quinta-feira, 21 de agosto de 2014

PERIGO DA CRIMINALIZAÇÃO JUDICIAL E QUEBRA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito




O alerta de Alessandro Baratta: afinal, o que queremos?
No final dos anos 1990, o grande criminólogo Alessandro Baratta esteve em Porto Alegre participando de um simpósio sobre criminologia e feminismo. Em pauta a violência contra as mulheres e minorias. As mulheres presentes, a expressiva maioria professando um pensamento progressista, tinham um objetivo: criminalizar duramente os delitos desse jaez. Baratta, homem de militância progressista, no início de sua conferência, fez a seguinte reflexão: neste congresso demonstramos um alto grau de esquizofrenia. Em sentido amplo, todos queremos um direito penal mínimo e o máximo de liberdade; todavia, quando atingidos pela situação, ou seja, em sentido estrito (referindo-se às mulheres e minorias), queremos o mais alto de punição. Assim, ao mesmo tempo manifestamos a nossa descrença no direito penal e entoamos uma ode em seu louvor, pugnando pelo máximo de punição. Afinal, perguntou: “o que queremos”?[1]

Passados tantos anos, durante os quais estamos buscando aperfeiçoar as garantias constitucionais, eis que nos deparamos com um Mandado de Injunção (4.733-STF) — instrumento criado para garantir as liberdades fundamentais e em geral os direitos civis, políticos e sociais — pretendendo (consoante trecho extraído dos autos do processo)


“obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima, por ser isto (a criminalização específica) um pressuposto inerente à cidadania da população LGBT na atualidade”.

O Mandado de Injunção, no seu polo ativo, é assinado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT); o réu: o Congresso Nacional que estaria em mora por não criminalizar os atos acima referidos. O Procurador-Geral da República, na linha dos pronunciamentos dos presidentes da Câmara e do Senado, exarou parecer pelo não conhecimento do mandamus injuntivo. Já o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do ministro Ricardo Lewandowski, fulminou o pedido, aduzindo, entre outras questões, que a criminalização de condutas depende de lei, invocando precedentes da corte.

A questão, portanto, parecia encerrada, desembocando na resposta juridicamente apropriada. No entanto, a ABGLT impetrante ingressou com agravo regimental. Até então, nada de anormal. O que surpreendeu, deveras, foi o parecer da Procuradoria-Geral da República (ler aqui) que, contrariando o parecer anterior e a jurisprudência da Suprema Corte, exarou entendimento favorável:

“O Mandado de Injunção, na linha da evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, presta-se a estabelecer profícuo e permanente diálogo institucional nos casos de omissão normativa. Extrai-se do texto constitucional dever de proteção penal adequada aos direitos fundamentais (Constituição da República, art. 5º, XLI e XLII). Em que pese à existência de projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, sua tramitação por mais de uma década sem deliberação frustra a força normativa da Constituição. A ausência de tutela judicial concernente à criminalização da homofobia e da transfobia mantém o estado atual de proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado e de desrespeito ao sistema constitucional. Parecer pelo conhecimento e provimento do agravo regimental. PGR Mandado de Injunção 4.733/DF (agravo regimental). Parecer 4.414/2014-AsJConst/SAJ/PGR).

Ou seja, para a Procuradoria-Geral da República, é possível, via Mandado de Injunção, criminalizar a homofobia e a transfobia, posição que, permissa vênia, vai na contramão da história constitucional, porque admite, a partir da tese da proibição de proteção insuficiente, que o Poder Judiciário pode estabelecer criminalizações. Segundo o parecer, existe uma clara falta de norma regulamentadora que


“inviabiliza o exercício da liberdade constitucional de orientação sexual e de identidade de gênero, bem como da liberdade de expressão, sem as quais fica indelevelmente comprometido o livre desenvolvimento da personalidade, em atentado insuportável à dignidade da pessoa humana (...).

