segunda-feira, 11 de abril de 2016

Direito das Sucessões e tutela de evidência no novo CPC






Por Rodrigo da Cunha Pereira


A sucessão hereditária é um natural complemento do Direito de Propriedade que se projeta post mortem, ou seja, é também uma das formas de transmissão de propriedade, um consectário lógico do conceito de propriedade privada no sistema capitalista. O conjunto de bens e direitos deixados por uma pessoa que morreu denomina-se herança e engloba todo o patrimônio do de cujus, ativos e passivos. A sucessão hereditária pode ser legítima (em virtude da lei) ou testamentária. Seja como for, a maneira de se transmiti-la é sempre pela via de inventário, judicial ou extrajudicial. As regras sobre sucessões encontram-se no Código Civil, mas as regras sobre a forma de sua transmissão, isto é, como se faz inventário e partilha estão no Código de Processo Civil. O processo de inventário é também um importante ritual de passagem, que além de resolver questões práticas ajuda na elaboração do luto (cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado. Ed. Saraiva, p. 415 e 626).

O CPC-2015 tratou de inventário e partilha nos capítulos VI, VII, VIII e IX, que vão dos artigos 610 a 692. Estabeleceu regras para o cumprimento do testamento e codicilos (artigos 735 a 732), dos bens de ausentes e das coisas vagas (artigos 744 a 746). Ou seja, são quase cem artigos, muito semelhantes ao CPC-1973, que foram muito tímidos em relação aos procedimentos da sucessão hereditária, que precisava de regras mais eficazes para ajudar a encurtar o longo prazo dos processos judiciais dessa natureza.

Os inventários e as partilhas, com ou sem testamento, com muitos ou poucos bens, continuam sendo um problema para os herdeiros e também para os advogados, pois sempre somos responsabilizados pela sua morosidade. Mesmo consensual e simples, duram em média um ano. Se litigioso, de dez a 20 anos. Uma eternidade! Certamente o CPC-2015, mesmo que quisesse, não traria uma fórmula mágica para esse inadmissível imbróglio processual. No entanto, perdeu uma boa oportunidade de melhorar em vários aspectos. Por exemplo, ao incorporar em seu texto a Lei 11.441/2007, que já autorizava inventários extrajudiciais, poderia ter ampliado o seu leque para permitir que, mesmo com testamento, o inventário poderia ser feito em cartório, se as partes fossem todas capazes e estiverem de acordo. Teria sido um pequeno avanço, mas ajudaria a desafogar o Judiciário. Há esperança de que isso aconteça se o Conselho Nacional de Justiça tiver a coragem de estabelecer atos normativos que viabilizem tal prática, como já requerido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e entidades representativas de cartórios. Simplificaria bastante se o testamento, uma vez aprovado pelo Judiciário, pudesse ser feito em cartório.

Embora o CPC não seja o instrumento mais adequado para fazer alterações e evoluções das disposições de última vontade, poderia ter simplificado o procedimento de aprovação de testamentos. O CPC-2015 tratou em três artigos de testamentos (735,736 e 737), praticamente repetindo o que dizia o CPC-1973. Aliás, o testamento público não deveria precisar de aprovação do Judiciário, já que é lavrado em Cartório de Notas, que tem fé pública. Deveriam ser levados ao Judiciário apenas os testamentos públicos ou particulares, se fosse levantada alguma dúvida ou questionamento sobre eles. Ou seja, deveriam ser considerados válidos até que se prove o contrário. Porém, em termos de testamento, temos ainda muito a avançar. Tudo seria muito mais simples se a tecnologia fosse mais utilizada. Se as principais dúvidas que surgem sobre o testamento giram em torno de seu conteúdo, e se ele realmente traduz a última vontade do testador, deveriam ser ampliadas suas formas para ser possível o videotestamento. Nada melhor, mais autêntico e verdadeiro para traduzir a vontade de alguém do que expressá-la em áudio e vídeo. Afinal, a tecnologia está aí para isso, e o CPC-2015 poderia tê-la melhor absorvido.

Inventário é o procedimento obrigatório para atribuição legal aos sucessores do falecido, que se conclui com a respectiva partilha dos bens hereditários. O CPC-2015 manteve o prazo de dois meses (artigo 611) para sua instauração e finalização em 12 meses. Na prática, dificilmente isso acontece. Qualquer questionamento em um processo de inventário o faz durar muitos e muitos anos. E o prazo para o seu início não tem uma sanção, a não serem os tributos que aumentam significativamente na medida em que o tempo passa, de acordo com as normas de cada estado da federação. Não há mais menção a abertura do inventário de ofício, ou seja, pelo próprio juiz, como era previsto no CPC-1973 (artigo 989); o leque de inventariantes ampliou e pode ser inclusive o herdeiro menor, por seu representante legal (artigo 617).

E agora, o inventariante pode ser removido de ofício, e não apenas a requerimento da parte interessada como era antes (artigo 622). O rito procedimental continua sendo o comum (artigo 611 e seguintes) e a única novidade está no parágrafo 2° do artigo 620, que facilitou um pouco a forma de prestar as primeiras declarações ao estabelecer que elas “podem ser prestadas mediante petição, firmada por procurador com poderes especiais, à qual o termo se reportará”. Manteve-se também o rito sumário, isto é, o arrolamento sumário (artigo 659 e seguintes) para bens de valor até mil salários mínimos (artigo 664), quando todos os herdeiros são capazes e estão de acordo. Deveria incluir-se nessa regra os incapazes, pois esses, muito mais do que herdeiros capazes, precisam de celeridade, e a jurisprudência já vinha autorizando o rito do arrolamento sumário com a presença de incapazes. A cumulação de inventários teve uma pequena modificação ao estabelecer no parágrafo único do artigo 672 a discricionariedade do juiz para ampliar o leque dos casos de cumulação de inventários, além dos expressamente previstos, ou seja, heranças deixadas pelos dois cônjuges ou companheiros (artigo 672, I e II).

Inventário e partilha é um dos procedimentos mais simples e ao mesmo tempo um dos mais engessados. Avaliações, pagamento de impostos, perícias, divergências entre herdeiros, inclusive sobre qual quinhão ficará para quem, faz levar anos e às vezes décadas de litígio. E o CPC-2015 não trouxe solução para isso, e nem poderia, até porque as questões que envolvem os inventários não são apenas da ordem da objetividade. A maior dificuldade está na subjetividade que permeia aquela relação de amor e ódio. No entanto, trouxe uma inovação importante ao estabelecer em seu artigo 647 a possibilidade de o juiz deferir antecipadamente a qualquer herdeiro o exercício dos direitos de usufruir de determinado bem, com a condição de que, ao término do inventário, tal bem integre a cota desse herdeiro. Trata-se, portanto, de uma tutela de evidência (artigo 294), que é uma novidade em matéria de processo de inventário. É uma tutela antecipada, que não está atrelada ao periculum in mora, mas diante de um direito material que se mostra evidente. Essa é a principal inovação processual para inventários e partilhas. Pode ser uma esperança de desatar alguns nós nesses eternos e inexplicáveis processos litigiosos em que, naturalmente, a parte menos favorecida é sempre a mais prejudicada.

É esperança também para a diminuição do tempo do litígio, se os advogados atentarem para a regra geral do CPC-2015 que criou “os negócios jurídicos processuais” (artigo 190 e 191), possibilitando aos sujeitos processuais flexibilizarem o procedimento, com diminuição de prazos, fazendo modificação na forma e no conteúdo do ato processual anterior, estabelecerem regras particulares para aquele processo. Além disso, se as partes tiverem o bom senso e permitirem que o espírito da mediação e conciliação pairem sobre elas, a esperança da solução do litígio ficará ainda maior.



Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2016, 8h00

"Possibilidade de juiz ponderar normas consagra o irracionalismo no novo CPC"




Por Sérgio Rodas


A ciência processual brasileira precisa libertar-se da influência excessiva do Direito italiano e abrir-se mais às influências jurídicas de outros países. Somente assim as leis evoluirão e o processo passará a funcionar bem no Brasil.

Essa é a opinião do juiz federal Eduardo José da Fonseca Costa e um dos objetivos da recém-fundada Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), presidida por ele. A instituição foi fundada para renovar as formas de abordagem do Direito Processual, em todos os seus ramos. Dessa maneira, seus membros estudam novas abordagens da matéria, que incluem enfoques filosóficos, psicológicos, sociológicos e linguísticos, muitas vezes baseados em experiências internacionais.

Alguns desses estudos visam descobrir quais aspectos fazem com que o juiz, inconscientemente, perca a imparcialidade. Já foi descoberto, por exemplo, que o juiz que conduz a instrução é influenciado por ela, e acaba julgando o caso com base nessa experiência. Para mitigar essa influência na formação de convicção do magistrado, Costa defende que julgadores diferentes cuidem da instrução, do julgamento de liminar e da apreciação do mérito.

Infelizmente, o novo Código de Processo Civil não levou essas descobertas em conta, avalia o presidente da ABDPro. Ele afirma que a norma tem pontos positivos, como a obrigação de os juízes fundamentarem suas decisões, mas já entra em vigor “natimorto” em vários pontos, como o sistema recursal, o qual afirma ser pior do que o código anterior.

“Eles extinguiram os embargos infringentes, é verdade, mas transformaram-nos em um modelo oficioso, ou seja, qualquer decisão não unânime em órgão colegiado obrigatoriamente leva à convocação de outros julgadores. E houve um aumento do leque de aplicação dos recursos pré-existentes. O sistema recursal brasileiro no CPC de 2015 não difere muito do que vigia em Portugal medieval. Todos os recursos do novo CPC têm origem na baixa Idade Média do Direito Lusitano. Nós não evoluímos em matéria recursal”, analisa.

O juiz federal também critica a possibilidade de o magistrado ponderar normas, e não só princípios, o que garante ser “uma das coisas mais assustadoras que eu já vi na história legislativa brasileira”. “Ou nós interpretamos normas de uma maneira metonímica, tomando o gênero pela sua espécie, que é o princípio, ou nós vamos consagrar de uma vez por todas o voluntarismo, o decisionismo, o irracionalismo, e algumas animalidades ancestrais que nós achávamos que a civilização liberal já havia enterrado”.

Essas falhas do novo CPC, a seu ver, se explicam pela perda do protagonismo dos profissionais do Direito na elaboração de leis — uma vez que a norma foi, basicamente, uma autorregulação. Segundo Costa, os trabalhadores da área viraram as costas para a sociedade e passaram a se concentrar em minudências formais. Com isso, eles deixaram de lado as abordagens de outras ciências que poderiam promover um aprimoramento legislativo.

