, que deve ser fixada a tese no acórdão, porque estamos diante de julgamento de causas repetitivas. Ou seja, a decisão do STF e STJ nesse caso será o parâmetro normativo redutor de complexidade de uma litigiosidade repetitiva. Não se trata de uma aplicação de precedente no estilo common law em que há uma criação de complexidade para se investigar o que efetivamente é ratio decidendi para orientar causa futuras. Não nos parece adequado a afirmação de que no common law, os tribunais superiores definam o que é a ratio decidendi e a compilam em um enunciado abstrato de tese para aplicação das instâncias inferiores. É equivocado dizer isso.

Do mesmo modo, também incorre em sincretismo a afirmação de que teria havido a necessidade de ressurgirmos com a teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes das decisões do controle abstrato de constitucionalidade. Trata-se de tese doutrinária iniciada na Alemanha, local em que ela sofre severas críticas e diminuída aplicação.[3] De todo modo, isso nada tem a ver com o genuíno precedente. E nem com o precedente à brasileira.[4]

Por fim, denunciamos novamente o caráter realista (no sentido do realismo abrasileirado, tipo “de-qualquer-modo-o-Direito-é-mesmo-aquilo-que-o-Judiciario-diz-que-é-e-a-maior-parte-da-doutrina-concordará) da forma como é apresentada a vinculação brasileira. Em nenhum escrito nosso afirmamos que devem ser ignoradas as formas como decidem os tribunais superiores. Aliás, um dos autores (Streck[5]) já há mais de 20 anos diz que as súmulas jamais foram um mal em si, porque súmulas, como os precedentes, são sempre textos e textos são interpretáveis. Todavia, quando o STF/STJ pode emitir decisões de observância obrigatória e fixar teses em abstrato (coisa que só acontece por aqui)[6] – que no entendimento dos autores – seriam a materialização da ratio decidendi, em verdade, não estamos falando de sistema de precedentes para valer. Na realidade, com isso, camuflamos nosso padrão vinculatório sui generis.

Conforme nossos comentários ao artigo 926 do CPC, a integridade impõe um compromisso de todo julgador com a cadeia decisória em que ele está inserto. O que estamos dizendo claramente é que existe campo para se teorizar e argumentar de forma similar ao precedente do common law, todavia, afirmar que inauguramos uma nova era precedentalista ou que todos os dispositivos do artigo 927 são precedentes “porque sim”, no mínimo isso é sincretismo teórico. Daí a importância de se garantir uma interpretação conforme a Constituição do artigo 927 sustentada minimamente em duas premissas que não abandonamos: 1) todo provimento vinculante do artigo 927 comporta interpretação e não se aplica por mero silogismo; 2) precedente genuíno não se equipara a julgamento de litigiosidade repetitiva, e os tribunais superiores não podem fixar teses equiparando-se a legisladores, sendo que a fixação da tese é consequência direta dos casos concretos devidamente julgados em amplo contraditório e com a fiel observância do inciso IX do artigo 93 da CF e do parágrafo 1º do artigo 489 do CPC.

Assim, consideramos que a leitura do CPC feita por Barroso e Mello não é adequada, porque desrespeita a Constituição. Isto porque lei ordinária não pode alterar o exercício da jurisdição (em relação à própria lei, por exemplo). Sim, pois se o CPC-2015 tiver alterado a relação entre lei e jurisdição, criando precedentes vinculantes, o novo CPC não seria inconstitucional? Estamos convictos que, valendo as regras do jogo democrático-constitucional, não é possível que uma lei ordinária introduza um sistema de precedentes vinculantes sem violar o modelo constitucional do processo adotado pela Constituição.

Em termos teóricos, repetimos que não há dúvida de que, por trás da tese de que o CPC teria adotado um sistema de precedentes vinculantes está o realismo jurídico (modulado ao Brasil). Nesse sentido, chamamos à colação um positivista como Frederick Schauer, que, apesar de analítico, está muito mais próximo de nossas afirmações que das de Barroso e os demais defensores da tese aqui criticada. Selecionamos duas partes que julgamos fundamentais: o que é semelhante para fins de aplicação de precedente é algo controvertido e que o precedente tem pedigree histórico.