As indagações que cabem são: Qual seria a relação de uma criminalização com o livre desenvolvimento da personalidade? Qual é o papel do direito penal em um Estado Democrático? Cuida-se, aliás, de questionamentos que não dizem respeito apenas ao caso da criminalização da homofobia, mas que tocam a problemática mais ampla do uso (ou abuso?!) do direito penal como resposta adequada aos problemas da sociedade, que aqui não se poderá desenvolver.

Nessa quadra, vale enfatizar que respeitamos o pleito da ABGLT. O que aqui se questiona é o foro adequado para a satisfação de sua pretensão, que não há de ser o Poder Judiciário. A luta pela criminalização, entretanto, em si, embora contrária à melhor filosofia do direito penal, não é evidentemente inconstitucional, como também não seria inconstitucional eventual lei (desde que proporcional, portanto, contemplando as exigências da Constituição Penal) tratando do assunto.

Trata-se, fundamentalmente, da discussão acerca dos limites institucionais na relação de Poderes da República. Nesse sentido, lembramos que há mais de quatro séculos essa questão já estava posta em pleno absolutismo dos Stuart, na Inglaterra seiscentista. Lá, Sir Edward Coke, juiz de um pequeno tribunal da Inglaterra no início do século XVII, já considerava nulos os atos do Rei absolutista pelos quais este pretendia estabelecer penalizações sem lei (o famoso caso das Proclamations). Quer dizer, Coke, sem garantias constitucionais, enfrentava o absolutismo para impedir que se pudesse criminalizar condutas sem previsão específica em lei. Passados tantos séculos, o Brasil corre o risco de colocar-se na contramão do constitucionalismo, rompendo com todo um sistema de garantias fundamentais estabelecido com ênfase na própria Constituição Federal de 1988 (CF).

Por tal razão, há que publicamente e com particular ênfase, questionar uma série de aspectos vinculados à tese da Procuradoria-Geral da República, que deveriam deixar muito preocupados os cidadãos brasileiros e todos os que defendem um Estado Democrático de Direito.

1. O próprio uso do Mandado de Injunção como meio para assegurar, à revelia do legislador infraconstitucional, punições na seara criminal é de ser posto na ordem do dia. Note-se que de acordo com o texto constitucional, dar-se-á Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos assegurados pela Constituição Federal. Muito embora o artigo 5º, XLI (mas também o inciso XLII no que toca à criminalização do racismo), tenha a feição de um mandado expresso de punição de toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, isso não significa – diferentemente do que se verifica no caso do racismo (assim como da tortura e da ação de grupos armados contra a ordem constitucional) – que tal punição tenha de se dar na esfera criminal, pois aqui as hipóteses concretas e mesmo as sanções para as diversas situações foram deixadas (pelo constituinte originário) ao alvedrio da deliberação legislativa infraconstitucional.

2. Além disso, especialmente para efeitos de criminalização e penalização a própria CF assegura, na condição de direitos-garantia fundamentais, a legalidade estrita (art. 5º, XXXIX, CF). Resulta elementar que o Mandado de Injunção não pode ser manejado para efeitos de por um lado buscar uma “criminalização judicial” onde sequer a CF exige de forma inequívoca a criminalização, pois, reitere-se, punição não é equivalente a criminalização (e nem esta necessariamente implica imposição de pena, como se extrai do exemplo da despenalização, mas não descriminalização da posse de droga para consumo próprio), muito menos, contudo, para com isso violar frontalmente outros direitos e garantias fundamentais.

3. Na medida em que a CF não estabelece a obrigação de criminalizar a homofobia, o deferimento do Mandado de Injunção faria com que o Judiciário legislasse, substituindo os juízos políticos, morais e éticos, próprios do legislador, pelos seus. Como já referido, a CF estabelece a obrigação de criminalizar o racismo, mas a extensão do conceito de racismo para a homofobia ou transfobia é um claro exercício do que se poderia designar depanhermeneutismo, sem considerar aqui a ocorrência da absolutamente vedada analogia in malam partem. Não há abrigo constitucional para tal.