Em entrevista à ConJur, Eduardo José da Fonseca Costa também discutiu as propostas de implementação no Brasil de um processo penal no modelo norte-americano e apontou que o surgimento de regras procedimentais específicas para campos como Direito Constitucional e Direito Tributário demonstra que o CPC deixou de atender às necessidades dessas áreas.

Leia a entrevista:

ConJur — O Brasil possui uma tradição processual própria ou ela é apenas importada de outros países?
Eduardo José da Fonseca Costa — É uma tradição bastante colonizada, e uma colonização parcial, porque nós não temos um copismo da doutrina estrangeira e muito menos um copismo da doutrina da Europa Ocidental, nós temos um copismo, grosso modo, da doutrina italiana. Isso por contingências históricas da chamada Escola Paulista de Direito, que recebeu a influência de grandes autores, especialmente o Enrico Tulio Liebman. Tudo isso foi gerando certa aversão da Escola Paulista de Direito a autores brasileiros que mais afeitos às tradições norte-americana e austro-alemã, como foi o caso do Pontes de Miranda. Nós vivemos num mundo de globalização doutrinária do processo, e de globalização também das soluções legislativas, não sem razão o Brasil hoje adota um sistema de precedentes obrigatórios, isso é um fenômeno mundial. E nós estamos abrindo um pouco mais os olhos para a tradição dos países anglo-saxões, mas não só isso que é interessante, nós não só estamos mais permeáveis a soluções legislativas nesses países, nós estamos cada vez mais recebendo a forma como esses países também fazem a chamada ciência processual. A associação quer contribuir com o avanço da ciência processual e quebrar esse círculo de fé no italianismo processual, que tanto vem atravancando o bom desenvolvimento da ciência processual no Brasil.

ConJur— Como o senhor avalia o novo CPC?
Eduardo José da Fonseca Costa — O novo CPC tem muitos avanços, mas ele já é natimorto em vários aspectos. De bom, ele traz à atividade jurisdicional algumas injeções de democracia e republicanismo, especialmente em matéria de motivação de sentenças. Essa é, talvez, uma das regras mais polêmicas do novo CPC, que obriga os juízes a enfrentarem todos os argumentos e fundamentos trazidos pelas partes. Infelizmente, o Judiciário foi referendando entendimentos autodefensivos com o objetivo de gerar economia de trabalho, mas nós sabemos que o princípio da motivação das decisões foi sendo sabotado paulatinamente no Brasil. Então, a bem da verdade, o que o novo código faz é simplesmente colocar as coisas nos seus devidos lugares.

Outro ponto positivo é a contagem dos prazos por dias úteis, uma conquista justa da classe dos advogados, o advogado tem que ter fim de semana.

O que me preocupa no novo CPC é um certo agigantamento dos poderes do juiz. Os poderes de flexibilização procedimental, por exemplo, me parecem um pouco perigosos. Outro ponto perigoso é esse poder indiscriminado de iniciativas probatórias do juiz, que, não raro, acaba descambando para quebras de imparcialidade. Acho que o novo CPC poderia ser um pouco mais sintonizado com as novas conquistas em psicologia comportamental cognitiva, que demonstram, por exemplo, que o juiz que concede uma tutela provisória não pode ser o que vai proferir a sentença, porque ele tende a confirmar a liminar. Da mesma forma, o juiz que tem contato com a produção da prova oral não pode ser o da sentença, porque ele sentencia contagiado pela prova oral que colheu.

Existem várias descobertas da chamada análise econômico-comportamental do Direito que detectam e conseguem desenvolver técnicas para neutralizar essas quebras inconscientes de imparcialidade. Portanto, são descobertas que acabam referendando um modelo mais adversarial de processo. Nós estamos indo no sentido oposto, o código reforça um sistema mais inquisitorial, aumentando os fatores de quebra de imparcialidade do juiz por enviesamento mental. Isso mostra que os nossos legisladores não estavam sintonizados com o que há de mais recente no estudo de Processo Civil, Penal e Administrativo nos países anglo-saxões e em Israel, por exemplo. Outro atraso foi o sistema recursal, que é pior e mais amplo do que o de 1973. Eles extinguiram os embargos infringentes, é verdade, mas transformaram-nos em um modelo oficioso, ou seja, hoje qualquer decisão não unânime em órgão colegiado, obrigatoriamente, por impulso oficial do presidente da sessão, leva à convocação de outros julgadores. Existem os embargos infringentes de ofício. E houve um aumento do leque de aplicação dos recursos pré-existentes, hoje há o agravo interno, que é o agravo regimental com âmbito de aplicação ampliado, amplificado. O sistema recursal brasileiro no CPC de 2015 não difere muito do sistema recursal que vigeu na Portugal medieval. Todos os recursos do novo CPC têm origem na baixa Idade Média do Direito Lusitano. Nós não evoluímos em matéria recursal.

ConJur— Juristas, como Lenio Streck, criticaram a ponderação de normas, prevista no parágrafo 2º do artigo 489. Segundo eles, esse dispositivo dá margem a arbitrariedades por parte dos juízes. O que o senhor pensa disso?
Eduardo José da Fonseca Costa — O dispositivo dá mais poderes ao juiz do que Hitler tinha. E é uma das coisas mais assustadoras que eu já vi na história legislativa brasileira. A tradição da metodologia jurídica moderna acabou cunhando uma forma objetiva de formulação de juízos de ponderação, o chamado postulado da proporcionalidade. A proporcionalidade, grosso modo, é uma técnica que resolve colisões entre princípios, não entre regras ou entre regras e princípios. Isso porque princípios são normas de caráter finalístico que prescrevem estados desejáveis de coisas, embora num plano mais abstrato os princípios pareçam harmônicos entre si, no plano prático eles acabam mostrando-se muitas vezes não harmônicos, gerando as colisões. E aí se desenvolveu uma técnica para a ponderação, que é exame de proporcionalidade, pela qual procura-se conformar as duas finalidades sem que qualquer uma delas seja totalmente suprimida, geralmente preponderando-se um princípio sobre o outro. Esse dispositivo vai além disso, porque ele fala em normas, e norma é gênero, de que são espécies a regra e o princípio.

Ele permite ao intérprete mais afoito e desavisado fazer ponderação entre toda e qualquer norma, inclusive entre duas regras. As regras seguem uma outra lógica, elas obedecem uma lógica de tudo ou nada, ou a norma incide porque é válida ou se não incide, embora o seu suporte fático esteja concretizado, é porque ela é inválida. Então, não cabe num conflito entre regras juízo de ponderação, porque uma delas simplesmente é inválida, e precisa ter a sua invalidade decretada, num controle de constitucionalidade. Tudo é possível de ser feito se essa regra for inadvertidamente aplicada na sua letra fria. Ou nós interpretamos normas de uma maneira metonímica, tomando o gênero pelo seu princípio, pela sua espécie, que é o princípio, ou nós vamos consagrar de uma vez por todas o voluntarismo, o decisionismo, o irracionalismo, e algumas animalidades ancestrais que nós achávamos que a civilização liberal já havia enterrado.

ConJur— Um dos principais objetivos do novo CPC foi o de combater a morosidade judicial. O novo código vai ser bem-sucedido nesse aspecto?
Eduardo José da Fonseca Costa — Não. Eventualmente, num ponto aqui, outro ali, ele pode trazer alguma injeção de republicanismo e democracia. Mas, se há uma coisa que o Código não propiciará é celerização de processos, por várias razões. Em primeiro lugar, nenhum prazo do CPC de 73 foi diminuído — ou foram mantidos no tempo que estão ou foram ampliados. Por exemplo, os prazos recursais são todos de 15 dias, enquanto no CPC anterior eram de dez, à exceção dos embargos de declaração. Segundo fator, hoje os prazos se contam por dias úteis. Em terceiro lugar, porque o Código exige uma motivação mais detalhada, e isso é muito bom, mas também atenta contra a celeridade. Mas, veja, a gente precisa ter em mente que nem sempre o mais rápido é o melhor. Se justiça tardia é injustiça qualificada, justiça muito afoita é justiça desqualificada, porque o juiz precisa plasmar recursos cognitivos para decidir de maneira adequada, e quando você impinge ao juiz metas de produção, em tempos recordes, quando os juízes são avaliados por merecimento a partir da sua produção, isso tudo começa a pressionar os juízes a julgarem de uma maneira pior. O código dá uma refreada nesse ponto. Portanto, esse não é o código da celeridade processual. Talvez seja o código da duração razoável do processo, uma coisa distinta. Certamente, é um código que tenta primar por um cuidado maior com o tempo ótimo que o juiz tem que levar para sentenciar, e que vai obrigar os juízes a terem mais atenção e comedimento, que, ao fim e ao cabo, é uma virtude que todo o juiz deve ter.

ConJur — O novo CPC dá um grande peso para os precedentes dos tribunais superiores. Mas há especialistas, como o professor Nelson Nery, que avaliam que esse peso dado aos precedentes é inconstitucional, porque os tribunais não têm competência para criar instrumentos com peso de lei. O senhor concorda com essa crítica?
Eduardo José da Fonseca Costa — Eu concordo com essa crítica em parte. Existem duas correntes radicais nessa matéria, alguns que dizem que o sistema de precedentes obrigatórios é inconstitucional, porque permite ao Poder Judiciário produzir uma norma geral e abstrata, com o mesmo quilate de lei, e, portanto, seria necessária a edição de uma emenda constitucional para autorizar isso. Essa é a posição do professor Nelson Nery Júnior. Existe uma outra corrente, que diz que o sistema de precedentes obrigatórios no Direito brasileiro permite ao Poder Judiciário produzir essas normas gerais e abstratas de conduta, de modo que os precedentes que serão aplicados serão obrigatórios não só para os juízes e tribunais, como também para a própria Administração Pública. E isto seria plenamente constitucional, porque estaria sintonizado com princípios como a segurança jurídica, a efetividade da jurisdição e a coerência do ordenamento jurídico. Na minha visão, não é nem uma posição e nem a outra. A letra fria do novo Código afirma que os precedentes que ele arrola são obrigatórios apenas para juízes e tribunais. O que isso significa? Que esses precedentes são normas não de conduta, mas são normas para os juízes sobre a produção de outras normas, individuais e concretas. Nesse sentido, e só nele, o sistema é constitucional. Se o Poder Judiciário produzisse normas gerais e abstratas, ou oponíveis à Administração Pública, fora das hipóteses de súmula vinculante, e decisões em controle abstrato, o novo CPC seria inconstitucional, porque estaria violando a separação de Poderes.

