quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O solilóquio epistêmico do ministro Roberto Barroso sobre precedentes


Por Lenio Luiz Streck e Georges Abboud


Recentemente, o ministro Roberto Barroso publicou, em coautoria com Patrícia Perrone Campos Mello, artigo intitulado “Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro”. No referido trabalho, há diversas inconsistências teóricas e sincretismos que denunciamos, tanto no nosso livro O que é isto – O Precedente Judicial e as Súmulas Vinculantes[1] quanto nos Comentários ao Código de Processo Civil.[2]

Em síntese, o ministro Barroso e Mello fazem uma apologia aos mecanismos vinculatórios do Direito brasileiro, sem praticamente enfrentar nenhum argumento de quem se opõe ao tema tal qual ele é apresentado no Brasil. Aliás, o artigo não dialoga. Seguindo certo tipo de modelo de doutrina brasileira, ignora a história institucional acerca do fenômeno. Ora, dezenas de juristas têm posição contrária. Mas Barroso e Mello preferem o solilóquio epistêmico. Basicamente, o artigo incorre nos dois chavões tradicionais: 1) o CPC-2015 aproxima o Brasil do common law; e 2) os provimentos do artigo 927 são considerados de forma simplificada como “precedente”. Deveriam ter lido o caso Marbury v. Madison, de mais de 200 anos atrás. Uma lei ordinária não pode alterar a competência e função dos tribunais prevista originalmente na Constituição. Interessante é que eles afirmam que o CPC nos aproxima do common law, mas não querem o compromisso (ônus) do common law. Só a parte boa.

Não fosse por outro argumento, este nosso texto poderia ser resumir ao seguinte: se a tese de Barroso e Mello está baseada no conceito de que o sistema brasileiro se aproximou do common law, então eles mesmos não poderiam dizer que os provimentos do artigo 927 são precedentes. A contradição é flagrante. Por quê? Porque precedentes do common law não admitem, nem de longe, isso que querem estabelecer aqui no Brasil. Por uma razão simples: precedentes do common law não-são-feitos-para-resolver-casos-futuros; precedentes não nascem precedentes; sua aplicação posterior é contingencial. Simples assim.

Mas, por amor ao debate, vamos aprofundar as demais contradições do texto de Barroso e Mello. As conclusões, por serem carreadas por ministro do STF, evidenciam a importância dos alertas que constantemente lançamos em nossos escritos sobre o tema (diversos outros autores têm demonstrado preocupação com essa simplificada transposição que que querem fazer do common law para os mecanismos vinculatórios brasileiros, e.g. Dierle Nunes, Alexandre Bahia, Marcelo Cattoni, Flávio Quinaud, Nelson Nery Jr., Cassio Scarpinella Bueno, José Miguel Garcia Medina, Maurício Ramires, Júlio Rossi, Marcos Cavalcanti, Eduardo Fonseca, Lucio Delfino, Francisco Borges Motta e tantos outros). O fetiche pelo precedente é tamanho que toda decisão judicial, para Barroso e Mello, é precedente. Incrível. Se isso é verdade, como tratar uma súmula vinculante? De todo modo, para os autores, o precedente se dividiria em três: persuasivo, que vincula apenas as partes; com eficácia normativa forte, que deve obrigatoriamente ser observado; e o intermediário, que seria uma categoria residual. Sinceramente, perguntamos: qual a relevância de afirmar que tudo é precedente? Permitimo-nos até a fazer uma ironia respeitosa: De que modo o Direito brasileiro sobreviveu até hoje sem a categoria, por exemplo, do precedente que vincula apenas as partes?

De forma resumida, Barroso e Mello glorificam a nova “era precedentalistas” pretensamente trazida pelo CPC-2015, para, em seguida, passar a tratar todos os provimentos vinculantes do artigo 927 como “precedentes”. Aqui já se inicia o sincretismo: decisões de IRDR, RE/REsp repetitivos são equiparadas a decisões de controle abstrato de constitucionalidade que, por sua vez, são equiparados às súmulas simples e vinculantes. Com a devida vênia, esse equívoco é imperdoável. Ou seja, tudo vira precedente, como se todos esses provimentos – por se tornarem de observância obrigatória por lei – já virariam assim precedentes do common law do dia para noite. Aliás, trata-se de retrocesso doutrinário. A própria súmula vinculante, em seu início, era frequentemente equiparada ao precedente. Essa errônea equiparação foi objeto de nossa constante crítica (pelo menos desde 1993), depois de muita confusão, a maior parcela da doutrina, fundamentada principalmente, nos textos de Castanheira Neves sobre assentos começou a efetivar a devida distinção. Agora devemos retroceder? Novamente equiparar precedente a súmula e ao julgamento de questões repetitivas?

Conforme já demonstramos em nossos comentários ao CPC (op.cit), diferenciar súmula do genuíno precedente e do julgamento de causas repetitivas não se faz para afirmar qual é melhor que o outro. Pelo contrário, essa diferenciação deve ser feita porque efetivamente são institutos jurídicos diferentes que comportam operacionalização distinta. Não é porque assim queremos. É porque é assim. Não nos esqueçamos, o próprio Código diferencia os institutos. Simples assim.

Após fazer essa equiparação sincrética dos provimentos, o texto de Barroso e Mello passa a expor a necessidade de compreensão do que é dicta, ratio decidendi e holding. Nesse ponto, são tratadas algumas exposições do Direito alienígena acerca desses institutos. Aqui já fica uma dúvida: se súmula é a mesma coisa que um precedente, o que é holding e o que é dicta em uma súmula? Eis a questão. Mais: uma “tese” (dessas que o STF e o STJ fazem) é “precedente”?

Voltando à temática, o artigo expõe: “A ratio decidendi ou a tese é uma descrição do entendimento jurídico que serviu de base à decisão. (...)Nos Estados Unidos, embora as decisões da Suprema Corte contenham um syllabus, a providência de explicitação da tese jurídica do julgamento é menos necessária. Isto porque o modelo de decisão naquele país é deliberativo: os justices se reúnem reservadamente, in conference, e produzem uma decisão unânime ou majoritária” (op.cit, p. 22/23).

Não nos parece adequado simplesmente equiparar ratio decidendi a uma tese jurídica repetitiva presente em RE e REsp. E nem equiparar precedente a qualquer tese jurídica que o STF e o STJ façam. Não sabem que a genuína ratio decidendi vai se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo em função dos futuros casos em que o “genuíno” precedente passa a ser replicado? Não sabem que a ratio decidendi não é imposta pelo tribunal superior prolator da decisão? Não sabem que ela se estrutura pelo trabalho dos causídicos e das instâncias inferiores? Ou alguém imagina o justice Marshall finalizando o voto e escrevendo: doravante, está criado o controle difuso de constitucionalidade?

Vamos exemplificar: O parágrafo 11 do artigo 1.035 estabelece, claramente, que deve ser fixada a tese no acórdão, porque estamos diante de julgamento de causas repetitivas. Ou seja, a decisão do STF e STJ nesse caso será o parâmetro normativo redutor de complexidade de uma litigiosidade repetitiva. Não se trata de uma aplicação de precedente no estilo common law em que há uma criação de complexidade para se investigar o que efetivamente é ratio decidendi para orientar causa futuras. Não nos parece adequado a afirmação de que no common law, os tribunais superiores definam o que é a ratio decidendi e a compilam em um enunciado abstrato de tese para aplicação das instâncias inferiores. É equivocado dizer isso.