4. Mais ainda, o parecer do Ministério Público Federal não leva em conta que o direito fundamental invocado na impetração impõe ao Estado o dever de combater e punir todas as formas de discriminação e racismo (fim), não se referindo, portanto, “à legislação específica de um tipo especial de conduta (meio)”. 

5. Portanto, não há qualquer comando constitucional que exija tipificação específica para a homofobia e transfobia. Se a opção for pela criminalização e pela punição tal decisão cabe aqui com exclusividade ao legislador infraconstitucional, o que não pode ser superado mesmo por uma exegese extensiva de legislação em vigor. 

6. Outra preocupação guarda relação com o uso descontextualizado de uma figura oriunda do direito alemão, qual seja, o princípio da proibição de proteção insuficiente, o assim chamado Untermassverbot. Se a tese foi utilizada na Alemanha no direito penal, foi-o em outro sentido e contexto. Lá o Tribunal Constitucional declarou ser inconstitucional a descriminalização do aborto. Havia uma lei e o Tribunal entendeu que o Parlamento não tinha liberdade de conformação para proceder a descriminalização, à míngua de alternativa minimamente eficaz para a proteção da vida do nascituro. Mas a decisão do Bundesverfassungsgericht não criminalizava qualquer conduta. A proibição de proteção insuficiente, que opera como um segundo nível de controle das omissões e ações (insuficientes) do poder público, poderá servir de importante critério para o controle dos atos do poder público e mesmo ensejar uma correção de rumos, mas não se presta como fundamento cogente e eficaz, por si só, para justificar a criminalização de uma conduta, ainda mais, como no caso em tela, mediante provimento jurisdicional.

7. Todos sabemos que a jurisprudência do STF tem sido firme com relação à necessidade de se detectar, para o cabimento do Mandado de Injunção, a existência inequívoca de um direito subjetivo, concreta e especificamente consagrado na CF, direito que não esteja sendo fruído por seus destinatários em virtude da ausência de norma regulamentadora exigida por essa mesma Carta (por todos, o MI 624/MA). Aliás, no parecer anterior, acolhido pelo ministro Lewandowski, assim se manifestou o PGR de então:


“Dessa forma, verifica-se que o ordenamento jurídico pátrio protege homossexuais, bissexuais e transgêneros de agressões fundadas pelo preconceito contra suas orientações sexuais. Por mais que a associação impetrante julgue tal proteção deficiente, a insatisfação com o conteúdo normativo em vigor não é motivo suficiente para o cabimento do presente Mandado de Injunção. ”

A questão simbólica
De todo modo, respeitando, à evidência, a posição jurídica explicitada no parecer do Procurador-Geral da República, o que mais nos preocupa é o valor simbólico da questão sub judice. Tudo indica que, por coerência e prestigiando os seus próprios julgados, o Supremo Tribunal Federal fulminará o agravo. Entretanto, o que fica é a ponta do iceberg de um imaginário que cresce dia a dia no Brasil, caracterizado pelo uso de criminalizações para resolver problemas sociais e de relacionamento sociais. Por certo que não foi este o objetivo Ministério Público Federal.

Por evidente que não se nega a importância do direito penal e sequer se questiona a existência, especialmente no caso brasileiro, de mandados constitucionais de criminalização. Neste ponto, deve ser louvada a posição exposta no parecer, porque abre esse horizonte de cumprimento, no futuro, dos mandados constitucionais, embora não seja o caso, na opinião dos subscritores, da homofobia. Mas o que não se pode tolerar é o estabelecimento de uma hipertrofia do direito penal, que, ao fim e ao cabo, resulta paradoxal. De um lado, os movimentos sociais (minorias, etc.) clamam por liberdades e pelo estabelecimento de limites à atividade de controle do Estado; de outro, exigem que o mesmo Estado criminalize condutas, a ponto de colocar a criminalização como condição para o exercício do “desenvolvimento livre da personalidade”.