ConJur— O juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário havia sido transferido para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal. Porém, essa alteração gerou muitos protestos, e a regra anterior foi restabelecida. Qual dos modelos é melhor?
Eduardo José da Fonseca Costa — Eu concordo com a gritaria. Nós temos que entender aqui duas coisas: há um problema da lógica dos tribunais de superposição, e há um problema de praticabilidade. O segundo problema nos mostra que se o novo CPC fosse implantado com a nova regra, isso inviabilizaria o Supremo e o STJ. Não haveria servidores e estrutura suficiente para dar conta desse juízo único de admissibilidade, que faz um bom filtro e reduz em mais da metade a subida dos recursos excepcionais. Em segundo lugar, é da lógica desses tribunais que nem tudo que a eles é posto seja por eles julgado. Os tribunais superiores não são uma segunda corte de apelação.

É preciso cuidado no fio das questões para que só aquelas de maior repercussão social sejam enfrentadas e impostas de cima para baixo, porque o desejável, a regra, é que a uniformização de jurisprudência seja feita de forma amadora, lenta. E isso os leigos, às vezes, não entendem, porque se os tribunais uniformizam de maneira muito rápida o entendimento, eles podem deixar de apreciar argumentos e fundamentos que ainda não estão amadurecidos. Isso acontece muito no STJ, que às vezes, de maneira afoita, leva uma questão à sessão e a pacífica. Só que ainda estão surgindo casos na primeira instância com argumentos mais robustos e fundamentos mais bem estruturados, talvez por advogados mais astuciosos, que ainda não foram levados a conhecimento das instâncias superiores. Passam-se alguns anos, aquelas causas sobem a esses tribunais, e eles são surpreendidos por argumentos que até então eles não tinham enfrentado, e aí surgem os chamados overrulings, as superações de jurisprudência.

ConJur— O Congresso discute a reforma do Código de Processo Penal. O que precisaria ter no novo Código?
Eduardo José da Fonseca Costa — Para se ter um novo Código do Processo Penal é preciso um consenso maior. Nós temos aí um verdadeiro braço de ferro entre os que querem um sistema mais inquisitorial e os que desejam um sistema mais acusatório, e daí não se chega a consenso nenhum. E isso é uma pena, porque o CPP atual vigente é de 1941, o design legislativo obedece a uma ideologia fascista vigente naqueles anos e, portanto, é um código que não foi positivamente contagiado pelos valores da república e da democracia. Por outro lado, os tribunais superiores não fizeram uma releitura republicana e democrática do CPP à luz dos valores plasmados no texto constitucional de 1988. Em um novo CPP, seria preciso levar em conta estudos de psicologia cognitiva que vêm mostrando uma série de fatores de quebra inconsciente de imparcialidade de juízes criminais e de jurados. De acordo com essas pesquisas, o juiz que instrui o feito, mormente o feito criminal, e tem contato direto no interrogatório com o acusado, e com as testemunhas, não tem condições psíquico-cognitivas de proferir a sentença. E, desgraçadamente, no Brasil, nós estamos caminhando no caminho oposto.

Hoje nós hipervalorizamos o princípio da oralidade no processo penal, o princípio da imediatidade e o princípio da identidade física do juiz. Um juiz federal no Brasil hoje é um juiz de garantias no inquérito policial, ele faz o controle da constitucionalidade, da legalidade, desses atentados à direitos fundamentais por meio de quebra de sigilos bancários, fiscal, interceptações telefônicas e telemáticas. Esse mesmo juiz é quem recebe a denúncia, esse mesmo juiz é quem instrui, esse mesmo juiz é quem sentencia e não raro ele será o juiz da execução criminal. Ele já está contagiado, praticamente é praticamente um delegado fantasiado com toga, ele não tem mais isenção para julgar o que quer que seja. Nós deveríamos ter um juiz para cada uma dessas etapas do processo penal.

ConJur— O sucesso da delação premiada na operação “lava jato” fez com que muitas pessoas passassem a defender que o Brasil adotasse um modelo processual penal mais parecido com o americano. Esse sistema daria maior ênfase às negociações penais e conferiria mais poderes para o Ministério Público. O que o senhor pensa disso dessa ideia?
Eduardo José da Fonseca Costa — Esse é um dos temas mais difíceis do processo penal. Isso porque essa lógica eficienticista do processo penal americano, que institui o plea bargain, as colaborações premiadas das quais a delação é só um exemplo, funciona muito bem. São sistemas que se mostram altamente eficazes no desbaratamento da macrocriminalidade. O sucesso da delação premiada se explica pela teoria dos jogos, por uma razão muito simples: os lances são finitos e quem dá os primeiros lances tende a se beneficiar mais do que quem fica para o fim. Os últimos delatores tendem a pegar as penas maiores, por isso que ele funciona tão bem. Então, quando se atua dentro de um sistema processual penal eficienticista, fundado em delações, em colaborações e em consensualidade, transitamos em um limite tênue entre a eficácia e a quebra das garantias. Em que medida os arguidos e investigados na operação “lava jato” estão sendo obliquamente coagidos a colaborarem? Será que essa lógica da teoria dos jogos não cria de maneira velada uma espécie de pressão irresistível aos acusados? Esse é um debate difícil e que precisaria ser aprofundado antes de uma mudança radical como essa.

ConJur— Existem propostas para criar regras processuais específicas para ramos do Direito que seguem as normas do processo civil. Dessa forma, há projetos para a criação do Código Processual Constitucional e do Código de Processo Trabalhista. O que o senhor pensa dessa maior especificação dos processos?
Eduardo José da Fonseca Costa — Isso é absolutamente inevitável, porque nós sempre precisamos conformar o instrumento às suas finalidades. Não sem razão circula no Processo Civil o princípio da tutela jurisdicional adequada, porque os formatos processual e procedimental têm que estar sintonizados com as especificidades do caso concreto, com a natureza da relação de direito material controvertida. Existem situações litigiosas que exigem uma solução mais rápida do que outras. Por exemplo, um litígio envolvendo pensão alimentícia é emergencial em si próprio, então precisa de um procedimento mais sumarizado. Da mesma forma, quando demora-se muito para resolver um conflito possessório, tende-se a tornar mais agudo o conflito social, por isso que existem liminares singulares. Então, cada situação, cada relação de direito material pede um tempo específico, uma sequência procedimental específica, uma estrutura de fases própria. Então, não é sem razão que se fala hoje em sub-ramos do direito processual não criminal, como processo civil societário, processo tributário, processo trabalhista, processo civil econômico. Há também ideias de um Direito Processual Público. Então, a gente vive um movimento centrípeto e um movimento centrífugo no Brasil, a pretensa necessidade de um CPC para regular a generalidade dos processos, e subsistemas processuais para atender a demandas específicas de ramos específicos do direito material. De qualquer forma, tanto um movimento como o outro mostram que nós dependemos de subsistemas processuais, e que os sistemas processuais mais gerais se tornam obsoletos muito rapidamente.

O novo CPC vai virar uma colcha de retalhos em menos de cinco anos, ele já está sendo retalhado na vacatio legis. Isso é um fenômeno mundial. Eu sou daqueles que prefere soluções mais lentas pela mão da doutrina da jurisprudência a soluções rápidas e abruptas do legislador. Isso porque quando você lida com Direito Processual, você interfere na estrutura do Poder Judiciário. Por exemplo, as varas estão precisando parar de trabalhar para readequarem todos os seus modelos de despacho, decisão, e sentença ao novo código, e são milhares de resoluções, de minutas, de modelos. Isso toma um tempo absurdo dos juízes, e das secretarias e dos cartórios. Os juízes vão ter que reaprender o código, a citar os artigos de cabeça, a entender suas bases. Uma coisa interessante que existe na Europa são leis processuais civis temporárias experimentais. Assim, é editada uma lei de vigência temporária e técnicos coletam dados estatísticos para ver se ela funcionou bem ou não. Se funcionou bem, vira lei definitiva. Se funcionou mal, não se renova o prazo de vigência. Se tem dúvida, se renova por mais um período idêntico, e com isso se faz uma espécie de legislação mais científica, testada laboratorialmente na vida social. Muito do que está no novo Código poderia ser feito por esse meio, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, como os precedentes obrigatórios, que são megaequipamentos processuais sofisticados, de difícil e polêmica manipulação que poderiam ser antes testados por leis extravagantes de vigência temporária. Então, esse fenômeno dos subsistemas processuais só mostra a inadequação de um novo código editado a toque de caixa.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2016, 7h20

STJ reafirma que crime de embriaguez ao volante não exige prova de perigo concreto





A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que dirigir com concentração de álcool acima do limite legal configura crime, independentemente de a conduta do motorista oferecer risco efetivo para os demais usuários da via pública.

Seguindo o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a turma deu provimento a um recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro e determinou o prosseguimento de ação penal contra um motorista de caminhão flagrado pelo bafômetro com 0,41 mg de álcool por litro de ar expelido dos pulmões – acima do limite de 0,3 mg previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

Embora o STJ e também o Supremo Tribunal Federal já tenham definido que o crime é de perigo abstrato, que não exige prova de efetiva exposição a riscos, o juiz absolveu sumariamente o réu, decisão mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).

“Aberração jurídica”

Para a corte local, o motorista deveria ser punido apenas no âmbito administrativo, pois não ficou demonstrado que estivesse dirigindo de modo a colocar em risco a segurança da via. “A Lei Seca é uma verdadeira aberração jurídica”, afirmou o acórdão do TJRJ, ao considerar que não é possível evitar a imprudência, mas unicamente punir seu resultado.

No entanto, segundo o ministro Schietti, a Lei 11.705/2008 – em vigor quando houve o flagrante do motorista – já havia retirado do CTB a necessidade de risco concreto para caracterização do crime de embriaguez ao volante, o que foi reafirmado pela Lei 12.760/2012.

“A simples condução de automóvel, em via pública, com a concentração de álcool igual ou superior a 6 dg por litro de sangue, aferida por meio de etilômetro, configura o delito previsto no artigo 306 do CTB”, disse o relator. O limite de 6 dg por litro de sangue equivale a 0,3 mg por litro de ar dos pulmões.

Leia o voto do relator.