Do mesmo modo, também incorre em sincretismo a afirmação de que teria havido a necessidade de ressurgirmos com a teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes das decisões do controle abstrato de constitucionalidade. Trata-se de tese doutrinária iniciada na Alemanha, local em que ela sofre severas críticas e diminuída aplicação.[3] De todo modo, isso nada tem a ver com o genuíno precedente. E nem com o precedente à brasileira.[4]

Por fim, denunciamos novamente o caráter realista (no sentido do realismo abrasileirado, tipo “de-qualquer-modo-o-Direito-é-mesmo-aquilo-que-o-Judiciario-diz-que-é-e-a-maior-parte-da-doutrina-concordará) da forma como é apresentada a vinculação brasileira. Em nenhum escrito nosso afirmamos que devem ser ignoradas as formas como decidem os tribunais superiores. Aliás, um dos autores (Streck[5]) já há mais de 20 anos diz que as súmulas jamais foram um mal em si, porque súmulas, como os precedentes, são sempre textos e textos são interpretáveis. Todavia, quando o STF/STJ pode emitir decisões de observância obrigatória e fixar teses em abstrato (coisa que só acontece por aqui)[6] – que no entendimento dos autores – seriam a materialização da ratio decidendi, em verdade, não estamos falando de sistema de precedentes para valer. Na realidade, com isso, camuflamos nosso padrão vinculatório sui generis.

Conforme nossos comentários ao artigo 926 do CPC, a integridade impõe um compromisso de todo julgador com a cadeia decisória em que ele está inserto. O que estamos dizendo claramente é que existe campo para se teorizar e argumentar de forma similar ao precedente do common law, todavia, afirmar que inauguramos uma nova era precedentalista ou que todos os dispositivos do artigo 927 são precedentes “porque sim”, no mínimo isso é sincretismo teórico. Daí a importância de se garantir uma interpretação conforme a Constituição do artigo 927 sustentada minimamente em duas premissas que não abandonamos: 1) todo provimento vinculante do artigo 927 comporta interpretação e não se aplica por mero silogismo; 2) precedente genuíno não se equipara a julgamento de litigiosidade repetitiva, e os tribunais superiores não podem fixar teses equiparando-se a legisladores, sendo que a fixação da tese é consequência direta dos casos concretos devidamente julgados em amplo contraditório e com a fiel observância do inciso IX do artigo 93 da CF e do parágrafo 1º do artigo 489 do CPC.

Assim, consideramos que a leitura do CPC feita por Barroso e Mello não é adequada, porque desrespeita a Constituição. Isto porque lei ordinária não pode alterar o exercício da jurisdição (em relação à própria lei, por exemplo). Sim, pois se o CPC-2015 tiver alterado a relação entre lei e jurisdição, criando precedentes vinculantes, o novo CPC não seria inconstitucional? Estamos convictos que, valendo as regras do jogo democrático-constitucional, não é possível que uma lei ordinária introduza um sistema de precedentes vinculantes sem violar o modelo constitucional do processo adotado pela Constituição.

Em termos teóricos, repetimos que não há dúvida de que, por trás da tese de que o CPC teria adotado um sistema de precedentes vinculantes está o realismo jurídico (modulado ao Brasil). Nesse sentido, chamamos à colação um positivista como Frederick Schauer, que, apesar de analítico, está muito mais próximo de nossas afirmações que das de Barroso e os demais defensores da tese aqui criticada. Selecionamos duas partes que julgamos fundamentais: o que é semelhante para fins de aplicação de precedente é algo controvertido e que o precedente tem pedigree histórico.


"Initially, the principle that like cases should be decided a like would seem to make an unassailable argument for precedent. But the difficulty of denying that like cases should be decided alike is precisely the problem. The statement is so broad as to be almost meaningless. The hard question is what we mean by 'alike.'".[7]

Schauer está dizendo que é uma obviedade em favor dos precedentes argumentar que um caso semelhante deve ser julgado igual o outro. E que isso é praticamente irrelevante na defesa do precedente. O que efetivamente interessa é definir o que são casos semelhantes. O conceito de o que é efetivamente semelhante é algo altamente controvertido. Ou seja, há uma dimensão interpretativa na aplicação do precedente que não pode ser ignorada. Não basta afirmarmos que casos iguais devem ser decididos de forma igual. Isso é meramente performático. A lei também é igual para todos e deve ser aplicada de forma igual para casos semelhantes. Ainda para ficarmos na expressão do Schauer, o precedente tem um pedigree histórico (historical pedigree,) que não pode ser ignorado em sua aplicação.[8]

Portanto, de qualquer lado que se olhe, da hermenêutica ou do positivismo jurídico (normativo), a tese sustentada por Barroso e Mello não se sustenta. Isto não quer dizer que não precisemos, urgentemente, definir o que queremos no Brasil. Afinal, temos que responder a seguinte pergunta:


Queremos que o STJ e STF façam teses abstratas e coloquem o rótulo de “precedente” ou queremos que, de fato, tenhamos um sistema que respeite a coerência e a integridade do direito, em que a palavra “precedente” seja diferenciada de súmula e de tese oriunda de recurso repetitivo e assunção de competência?

Claro que, para que tenhamos coerência e respeitemos a integridade, cada caso deve influenciar e dele temos de retirar um principio que ilumine e seja seguido pelos demais tribunais e juízes. Isso é elementar. Cada instituto com suas peculiaridades: uma súmula tem seu DNA; ela não é precedente; uma tese de IRRD e AC tem sua holding vinculatória; um caso julgado gera um precedente para casos análogos. Mas o que não se pode admitir é que os tribunais passem a legislar, fazendo um rearranjo institucional. O que não podemos admitir é que os tribunais “façam” precedentes com o fito de antecipar as respostas dos casos futuros. Não é disso que trata o CPC-2015.

Ou seja, não pode(re)mos aceitar que tudo o que está, basicamente, nos artigos 926 e 927 seja colocado no mesmo saco e se diga: eis aqui o “sistema de precedentes”, quando, por exemplo, uma súmula tem uma cadeia de precedentes que a formam. Logo, se súmula não é precedente, é porque nem tudo é precedente. E muito menos se pode admitir que o STF e o STJ façam “teses” batizando-as com o nome de “precedentes”. Precedente não é ementa, não é súmula e nem mesmo mero enunciado em abstrato. E ainda por cima se diga que “isso é assim porque no common law é feito desse modo”. A boa doutrina não há de permitir isso.

Tudo isso para dizer que, respeitando a posição do ministro Barroso e de quem assim pense, queremos apenas que sejam respeitadas as opiniões em contrário. E que haja diálogo e não imposição. Não é o fato de o autor deter a autoridade - em um país em que a doutrina tem receio de contrariar as autoridades - que possamos dizer, como que a imitar o velho adágio do positivismo moderno de que autorictas non veritas facit legis (é a autoridade e não a verdade que faz a lei) que agora temos Auctoritate Summi Court est – non veritas - quod dicatur quod "precedent" (é a autoridade da suprema corte que faz o precedente e não a sua verdade). Resta saber se o texto de Barroso, porque escrito por um ministro da Suprema Corte, foi feito para dialogar ou é magister dixit.

De nossa parte, insistimos na tese de que não existe esse “sistema de precedentes” do qual falam. E, sim, estamos dispostos ao diálogo. Não cremos que a doutrina brasileira, em um pais de um milhão de advogados e milhares de pessoas escrevendo livros, possa se quedar submissa às imposições contrárias à própria lei. Desafiamos a que seja demonstrado em que lugar do CPC está posto o tal sistema de precedentes vinculantes. E em que lugar está legitimado que os tribunais superiores possam elaborar teses em abstrato, com efeito vinculatório. O que queremos dizer, também, é que a doutrina não pode se tornar caudatária de teses ou conceitos que levem o apelido de “precedente”. Isso seria de uma violência simbólica ímpar. Isso seria enterrar a tradição de que quem faz a lei é o parlamento. E seria institucionalizar um nefasto realismo jurídico à brasileira.