Não esqueçamos, ainda nessa quadra, que a tentativa de criminalizar as referidas condutas expostas na inicial tem como sustentáculo a sua correlação (analogia) com o racismo. Nesse sentido, há que se ter em conta a relevante circunstância – de índole constitucional – que racismo é crime hediondo; consequentemente, tudo está a indicar que qualquer agressão de cariz homofóbico e identidades de gêneros, a vingar a pretensão da inicial do Mandado de Injunção, será considerada “crime hediondo”. E veja-se a vagueza e a ambiguidade do “tipo penal” pretendido na impetração, o que, por si só, já ofende princípios e regras elementares da Constituição Federal e do direito internacional dos direitos humanos. Como conceituar “todas as formas de homofobia e transfobia”? Ofensas verbais estão incluídas? E isso seria uma forma de racismo? E o crime de homofobia abrangeria atos concretos de discriminação (mediante uma leitura afinada com o que dispõe o art. 5º, XLI, CF) ou já incluiria atos de preconceito?

Mas também a chaga de uma forma sutil de “maquiavelismo jurídico” merece referência, visto que não é a primeira vez que causas que são em si nobres (uma vez que ninguém questiona — e a CF impõe! — a bondade intrínseca do combate a todas as formas de discriminação), tendem a legitimar, do ponto de vista de alguns, praticamente todo e qualquer meio para a sua realização, ainda que o meio implique sérias violações de direitos e garantias fundamentais, profundamente incrustrados na Constituição e no direito internacional dos direitos humanos, todos a contemplar a legalidade estrita em matéria penal.

Assim, sem pretender tirar a legitimidade dos movimentos sociais em buscar a criminalização de condutas que, a seu juízo, violam seus direitos fundamentais, entendemos, a partir de um olhar constitucional, que esse desiderato não pode ser alcançado pela via do Poder Judiciário. Nossa divergência, nesse sentido, quer abrir as portas para um profícuo diálogo no sentido de buscar as melhores e mais eficazes formas de combater discursos de ódio e atos discriminatórios praticados contra os mais variados movimentos sociais — em especial o LGTBT — e mantendo, assim, incólume a Constituição, porque de nada adiante, sob pretexto de uma proteção, desproteger outros direitos.

Numa palavra: pretendemos ser duros na defesa do direito constitucional, mas tolerantes com a divergência e prontos para o diálogo democrático, circunstância que envolve, necessariamente, o fundamental papel desempenhado pelo Ministério Público brasileiro, em especial na sua fala máxima com assento na Suprema Corte, onde tais questões, muitas vezes por carência de diálogos institucionais, deságuam e acabam por resultar, como se pretende no Mandado de Injunção aqui questionado, em provimento que desborda dos limites do Estado Democrático de Direito. O combate eficaz que deve ser travado contra toda e qualquer forma de discriminação atentatória aos direitos humanos e fundamentais, no que se inclui a luta contra a homofobia, há, contudo, de ser travado sem violar princípios sagrados à Democracia e ao constitucionalismo.



[1] Ver, para tanto, STRECK, L. L. ; BARATTA, A. ; ANDRADE, V. R. P. . Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. 

Clèmerson Merlin Clève é advogado e professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná e da UniBrasil

Ingo Wolfgang Sarlet é juiz de Direito e professor de Direito Constitucional

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é advogado e professor doutor titular de Direito Processual Penal da UFPR.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Flávio Pansieri é advogado e Professor da PUC-PR



Revista Consultor Jurídico, 21 de agosto de 2014, 08:00

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Sistema Nacional de Defesa do Consumidor

SNDC



O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) congrega Procons, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades civis de defesa do consumidor, que atuam de forma articulada e integrada com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).

O SNDC se reúne trimestralmente para analisar conjuntamente os desafios enfrentados pelos consumidores e para a formulação de estratégias de ação, tais como fiscalizações conjuntas, harmonização de entendimentos e elaboração de políticas públicas de proteção e defesa do consumidor.

Os órgãos do SNDC têm competência concorrente e atuam de forma complementar para receber denúncias, apurar irregularidades e promover a proteção e defesa dos consumidores.