"Initially, the principle that like cases should be decided a like would seem to make an unassailable argument for precedent. But the difficulty of denying that like cases should be decided alike is precisely the problem. The statement is so broad as to be almost meaningless. The hard question is what we mean by 'alike.'".[7]

Schauer está dizendo que é uma obviedade em favor dos precedentes argumentar que um caso semelhante deve ser julgado igual o outro. E que isso é praticamente irrelevante na defesa do precedente. O que efetivamente interessa é definir o que são casos semelhantes. O conceito de o que é efetivamente semelhante é algo altamente controvertido. Ou seja, há uma dimensão interpretativa na aplicação do precedente que não pode ser ignorada. Não basta afirmarmos que casos iguais devem ser decididos de forma igual. Isso é meramente performático. A lei também é igual para todos e deve ser aplicada de forma igual para casos semelhantes. Ainda para ficarmos na expressão do Schauer, o precedente tem um pedigree histórico (historical pedigree,) que não pode ser ignorado em sua aplicação.[8]

Portanto, de qualquer lado que se olhe, da hermenêutica ou do positivismo jurídico (normativo), a tese sustentada por Barroso e Mello não se sustenta. Isto não quer dizer que não precisemos, urgentemente, definir o que queremos no Brasil. Afinal, temos que responder a seguinte pergunta:


Queremos que o STJ e STF façam teses abstratas e coloquem o rótulo de “precedente” ou queremos que, de fato, tenhamos um sistema que respeite a coerência e a integridade do direito, em que a palavra “precedente” seja diferenciada de súmula e de tese oriunda de recurso repetitivo e assunção de competência?

Claro que, para que tenhamos coerência e respeitemos a integridade, cada caso deve influenciar e dele temos de retirar um principio que ilumine e seja seguido pelos demais tribunais e juízes. Isso é elementar. Cada instituto com suas peculiaridades: uma súmula tem seu DNA; ela não é precedente; uma tese de IRRD e AC tem sua holding vinculatória; um caso julgado gera um precedente para casos análogos. Mas o que não se pode admitir é que os tribunais passem a legislar, fazendo um rearranjo institucional. O que não podemos admitir é que os tribunais “façam” precedentes com o fito de antecipar as respostas dos casos futuros. Não é disso que trata o CPC-2015.

Ou seja, não pode(re)mos aceitar que tudo o que está, basicamente, nos artigos 926 e 927 seja colocado no mesmo saco e se diga: eis aqui o “sistema de precedentes”, quando, por exemplo, uma súmula tem uma cadeia de precedentes que a formam. Logo, se súmula não é precedente, é porque nem tudo é precedente. E muito menos se pode admitir que o STF e o STJ façam “teses” batizando-as com o nome de “precedentes”. Precedente não é ementa, não é súmula e nem mesmo mero enunciado em abstrato. E ainda por cima se diga que “isso é assim porque no common law é feito desse modo”. A boa doutrina não há de permitir isso.

Tudo isso para dizer que, respeitando a posição do ministro Barroso e de quem assim pense, queremos apenas que sejam respeitadas as opiniões em contrário. E que haja diálogo e não imposição. Não é o fato de o autor deter a autoridade - em um país em que a doutrina tem receio de contrariar as autoridades - que possamos dizer, como que a imitar o velho adágio do positivismo moderno de que autorictas non veritas facit legis (é a autoridade e não a verdade que faz a lei) que agora temos Auctoritate Summi Court est – non veritas - quod dicatur quod "precedent" (é a autoridade da suprema corte que faz o precedente e não a sua verdade). Resta saber se o texto de Barroso, porque escrito por um ministro da Suprema Corte, foi feito para dialogar ou é magister dixit.

De nossa parte, insistimos na tese de que não existe esse “sistema de precedentes” do qual falam. E, sim, estamos dispostos ao diálogo. Não cremos que a doutrina brasileira, em um pais de um milhão de advogados e milhares de pessoas escrevendo livros, possa se quedar submissa às imposições contrárias à própria lei. Desafiamos a que seja demonstrado em que lugar do CPC está posto o tal sistema de precedentes vinculantes. E em que lugar está legitimado que os tribunais superiores possam elaborar teses em abstrato, com efeito vinculatório. O que queremos dizer, também, é que a doutrina não pode se tornar caudatária de teses ou conceitos que levem o apelido de “precedente”. Isso seria de uma violência simbólica ímpar. Isso seria enterrar a tradição de que quem faz a lei é o parlamento. E seria institucionalizar um nefasto realismo jurídico à brasileira.