Numa palavra final: não queremos fazer um solilóquio sobre esse importantíssimo assunto que pode mudar a história do direito no Brasil. Por isso, propomos aos autores (e aos demais doutrinadores), o contrário: um colóquio. Na verdade, um diálogo. Em que não haja respostas antes das perguntas.

Veritas, non auctoritas!





[1] Livraria do Advogado, 3ª. Ed.


[2] Saraiva, 2016.


[3] Cf. Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, cit., n. 3.20.5, p. 249 et seq.


[4] Ver as quatro colunas Senso Incomum sobre o assunto: um, dois, três e quatro.


[5] Como se diria em Portugal, “desculpa lá”, mas calha registrar que Lenio Streck nunca foi contra precedente em si. Streck é o maior defensor da ideia de integridade e não é contra precedente, desde que devidamente aplicado. Aliás, no Brasil poucos juristas tem a coragem de dizer que juízes não tem discricionariedade para decidir. E quem capitaneou a retirada da palavra “livre” do art. 371 e foi o responsável foi introduzir o art. 926 foi Streck.

Do mesmo modo, Georges Abboud em seus livros trata da importância de se respeitar a cadeia decisória, por exemplo, um dos sete requisitos mínimos para construção da resposta correta é a identificação dos provimentos judiciais que tratam da questão jurídica a ser dirimida. Cf. Discricionariedade Administrativa e Judicial, SP: RT, 2014, p. 473. A questão é mais desenvolvida no Processo Constitucional Brasileiro, op. cit., p. 756 et seq.


[6] Aqui, uma notícia: as teses “em abstrato” feitas pelo STF e STJ são similares às diretivas normativas dos Tribunais da antiga União Soviética, da corte de cassação cubana e da Suprema Corte da Rússia. “Nossas” teses, a par dessa similitude, não encontram similares (a não ser nas diretivas normativas da URSS, etc). Esse assunto, aliás, será pauta de outro Senso Incomum. Temos de desmi(s)tificar essas teses equivocadas que parecem já fazer “ninhos epistêmicos” em terrae brasilis.


[7] SCHAUER, Precedent. Stanford Law Review, vol. 39, n. 3, fev. 1987. p. 596.


[8] Cf. SCHAUER, op.cit., p. 571.






Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.


Georges Abboud é doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da FADISP. Advogado sócio do escritório Nery Advogados. Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2016, 8h00

Sem autorização do Ministério do Trabalho para prorrogar jornada, Carbonífera pagará hora extra a mineiro




A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho proveu recurso de um mineiro de subsolo e condenou a Carbonífera Criciúma S.A. ao pagamento integral de horas extras excedentes da sexta diária ou da 36ª semanal. O entendimento foi o de que o acordo de compensação de horas na atividade mineradora está condicionado à licença prévia do Ministério do Trabalho, e, no caso, havia apenas um parecer favorável da área de Segurança e Saúde do Trabalhador no estado.


O mineiro, que operava trator guincho no subsolo, afirmou que trabalhava das 13h45 às 22h10 de segunda a sexta-feira, jornada superior ao limite de seis horas diárias e 36 semanais do artigo 293 da CLT para essa atividade. Ele alegou a nulidade dos acordos de compensação de horas, argumentando que apenas condições mais benéficas ao trabalhador podem ser objeto de negociação coletiva, e ainda que a empresa não tinha autorização do MT para a sua implantação, diante da natureza insalubre da atividade de minas de subsolo. Por isso, pediu o pagamento das horas extras com adicional de 100%, conforme os acordos coletivos do período.


A Carbonífera, em contestação, disse que não ser possível utilizar o critério diário para o cômputo das horas extras, pois o mineiro não trabalhava aos sábados, e defendeu a utilização do critério semanal. Sustentou ainda que as negociações coletivas que ajustaram a prorrogação diária da jornada de trabalho resultaram em "sensível avanço no que tange a obtenção de vantagens", como garantias especiais de emprego, folga aos sábados, horas extras com adicional de 100%, adicional noturno de 50%, transporte gratuito, fornecimento de roupa, lanche e leite, entre outros.


O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC) aplicou ao caso o item IV da Súmula 85 do TST, segundo o qual a prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada. Nesses casos, as horas que ultrapassarem a jornada semanal serão pagas como extraordinárias, mas sobre aquelas destinadas à compensação incide apenas o adicional. Assim, condenou a empresa ao pagamento apenas do adicional das horas extras prestadas no período em que não houve autorização para o acordo de compensação.


No recurso ao TST, o mineiro insistiu no direito ao pagamento da integralidade das horas extras excedentes à sexta diária, sem limitação ao pagamento do adicional, sustentando que a empresa não comprovou a existência de autorização do superintendente regional do Trabalho e Emprego em SC.


A relatora, ministra Cristina Peduzzi, entendeu que houve má aplicação, pelo TRT, do item IV da Súmula 85. "O acordo de compensação não foi descaracterizado pela prestação habitual de horas extras, mas sim pela ausência de licença prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho, hipótese não contemplada pelo verbete", afirmou. Peduzzi observou ainda que a súmula não trata da condição peculiar dos trabalhadores em minas de subsolo, disciplinadas por legislação específica.


A decisão foi unânime.


(Lourdes Côrtes e Carmem Feijó)


Processo: RR-3783-75.2011.5.12.0027


Fonte: TST

JT-MG invalida norma coletiva que reduz horas de percurso dos cortadores de cana



Publicada originalmente em 05/10/2016


Um cortador de cana buscou na Justiça do Trabalho o pagamento de horas in itinere, afirmando que consumia 01h30min no percurso casa/trabalho e o mesmo tempo para volta, sendo o local de difícil acesso e não servido por transporte público. Para a empregadora, nada mais era devido a esse título, já que teria pagado devidamente as horas de percurso, conforme estipulado na convenção coletiva aplicável ao caso, na fração de uma hora diária.

Analisando o caso, o juiz Murillo Franco Camargo, em sua atuação na Vara do Trabalho de Monte Azul, deu razão ao trabalhador. Constatando que o cortador de cana comprovou que o tempo gasto para ir e voltar do trabalho era três vezes superior ao previsto na cláusula invocada pela empresa, o julgador considerou inaplicável esse dispositivo normativo. Isso porque, como esclareceu o magistrado, a cláusula em questão é completamente prejudicial ao interesse dos trabalhadores, já que há uma redução de 2/3 do valor devido a título de horas de percurso, sem qualquer benefício em contrapartida. No seu entender, a cláusula é manifestamente contrária ao artigo 7º, inciso XXVI da Constituição Federal, por não trazer qualquer vantagem ou compensação ao trabalhador ao limitar o tempo a ser pago como horas de percurso. Nesse sentido, inclusive, como registrou o julgador, é a súmula 41 do TRT da 3ª Região, que autoriza, sim, a flexibilização das horas itinerantes, mas desde que respeitado o mínimo de 50% das horas gastas, o que não ocorreu no caso.

Nesse quadro, o julgador determinou que as três horas diárias de percurso sejam computadas na jornada de trabalho do cortador de cana para fins de apuração de eventual realização de horas extras, caso haja extrapolação da jornada de 8 horas diárias e de 44 semanais. E, para evitar dúvidas futuras, esclareceu que as horas itinerantes são computadas na jornada do trabalhador como horas trabalhadas, já que se trata de tempo à disposição do empregador.

A empresa recorreu da decisão, que ficou mantida pelo TRT mineiro. ( 0001588-93.2014.5.03.0082 RO )



Fonte: TRT3

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 2)




Por Venceslau Tavares Costa Filho


Na primeira parte da coluna, começamos a analisar as premissas sobre as quais se funda a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (no julgamento do Recurso Extraordinário 876.694-MG, sob o rito da repercussão geral) acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil vigente, que estabelece regime sucessório diverso para a união estável em relação ao casamento.