Da Redação

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Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1582413
Fonte: STJ

NJ ESPECIAL - Dano Existencial: A imposição de trabalho excessivo pode gerar a obrigação de indenizar?




Um trabalhador faz horas extras com frequência por exigência da empresa. Por isso, chega em casa mais tarde e encontra os filhos dormindo. No dia seguinte, quando sai para trabalhar, as crianças ainda estão dormindo. No intervalo para refeição, não sobra tempo para almoçar em casa. Assim, ele passa meses sem encontrar a família. Essa é a rotina típica de um profissional que vive para trabalhar ao invés de trabalhar para viver, situação relatada com frequência em algumas ações recebidas pela JT mineira. O que acontece quando a sobrecarga de trabalho interfere na vida particular do empregado, afetando seus projetos e relações interpessoais?
Quando se torna inviável para o trabalhador conciliar a vida pessoal com a profissional por culpa do empregador, surgem os transtornos que esvaziam a existência humana e fazem desaparecer o sentido da vida. Em outras palavras, surge o dano existencial.
Nos últimos anos, essa expressão vem ganhando cada vez mais espaço nos processos trabalhistas. Mas, conforme salientam os magistrados da JT mineira, para que seja caracterizado esse tipo de dano, não bastam simples alegações genéricas de transtornos sociais e familiares. Eles acentuam que não é qualquer transtorno isolado ou aborrecimento de curta duração no trabalho que caracteriza esse tipo de dano. O reconhecimento do direito à indenização por dano existencial depende da análise criteriosa dos fatos e provas produzidas.
Em que situações a imposição de trabalho excessivo pode gerar a obrigação de indenizar? Nesta Notícia Jurídica Especial veremos os posicionamentos da Justiça do Trabalho mineira diante dessa questão.
Conceito e origem de dano existencialO dano existencial é um conceito jurídico relativamente recente, que teve origem no Direito Civil italiano. O conceito foi sendo aos poucos absorvido pelos tribunais brasileiros, especificamente na seara civil e, mais recentemente, tem sido aplicado na Justiça do Trabalho. No julgamento de processos referentes à matéria, magistrados que atuam na Justiça do Trabalho mineira trouxeram em suas decisões os conceitos jurídicos de dano existencial. Veja algumas dessas definições:
"O dano existencial decorre de toda e qualquer lesão apta a comprometer, nos mais variados sentidos, a liberdade de escolha da pessoa humana, inibindo a sua convivência familiar/social e frustrando o seu projeto de vida". (Proc. nº 0001073-93.2014.5.03.0135-RO. Relator: desembargador Luiz Otavio Linhares Renault. Publicação: 22/05/2015).
"O instituto do dano existencial consiste no prejuízo sofrido pelo obreiro, em decorrência de excessivas demandas do trabalho, nas diversas esferas de sua vida privada, interações social e familiar, lazer, desenvolvimento acadêmico e demais projetos de vida". (Proc. nº 0001718-15.2014.503.0137. Sentença da juíza Ana Maria Espí Cavalcanti. Publicação: 30/04/2015). "O dano existencial tem ganhado contornos na jurisprudência como espécie de lesão a um projeto de vida, no qual a pessoa depositou sua realização pessoal como ser humano e que, ao perdê-lo, passa a sofrer com a sensação de vazio, a ponto de afetar sua vontade de viver em situações extremas. Trata-se de espécie de lesão que, embora afete direito extrapatrimonial, não se confunde com o dano moral, porque este incide sobre a personalidade, ofendendo a esfera íntima do indivíduo, ao passo que o dano existencial recai sobre um projeto frustrado, o qual gera sequelas existenciais". (Proc. Nº 0000033- 47.2015.503.0004. Sentença do juiz Leonardo Tibo Barbosa Lima. Publicação: 18/05/2015). Já o juiz Ronaldo Antônio Messeder Filho, titular da 2ª Vara do Trabalho de João Monlevade, possui uma visão diferente acerca do dano existencial, que, no seu entendimento, é uma espécie de "ativismo judicial", ou seja, um direito nascido nos tribunais. Conforme expôs o magistrado, não compete ao julgador legislar para equacionar injustiças sociais:
"O dano moral não se confunde com o dano existencial. Enquanto o dano moral tem previsão na Constituição (artigo 5º, incisos V e X, da Constituição da República) e no Código Civil (art. 186), o dano existencial (sic) é fruto da construção (ou criação) de uma corrente jurisprudencial que passou a conceber a existência de um instituto jurídico no ordenamento jurídico que, na verdade, não tem nenhuma regulamentação normativa. Com todo o respeito a essa jurisprudência que se formou nos últimos tempos, compreendo que o instituto alegado participa da esfera de condutas que se podem chamar de medidas extraídas do ativismo judicial, ou seja, os juízes se arvoram no papel de legisladores e passam a criar e conceber mecanismos sociais de ajuste para os descompassos das legislações, isso com base em critérios subjetivos de visões de sociedades, extrapolando o restrito dever constitucional de julgadores. Em outras palavras, o dano existencial, por falta de lei que o regulamente, é um instituto jurídico criado dentro de uma corrente de jurisprudência que se pode chamar de ativismo judicial, em que o julgador se vale de abstrações, como justiça social e mecanismos equivalentes, para equacionar e equilibrar as relações que vê como sendo de injustiça social. Confirme-se essa situação por uma simples pesquisa de jurisprudência no âmbito dos Tribunais de Justiça estaduais, assim como no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal para se confirmar que o famigerado dano existencial não tem existência fora dessa corrente jurisprudencial que se formou nos Tribunais Trabalhistas". (Proc. nº 0000028-56.2014.503.0102). Elementos do dano existencialAs consequências nocivas da sobrecarga habitual de trabalho podem ser variadas, como, por exemplo: crise conjugal e separação de casais, dificuldade de acompanhamento dos filhos em idade escolar, falta de tempo para viagens de lazer, abandono dos estudos pela dificuldade de conciliação de horários etc. Constituem elementos do dano existencial, além do ato ilícito, o nexo de causalidade e o efetivo prejuízo, o dano à realização do projeto de vida e o prejuízo à vida de relações.
1). O prejuízo à vida de relações: No Direito do Trabalho, ocorre quando a imposição abusiva da sobrecarga de trabalho interfere negativamente nas relações interpessoais do empregado, impedindo-o de se relacionar e de conviver em sociedade, privando-o de realizar atividades recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, afetando seu bem-estar físico e psíquico. Exemplo: chefe altera repentinamente o turno de trabalho do empregado, que é convocado para trabalhar no dia da festa de aniversário do filho pequeno. 2). O dano à realização do projeto de vida: Ocorre quando a conduta ilícita do empregador de exigir o cumprimento de jornada exaustiva acaba por inviabilizar os projetos pessoais do trabalhador. Exemplo: empregado não consegue terminar a faculdade por causa da incompatibilidade de horários, já que é obrigado a fazer horas extras diariamente, fato que o impede de frequentar as aulas. No caso analisado na 2ª Vara do Trabalho de Contagem, ficou demonstrado que a empresa impunha ao empregado uma jornada de trabalho longa, contínua e extenuante, que acabava por impedir que ele organizasse sua vida particular, social e familiar. "A prova testemunhal produzida convenceu a este Juízo disso", ressaltou o juiz Erdman Ferreira da Cunha. É que a testemunha confirmou que as jornadas cumpridas pelo reclamante não lhe permitiam voltar a estudar. O magistrado deferiu ao trabalhador uma indenização por dano existencial de 30 mil reais, mas esse valor foi reduzido na 2ª instância para 10 mil reais. (Proc. Nº 0010725-95.2013.5.03.0030).
No proc. nº 0001914-97.2014.5.03.0035, julgado na 1ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, o autor alegou que a falta de concessão do intervalo e a constante exigência de trabalho em sobrejornada inviabilizaram sua vida social e seus projetos de vida, comprometendo, inclusive, o acompanhamento da gravidez de sua esposa, razão pela qual pleiteou indenização por dano moral existencial. Entretanto, ao examinar as provas do processo, o juiz José Nilton Ferreira Pandelot não acatou a pretensão, ponderando que, de fato, os controles de ponto registraram horas extras, mas houve o correspondente pagamento, conforme demonstraram os comprovantes juntados ao processo. Ademais, o magistrado observou que houve a concessão de folgas regulares e em muitos dias se percebe o encerramento da jornada antes das 18 horas.
"Não há nenhuma dúvida acerca do comprometimento do autor e de parcela significativa dos trabalhadores brasileiros com longas jornadas de trabalho e com deslocamentos demorados entre a casa e o trabalho e vice-versa, mas, no caso em questão, não se demonstrou que tal rotina de trabalho foi, de fato, impeditiva do convívio social. Nem se diga que a simples contabilidade das horas revelaria esse dado. É que o trabalho, por si só, já é fator de redução do tempo de convívio familiar, ainda que, por outro lado, propicie outras formas de convívio social. Neste aspecto, o autor deveria demonstrar que sua rotina de trabalho, imposta de modo intransigente pela ré, teria anulado sua vida social, o que não ocorreu nestes autos", finalizou o julgador.
Referências legaisNão existe uma lei específica regulamentando o instituto do dano existencial, mas os magistrados que atuam na Justiça do Trabalho mineira costumam fundamentar suas decisões com base nas seguintes normas:
Art. 6º da CF/88: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015) Incisos XIII e XXII do art. 7º da CF/88: "Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:(...)XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; (...)XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança".Artigo 373 do novo CPC: "Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".Artigo 818 da CLT: "Art. 818. A prova das alegações incumbe à parte que as fizer".No julgamento do Proc. nº 0010075-63.2015.5.03.0067, o juiz Marcelo Palma de Brito destacou também as seguintes referências normativas:
"Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)". "O magistrado deverá, na falta de normas jurídicas particulares, aplicar as regras de experiência comum, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (art. 335 do CPC de 1973, que corresponde ao art. 375 do novo CPC) "."Adotando-se de forma analógica a regra prevista no artigo 852-I, § 1º, da CLT, poderá ser adotada, em cada caso, a decisão que se reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum".Caracterização do dano existencial: teses divergentesOs entendimentos divergentes são bem polarizados. Uma corrente entende que a submissão do trabalhador a frequentes sobrejornadas já é suficiente para caracterizar o dano, independentemente da existência de repouso semanal remunerado. Com relação a esse critério, o juiz Osmar Rodrigues Brandão pontuou:
"Há que se distinguir horas extras habituais, praticadas dentro dos limites legais previstos para o trabalho extraordinário (CLT 59 e seguintes), de horas extras ilícitas, aquelas praticadas acima dos limites legais, situação que pode até mesmo configurar crime, nos termos do art. 149 do CP (...) A remuneração das horas extras com os adicionais legais ou convencionais remunera o serviço prestado na jornada praticada correspondente, pressupondo que a saúde, a higidez física e mental do trabalhador permanecem intactas. Uma vez caracterizada a jornada exaustiva, porém, tem-se aí um ato ilícito, que, por se constituir em tipo penal (CP 149), antes, a fortiori, constitui ilícito civil (CC, 186, 187), caracterizado pela imprudência e abuso do direito diante do notório prejuízo à saúde - higidez física e mental (OMS/WHO; CF 196) da pessoa submetida a tal condição análoga à de escravo, prejuízo tal que não se pode considerar já reparado com a remuneração das horas trabalhadas, pois, repita-se, tal remuneração pressupõe a preservação da saúde do trabalhador, que no caso notoriamente (CPC 334 I) não ocorre". (Proc. nº 0010523-48.2014.5.03.0042).
De acordo com essa primeira corrente, ainda que o ordenamento jurídico estipule remuneração especial em caso de prestação de horas extras, o que, por si só e em princípio, não é suficiente para gerar qualquer tipo de dano, há casos em que jornadas abusivas poderiam trazer inegáveis malefícios para o trabalhador, tanto do ponto de vista da saúde, pelo desgaste físico e mental, quanto do extrapatrimonial, pela privação do convívio social e familiar imposta ao trabalhador. Um exemplo desse posicionamento pode ser encontrado no processo nº 0001744-27.2013.5.03.0079, que teve como relator o juiz convocado Eduardo Aurélio Pereira Ferri.
Diante da constatação de que o caminhoneiro cumpria jornada de 16 horas diárias, das 06 às 22 horas, de sábado até quinta-feira, com apenas um intervalo de 50 minutos por dia, a 7ª Turma do TRT-MG manteve a condenação da ré ao pagamento de uma indenização por dano existencial, no valor de 50 mil reais. Para o relator, é inquestionável a jornada exaustiva, que ultrapassa o mero descumprimento de obrigações legais relativas à duração do trabalho.
Outra corrente entende que a sobrecarga de trabalho habitual, por si só, não é suficiente para a configuração do dano moral existencial. Sob essa ótica, deve haver prova contundente de que o excesso de jornada comprometeu a vida pessoal e os projetos de vida do trabalhador, prejudicando o direito ao descanso e ao lazer, bem como o convívio familiar e social. Os julgadores que adotam esse posicionamento entendem que os prejuízos decorrentes do excesso de jornada atingem a esfera patrimonial do trabalhador, que deve formular pedido específico referente ao pagamento das horas extras devidas ou à penalidade decorrente do descumprimento de norma trabalhista.