Numa palavra final: não queremos fazer um solilóquio sobre esse importantíssimo assunto que pode mudar a história do direito no Brasil. Por isso, propomos aos autores (e aos demais doutrinadores), o contrário: um colóquio. Na verdade, um diálogo. Em que não haja respostas antes das perguntas.

Veritas, non auctoritas!





[1] Livraria do Advogado, 3ª. Ed.


[2] Saraiva, 2016.


[3] Cf. Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, cit., n. 3.20.5, p. 249 et seq.


[4] Ver as quatro colunas Senso Incomum sobre o assunto: um, dois, três e quatro.


[5] Como se diria em Portugal, “desculpa lá”, mas calha registrar que Lenio Streck nunca foi contra precedente em si. Streck é o maior defensor da ideia de integridade e não é contra precedente, desde que devidamente aplicado. Aliás, no Brasil poucos juristas tem a coragem de dizer que juízes não tem discricionariedade para decidir. E quem capitaneou a retirada da palavra “livre” do art. 371 e foi o responsável foi introduzir o art. 926 foi Streck.

Do mesmo modo, Georges Abboud em seus livros trata da importância de se respeitar a cadeia decisória, por exemplo, um dos sete requisitos mínimos para construção da resposta correta é a identificação dos provimentos judiciais que tratam da questão jurídica a ser dirimida. Cf. Discricionariedade Administrativa e Judicial, SP: RT, 2014, p. 473. A questão é mais desenvolvida no Processo Constitucional Brasileiro, op. cit., p. 756 et seq.


[6] Aqui, uma notícia: as teses “em abstrato” feitas pelo STF e STJ são similares às diretivas normativas dos Tribunais da antiga União Soviética, da corte de cassação cubana e da Suprema Corte da Rússia. “Nossas” teses, a par dessa similitude, não encontram similares (a não ser nas diretivas normativas da URSS, etc). Esse assunto, aliás, será pauta de outro Senso Incomum. Temos de desmi(s)tificar essas teses equivocadas que parecem já fazer “ninhos epistêmicos” em terrae brasilis.


[7] SCHAUER, Precedent. Stanford Law Review, vol. 39, n. 3, fev. 1987. p. 596.


[8] Cf. SCHAUER, op.cit., p. 571.






Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.


Georges Abboud é doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da FADISP. Advogado sócio do escritório Nery Advogados. Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2016, 8h00

Sem autorização do Ministério do Trabalho para prorrogar jornada, Carbonífera pagará hora extra a mineiro




A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho proveu recurso de um mineiro de subsolo e condenou a Carbonífera Criciúma S.A. ao pagamento integral de horas extras excedentes da sexta diária ou da 36ª semanal. O entendimento foi o de que o acordo de compensação de horas na atividade mineradora está condicionado à licença prévia do Ministério do Trabalho, e, no caso, havia apenas um parecer favorável da área de Segurança e Saúde do Trabalhador no estado.


O mineiro, que operava trator guincho no subsolo, afirmou que trabalhava das 13h45 às 22h10 de segunda a sexta-feira, jornada superior ao limite de seis horas diárias e 36 semanais do artigo 293 da CLT para essa atividade. Ele alegou a nulidade dos acordos de compensação de horas, argumentando que apenas condições mais benéficas ao trabalhador podem ser objeto de negociação coletiva, e ainda que a empresa não tinha autorização do MT para a sua implantação, diante da natureza insalubre da atividade de minas de subsolo. Por isso, pediu o pagamento das horas extras com adicional de 100%, conforme os acordos coletivos do período.


A Carbonífera, em contestação, disse que não ser possível utilizar o critério diário para o cômputo das horas extras, pois o mineiro não trabalhava aos sábados, e defendeu a utilização do critério semanal. Sustentou ainda que as negociações coletivas que ajustaram a prorrogação diária da jornada de trabalho resultaram em "sensível avanço no que tange a obtenção de vantagens", como garantias especiais de emprego, folga aos sábados, horas extras com adicional de 100%, adicional noturno de 50%, transporte gratuito, fornecimento de roupa, lanche e leite, entre outros.