Nesta segunda parte, analisaremos as diversas situações nas quais se verifica um tratamento diferenciado da união estável em relação ao casamento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A assimetria de tratamento entre união estável e casamento não se limita ao regime da sucessão a causa de morte, instituído em razão do art. 1.790 do Código Civil brasileiro.

O texto original da Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar no § 3º do art. 226: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Note-se que o poder constituinte originário fez uso da expressão “é reconhecida a união estável”, o que parece indicar a pretensão de recepcionar e emprestar efeitos jurídicos a uma situação fática preexistente ao texto constitucional. Até o advento da legislação infraconstitucional que reconheceu efeitos jurídicos específicos a união estável (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996), esse instituto permaneceu em verdadeiro limbo jurídico.

O tratamento jurídico dispensado aos bens adquiridos durante a constância da união estável, por exemplo, em período anterior ao da vigência da Lei 9.278/1996, praticamente não discrepava da solução trazida pelo enunciado n. 380 da Súmula de jurisprudência dominante do STF; qual seja o de levar em consideração a proporção das contribuições dos conviventes na constituição do patrimônio.

O STJ, nesta linha, manifestou-se por afastar o direito à meação dos bens durante a vigência da Lei n. 8.971/1994, devendo-se levar em consideração a “participação dos companheiros na formação do patrimônio, devendo a partilha ser estabelecida com observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade” (EDcl no REsp 674.483/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 02/02/2012, DJe 27/02/2012).[1]

O advento da Lei 9.278/1996 introduz sensível modificação neste quadrante, ao presumir o esforço comum na aquisição dos bens durante a vigência da união estável. A Lei 9.278/1996 não suprimiu, portanto, a comprovação do esforço comum como pressuposto para a partilha dos bens adquiridos durante a união estável; apenas introduzindo presunção neste sentido.

Somente com o Código Civil de 2002 é que houve uma parcial e controvertida equiparação entre a união estável e o casamento civil no tocante ao regime de bens, nos termos do art. 1.725: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Observe-se, pois, que a aplicação das regras relativas ao regime da comunhão parcial na união estável somente ocorrerá "no que couber", e não em sua integralidade. Na prática, isto gera uma disparidade em relação à proteção jurídica deferida ao patrimônio dos conviventes da união estável em comparação com a tutela jurídica própria do patrimônio no casamento.

Exemplo disSo é o atual entendimento do STJ no sentido de considerar válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro. Nesse sentido, a corte considera inaplicável o enunciado 332 de sua Súmula de Jurisprudência dominante para a fiança prestada pelo convivente em união estável sem a outorga do seu companheiro, de modo que é “possível que os bens indivisíveis sejam levados à hasta pública por inteiro”, reservando-se ao companheiro do executado a metade do preço obtido (AgInt no AREsp 841.104/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/06/2016, DJe 27/06/2016).

Aparentemente, a exigência da outorga conjugal teria como pressuposto o “ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança” (REsp 1299866/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014).

Lógica semelhante também parece justificar a dispensa da outorga conjugal para a alienação de imóveis pertencentes aos conviventes em união estável. A imposição da outorga conjugal para a alienação de imóveis deve levar em consideração a proteção dos interesses de terceiros de boa-fé e a segurança do tráfico jurídico, de modo a exigir a publicidade da relação conjugal:

“No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união. (...). Contrariamente, não havendo o referido registro da relação na matrícula dos imóveis comuns, ou não se demonstrando a má-fé do adquirente, deve-se presumir a sua boa-fé, não sendo possível a invalidação do negócio que, à aparência, foi higidamente celebrado” (REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014).

Além das diferenças no tocante as questões patrimoniais, some-se a isto uma curiosa especificidade quanto ao tratamento jurídico dispensado a união estável na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a obrigatoriedade de prévia separação de fato por dois anos para a regular constituição de união estável.

A exclusividade quanto às relações afetivas e sexuais demandada para a caracterização da união estável exige que os companheiros não sejam impedidos de casar, ou que não sejam comprometidos com outras pessoas. Nesse sentido, manifestou-se o STJ: “Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse” (REsp 532.549/RS, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 02/06/2005, DJ 20/06/2005, p. 269).

Sabe-se que a Emenda Constitucional 66/2010 eliminou a exigência de qualquer tipo de lapso temporal quanto à separação de fato para a concessão do divórcio.

Contudo, verifica-se ainda no âmbito do STJ manifestações pela comprovação de tempo mínimo de separação de fato para a regular constituição de união estável, mesmo após a Emenda Constitucional 66/2010: “A união estável pode ser constituída pelo convívio com pessoa separada de fato há mais de dois anos, porque não existiria impedimento para o casamento” (REsp 973.553/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 18/08/2011, DJe 08/09/2011).

Como se pode verificar, a eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil por si só não proporcionaria a plena equiparação entre o casamento civil e a união estável, porquanto o tratamento diferenciado alcance outros aspectos. Na semana que vem, na terceira e última parte deste trabalho, findaremos a nossa análise sobre as assimetrias entre a união estável e o casamento.



[1] No mesmo sentido, cf: “A presunção legal de esforço comum foi introduzida pela Lei 9.278/1996, de forma que a partilha dos bens adquiridos anteriormente à entrada em vigor do aludido diploma legal somente ocorre se houver esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme a legislação vigente à época da aquisição”. (AgInt no AREsp 604.725/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016)


Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2016, 8h00

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 1)



Por Venceslau Tavares Costa Filho


No dia 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar o Recurso Extraordinário 876.694-MG, selecionado em virtude do expediente da Repercussão Geral, e que versa sobre a constitucionalidade da diversidade de regimes sucessórios para o casamento e para a união estável. O ministro Dias Toffoli, prudentemente, pediu vistas dos autos para aprofundar a reflexão sobre a relevante temática, após os votos do ministro-relator, Luis Roberto Barroso, e outros seis ministros integrantes daquela Corte Superior.

Aparentemente, já houve uma tomada de posição do Supremo Tribunal Federal, reputando inconstitucional a regra do artigo 1.790 do Código Civil. Apesar da conclusão pela isonomia jurídica entre as famílias formadas pelo casamento civil e a união estável parecer acertada, parece-me que as premissas sobre as quais ela se apoia são equivocadas. Equivoca-se, a meu ver, quando consagra para o casamento e a união estável uma espécie de regime jurídico que chamarei de “separados, mas iguais”. Ou seja, a união estável e o casamento continuarão a ser reputados como institutos jurídicos diversos, apesar de se atribuir idênticos efeitos quanto a sucessão a causa de morte.

Esta diferenciação, contudo, além de destoar da tradição jurídica luso-brasileira em matéria de Direito de Família, termina por estabelecer uma série de distinções potencialmente discriminatórias entre o casamento e a união estável. O Direito Civil brasileiro é legatário do Direito Romano vulgarizado, do Direito Canônico e do Direito Ibérico. Pode-se dizer que, na antiguidade ocidental, a família era geralmente constituída em razão de certos ritos religiosos ou pela simples convivência.