Os Procons são órgãos estaduais e municipais de proteção e defesa do consumidor, criados especificamente para este fim, com competências, no âmbito de sua jurisdição, para exercer as atribuições estabelecidas pela Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, e pelo Decreto nº 2.181/97. Os Procons são, portanto, os órgãos que atuam no âmbito local, atendendo diretamente os consumidores e monitorando o mercado de consumo local. Têm papel fundamental na execução da Política Nacional de Defesa do Consumidor.

O Ministério Público e a Defensoria Pública, no âmbito de suas atribuições, também atuam na proteção e na defesa dos consumidores e na construção da Política Nacional das Relações de Consumo. O Ministério Público, de acordo com sua competência constitucional, além de fiscalizar a aplicação da lei, instaura inquéritos e propõe ações coletivas. A Defensoria, além de propor ações, defende os interesses dos desassistidos, promove acordos e conciliações.

A Secretaria Nacional do Consumidor, por sua vez, tem por atribuição legal a coordenação do SNDC e está voltada à análise de questões que tenham repercussão nacional e interesse geral, além do planejamento, elaboração, coordenação e execução da Política Nacional de Defesa do Consumidor.

Fonte: Ministério da Justiça

terça-feira, 19 de agosto de 2014

STF precisa desestimular recursos, apontam especialistas em evento em SP


STF precisa desestimular recursos, apontam especialistas em evento em SP




É preciso criar mecanismos que desestimulem as pessoas a recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, a Corte poderá se concentrar apenas em questões materialmente importantes para a sociedade. A ideia foi abordada durante o evento “Desafios Supremos”: diálogo entre o STF e a Suprema Corte Americano, que ocorreu nesta segunda-feira (18/8).

O secretário-geral da Suprema Corte dos EUA Scott Harris contou que apesar do grande número de litígios no país, há apenas 8 mil recursos à Suprema Corte por ano e apenas 1% desse total são admitidos. A corte sequer é vista como uma terceira instância recursal. Isso porque, ao longo de mais de um século, criou maneiras de desestimular os recursos.

O efeito é cultural: pouca gente recorre à Suprema Corte porque sabe que dificilmente o caso será admitido. Hoje, 80% de sua demanda é relativa a conflitos entre tribunais federais. Os 20% restantes são para decidir questões consideradas materialmente relevantes.

Ele conta que os casos que chegam à Suprema Corte americana passam por uma seleção feita pelos assessores dos ministros. Cada ministro conta com quatro assessores que têm a função de receber os casos e fazer um memorando recomendando ou não que o caso seja apreciado, com base na questão constitucional de cada ação. Os sucintos documentos são enviados aos ministros semanalmente e os juízes debatem se devem aceitar ou não.

Para o juiz federal americano Peter Messite, a revisão discricionária é algo que deveria ser implantada com mais força no Brasil. Ele explica que para chegar na Suprema Corte americana, as causas devem ter importância geral. Ou seja, os ministros são chamados para resolver conflitos que envolvem matérias de importância nacional, como o casamento homossexual e o aborto.

Efeitos colaterais
Ainda que tenha criado filtros processuais mais severos, o Supremo ainda é sobrecarregado com casos como roubo de galinhas e furto de chinelos. De acordo com Max Fontes, presidente da Harvard Law School Association of Brazil, o instituto da Repercussão Geral gerou uma série de teses que não foram julgadas e estão sobrestando milhares de processos nos tribunais inferiores. “O caminho encurtou, mas ficou muito mais demorado do ponto de vista processual”, afirma.

Fontes conta que medidas legislativas já foram tomadas, tanto de ordem legal quanto constitucional. Mas é insuficiente. Segundo ele, o mais importante é fazer uma reforma procedimental e analisar quais são os procedimentos que o STF precisa adotar para que possa julgar com rapidez essas inúmeras teses que aguardam julgamento. “O maior desafio do Supremo hoje não é jurisdicional e, sim, administrativo”, diz.