O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC) aplicou ao caso o item IV da Súmula 85 do TST, segundo o qual a prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada. Nesses casos, as horas que ultrapassarem a jornada semanal serão pagas como extraordinárias, mas sobre aquelas destinadas à compensação incide apenas o adicional. Assim, condenou a empresa ao pagamento apenas do adicional das horas extras prestadas no período em que não houve autorização para o acordo de compensação.


No recurso ao TST, o mineiro insistiu no direito ao pagamento da integralidade das horas extras excedentes à sexta diária, sem limitação ao pagamento do adicional, sustentando que a empresa não comprovou a existência de autorização do superintendente regional do Trabalho e Emprego em SC.


A relatora, ministra Cristina Peduzzi, entendeu que houve má aplicação, pelo TRT, do item IV da Súmula 85. "O acordo de compensação não foi descaracterizado pela prestação habitual de horas extras, mas sim pela ausência de licença prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho, hipótese não contemplada pelo verbete", afirmou. Peduzzi observou ainda que a súmula não trata da condição peculiar dos trabalhadores em minas de subsolo, disciplinadas por legislação específica.


A decisão foi unânime.


(Lourdes Côrtes e Carmem Feijó)


Processo: RR-3783-75.2011.5.12.0027


Fonte: TST

JT-MG invalida norma coletiva que reduz horas de percurso dos cortadores de cana



Publicada originalmente em 05/10/2016


Um cortador de cana buscou na Justiça do Trabalho o pagamento de horas in itinere, afirmando que consumia 01h30min no percurso casa/trabalho e o mesmo tempo para volta, sendo o local de difícil acesso e não servido por transporte público. Para a empregadora, nada mais era devido a esse título, já que teria pagado devidamente as horas de percurso, conforme estipulado na convenção coletiva aplicável ao caso, na fração de uma hora diária.

Analisando o caso, o juiz Murillo Franco Camargo, em sua atuação na Vara do Trabalho de Monte Azul, deu razão ao trabalhador. Constatando que o cortador de cana comprovou que o tempo gasto para ir e voltar do trabalho era três vezes superior ao previsto na cláusula invocada pela empresa, o julgador considerou inaplicável esse dispositivo normativo. Isso porque, como esclareceu o magistrado, a cláusula em questão é completamente prejudicial ao interesse dos trabalhadores, já que há uma redução de 2/3 do valor devido a título de horas de percurso, sem qualquer benefício em contrapartida. No seu entender, a cláusula é manifestamente contrária ao artigo 7º, inciso XXVI da Constituição Federal, por não trazer qualquer vantagem ou compensação ao trabalhador ao limitar o tempo a ser pago como horas de percurso. Nesse sentido, inclusive, como registrou o julgador, é a súmula 41 do TRT da 3ª Região, que autoriza, sim, a flexibilização das horas itinerantes, mas desde que respeitado o mínimo de 50% das horas gastas, o que não ocorreu no caso.

Nesse quadro, o julgador determinou que as três horas diárias de percurso sejam computadas na jornada de trabalho do cortador de cana para fins de apuração de eventual realização de horas extras, caso haja extrapolação da jornada de 8 horas diárias e de 44 semanais. E, para evitar dúvidas futuras, esclareceu que as horas itinerantes são computadas na jornada do trabalhador como horas trabalhadas, já que se trata de tempo à disposição do empregador.

A empresa recorreu da decisão, que ficou mantida pelo TRT mineiro. ( 0001588-93.2014.5.03.0082 RO )



Fonte: TRT3

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 2)




Por Venceslau Tavares Costa Filho


Na primeira parte da coluna, começamos a analisar as premissas sobre as quais se funda a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (no julgamento do Recurso Extraordinário 876.694-MG, sob o rito da repercussão geral) acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil vigente, que estabelece regime sucessório diverso para a união estável em relação ao casamento.

Nesta segunda parte, analisaremos as diversas situações nas quais se verifica um tratamento diferenciado da união estável em relação ao casamento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A assimetria de tratamento entre união estável e casamento não se limita ao regime da sucessão a causa de morte, instituído em razão do art. 1.790 do Código Civil brasileiro.

O texto original da Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar no § 3º do art. 226: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Note-se que o poder constituinte originário fez uso da expressão “é reconhecida a união estável”, o que parece indicar a pretensão de recepcionar e emprestar efeitos jurídicos a uma situação fática preexistente ao texto constitucional. Até o advento da legislação infraconstitucional que reconheceu efeitos jurídicos específicos a união estável (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996), esse instituto permaneceu em verdadeiro limbo jurídico.