No Direito Romano, por exemplo, a mulher poderia passar a integrar a família do seu marido caso se submetesse a manus (o poder marital) em virtude da conventio in manum, por uma das seguintes modalidades de constituição familiar: “a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades, com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e perante o sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio, casamento privativo dos plebeus que implicava à venda simbólica da mulher ao marido, assemelhando-se, pela forma, à mancipatio; e c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que, automaticamente, fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal (trinoctii usurpatio)”.[1]

Isto denota que os romanos admitiam a constituição do vínculo do casamento pela convivência; sem a exigência de maiores formalidades. Ademais, consolidou-se certa tendência entre os estudiosos de Direito Romano (a partir das lições de Bonfante), no sentido defender que o casamento no Direito Romano (desde o período primitivo até Justiniano) exigia apenas dois requisitos: quais sejam a convivência e a intenção marital (affectio maritalis), de modo que o casamento romano reduzir-se-ia a uma “simples relação jurídica de mero fato, que perdura enquanto persistem as condições de fato – convivência e affectio maritalis — de sua existência”.[2]

Assim, era suficiente que um homem e uma mulher, por determinado tempo, convivessem como se fossem casados, independentemente de uma cerimônia civil ou religiosa, para se reputassem submetidos ao regime do casamento. As Ordenações Filipinas (Livro IV, Título XLVI), antiga legislação portuguesa que permaneceu vigendo no Brasil mesmo após a ruptura política em relação a antiga Metrópole, também reconheciam o casamento de fato como espécie de matrimônio apto a gerar efeitos jurídicos: “Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda; ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste para presumir Matrimonio entre elles, posto se se não provem as palavras de presente”.[3]

Os estados norte-americanos do Alabama e do Colorado permanecem reconhecendo o casamento de fato entre as espécies de casamento oficialmente reconhecidas: o Common Law Marriage.[4] Entretanto, após a consumação do Golpe Republicano em 1889, verificou-se a secularização do casamento no Brasil com o advento da Lei do Casamento Civil de 1890.[5] De modo que o direito civil brasileiro deixou de reconhecer o casamento pela convivência duradoura dos cônjuges (casamento de fato) e o casamento religioso, “que, hoje, por si só, sem o posterior registro civil, é considerado concubinato”.[6]

A redução das formas de casamento reconhecidas pelo estado no Brasil ao casamento civil parece refletir aquelas reduções próprias do positivismo, tão ao gosto daqueles que usurparam o poder no Brasil em 1889. A Constituição Brasileira de 1891, nesta toada, reconheceu o casamento civil como única forma de casamento válido. Em obediência ao mandamento constitucional, o Código Civil de 1916 reconheceu que a família legítima poderia ser formada apenas pela via do casamento civil. As Constituições Brasileiras de 1934 (artigo 144), de 1937 (artigo 124), de 1946 (artigo 163) e de 1967 (artigo 167, posteriormente renumerado para artigo 175 em virtude da Emenda Constitucional 1/1969) terminaram por cristalizar a regra segundo a qual a família legítima constitui-se apenas pelo casamento civil.

Em detrimento de uma tradição jurídica de quase 400 anos, o legislador republicano modificou arbitrariamente o tratamento dispensado ao casamento; malferindo a chamada noção estática do direito.[7] É interessante notar, por outro lado, o retrato desenhado quanto a união estável em certa parcela da civilística. A crítica feita por certos civilistas costuma ser no sentido de considerar que o Código Civil de 1916 tutelava apenas as famílias formadas a partir do casamento civil, enquanto relegava as famílias constituídas pela união estável à clandestinidade.

Trata-se, geralmente, de um discurso construído a partir do desprestígio do direito legislado nos códigos “em favor de uma retórica da potencialização da eficácia do texto constitucional”.[8] Contudo, a clausura infligida a união estável decorreu de regras contidas em textos constitucionais brasileiros, como já demonstramos acima. Nem sempre a regulação constitucional de certo instituto jurídico representa um avanço civilizatório, portanto. Na próxima coluna, trataremos das assimetrias jurídicas entre o casamento civil e a união estável.

Post scriptum: O mês de outubro marca a passagem do aniversário de 120 anos da Fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã em Recife, uma das mais tradicionais casas de educação do Brasil. Educação não é sinônimo de ensino, qual seja a mera transmissão de conhecimento. A educação passa pelo uso de palavras “mágicas” tais como “bom dia”, “desculpe” e “obrigado”; e o compartilhamento de certos valores. Por haver recebido tais ensinamentos, não tive dúvidas quanto a escolha do educandário dos meus filhos.

Há cerca de uma década, a reconhecida excelência acadêmica das Irmãs da Congregação das Damas da Instrução Cristã levou a criação da Faculdade Damas, que conta com um Curso de Direito recomendado pelo Conselho Federal da OAB e um mestrado acadêmico com corpo docente de nível internacional, a exemplo de Cláudio Brandão, João Maurício Adeodato, Margarida Cantarelli, Graziela Bacchi Hora, Kai Ambos, António Pedro Barbas Homem etc. Assim, deixo registrado o meu preito de gratidão por todas as lições que aprendi (e as que ainda hei de aprender) naquela Casa; e parabenizo pela passagem do aniversário de 120 anos de fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã e pelos 10 anos de fundação da Faculdade Damas!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 94-95.
[2] ALVES, José Carlos Moreira. A natureza jurídica do casamento romano no direito clássico. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 07.
[3] Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[4] Ao contrário do que imagina o senso comum, o chamado “Common Law Marriage” não é reconhecido na Inglaterra. Cf: http://www.economist.com/news/international/21688381-many-cohabiting-couples-misunderstand-their-legal-status-common-law-marriage-myth Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[5] Para os que desejarem obter mais dados sobre o contexto da Lei do Casamento Civil de 1890, pedimos vênia para indicar a leitura de artigo de nossa lavra sobre o projetista da mencionada lei: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Antônio Coelho Rodrigues: um súdito fiel? Ruptura e continuidade na transição da monarquia para a república no Brasil. Revista de Informação Legislativa, a. 51, n. 203 (jul./set. 2014). Coelho Rodrigues também foi objeto de uma série de colunas nossas: http://www.conjur.com.br/2016-fev-22/direito-civil-atual-critica-coelho-rodrigues-importante-ainda-hoje-dia
[6] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 95-96.
[7] RIPERT, Georges. Les forces créatrices du droit. Paris: L.G.D.J., 1955, p. 01.
[8] CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: código civil versus constituição? In: SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011, p. 64-65.

Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016, 10h39

"Ninguém será bem sucedido na magistratura se pensar em remuneração"





30 de outubro de 2016, 9h35

Por Felipe Luchete e Thiago Crepaldi
Os irmãos Gilberto, Guilherme e Diniz Fernando Ferreira da Cruz, juízes em São Paulo, falam sobre a carreira.

A família Ferreira da Cruz é uma daquelas na qual o Direito parece estar no DNA. Com bases na cidade de Santos, litoral sul do estado de São Paulo, a família foi detentora de um recorde no Judiciário paulista: nas últimas cinco décadas, foi a única a possuir três irmãos na magistratura.

A marca só veio a ser igualada no último concurso realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (número 186), quando o novo juiz Luciano Siqueira de Pretto tomou posse, em 3 de outubro de 2016, para exercer a mesma função de seus irmãos, Pedro e Renato.

Na base de dados da Secretaria da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, é possível encontrar dezenas de casos de dois irmãos juízes, até de desembargadores, porém, pelo menos desde 1965, a família Ferreira da Cruz foi a única com três irmãos em plena atividade na magistratura.

A revista eletrônica Consultor Jurídico encontrou-se com os juízes Diniz Fernando, Gilberto e Guilherme Ferreira da Cruz para uma conversa sobre a carreira, o perfil dos candidatos à magistratura e os desafios que enfrentam.

Eles alertam: a carreira precisa de mais dedicação e vocação do que é possível enxergar através dos editais de concursos. “Juiz não trabalha por hora. Não é chegar ao fórum às 13 horas e ir embora às 18h. Não existe isso. Não tem sábado, não tem domingo, não tem noite, não tem feriado. Se precisar ficar trabalhando, tem que trabalhar”, diz Diniz Fernando.