Para Oscar Vilhena, diretor da FGV Direito SP, o desafio no Brasil envolve engenharia institucional e de cultura legal. Segundo ele, as questões estão relacionadas às diferenças entre as constituições americana e brasileira: a americana é singela em relação aos temas em que ela cobre e tem apenas sete artigos originais; já a brasileira é “ambiciosa” e tem 240 artigos originais. “As constituições maiores complicam a vida de todos.”

Ainda de acordo com Vilhena, as competências do Supremo padecem de um "defeito de fabricação", com uma quantidade de atribuições que extrapolam o que uma corte constitucional precisa ter. "Nossa Corte é de apelação, é constitucional e é tribunal especial de crimes políticos e de outros atos cometidos. Há uma conjugação em uma instância, do que outros países são distribuídos”, afirma.

A crítica do diretor é que as propostas de mudança estão mais preocupadas em ampliar o calibre da entrada. Isso, consequentemente, aumenta a demanda. “O STF precisa deixar de ser uma terceira instância onde as pessoas utilizam simplesmente com o objetivo de adiar o fim do processo”, diz. Nessa hipótese, o trabalho seria limitado em duas instâncias e o Supremo, eventualmente, resolveria problemas maiores.

Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2014, 19:04h

TERCEIRA TURMA AFASTA IMPENHORABILIDADE AO RECONHECER MÁ-FÉ EM DOAÇAO DE IMÓVEL


Terceira Turma afasta impenhorabilidade ao reconhecer má-fé em doação de imóvel



O reconhecimento de fraude à execução, com a consequente declaração de ineficácia da doação, afasta a proteção ao bem de família prevista na Lei 8.009/90. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar recurso em que se discutia a validade de uma doação feita em benefício de filho menor.



No caso, o credor ingressou com ação de cobrança para receber valores decorrentes de aluguéis em atraso. Durante a fase de cumprimento de sentença, os devedores decidiram transferir seu único imóvel residencial para o filho. A doação foi feita três dias depois de serem intimados ao pagamento da quantia de quase R$ 378 mil.



O artigo 1º da Lei 8.009 dispõe que o único imóvel residencial da família é impenhorável e não responderá por nenhuma dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, salvo nas hipóteses legalmente previstas.



Há precedentes no STJ que não reconhecem fraude à execução na alienação de bem impenhorável, já que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer a dívida. A Terceira Turma, no entanto, considerou que a conjuntura dos fatos evidenciou a má-fé do devedor e, ponderando os valores em jogo, entendeu que deve prevalecer o direito do credor.



Problemas de saúde



Os devedores alegaram em juízo que não tinham por objetivo fraudar a execução. Como o pai enfrentava problemas de saúde, o casal teria decidido resguardar o filho doando-lhe o imóvel, evitando assim custosos e demorados processos de inventário. Sustentaram que não teriam praticado nenhum ato que pudesse colocá-los em insolvência, já que não havia bens penhoráveis mesmo antes da doação.



O juízo de primeiro grau concluiu que, mesmo sendo inválida a doação, não houve fraude à execução, tendo em vista que se tratava de imóvel que não poderia ser penhorado. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), no entanto, reformou a decisão ao fundamento de que houve má-fé na conduta, o que afasta a natureza impenhorável do imóvel.



Ao analisar a questão, a Terceira Turma do STJ considerou que, em regra, o devedor que aliena, gratuita ou onerosamente, o único imóvel onde reside com a família abre mão da proteção legal, na medida em que seu comportamento evidencia que o bem não lhe serve mais à moradia ou subsistência.



“As circunstâncias em que realizada a doação do imóvel estão a revelar que os devedores, a todo custo, tentam ocultar o bem e proteger o seu patrimônio, sacrificando o direito do credor, assim obrando não apenas em fraude da execução, mas também – e sobretudo – com fraude aos dispositivos da própria Lei 8.009”, afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi.