O tratamento jurídico dispensado aos bens adquiridos durante a constância da união estável, por exemplo, em período anterior ao da vigência da Lei 9.278/1996, praticamente não discrepava da solução trazida pelo enunciado n. 380 da Súmula de jurisprudência dominante do STF; qual seja o de levar em consideração a proporção das contribuições dos conviventes na constituição do patrimônio.

O STJ, nesta linha, manifestou-se por afastar o direito à meação dos bens durante a vigência da Lei n. 8.971/1994, devendo-se levar em consideração a “participação dos companheiros na formação do patrimônio, devendo a partilha ser estabelecida com observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade” (EDcl no REsp 674.483/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 02/02/2012, DJe 27/02/2012).[1]

O advento da Lei 9.278/1996 introduz sensível modificação neste quadrante, ao presumir o esforço comum na aquisição dos bens durante a vigência da união estável. A Lei 9.278/1996 não suprimiu, portanto, a comprovação do esforço comum como pressuposto para a partilha dos bens adquiridos durante a união estável; apenas introduzindo presunção neste sentido.

Somente com o Código Civil de 2002 é que houve uma parcial e controvertida equiparação entre a união estável e o casamento civil no tocante ao regime de bens, nos termos do art. 1.725: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Observe-se, pois, que a aplicação das regras relativas ao regime da comunhão parcial na união estável somente ocorrerá "no que couber", e não em sua integralidade. Na prática, isto gera uma disparidade em relação à proteção jurídica deferida ao patrimônio dos conviventes da união estável em comparação com a tutela jurídica própria do patrimônio no casamento.

Exemplo disSo é o atual entendimento do STJ no sentido de considerar válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro. Nesse sentido, a corte considera inaplicável o enunciado 332 de sua Súmula de Jurisprudência dominante para a fiança prestada pelo convivente em união estável sem a outorga do seu companheiro, de modo que é “possível que os bens indivisíveis sejam levados à hasta pública por inteiro”, reservando-se ao companheiro do executado a metade do preço obtido (AgInt no AREsp 841.104/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/06/2016, DJe 27/06/2016).

Aparentemente, a exigência da outorga conjugal teria como pressuposto o “ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança” (REsp 1299866/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014).

Lógica semelhante também parece justificar a dispensa da outorga conjugal para a alienação de imóveis pertencentes aos conviventes em união estável. A imposição da outorga conjugal para a alienação de imóveis deve levar em consideração a proteção dos interesses de terceiros de boa-fé e a segurança do tráfico jurídico, de modo a exigir a publicidade da relação conjugal:

“No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união. (...). Contrariamente, não havendo o referido registro da relação na matrícula dos imóveis comuns, ou não se demonstrando a má-fé do adquirente, deve-se presumir a sua boa-fé, não sendo possível a invalidação do negócio que, à aparência, foi higidamente celebrado” (REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014).

Além das diferenças no tocante as questões patrimoniais, some-se a isto uma curiosa especificidade quanto ao tratamento jurídico dispensado a união estável na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a obrigatoriedade de prévia separação de fato por dois anos para a regular constituição de união estável.

A exclusividade quanto às relações afetivas e sexuais demandada para a caracterização da união estável exige que os companheiros não sejam impedidos de casar, ou que não sejam comprometidos com outras pessoas. Nesse sentido, manifestou-se o STJ: “Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse” (REsp 532.549/RS, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 02/06/2005, DJ 20/06/2005, p. 269).

Sabe-se que a Emenda Constitucional 66/2010 eliminou a exigência de qualquer tipo de lapso temporal quanto à separação de fato para a concessão do divórcio.

Contudo, verifica-se ainda no âmbito do STJ manifestações pela comprovação de tempo mínimo de separação de fato para a regular constituição de união estável, mesmo após a Emenda Constitucional 66/2010: “A união estável pode ser constituída pelo convívio com pessoa separada de fato há mais de dois anos, porque não existiria impedimento para o casamento” (REsp 973.553/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 18/08/2011, DJe 08/09/2011).

Como se pode verificar, a eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil por si só não proporcionaria a plena equiparação entre o casamento civil e a união estável, porquanto o tratamento diferenciado alcance outros aspectos. Na semana que vem, na terceira e última parte deste trabalho, findaremos a nossa análise sobre as assimetrias entre a união estável e o casamento.