A juíza Ana Paula Costa Guerzoni adotou esse posicionamento ao julgar um caso na 1ª Vara do Trabalho de Pouso Alegre. O empregado pleiteou o pagamento de uma indenização por danos existenciais, ao fundamento de que a empregadora jamais lhe concedeu férias nos mais de sete anos de duração do contrato. Disse ser desnecessário citar os projetos ou viagens com a família frustrados, porque as relações sociais são as mais variadas para toda e qualquer pessoa. Destacou que sua esposa, na única oportunidade em que pôde fazer uma viagem ao exterior, não teve a companhia do marido, viajando apenas com o filho e nora.
A juíza julgou improcedente o pedido, sob o seguinte fundamento: "O dano existencial está intimamente ligado à impossibilidade de o trabalhador usufruir o convívio social e familiar ou algum projeto de vida específico em razão de ato ilícito perpetrado pela empregadora. No caso em epígrafe, o fato de o autor não ter usufruído férias não é suficiente para a caracterização de dano existencial, mesmo porque não há provas nos autos de que a demandada o tenha impedido de viajar para o exterior com a família. Sendo assim, rejeito o pedido de indenização por danos existenciais". Há recursos de ambas as partes aguardando julgamento no TRT mineiro. (Proc. PJe nº 0010333-83.2014.5.03.0075).
Ao julgar um caso na Vara do Trabalho de Conselheiro Lafaiete, o juiz Augusto Pessoa de Mendonça e Alvarenga fez a seguinte observação:
"Ainda que a prestação habitual de horas extras cause transtornos ao empregado, tal circunstância não é suficiente para ensejar o deferimento da indenização por dano existencial, sendo imprescindível, na hipótese, a demonstração inequívoca do prejuízo que, no caso, não ocorre "in re ipsa". No caso dos autos isso não ocorreu, haja vista que o obreiro não comprovou que deixou de realizar planos e que a prestação de serviços tivesse trazido prejuízos à sua vida pessoa". (Proc. PJe nº 0010466-54.2015.5.03.0055).
Casos comuns na JT mineira: jornada exaustiva é a maior reclamaçãoAs recentes ações recebidas pela Justiça do Trabalho mineira relatam jornadas exaustivas, supressão de férias, longas viagens a trabalho, falta de tempo para conclusão dos estudos, entre outros fatores que dificultam o lazer, a concretização de projetos pessoais e a socialização. Veja alguns exemplos:
Na 2ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, o juiz Fernando César da Fonseca deferiu uma indenização por dano existencial, no valor de 50 mil reais, a uma trabalhadora que desenvolveu um quadro de ansiedade e depressão depois de trabalhar durante muito tempo em ambiente hostil. "Conforme analisado exaustivamente no tópico atinente à doença ocupacional e reintegração, a prova oral confirmou o alegado assédio moral praticado pelos prepostos da empresa ré, consistente em ameaças, perseguições infundadas, humilhações, restrições de uso ao banheiro, cobrança excessiva e até mesmo discriminação de trabalhadores no que diz respeito à alimentação com base em sua posição hierárquica", acentuou o magistrado.
No caso analisado na 2ª Vara do Trabalho de Pedro Leopoldo, o empregado, que trabalhava com venda de imóveis, pleiteou indenização por dano existencial, alegando que abdicou da própria vida social e convívio em prol das reclamadas, que exigiam a presença dele em tempo integral na empresa. Entretanto, os argumentos do trabalhador não convenceram o juiz João Bosco de Barcelos Coura. Em sua sentença, ele pontuou que: "o autor ocupava um alto cargo na empresa, coordenando uma equipe de diversos vendedores, recebendo remuneração elevada e diferenciada em relação aos demais empregados, e tratando diretamente com a diretoria das reclamadas. Logo, o seu discurso de coação irresistível e subordinação quase escravocrata soa falso e temerário. Ademais, nada há nos autos a demonstrar que a jornada cumprida tenha causado prejuízo aos vínculos sociais e familiares do reclamante. O prejuízo atingiu apenas a esfera patrimonial do autor, ainda que se admita que o trabalho extraordinário acarrete diminuição no tempo livre do empregado. Ao que tudo indica, era do interesse do reclamante dispensar mais tempo nas vendas dos imóveis, em razão das comissões, que eram proporcionais aos negócios efetuados. Se a jornada excessiva fosse insuportável, bastaria o reclamante postular a rescisão indireta do contrato de trabalho, e isso não foi feito". O trabalhador não recorreu da decisão nesse aspecto. (Proc. PJe nº 0011443-07.2014.5.03.0144).
No proc. nº 0001346-72.2014.503.0038, o empregado pleiteou indenização por dano existencial argumentando hiperexploração de mão de obra humana pelo fato de trabalhar em jornada excessiva, o que ocasionou perdas irreparáveis, como a do casamento e da convivência familiar. Entretanto, ao examinar as provas juntadas ao processo, o juiz Léverson Bastos Dutra verificou que a mensagem eletrônica enviada pelo trabalhador à direção da empresa soa de modo bem diferente das queixas relatadas na inicial. Na mensagem, o reclamante pede para ser dispensado do emprego, asseverando que "não era meu objetivo sair de sua empresa dessa maneira queria eu ficar até me aposentar; (...); eu já sou grato a todas da família abc". Para o magistrado, não houve prova consistente do prejuízo real sofrido nem da conduta ilícita da empresa. "Óbvio que, além da prova inequívoca do prejuízo real sofrido, faz-se imprescindível a demonstração de ilicitude do comportamento do ofensor, cujo ânimo de lesionar patrimônio moral do ofendido deve restar devidamente evidenciado. A reparação civil por dano moral, na qualidade de notória conquista social, deve ser analisada com parcimônia e critério, evitando-se os riscos de sua banalização", finalizou o julgador. Não houve recurso da decisão.
Não há ainda uma estatística precisa, mas não restam dúvidas de que a causa que mais embasa os pedidos de dano existencial é a alegação de cumprimento habitual de jornada excessiva.
No julgamento do Proc. PJe nº 0010931-37.2013.5.03.0151, o desembargador Luiz Otávio Linhares Renault apurou que um caminhoneiro chegava a trabalhar 18 horas por dia, o que, na visão do magistrado, configura jornada exaustiva e abuso do poder diretivo do empregador. "O dano moral, nesse caso, é "in re ipsa", tendo em vista que o Reclamante ficou privado de gozar de uma vida social, bem como do convívio familiar, a ponto de colocar em risco sua saúde psíquica. Corroborando com isso, existe o fato de a atividade do Reclamante (motorista) já ser por si só demasiadamente estressante, de maneira que se pode deduzir que o excesso de jornada aumentou consideravelmente também o risco de sua saúde física, elevando o risco de acidentes nas perigosas estradas brasileira". Com essas palavras, o desembargador relator confirmou a condenação da empresa ao pagamento de uma indenização de 10 mil reais, por dano existencial.
Em outro caso semelhante, o juiz Marcelo Palma de Brito manifestou entendimento diferente e negou o pedido de um caminhoneiro que pretendia receber indenização por dano existencial, alegando que cumpria jornada de 18h diárias. A ré não apresentou em juízo os controles de jornada. Entretanto, na percepção do magistrado, a jornada de 18 horas afirmada pelo trabalhador não merece credibilidade, porque física e psicologicamente impossível: "Não parece crível que um trabalhador, por mais forte, saudável e bem-intencionado que seja, consiga laborar durante 18 (dezoito) horas todos os dias como afirmado na inicial. Ora, quando é que o reclamante, durante as suas 18 (dezoito) horas de labor, se alimentava, realizava as suas necessidades fisiológicas e, principalmente, dormia a ponto de ficar descansado para conduzir no dia seguinte? A jornada aduzida na inicial, nesse ponto, é inverossímil no sentir deste Juízo. Dezoito horas de labor não eram praticadas nem mesmo em épocas pré-industriais", ponderou, acrescentando que, se assim fosse, os sócios proprietários da ré deveriam ser denunciados pelo crime de redução de trabalhador a condição análoga à de escravo, tipo previsto no artigo 149 do Código Penal. (Proc. nº 0010075-63.2015.5.03.0067)
O que é jornada exaustiva? Que é a razão mais alegada para o dano existencial, já se sabe. Mas o que caracteriza, exatamente, a jornada exaustiva? É uma pergunta difícil de ser respondida, tendo em vista que a lei não define expressamente em que ponto a jornada pode ser considerada exaustiva. A legislação fornece apenas alguns parâmetros para que o magistrado possa fundamentar sua decisão.
Sobre esses parâmetros, o juiz Osmar Rodrigues Brandão fez importantes observações ao julgar um caso na 2ª Vara do Trabalho de Uberaba:
"A Lei não define jornada exaustiva, porém oferece dados objetivos que podem ser tomados por parâmetros. Pressupondo a jornada comum, para o "trabalho normal", assim definido na CF como sendo de 8h/dia e 44/semana (CF 7º, XIII), o limite legal para a prática de horas extras é de 2h (CLT 59), salvo necessidade imperiosa, caso em que poderá chegar a 12h/dia, ainda assim por tempo determinado e atendidos certos requisitos, formais e materiais (CLT 61). Com base nesses parâmetros, e considerando, ainda, a finalidade da norma (LINDB 5º; NCPC 8º), que é o descanso, o lazer, o convívio social e familiar, tenho por razoável tomar como parâmetro para se considerar jornada exaustiva o limite diário de 12h, aliado a outros fatores e circunstâncias, tais como duração (prolongamento no tempo) e frequência com que a jornada superior a 12h/dia é praticada, número de folgas, férias, etc". (Proc. nº 0010523-48.2014.5.03.0042).
A cultura do "workaholic"Nem sempre a sobrecarga de trabalho é uma imposição do empregador. Muitas vezes as dificuldades financeiras e o atual cenário de crise econômica levam o brasileiro a se submeter espontaneamente a frequentes jornadas excessivas como forma de compensação da defasagem salarial. Cria-se, dessa forma, a "cultura das horas extras" como alternativa para a complementação da renda, transformando o profissional em verdadeiro workaholic (viciado em trabalho). Esse comportamento é mais comum do que se imagina. É uma questão cultural. A prática voluntária de jornada excessiva ocorre com frequência e acaba chegando à Justiça do Trabalho mineira em forma de pedidos de indenização por dano existencial, os quais, nesse caso, costumam ser negados pelos magistrados.
Exemplo disso aconteceu na 1ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, onde o juiz José Nilton Ferreira Pandelot julgou improcedente o pedido de indenização por dano existencial, formulado por um instalador de TV a cabo, pelos seguintes fundamentos:
"A prova dos autos revela que o autor estava submetido à jornada extensa, mas não abusiva. Não passa despercebido que o trabalhador recebia comissão, isto é, determinada parcela variável por instalação, o que, sem dúvida, incentiva a atuação, sem ou com pouca solução de continuidade. De fato, a testemunha obreira disse que o autor recebia mais. Não se está afirmando que os comissionistas estariam excluídos da condição de vítimas do dano existencial, mas sim que tal situação exige prova mais robusta de imposição de jornada abusiva e excludente da possibilidade de dedicação do trabalhador aos demais assuntos e práticas da vida. A análise detida dos autos revela, no entanto, jornada de nove horas, o que, em princípio, não é muito mais do que a jornada rotineira da média dos trabalhadores brasileiros, ainda mais se considerado o tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho. Além disso, ainda que, em tese, se possa admitir a hipótese de configuração de dano in re ipsa, não restaram presentes todos os pressupostos da responsabilização civil, como a prática de ato ilícito e o fato do impedimento do convívio familiar, cuja ocorrência não pode ser inferida da jornada de nove horas, mesmo em todos os dias da semana". (Proc. nº 0001920-07.2014.5.03.0035).
Direito à desconexão do trabalho: a importância do tempo livre.O trabalho exerce funções diversas na vida do trabalhador: fator de inclusão social, meio de subsistência para ele e sua família, motivo de orgulho e de certo prazer para o trabalhador. Em outras palavras, a realização profissional também integra o projeto de vida de quem vive do trabalho, assim como as relações de trabalho também compõem a vida de relação. Então, por que a questão do dano existencial está sendo tão discutida nas ações trabalhistas? A resposta é que sempre existem abusos por parte das pessoas envolvidas. É perfeitamente possível conciliar realização profissional com qualidade de vida, desde que haja equilíbrio. Esse aspecto já foi abordado em várias decisões:
"Até mesmo o conhecido trabalhador workaholic está em desuso, porque já se sabe que o ritmo frenético no trabalho engendra consequências deletérias no indivíduo e na coletividade, como admitem há algum tempo estudos que revelam efeitos nocivos, perversos e desgastantes no corpo humano resultantes do desrespeito à duração do trabalho". (Martha Halfeld Furtado de Mendonca Schmidt - Proc. nº 0010031-39.2015.5.03.0101)."A incerteza do tempo livre prejudica o convívio social e familiar, transformando o trabalhador num workaholic, o que gera depressão, falta de concentração, irritabilidade, insônia, que, no somatório, são altamente estressantes". (Natália Queiroz Cabral Rodrigues - Proc. Nº 00064-2009-016-03-00-6).