Leia um breve perfil de cada um e, a seguir, a entrevista:

Diniz Fernando Ferreira da Cruz:
Mais velho dos três irmãos, Diniz Fernando nasceu em 1960 em Santa Cruz do Rio Pardo (SP). Quando tinha cinco anos, sua família decidiu se mudar para Santos, litoral de São Paulo, onde a família mora até hoje. Estudou na Faculdade Católica de Direito de Santos, formando-se em 1983. Foi da turma do desembargador federal Fábio Prieto, que já presidiu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS). Ingressou na magistratura estadual em 1988. Ao longo da carreira, passou por várias cidades. Foi juiz em Ourinhos, Santa Cruz do Rio Pardo, Piraju, Cerqueira César, Avaré, entre outras. Em Barretos, na terceira entrância, ficou 12 anos. Permaneceu em São José do Rio Preto por nove anos, até que, em 2014, pediu remoção e chegou a juiz de Direito substituto em segundo grau no tribunal, atuando na seção criminal desde então.

Gilberto Ferreira da Cruz:
Nascido em 1964, Gilberto Ferreira da Cruz tem 52 anos de idade e também teve toda a formação educacional e cultural em Santos, onde cursou a faculdade de Direito na Universidade Católica de Santos, que depois tornou-se a UniSantos. Colou grau em janeiro de 1987 e, logo em seguida, em setembro, foi aprovado no concurso para promotor de Justiça na cidade de São Paulo, mesmo concurso de Fernando Capez, Gianpaolo Smanio e Motauri Ciocchetti de Souza. Ficou no Ministério Público por dois anos, depois prestou novo concurso e, em 1989, tomou posse como juiz substituto em Santos, depois, titular de Guararapes e Andradina. Retornou a Santos como juiz titular da vara do júri e execuções criminais da comarca por muitos anos, e veio para a capital para a 1ª Vara Cível Central. Pediu remoção, por afinidade com a matéria criminal, para a 2ª Vara do Júri da capital, o segundo tribunal do júri da capital, em Santana, lá ficando por seis anos, até que, no ano passado pediu remoção para substituto de segundo grau, hoje atuando também na Seção Criminal.

Guilherme Ferreira da Cruz:
Caçula dos irmãos, é do ano de 1971. Fez a faculdade também na Católica de Direito de Santos, colando grau em janeiro de 1994. Durante a faculdade, por concurso, foi escrevente do tribunal de Justiça. Com 20 anos, foi escrevente chefe do tribunal de Justiça, o mais novo do estado. Em 1995, ingressou na magistratura. Foi juiz substituto de São José do Rio Preto, titular de Itaporanga, segunda entrância em Presidente Venceslau e terceira entrância em Santos, onde ficou durante oito anos, para, depois, assumir, em 2006, a 2ª Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente. De lá, seguiu para São Paulo, onde assumiu a 37ª Vara Cível Central. Em 2011, foi convocado para atuar em segunda instância, e trabalhou em algumas câmaras da seção de Direito Privado I, e na seção de Direito Privado II, por quatro anos. Nesse período, se removeu para a 45ª Vara Cível Central, a mais nova do Fórum João Mendes, onde hoje está operando o chamado Cartório do Futuro (UPJI).



ConJur – O que levou os senhores para o Direito e, depois, para a magistratura?
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Meu pai era entusiasta pela carreira da magistratura, sempre nos incentivou desde criança. Nas épocas oportunas, cada um fez vestibular e faculdade, direcionou os estudos para o concurso e abriu mão de muita coisa, até que realmente cada um de nós foi aprovado.

Guilherme Ferreira da Cruz – O lado da família do meu pai, Diniz Ferreira da Cruz, é todo voltado para o Direito. Ele e dois irmãos são formados no Largo São Francisco (Universidade de São Paulo). Isso fez com que, desde criança, nós convivêssemos com muitos juízes e desembargadores que frequentavam nossa casa, em razão de amizade longínqua com nosso pai. Um primo dele inclusive foi desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo, Dirceu Ferreira da Cruz.

Gilberto Ferreira da Cruz – Vejam, nosso pai não exerceu uma ingerência direta, não é isso.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Era um incentivo.

Gilberto Ferreira da Cruz – Nosso pai era um homem que não pertencia ao tempo dele. Sempre tinha uma visão adiante. Foi poeta, literato, presidente da Academia Santista de Letras e publicou mais de uma dúzia de livros – tanto na área do Direito como poesias e crônicas. Ele contribuiu com seu exemplo de intelectualidade, pelo berço da ética e, junto com esses valores, pelas amizades sempre profícuas. Portanto, nós crescemos num ambiente em que não se falava de dinheiro nem de buscar atalhos para os caminhos da vida.

No momento em que as oportunidades de vestibular foram se aproximando, escolhemos o Direito pela vocação natural, talvez pela admiração espontânea, nunca imposta, e por conta da nossa facilidade com os livros.Quando nosso pai faleceu, a biblioteca dele foi suficiente para fazer outras quatro: uma para cada irmão e ainda permanece uma na casa da minha mãe.

ConJur – E como escolher qual carreira seguir?
Gilberto Ferreira da Cruz – Eu antes prestei concurso para o Ministério Público. Entre as carreiras jurídicas, existem aquelas que encantam os jovens num primeiro momento pelo glamour dos cargos. Depois é a vocação que define. As duas que chamam mais atenção durante a faculdade é a de juiz e a de promotor, mas depois aparece a turma interessada em ser delegado, defensor público etc.

ConJur – Hoje o concurso para a Defensoria Pública é muito concorrido.
Gilberto Ferreira da Cruz – Muito concorrido, uma carreira espetacular, que lida com as liberdades públicas, não é? Talvez, justamente o que estamos vivendo hoje dentro de um Estado Democrático de Direito, de transparência, de apuração de responsabilidade, de garantia dos direitos efetivos na Constituição desperte essa vocação para a Defensoria Pública. Isso é tudo um momento histórico. Na nossa época, as carreiras mais faladas eram as de juiz, de promotor, de procurador do estado, de delegado e a de advogado liberal. Não existia ainda a Defensoria Pública.

ConJur – Muitos bacharéis se tornaram juízes logo que concluíram a faculdade, com vinte e poucos anos. Os senhores avaliam que existe alguma idade certa, uma experiência de vida necessária para poder seguir essa carreira?
Guilherme Ferreira da Cruz – No passado, havia um limite de 25 anos que caiu ao longo do tempo, foi reduzido para 23. Depois essa idade mínima desapareceu durante um curto período, a tornar possível o ingresso na carreira com 22 anos. Com a reforma do Judiciário advinda da Emenda Constitucional 45/2004, criou-se um pré-requisito: além de se formar, mais três anos de experiência profissional (atividade jurídica). Talvez essa mudança tenha ocorrido porque o momento histórico reconheceu que não era mais adequado o ingresso na magistratura imediatamente após a conclusão do curso de Direito.

Gilberto Ferreira da Cruz –Não podemos desprestigiar os jovens, porque cabelos brancos não trazem cultura a ninguém. A cultura e o caráter são forjados pela família e desde a pré-escola. Existem muitos jovens com 23, 24 anos, que têm grande valor, grande maturidade, e o concurso existe justamente para peneirar, garimpar esses expoentes dentre uma multidão que se inscreve. Graças a Deus o Brasil é um país jovem, porque os jovens mudam, e a vida é movimento. Eu ainda sou favorável ao velho sistema.

Guilherme Ferreira da Cruz – Eu também.

Gilberto Ferreira da Cruz – Idade mínima de 23 anos, com dois anos de experiência jurídica, mesmo antes de formado. Por exemplo, quem era escrevente de cartório durante a faculdade, depois de concluído o curso e de atingir 23 anos, já tinha os requisitos preenchidos: formado, idade mínima e a experiência. Não se esquecendo que durante o concurso o tribunal faz uma aprofundada avaliação psicológica e psiquiátrica do candidato.

ConJur – E muitos ficam nessa avaliação...
Gilberto Ferreira da Cruz – Muitos ficam. Então, a questão de idade é relativa. A gente tem que pensar em capacidade e em equilíbrio.