Jurisprudência



A jurisprudência do STJ estabelece que a impenhorabilidade do bem de família pode ser reconhecida a qualquer tempo e grau de jurisdição, mediante simples petição. As Súmulas 364 e 486 estendem o alcance da garantia legal da impenhorabilidade ao imóvel de pessoas solteiras, separadas e viúvas, e também àquele que esteja locado a terceiros, se a renda obtida for revertida para a subsistência da família.



A proteção legal pode ser afastada quando o imóvel está desocupado e não se demonstra o cumprimento dos objetivos da Lei 8.009. Também é afastada quando há o objetivo de fraudar a execução. Nesse sentido, “o bem que retorna ao patrimônio do devedor, por força do reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da impenhorabilidade disposta na Lei 8.009”.



A jurisprudência aponta ainda que “é possível, com fundamento em abuso de direito, afastar a proteção conferida pela Lei 8.009”.



Essa notícia se refere ao processo: REsp 1364509


Fonte: STJ

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Não podemos permitir que sigilo entre advogado e cliente seja devassado


Não podemos permitir que sigilo entre advogado e cliente seja devassado




A Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro fará um ato em defesa da inviolabilidade da comunicação entre advogado e clientes durante seção do pleno da entidade, nesta quinta-feira (14/8). Muitos colegas que lêem essas linhas certamente já trataram, por meio de telefone, celular ou fixo, ou de correspondência eletrônica, de questões ligadas ao exercício profissional, de natureza cível ou criminal, com seus clientes. E quantos imaginariam que tais conversas telefônicas ou correspondências poderiam ser ouvidas ou lidas por terceiros, gravadas e, finalmente, acostadas aos autos de procedimentos criminais acessíveis a outras tantas pessoas? A natureza da função exercida pelo advogado o torna depositário de todo tipo de informação sigilosa, inviolável, até mesmo daquelas correspondentes à confissões da prática de condutas ilícitas ou repudiadas socialmente.

O advogado tem não apenas o direito, mas também o dever, de guardar segredo sobre as informações que recebe em razão da relação com seu cliente, respondendo até mesmo por crime de violação de sigilo profissional se não atender às respectivas determinações deontológicas previstas em lei. Como se pode então cogitar permitir o acesso por terceiros a tais informações?

Recentemente veio a público notícia dando conta de que a garantia da inviolabilidade das comunicações de advogados com seus clientes foi violentamente afastada nos autos da investigação que culminou com a propositura de ação penal contra manifestantes acusados de participação em atos ilícitos. E o que é pior: a devassa nas conversas entre os manifestantes e seus advogados não decorreu apenas de interceptação telefônica realizada nas linhas daqueles primeiros, suspeitos da prática de crime. Fosse apenas isso, a medida encetada seria admissível — desde que determinada por decisão judicial, presentes os requisitos legais — devendo-se, por evidente, desentranhar dos autos a integralidade dos diálogos havidos entre investigados e seus defensores.

Mas no caso de que se trata — e aqui reside o motivo de nossa estupefação, manifestada no ato desta quinta — tiveram suas linhas telefônicas interceptadas, por decisão judicial, diversos advogados que, no exercício absolutamente regular de suas profissões, defenderam manifestantes, lançando mão das medidas judiciais cabíveis, sem que pese sobre eles suspeita da prática de qualquer conduta criminosa.

Não há finalidade — nem mesmo a investigação da prática de crimes — que justifique o emprego de tal medida. Aos acusados, pouco importando a gravidade do crime de cuja prática sejam suspeitos, deve ser garantida a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; e isso inclui, por óbvio, o direito à assistência de advogado que tenha garantidas suas prerrogativas profissionais, notadamente aquela atinente à inviolabilidade de suas comunicações.

A medida em questão violou, portanto, a um só tempo, o inciso LV do artigo 7º da Constituição Federal e o inciso II do artigo 7º da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB). A inviolabilidade da comunicação entre advogado e seus clientes é direito reconhecido internacionalmente e protegido pela legislação da maior parte dos países democráticos, tendo sido até mesmo posto em relevo em distintas sentenças do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como, por exemplo os casos "Marcello Viola contra Itália", "Castravet contra Moldávia" e "Zagaria contra Itália".