Notícias Jurídicas anteriores sobre a matéria:

10/02/2016 05:55h - Simples prestação de horas extras rotineiras não configura dano existencial

02/01/2016 06:02h - Motorista carreteiro submetido a jornada exaustiva receberá indenização por dano existencial

31/12/2015 06:02h - Violação ao direito à desconexão do trabalho gera indenização por danos morais

20/12/2015 05:52h - Empresa é condenada a pagar indenização por dano moral existencial

07/11/2014 06:05h - Dano moral não é consequência automática da violação à lei trabalhista


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Fonte: TRT3

Turma afasta justa causa aplicada a apenas um dos envolvidos em briga


Um vigilante que se envolveu em uma luta corporal com o seu chefe após uma discussão conseguiu reverter, em recurso julgado pela 4ª Turma do TRT-MG, a justa causa aplicada pela empregadora, uma empresa do ramo de segurança e vigilância. Para o relator, desembargador Paulo Chaves Corrêa Filho, a penalidade aplicada foi desproporcional, na medida em que o reclamante e o chefe se agrediram mutuamente, mas apenas o primeiro foi punido. Acompanhando o entendimento, a Turma de julgadores reformou a sentença e condenou a ré ao pagamento das verbas devidas na dispensa sem justa causa.
De acordo com as provas dos autos, o vigilante estava em seu horário de almoço, tocando violão em um quartinho, quando foi repreendido pelo coordenador. Os dois acabaram se desentendendo e partiram para agressões mútuas. Na sentença, o juiz de 1º Grau rejeitou o pedido de reversão da justa causa formulado pelo reclamante, por entender que a ofensa física cometida contra superior justifica a aplicação da justa causa, nos termos do artigo 482, alínea k, da CLT.
Mas o relator chegou à conclusão diversa. Isto porque, conforme observou, a prova dos autos não confirmou a tese da defesa de que o empregado teria simplesmente agredido o seu superior imediato. O julgador ponderou que ele estava em horário de almoço e se existia proibição de tocar violão, como alegado, o empregador poderia se valer do seu poder diretivo. Para o magistrado, nada justifica o que aconteceu, principalmente por se tratar do gestor de um setor de trabalho.
Segundo a decisão, a análise das provas revelou que houve um desentendimento entre os empregados, por ocorrência banal, que poderia ser contornada de forma diferente. Os envolvidos deixaram os nervos subir à flor da pele e partiram para a luta corporal. O relator levou em consideração o fato de o superior também ter agredido o reclamante. Para ele, ainda que o argumento de legítima defesa, em favor do reclamante, não fosse acolhido, o fato é que o chefe também se excedeu e praticou falta grave.
"Houve, quando muito, culpa recíproca, a atrair a punição a ambos os envolvidos, até porque o superior, como gestor, tem de demonstrar condições para superar referidas situações, com cautela, embora não perdendo o seu poder de direção", registrou o magistrado no voto, considerando desproporcional a justa causa aplicada apenas ao vigilante. Ele pontuou não ter havido notícia nos autos de qualquer punição ao outro empregado envolvido na ocorrência. "É no mínimo discriminatória e atenta contra o tratamento igualitário a conduta da reclamada que, à vista da conduta indevida de dois de seus empregados, que chegaram a se agredir mutuamente, por força de um desentendimento, pune apenas um deles com a dispensa por justa causa, isentando o outro de qualquer punição", constou da ementa da decisão.
Uma vez que foi conferido perdão ao outro empregado envolvido na briga, o julgador considerou injusta a aplicação da pena capital apenas ao reclamante. Por esta razão, deu provimento ao recurso para excluir a justa causa aplicada e deferir ao vigilante aviso prévio indenizado, férias proporcionais com 1/3, 13º salário proporcional e FGTS com 40%.
( 0002313-26.2013.5.03.0112 RO )

Fonte: TRT3

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Juízes não são combatentes da corrupção, mas garantes da não corrupção





Por José Carlos Garcia


O mais recente filme de Steven Spielberg, Ponte dos espiões (Bridge of spies, EUA, 2015), situa-se no auge da Guerra Fria, nos fins dos anos 1950, e na intensa polarização global daí decorrente: espião soviético atuando nos EUA (Mark Rylance, no papel que lhe deu o Oscar de melhor ator coadjuvante) é preso pelo FBI, a Polícia Federal americana, e o advogado de seguros James Donovan (interpretado por Tom Hanks) é indicado para defendê-lo.

A evolução dos fatos demonstra que o que o aparato judicial estado-unidense realmente desejava era apenas conferir um verniz de legalidade ao procedimento, assegurando formalmente ao acusado “uma defesa tecnicamente adequada”[1]. Ocorre que Donovan não aceita desempenhar este papel — em homenagem a suas convicções e a seus compromissos com a justiça e o sistema legal, pretende realizar uma defesa efetiva do acusado, não lhe importando se as gravíssimas acusações, de repassar segredos nucleares norte-americanos à União Soviética, eram ou não verdadeiras.