[1] No mesmo sentido, cf: “A presunção legal de esforço comum foi introduzida pela Lei 9.278/1996, de forma que a partilha dos bens adquiridos anteriormente à entrada em vigor do aludido diploma legal somente ocorre se houver esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme a legislação vigente à época da aquisição”. (AgInt no AREsp 604.725/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016)


Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2016, 8h00

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 1)



Por Venceslau Tavares Costa Filho


No dia 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar o Recurso Extraordinário 876.694-MG, selecionado em virtude do expediente da Repercussão Geral, e que versa sobre a constitucionalidade da diversidade de regimes sucessórios para o casamento e para a união estável. O ministro Dias Toffoli, prudentemente, pediu vistas dos autos para aprofundar a reflexão sobre a relevante temática, após os votos do ministro-relator, Luis Roberto Barroso, e outros seis ministros integrantes daquela Corte Superior.

Aparentemente, já houve uma tomada de posição do Supremo Tribunal Federal, reputando inconstitucional a regra do artigo 1.790 do Código Civil. Apesar da conclusão pela isonomia jurídica entre as famílias formadas pelo casamento civil e a união estável parecer acertada, parece-me que as premissas sobre as quais ela se apoia são equivocadas. Equivoca-se, a meu ver, quando consagra para o casamento e a união estável uma espécie de regime jurídico que chamarei de “separados, mas iguais”. Ou seja, a união estável e o casamento continuarão a ser reputados como institutos jurídicos diversos, apesar de se atribuir idênticos efeitos quanto a sucessão a causa de morte.

Esta diferenciação, contudo, além de destoar da tradição jurídica luso-brasileira em matéria de Direito de Família, termina por estabelecer uma série de distinções potencialmente discriminatórias entre o casamento e a união estável. O Direito Civil brasileiro é legatário do Direito Romano vulgarizado, do Direito Canônico e do Direito Ibérico. Pode-se dizer que, na antiguidade ocidental, a família era geralmente constituída em razão de certos ritos religiosos ou pela simples convivência.

No Direito Romano, por exemplo, a mulher poderia passar a integrar a família do seu marido caso se submetesse a manus (o poder marital) em virtude da conventio in manum, por uma das seguintes modalidades de constituição familiar: “a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades, com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e perante o sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio, casamento privativo dos plebeus que implicava à venda simbólica da mulher ao marido, assemelhando-se, pela forma, à mancipatio; e c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que, automaticamente, fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal (trinoctii usurpatio)”.[1]

Isto denota que os romanos admitiam a constituição do vínculo do casamento pela convivência; sem a exigência de maiores formalidades. Ademais, consolidou-se certa tendência entre os estudiosos de Direito Romano (a partir das lições de Bonfante), no sentido defender que o casamento no Direito Romano (desde o período primitivo até Justiniano) exigia apenas dois requisitos: quais sejam a convivência e a intenção marital (affectio maritalis), de modo que o casamento romano reduzir-se-ia a uma “simples relação jurídica de mero fato, que perdura enquanto persistem as condições de fato – convivência e affectio maritalis — de sua existência”.[2]

Assim, era suficiente que um homem e uma mulher, por determinado tempo, convivessem como se fossem casados, independentemente de uma cerimônia civil ou religiosa, para se reputassem submetidos ao regime do casamento. As Ordenações Filipinas (Livro IV, Título XLVI), antiga legislação portuguesa que permaneceu vigendo no Brasil mesmo após a ruptura política em relação a antiga Metrópole, também reconheciam o casamento de fato como espécie de matrimônio apto a gerar efeitos jurídicos: “Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda; ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste para presumir Matrimonio entre elles, posto se se não provem as palavras de presente”.[3]

Os estados norte-americanos do Alabama e do Colorado permanecem reconhecendo o casamento de fato entre as espécies de casamento oficialmente reconhecidas: o Common Law Marriage.[4] Entretanto, após a consumação do Golpe Republicano em 1889, verificou-se a secularização do casamento no Brasil com o advento da Lei do Casamento Civil de 1890.[5] De modo que o direito civil brasileiro deixou de reconhecer o casamento pela convivência duradoura dos cônjuges (casamento de fato) e o casamento religioso, “que, hoje, por si só, sem o posterior registro civil, é considerado concubinato”.[6]