Guilherme Ferreira da Cruz – A experiência de vida nem sempre está ligada à idade. Essa visão é um erro, do meu ponto de vista. Concordo com o meu irmão Gilberto que o melhor seria o sistema anterior, porque o atual poda muitos jovens que já estão maturados para a carreira, mas – agora – não podem fazer a prova. Eu vivenciei e sofri muito com isso. Por ter entrado muito novo, com 24 anos, constantemente era “colocado em situações” para ver como me saía.

Gilberto Ferreira da Cruz – Tornei-me promotor de Justiça com o doutor Gianpaolo Smanio, hoje procurador geral de Justiça de São Paulo, quando nós tínhamos entre 22 e 23 anos de idade. O resultado está aí: ele foi eleito para comandar o Ministério Público por ter demonstrado durante todos esses anos equilíbrio e ser sempre um exemplo, um professor, um grande amigo, um grande homem, pai de família.

Guilherme Ferreira da Cruz – Mas, se hoje é de outra forma, então que os jovens aproveitem esse necessário período de três anos para melhor se prepararem, porque a prova é árdua, a concorrência é forte e a cada ano o número de inscritos aumenta. Então, quem quer ir para esse ramo tem de estar preparado para os ônus, não é só almejar os bônus – se é que existem.

E os ônus aqui são significativos. Nós estamos falando de uma opção e de perseverança para ficar sentado numa cadeira estudando de 10 a 16 horas por dia. Quem se predispõe a fazer qualquer tipo de concurso tem que primeiro colocar o pé no chão e saber: 1) nada vai cair no seu colo; 2) o tempo vai passar de qualquer jeito, você é que escolhe onde e como vai estar depois que o tempo passar; e 3) se você tiver força de vontade, disciplina e acreditar em si, ainda que com pouco tempo disponível para o estudo, você vai alcançar o seu objetivo.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – É porque o concurso, além de ser muito difícil, depende exclusivamente do candidato. É um concurso muito sério, voltado ao intelectual de cada um e o candidato que se dedicar, que estudar, independentemente de ser ou não de família de juristas, de conviver no meio jurídico, se for bem na prova, vai ser aprovado.

Guilherme Ferreira da Cruz – Depende exclusivamente do indivíduo.Em alguns concursos o número de vagas disponibilizado não é preenchido. Não interessa se há 15 mil, 20 mil candidatos para 50 vagas, por exemplo. Ao final, se apenas 45 são aprovados significa que cinco vagas não serão ocupadas por falta de competência dos candidatos.

ConJur – Às vezes, as pessoas focam em um concurso pela remuneração. No caso da magistratura, os senhores consideram que é preciso ter vocação?
Gilberto Ferreira da Cruz – Pela experiência, a magistratura e o Ministério Público estão entre as carreiras jurídicas que dependem de pura vocação para que possam ser exercidas com independência, com coragem, com espírito de mudar um pouco o mundo, porque são as carreiras que estão diretamente interligadas ao exercício do poder de decisão. O Ministério Público tem o poder da ação penal, da investigação no inquérito civil, na ação civil pública. É o advogado da sociedade naquelas questões que estão diretamente interligadas com o exercício do poder da soberania do Estado; ele tem poder de ação inclusive contra os próprios agentes do Estado. É uma carreira que exige muito foco, muito equilíbrio para o seu exercício. A magistratura é poder do Estado e julga, exerce jurisdição. Essas duas carreiras devem ser motivadas por pura vocação, não é emprego.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Nós não trabalhamos por hora.

Gilberto Ferreira da Cruz – Não somos uma categoria, mas um braço do Poder estatal. Ninguém será bem-sucedido na magistratura e no Ministério Público se pensa apenas em emprego e em remuneração. Tenho muitos colegas que optaram na época certa pela iniciativa privada e hoje são executivos da área jurídica, de multinacionais, que ganham três vezes o que recebe um magistrado. Então, no aspecto financeiro, a magistratura sempre está bem abaixo do patamar de um diretor jurídico de qualquer multinacional. Na magistratura nós temos que pensar no compromisso social com aqueles que dependem de nós, que esperam a nossa atuação eficaz, que é a sociedade. Derrubar processos, solucionar lides, apresentar as estatísticas, a qualidade do serviço, boas sentenças, boas decisões, é só responsabilidade.

Guilherme Ferreira da Cruz – Esse é um ponto importantíssimo, porque quem está preocupado só em ter um emprego, supondo que existe isso ou aquilo agregado à condição de juiz, de promotor, como vencimentos/salário, não deve fazer o concurso. Meu conselho é que não faça. Se fizer e for aprovado, vai ser um infeliz frustrado. Primeiro, porque não vai conseguir o que ele estava querendo, as altas remunerações. Se conseguir, terá optado pelo caminho mais fácil, ilícito. E, segundo, tem muito serviço!

ConJur – Tem gente que pode ver uma boa oportunidade de não ter chefe nem horário...
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Juiz não trabalha por hora, repito. Não é chegar ao fórum às 13 horas e ir embora às 18h. Não existe isso. Não tem sábado, não tem domingo, não tem noite, não tem feriado. Se precisar ficar trabalhando, tem que trabalhar. A Corregedoria Geral de Justiça exige muito do juiz, tanto na esfera administrativa como na jurisdicional. Independentemente da existência desse órgão, o volume de serviço existente em todas as varas, pelo menos aqui no estado de São Paulo, é humanamente invencível. Então, não se pode em nenhum momento só pensar em chegar ao fórum às 13h e ir embora às 18h para colocar um tênis no pé, sair fazendo academia e pronto, acabou o dia. Não, não deve existir isso. É possível até fazer isso, mas não como regra. No entanto, se essa for a regra, acredito que a pessoa vai sofrer uma consequência séria em pouco tempo, porque não vai dar conta do serviço e vai ser cobrado.

Guilherme Ferreira da Cruz – E sem pensar no mal que estará causando à população, porque por trás dos números astronômicos do Tribunal de Justiça de São Paulo existem milhares de pessoas envolvidas nos processos que aguardam solução. O juiz sem vocação trata o ser humano como estatística, como papel – ou como bytes, agora com o processo eletrônico. Por isso que a vocação é fundamental, porque o juiz tem que estar preocupado em dar a cada um o que é seu. Aqueles que vão até o Judiciário esperam que o juiz seja imparcial, justo e que goste do que ele está fazendo, porque só assim nós vamos investigar a fundo o problema para distribuir a justiça em cada um dos casos.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Nesse excesso de trabalho, nessa preocupação com cada caso, com cada vida que está ali no processo, o juiz perde a sua própria vida familiar, vida social, em dedicação ao trabalho.

ConJur – E é difícil conseguir criar uma família com essa história itinerante?
Gilberto Ferreira da Cruz – Isso faz parte do pacote. Quem quer ser militar, sabe que tem que ir para a guerra, sabe que pode morar em fronteira. Quer ser juiz, qual é o pacote? Início da carreira no interior, longe dos amigos, longe da sua família, longe dos seus laços... Lá você é sozinho, é autoridade, não sabe quem é amigo. Não sabe, quando é convidado para um jantar, se o menu é você ou se você é a sobremesa. O juiz está sempre só nas suas decisões e tem que tomar muita cautela com quem se relaciona. Por isso quem não tem vocação não aguenta.

ConJur – E o trabalho do juiz também é de gestor, não é?
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Dependendo do lugar, ele é diretor do fórum, lida com administração de verba, contratos, viaturas, compra de material, correições extrajudiciais, visita o cartório, as delegacias, presídio, pelo menos uma vez por ano.

Guilherme Ferreira da Cruz – Manutenção do prédio...