Imbuído deste espírito, questiona a legalidade da forma de cumprimento de mandados judiciais, bem como das provas deles advindas, expondo-se à expiação pública diante do acachapante consenso de que o espião era o inimigo e precisava ser punido, não importavam as provas nem como fossem obtidas. Decidido a salvar seu cliente da pena capital, provoca a Suprema Corte dos Estados Unidos, e a abertura de seu discurso de defesa perante aquele Tribunal é extremamente significativo do contexto geral do filme:

Senhor ministro presidente, e se a Corte me permite, a Guerra Fria não é apenas uma frase. Não é apenas uma figura de linguagem. Verdadeiramente, uma batalha está sendo travada entre duas visões concorrentes do mundo. Eu afirmo que Rudolf Ivanovich Abel, coronel Abel, como era chamado até mesmo pelos homens que o prenderam, é nosso inimigo nessa batalha. Ele foi tratado como um combatente nesta guerra até que já não fosse conveniente ao nosso governo tratá-lo assim. Portanto, a ele não foi dada a proteção que damos aos nossos próprios cidadãos. Ele foi submetido a um tratamento que, ainda que apropriado para um inimigo suspeito, não era apropriado para um criminoso suspeito. Eu conheço este homem. Se a acusação for verdadeira, ele serve a uma potência estrangeira, mas serve fielmente. Se ele é um soldado no exército inimigo, ele é um bom soldado. Ele não fugiu do campo de batalha para salvar a si mesmo. Ele se recusou a servir a seu captor. Ele se recusou a trair a sua causa. Ele se recusou a tomar o caminho do covarde. O covarde deve abandonar sua dignidade antes de abandonar o campo de batalha. Isso, Rudolf Abel nunca vai fazer. Não deveríamos, dando-lhe o benefício pleno dos direitos do sistema que define o nosso governo, mostrar a este homem o que nós somos? Quem nós somos? Isso não é a maior arma que temos nesta Guerra Fria? Defenderemos nossa causa menos resolutamente do que ele a sua?[2]

Nos tensos dias que correm em nosso país, a opinião pública parece dividir-se entre "amigos" e "inimigos", no clássico binômio de Carl Schmitt[3]. Engalfinhados em aguerrido combate político desde as eleições presidenciais de 2014, o partidário de cada facção tem a certeza da razão, e da ausência total de razão de seu oponente. Não vou repisar o perigo de paixões políticas fomentadas ao ponto do que já se começa a ver nas ruas: agressões a pessoas e a sedes de entidades e partidos. Em um quadro tão tenso e grave, espera-se do Judiciário o papel de apaziguador, de apelo à razão e ao entendimento, à observância à Constituição e às leis, o que não tem escapado sequer a ministros do STF[4].

O que aqui me importa, todavia, são os reflexos deste clima de ruptura de pontes entre pessoas e ideias no plano institucional, em especial no sistema legal do país, pois sem tais pontes é impossível dotar os conflitos políticos de um caráter construtivo e assim fugir à maldição schmittiana[5].

Diz-se que nosso sistema legal é injusto e desigual, que há garantias demais para os de cima enquanto aos de baixo sobram violações sistemáticas aos direitos mais elementares, e que os grandes corruptos e corruptores jamais seriam tocados. A operação "lava jato", dizem[6], é o ponto de inflexão deste sistema desigual, o momento em que ele passa a atingir os privilegiados de sempre e a desbaratar esquemas de corrupção no centro do poder político e econômico (altos mandatários do Executivo e do Legislativo, diretores de empresas estatais e privadas).

São muito graves as acusações que circulam pela mídia e pela sociedade, um pouco reproduzindo o que muitos já suspeitavam ou ouviam falar sobre financiamentos de campanha, desvios de recursos públicos ou pagamento de propinas para viabilização de polpudos contratos (em partidos do governo e da oposição, no atual e em anteriores governos), e não se duvida da necessidade de enfrentar tais questões e tornar efetivo o sistema legal. O grande problema reside no clima de agudo tensionamento gerado por parte da mídia, certos partidos e parcela da opinião pública no qual estabelecer dúvidas ou questionamentos sobre a validade constitucional ou legal de certos procedimentos equivale a defender a corrupção ou a se opor às investigações, em afloramento de verdadeiro fascismo social que visa à uniformização da opinião e ao silenciamento da crítica.

Por fascismo social quero dizer o que vários autores observam como o retorno ou a permanência de formas fascistas de socialização ou controle, mesmo sob formas democráticas. Para Agamben, por exemplo, elementos constitutivos do fascismo têm funcionado intensamente em regimes formalmente democráticos como técnicas regulares de governo, suspendendo localizadamente no tempo ou no espaço, ou para certas pessoas, as garantias próprias de um regime constitucional de tipo liberal (presunção de inocência, direito de defesa, contraditório, ônus da prova para a acusação, direito à intimidade etc.)[7]. Boaventura de Souza Santos situa a emergência do fascismo social na crise contemporânea do contrato social, em que aqueles direitos fundamentais, antes tidos por inalienáveis, passam a ser relativizados e precarizados a partir de relações sociais não diretamente dependentes do fascismo político:

Não se trata do regresso ao fascismo dos anos 30 e 40. Ao contrário deste, não é um regime político, mas social e civilizacional. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove-a até não ser necessário nem conveniente sacrificá-la para promover o capitalismo. Trata-se de um fascismo pluralista, forma que nunca existiu[8].

A cobertura da grande mídia sobre a operação "lava jato" parece ensejar este clima de patrulhamento da opinião, o que se conforma à aguda polarização política em curso no país. A pretexto de informar o público, investigações complexas e temas jurídicos caros à democracia são espetacularizados e simplificados quase ao ponto de uma votação em reality show, negligenciando-se o debate sobre as consequências institucionais que alguns procedimentos possam ter em nosso futuro.

Enquanto alguns juristas celebram o uso da delação premiada após a Lei 12.850/13[9], outros questionam se tais delações, sucedendo-se à determinação de prisões preventivas generalizadas, atenderiam ao requisito de voluntariedade[10] própria do instituto[11]. O uso indiscriminado de ordens de condução coercitiva sem prévio esgotamento da tentativa de intimação para comparecimento de acusados e investigados, para tantos outros críticos, serviria apenas para constranger estas pessoas e expô-las na mídia, em claro desvio de finalidade e com o fim de mobilizar a opinião pública em favor das investigações e contra os acusados[12]. A prisão de um senador da República em pleno exercício de seu mandato, mesmo determinada pela Suprema Corte, também indicaria uma vulneração das inviolabilidades dos parlamentares, tão relevantes que se mantêm até na vigência do estado de sítio (art. 53, §§ 2.º e 8.º, da Constituição) — tanto que o maior esforço argumentativo daquele Tribunal ao apreciar a medida foi para a caracterização do flagrante em prisão por mandado, algo nada evidente ou usual na prática forense[13].

O vazamento seletivo de provas e teor de escutas telefônicas em processos em segredo de justiça, fora de seus contextos e antes mesmo que a defesa pudesse acessá-las, ou até de escutas manifestamente inúteis à investigação (como conversas entre investigados e seus familiares), também tenderia objetivamente a subverter o curso do processo penal e a transferir, na prática, o julgamento para a opinião pública, facilitando uma pré-condenação social antes mesmo da finalização do processo judicial[14]; pior, tais vazamentos, que ocorrem há anos e antes eram muito criticados[15], hoje se mostram naturalizados, ao que parece sequer ensejando investigação, vez que de crime se trata (art. 10 da Lei 9.296/96). Finalmente, em sucessivas delações, segundo a imprensa, há menções a nomes de destaque da oposição, implicando indícios de cometimento de crimes tão graves e similares àqueles que vem sendo imputados a membros do governo ou de partidos de sua base, sem que estas numerosas menções tenham deflagrado, ao que se sabe, investigações de mesma intensidade e publicidade e sem que a opinião pública seja adequadamente informada dos motivos desta divergência de tratamento aparentemente incompatível com o elementar princípio republicano da igualdade de todos perante a lei (art. 5.º da Constituição).

A todas estas críticas e questionamentos, tribunais, juízes e boa parte de suas associações parecem rebater como infundados, extemporâneos, eventualmente como partidarismo ou ataques à independência do Judiciário. O espaço basilar do debate, da dúvida, da crítica e do questionamento, inerentes a qualquer democracia viva, vai aos poucos cedendo terreno ao que parece uma pura necessidade de condenação, como no caso do espião russo do filme de Spielberg.

Compreende-se que uma população cansada de saques à coisa pública foque mais em resultados do que em meios, mas a juristas, e em especial aos juízes, não é dado este conforto catártico: sua missão institucional e sua única razão de ser em uma democracia é a observância rigorosa do procedimento e o uso criterioso e constitucional dos meios. Juízes não são necessários para punir, como o demonstram quaisquer ditaduras, à direita ou à esquerda — carrascos e torturadores são suficientes. Juízes só são indispensáveis para controlar o uso dos meios, a justiça e a proporcionalidade da punição. Por isso, juízes não podem ser combatentes contra a corrupção ou outros crimes e sim os garantes da não corrupção do próprio sistema legal; somente serão comprometidos com a punição justa, equitativa, adequada, decorrente do devido processo legal, com todas as garantias do contraditório e da ampla defesa e no qual o ônus da prova é exclusivo da acusação. Em qualquer outra circunstância, com quaisquer outros compromissos ou tendo em conta quaisquer outros valores, por mais elevados que sejam, principia o processo de corrupção do sistema judicial, contaminado pela paixão partidária, pela vocalização midiática, pelos prejulgamentos fora dos autos ou pelas provas não legalmente válidas.

A desigualdade de tratamento entre ricos poderosos e pobres desempoderados deveria nos fazer gerar políticas de ampliação dos direitos embaixo, não de sua vulneração em cima, sob pena de legitimarmos os desmandos e a arbitrariedade de forma generalizada. Curiosamente, em vez de um amplo engajamento nacional para revermos, por exemplo, um sistema prisional e punitivo visivelmente ineficiente, que nem pune criminosos perigosos seriamente (às vezes permitindo que comandem seus negócios escusos de dentro das prisões), nem respeita os direitos humanos de apenados ou preserva a segurança de quem está fora do sistema (vejam-se os casos reiterados de rebeliões e fugas), vemos a inversão do discurso para validar uma certa “flexibilização” da legalidade para todos[16].