A redução das formas de casamento reconhecidas pelo estado no Brasil ao casamento civil parece refletir aquelas reduções próprias do positivismo, tão ao gosto daqueles que usurparam o poder no Brasil em 1889. A Constituição Brasileira de 1891, nesta toada, reconheceu o casamento civil como única forma de casamento válido. Em obediência ao mandamento constitucional, o Código Civil de 1916 reconheceu que a família legítima poderia ser formada apenas pela via do casamento civil. As Constituições Brasileiras de 1934 (artigo 144), de 1937 (artigo 124), de 1946 (artigo 163) e de 1967 (artigo 167, posteriormente renumerado para artigo 175 em virtude da Emenda Constitucional 1/1969) terminaram por cristalizar a regra segundo a qual a família legítima constitui-se apenas pelo casamento civil.

Em detrimento de uma tradição jurídica de quase 400 anos, o legislador republicano modificou arbitrariamente o tratamento dispensado ao casamento; malferindo a chamada noção estática do direito.[7] É interessante notar, por outro lado, o retrato desenhado quanto a união estável em certa parcela da civilística. A crítica feita por certos civilistas costuma ser no sentido de considerar que o Código Civil de 1916 tutelava apenas as famílias formadas a partir do casamento civil, enquanto relegava as famílias constituídas pela união estável à clandestinidade.

Trata-se, geralmente, de um discurso construído a partir do desprestígio do direito legislado nos códigos “em favor de uma retórica da potencialização da eficácia do texto constitucional”.[8] Contudo, a clausura infligida a união estável decorreu de regras contidas em textos constitucionais brasileiros, como já demonstramos acima. Nem sempre a regulação constitucional de certo instituto jurídico representa um avanço civilizatório, portanto. Na próxima coluna, trataremos das assimetrias jurídicas entre o casamento civil e a união estável.

Post scriptum: O mês de outubro marca a passagem do aniversário de 120 anos da Fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã em Recife, uma das mais tradicionais casas de educação do Brasil. Educação não é sinônimo de ensino, qual seja a mera transmissão de conhecimento. A educação passa pelo uso de palavras “mágicas” tais como “bom dia”, “desculpe” e “obrigado”; e o compartilhamento de certos valores. Por haver recebido tais ensinamentos, não tive dúvidas quanto a escolha do educandário dos meus filhos.

Há cerca de uma década, a reconhecida excelência acadêmica das Irmãs da Congregação das Damas da Instrução Cristã levou a criação da Faculdade Damas, que conta com um Curso de Direito recomendado pelo Conselho Federal da OAB e um mestrado acadêmico com corpo docente de nível internacional, a exemplo de Cláudio Brandão, João Maurício Adeodato, Margarida Cantarelli, Graziela Bacchi Hora, Kai Ambos, António Pedro Barbas Homem etc. Assim, deixo registrado o meu preito de gratidão por todas as lições que aprendi (e as que ainda hei de aprender) naquela Casa; e parabenizo pela passagem do aniversário de 120 anos de fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã e pelos 10 anos de fundação da Faculdade Damas!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 94-95.
[2] ALVES, José Carlos Moreira. A natureza jurídica do casamento romano no direito clássico. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 07.
[3] Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[4] Ao contrário do que imagina o senso comum, o chamado “Common Law Marriage” não é reconhecido na Inglaterra. Cf: http://www.economist.com/news/international/21688381-many-cohabiting-couples-misunderstand-their-legal-status-common-law-marriage-myth Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[5] Para os que desejarem obter mais dados sobre o contexto da Lei do Casamento Civil de 1890, pedimos vênia para indicar a leitura de artigo de nossa lavra sobre o projetista da mencionada lei: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Antônio Coelho Rodrigues: um súdito fiel? Ruptura e continuidade na transição da monarquia para a república no Brasil. Revista de Informação Legislativa, a. 51, n. 203 (jul./set. 2014). Coelho Rodrigues também foi objeto de uma série de colunas nossas: http://www.conjur.com.br/2016-fev-22/direito-civil-atual-critica-coelho-rodrigues-importante-ainda-hoje-dia
[6] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 95-96.
[7] RIPERT, Georges. Les forces créatrices du droit. Paris: L.G.D.J., 1955, p. 01.
[8] CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: código civil versus constituição? In: SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011, p. 64-65.

Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016, 10h39

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...