Gilberto Ferreira da Cruz – O juiz não pode se colocar isolado em sua sala, atrás da sua mesa, somente sobre os seus processos. Precisa se preocupar com a sua pauta, o seu cartório, o comportamento dos seus funcionários...

ConJur – Como o juiz aprende isso? Na prática?
Gilberto Ferreira da Cruz – Existe um regramento interno do tribunal chamado “Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça”, com todas as obrigações administrativas dos juízes. Quando você passa no concurso, você ganha um de presente e boa sorte! Afinal de contas, estamos falando de magistrados que passaram no concurso, que têm todo o potencial para resolver qualquer questão, inclusive as suas obrigações funcionais, de saber todas elas e cumpri-las com muita eficiência.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Aí só vai aprender na prática.

Guilherme Ferreira da Cruz – Hoje em dia, nós temos a Escola Paulista da Magistratura. Depois que o candidato é aprovado no concurso, fica um período em São Paulo participando de cursos de iniciação funcional e também trabalhando nas varas ao lado de colegas mais experientes.

ConJur – Sobre a rotina de trabalho, os senhores consideram que há hoje muita diferença entre o primeiro e o segundo graus?
Guilherme Ferreira da Cruz – Apesar dos esforços empreendidos, o Judiciário precisa ser melhor equipado, com recursos materiais e humanos. Não adianta só cobrar, não teremos uma Justiça de primeiro mundo com um instrumental desatualizado, isto não existe. É preciso que se incremente o primeiro grau, sim, e o segundo, também. O juiz tem que ter condições de trabalho, porque se ele não tiver, não terá como vencer a demanda. Nosso Tribunal de Justiça de São Paulo é talvez o maior do mundo, então tem que ser tratado como tal.

ConJur – O processo eletrônico tem ajudado a tornar esse trabalho mais célere?
Guilherme Ferreira da Cruz – O processo eletrônico anda mais rápido, mas não é a solução para todos os problemas. É preciso que realmente todas as ferramentas estejam disponíveis e todo mundo saiba operar e retirar do programa aquilo que ele tem de melhor; e, o principal, é preciso que o programa funcione.

Gilberto Ferreira da Cruz – Seja o processo eletrônico, seja o físico, ou o que for, a questão é a seguinte: nós não estamos aqui falando em fábrica de produção. O magistrado deve ser visto como o cérebro que vai orquestrar toda essa máquina em busca de decisões justas. Então, não adianta nada apenas ter processo digital.

ConJur – Diante de toda essa rotina de atividades, dá para ser justo e célere ao mesmo tempo?
Guilherme Ferreira da Cruz – O segredo é a vocação, porque todas essas dificuldades você enfrenta com gosto.

ConJur – O juiz em início de carreira sabe onde vai terminar?

Gilberto Ferreira da Cruz – No início da carreira, o juiz assume uma comarca pequena e faz o que nós chamamos “clínica geral”.

Guilherme Ferreira da Cruz – Na época do Diniz, fazia até trabalhista.

Gilberto Ferreira da Cruz – É com o avanço da carreira que o juiz escolhe o caminho. O magistrado interessado em chegar rapidamente ao último degrau da carreira não escolhe as vagas que surgem. Outros querem seguir determinada matéria ou ir para uma cidade/região específica, então ficam esperando vaga.

Guilherme Ferreira da Cruz – É preciso lembrar que o juiz tem uma garantia constitucional que se chama inamovibilidade. Isso significa que o juiz só sai do lugar onde está se quiser. Se ele desejar sair, seja numa movimentação horizontal da carreira – que é a remoção – ou vertical – promoção – ele vai examinar as opções.

ConJur – Todo juiz atua na Execução Criminal?
Guilherme Ferreira da Cruz – Não necessariamente, mas é muito comum no início da carreira, inclusive com visitas às unidades prisionais.

Gilberto Ferreira da Cruz – Lá naquela cadeia pública da cidade dele, ele vai ter que decidir sobre a vida dos presos.

Gilberto Ferreira da Cruz – O Guilherme foi titular da Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente.

Guilherme Ferreira da Cruz – Em 2006, com aquela onda de atentados de dentro para fora dos presídios, o Tribunal de Justiça instalou algumas varas de execuções criminais no estado com o objetivo de dar mais agilidade a esses processos. Assumi em julho de 2006 a região de Presidente Prudente.

ConJur – Não é uma tarefa que gera medo?
Guilherme Ferreira da Cruz – Medo depende de cada um. Agora, se o concursando tem medo de ser juiz, que não preste o concurso. Eu insisto, juiz não é uma figura apenas para receber o seu holerite.

ConJur – E como os senhores vêm o chamado ativismo judicial?
Gilberto Ferreira da Cruz – Bem, eu sempre fui isento, imparcial, cumpri as normas da minha função. Não posso responder por terceiros.

Guilherme Ferreira da Cruz – O juiz não pode ser um omisso. Os problemas que as partes trazem ao Judiciário exigem uma solução e não é porque o juiz decidiu A ou B que ele pode ser qualificado ou desqualificado como ativista. Ele simplesmente está decidindo aquele problema que foi levado à sua jurisdição, mais nada.

Gilberto Ferreira da Cruz – Acredito que todos os juízes, até aqueles que são chamados de ativistas na esfera criminal, proferem as suas decisões e sentenças com base na interpretação do sistema legal em vigor. Hoje se ataca muito o juiz Sergio Moro. Com bravura e independência, ele está aplicando a Legislação Penal dentro da sua ótica. Se houver algum erro de Direito nesse exercício jurisdicional, as instâncias superiores estão aí para corrigir, por via de recurso. Quem é ativista? Quem desagrada grupos? E a que grupos eu devo agradar então?



Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.

Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 30 de outubro de 2016, 9h35

Verba de plano de demissão voluntária não está sujeita à incidência de IR





As verbas vindas de plano de demissão voluntária não estão sujeitas à incidência de Imposto de Renda. Trata-se de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reafirmada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que negou recurso da Fazenda Nacional e determinou a devolução do Imposto de Renda Retido na Fonte em decorrência da rescisão de contrato de trabalho de um metalúrgico, resultante de plano de demissão voluntária (PDV).

A União apelou ao TRF-3 argumentando não se tratar de rescisão voluntária, pois não houve adesão ao PDV, mas sim demissão do autor sem justa causa por decisão arbitrária da empregadora.

Sustentava ainda que o metalúrgico havia preferido não ingressar com ação própria para ser reintegrado à empregadora, optando pela conversão da reintegração em pecúnia. Nesse caso, trataria de remuneração com efetivo acréscimo patrimonial, passível de tributação pelo Imposto de Renda, na forma do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN).

“A jurisprudência reiterada da Corte Superior, no sentido de que o ressarcimento pela despedida sem justa causa de empregado, legalmente contemplado com estabilidade provisória, configura, independentemente de PDV, indenização e não remuneração, não havendo que se cogitar, pois, de violação ao artigo 43 do CTN”, disse o desembargador federal Nelton dos Santos, relator do caso.

O autor era funcionário com estabilidade motivada por acidente de trabalho junto a uma metalúrgica, tendo aderido ao acordo coletivo de trabalho feito entre a empresa e o sindicato da categoria para seu desligamento.

“Considerando a natureza da verba rescisória, à luz da prova produzida nos autos e da jurisprudência consolidada, deve ser excluído da incidência do imposto de renda, uma vez que decorre da estabilidade acidentária e não de liberalidade do empregador, configurando assim nítido caráter indenizatório”, conclui.

Por fim, a 3ª Turma manteve a condenação da União ao pagamento das diferenças apuradas, sendo que a restituição dos valores retidos com correção deverá ser corrigida monetariamente. Além disso, deve arcar com o pagamento de honorários advocatícios no percentual de 10% sobre o valor dado à causa. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-3.

Apelação 0000830-71.2015.4.03.6126/SP


Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2016, 15h17

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...