Quando autoridades judiciais, policiais ou do Ministério Público, que deveriam zelar pela legalidade de seus procedimentos, empenham-se na utilização de práticas pouco usuais e de controvertida legalidade (ainda que ao final possam ser consideradas legais) e as veem criticadas por juristas de variados matizes e amplos setores sociais, têm a obrigação institucional e moral de desincumbirem-se de seu elevado ônus argumentativo e não apenas fundamentar formalmente suas decisões, para sustentá-las perante o crivo da sociedade. Parafraseando a famosa e machista observação de César acerca de sua mulher, não basta que a Justiça seja correta, é preciso que pareça correta. É neste jogo de expectativas e realidades que se corporifica a democracia, não em discursos vagos e apelos formais à seriedade e à independência de seus atores.

De fato, a democracia só é realmente testada em seus momentos difíceis, nas crises severas e nas grandes polarizações políticas e sociais. Como o personagem de Tom Hanks em plena Guerra Fria, que não se permite negar ao réu uma defesa digna, a competent representation em toda a sua extensão, assim a luta contra a corrupção somente pode se dar com o compromisso inequívoco dos agentes públicos, especialmente dos juízes e suas associações de classe, com a preservação das garantias fundamentais do processo, sob pena de, quebrando-se as pontes entre cidadãos e cidadãs com crenças distintas, eventual e momentaneamente opostas, confundirem-se as pontes entre as várias corrupções possíveis das instituições, tanto as derivadas do desvio de verba e da propina, quanto as derivadas de sua ação fora ou à margem de um padrão legal imediatamente reconhecível. Ou não será, ainda que de outra forma, também corrupta (no sentido literal de corrompida, alterada ou adulterada, inapta para os fins a que se destina) uma instituição que atropela a legalidade e a Constituição para punir criminosos? E não se permitirá tal corrupção a instituição que se negar à dúvida e à permanente crítica sobre a legalidade e validade de seus próprios atos? O que então diferenciará moralmente criminosos, perseguidores e julgadores, se a nenhum deles controla a lei?

Para instituições verdadeiramente comprometidas com a democracia, não basta a aparência formal de legalidade, é preciso que os princípios constitucionais protegidos por esta aparência tenham efetivamente se concretizado em cada investigação e em cada processo criminal. Menos que isso é ser previamente derrotado em face do crime ou da corrupção, é também corromper-se e abrir a porta ao arbítrio dos pretensos agentes da lei. Afinal, como diria o personagem de Tom Hanks, poderíamos nós defender nossa causa menos resolutamente ou por meios de questionável legalidade? Ou escolher quais, dentre os ditos criminosos, iremos perseguir, em favor de outros? Ou deveríamos, ao invés, reconhecer a todos o benefício pleno dos direitos do sistema que define, ou deveria definir, a nossa forma de governo?

Tal é a escolha que devemos fazer agora, não amanhã, não depois, mas aqui e agora. Ao darmos substância a estes direitos, ou ao negá-los, qualquer que seja o caminho, diremos claramente o que somos, quem somos e quem queremos ser.



[1] De acordo com a American Bar Association, uma representação competente (competent representation) “exige conhecimento legal, perícia, rigor e a preparação razoavelmente necessária para a representação” (Fonte: http://tinyurl.com/AmericanBarCompRepresent. Acesso em 22/03/2016).


[2] Fonte: http://rationalconsent.com/2015/11/23/a-relevant-speech-from-bridge-of-spies/. Acesso em 21/03/2016 . Traduzido pelo autor.


[3] Para Schmitt, a distinção que definiria conceitualmente o político seria aquela entre amigo e inimigo, inimigo que deve ser entendido como o outro, o estrangeiro, o hostis (SCHMITT, Carl, O conceito de político. Petrópolis: Vozes, 1992), enquanto que a luta entre amigo e inimigo deve ser entendida em seu sentido físico: ela não “significa aqui concorrência, nem a luta ‘puramente espiritual’ da discussão, nem o ‘combate’ simbólico (...). Os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem seu real sentido pelo fato de terem e manterem primordialmente uma relação com a possibilidade real de aniquilamento físico.” (Op. cit., pp. 58-9).


[4] Por exemplo, as falas do ministro Teori Zavascki e Marco Aurélio Mello (Fontes: http://tinyurl.com/ZHMinTeori e http://tinyurl.com/GloboMinMarcoAurelio, acessos em 22/03/2016).


[5] Por exemplo, Maquiavel remete o fundamento da defesa da liberdade para o conflito político, sendo a habilidade do governo em equilibrar forças políticas distintas ou contrapostas uma das condições para a elaboração de boas leis. Vide MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007; HELD, David. Models of democracy. Stanford: Stanford University Press, 1996, pp. 36-69, pp. 52-53; SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 1.ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 201-202. Menos pretensiosamente, nosso artigo GARCIA, José Carlos. “Conflito, Democracia e o Renascimento Italiano: Marsílio e Maquiavel”. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 19, p. 205-212, 2012.


[6] Por exemplo, http://www.blogdokennedy.com.br/lava-jato-e-ponto-de-inflexao-no-combate-a-impunidade/; http://tinyurl.com/bbcjeitinho; http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-direito-de-defesa-nao-pode-ser-infinito-diz-procurador-da-lava-jato. Acessados em 25/03/2016.


[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.


[8] SANTOS, Boaventura de Souza. “Os fascismos sociais”. 07/11/2010. Disponível em https://norbertobobbio.wordpress.com/2010/11/07/os-fascismos-sociais/. Acessado em 25/03/2016.


[9] Mesmo prevista no Brasil desde a Lei 8.072/90, a ampla utilização da delação premiada passou a ocorrer após a vigência da Lei 12.850/13, quando os benefícios oferecidos a quem delatasse passaram a ser mais atrativos e a regulamentação de seu procedimento, mais abrangente.


[10] Lei 12.850/13, art. 4o:“O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal”, desde que dessa colaboração advenham um ou mais dos resultados lá elencados. Grifei.


[11] Apenas exemplificativamente, http://www.cartacapital.com.br/politica/fundamental-para-a-lava-jato-delacao-premiada-e-alvo-de-controversia-no-brasil-5914.html, http://tinyurl.com/FSPCelsoAntonio ou http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2015/09/14/internas_polbraeco,498469/juristas-e-stf-discordam-com-relacao-a-delacao-premiada.shtml, todos acessados em 25/03/2016.


[12] Por exemplo, http://www.valor.com.br/politica/4467328/depoimento-forcado-de-lula-causa-controversia-entre-juristas ou http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/conducao-coercitiva-de-lula-provoca-debate-sobre-coercao-de-depoentes, acessos em 25/03/2016.


[13] O que se fez pelo reconhecimento de continuidade delitiva. Para o voto do relator, Ministro Teori Zavascki: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304788. Acessado em 25/03/2016.


[14] Exemplificativamente, http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1737807-lava-jato-chega-aos-dois-anos-sob-controversia.shtml, acessado em 25/03/2016.


[15] Por exemplo, em episódio que envolveu o nome do ministro Gilmar Mendes, conforme http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u92777.shtml, acessado em 25/03/2016.


[16] Sobre as condições carcerárias no Brasil, http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios, ou http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61762-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira, acessos em 22/03/2016.



José Carlos Garcia Doutor em Direito Constitucional pela PUC Rio. Juiz Federal no Rio de Janeiro desde 1996. Foi vice-presidente da 2ª Região da Associação dos Juízes Federais do Brasil, entre 2004 a 2006.

Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2016, 7h36

Citando violações à Constituição, estado do Rio vai ao Supremo contra o novo CPC




Por Fernando Martines


Para o governo do estado do Rio de Janeiro, o novo Código de Processo Civil fere a autonomia dos entes federativos e acumula muitos poderes na mão da esfera federal. Assim, a Procuradoria-Geral fluminense, junto com o governador em exercício, Francisco Dornelles, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. É a primeira contestação judicial ao CPC, que entrou em vigor há menos de um mês, no dia 18 de março.

São apontados oito dispositivos da nova lei como violações da Constituição. Muitas das alegações são de interferência indevida da esfera federal junto a competências estaduais. No entanto, também há reclamações quanto a um suposto desrespeito ao devido processo legal no CPC, pois em certas situações ele dificultaria o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Na ação, o CPC também recebe elogios (“porque inspirado nos mais virtuosos propósitos de aproximar ainda mais o processo civil aos valores democráticos e às garantias fundamentais”), e a Procuradoria afirma que as mudanças propostas não atingirão o “núcleo” da lei.

“Para que isso seja feito sem transgredir a moldura demarcada pela Constituição, porém, as inconstitucionalidades aqui suscitadas devem ser prontamente expurgadas do CPC, porque em desalinho com a espinha dorsal que lhe confere unidade. Impõe-se, assim, o deferimento de medida cautelar para o fim de suspender imediatamente os dispositivos impugnados ou lhes conceder interpretação conforme a Constituição.”

Entes sob ameaça
Para a Procuradoria do Rio e o governador, o artigo 52 do CPC, ao submeter os estados ao foro de domicílio do autor em qualquer lugar do país que ele esteja, compromete o direito ao contraditório, esvazia a Justiça estadual e dá margem para abusos no processo.

Ainda nesse tema, o CPC estabelece que a execução fiscal será no estado de domicílio do réu ou onde ele for encontrado. Para o Rio de Janeiro, essa medida alimenta a guerra fiscal e fere a sustentabilidade financeira dos estados.

Outro ponto é que o CPC restringe as entidades financeiras que podem ser utilizadas para depósitos judiciais, e para o Rio de Janeiro isso não deve ser definido por lei federal. O Código de Processo Civil estabelece ainda que a facilitação de acesso ao Supremo Tribunal Federal só acontecerá quando estiver em pauta atos normativos federais, o que "configura preferência federativa indevida, abuso de poder legislativo e quebra do dever de lealdade federativa".

Demandas repetitivas
Um aspecto relevante do CPC é que ele procura dar mais segurança jurídica ao processo e acelerar a solução de demandas por meio do julgamento de casos repetitivos. Isso acontece quanto são abertas muitas ações sobre o mesmo tema. O Tribunal de Justiça então paralisa todos os processos e toma uma decisão que deve ser seguida como jurisprudência para todos os casos.

A ferramenta é chamada de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e Recursos Repetitivos. Para o Rio, aplicar esse sistema em casos que a administração pública não é ré ofende a garantia do contraditório e o devido processo legal.

Clique aqui para ler a ação.

Fernando Martines é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2016, 19h24

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...