O processo penal, por assim dizer, moderno, já açambarcou uma série de medidas invasivas da intimidade e da vida privada — a exemplo do afastamento do sigilo telefônico e telemático e de buscas e apreensões em domicílios — a partir da relativização de garantias constitucionais, em prol de uma suposta efetividade da prevenção da prática de crimes. Não se pode ir mais longe, sob pena de se admitir que a pessoa humana seja meio e não o fim da ordem jurídica.

Se permitirmos que o sigilo entre advogados e seus clientes seja devassado, o próximo passo será a instalação de aparelhos de escuta ambiental em consultórios de psicanalistas e em confessionários, em intolerável violação da intimidade. A dignidade da pessoa humana que sedimenta seus direitos fundamentais, entre os quais a intimidade e a ampla defesa, constitui, de acordo com a Constituição brasileira, elemento estrutural do Estado Democrático de Direito.

Todos que defendem o respeito absoluto às prerrogativas da advocacia estão convidados a participar do ato.
9
1


Felipe Santa Cruz é presidente da OAB-RJ.

Fernanda Tórtima é advogada, conselheira da OAB-RJ.



Revista Consultor Jurídico, 14 de agosto de 2014, 06:17h

Em concurso público, princípio vira regra estática! Por quê? Porque sim!


Em concurso público, princípio vira regra estática! Por quê? Porque sim!




Pós-modernidade e direito
Tem uma propaganda na TV que mostra bem o grau zero de sentido e a ausência de fundamento desse (e nesse) arremedo de pós-modernidade que vivemos. É a da cerveja Skin. “— Por que você paga um ano de academia e não frequenta”? Resposta: “— Porque sim”! Hum, hum. “— Por que você abraça um gordinho suado no futebol sem conhecê-lo”? “— Porque sim”! Hum, hum e hum. “— E por que você toma cerveja Skin”? “— Porque sim”! Bingo! Não precisa motivo. Você possui grau zero. Você nomina as coisas! Por mais néscias que sejam. Assim é no Direito. Abaixo, verão porque um princípio vira regra estática... Resposta simples: “— Porque sim”!

A prova
Li amiúde a prova objetiva (primeira fase) da Defensoria do Paraná. Quem não soubesse que se tratava de um concurso para Defensoria poderia achar que tanto a prova poderia ser para escrivães de polícia, agentes da Polícia Federal, promotores, juízes ou procuradores do estado. Ou para professor adjunto de qualquer faculdade espalhada pelos quatro cantos do país. Ou seja, a preocupação dos arguidores lato sensu era fazer pegadinhas, propor armadilhas e, fundamentalmente, testar o poder de decoreba dos candidatos. Algumas questões nem com decoreba, como, por exemplo, qual é a opinião de Gargarella (jurista argentino) sobre a teoria da justiça de Rawls? Afinal, é para ler Rawls ou Gargarella? E Gargarella é um autor que conta Rawls melhor que ele mesmo, Rawls? É para ler os originais ou, por derivação, o livro resumo de Simone Goyard-Fabre? Luhmann via Simone GF? Como assim? E quem disse que Simone GF interpretou bem Luhmann (aliás, ninguém no Brasil interpretou bem Luhmann...[1] e por isso tem que buscar a Simone GF – síndrome de Caramuru)? Ora, o que ela faz é um resumo de uma pequena parte de Luhmann... Aliás, há uma questão (nº 99) — baseada justamente na professora francesa, que fala do debate “naturalismo-positivismo...” (não seria jusnaturalismo? Naturalismo é uma questão filosófica bem diferente de jusnaturalismo... quem errou aí? Simone ou a banca?).

Insisto em uma tecla: concursos assim não passam de quiz show. O aluno deve responder sobre “curiosidades”, como, por exemplo, saber algo sobre Hegel (como se saber uma frase sobre Hegel tivesse alguma importância dentro da complexidade da obra do filósofo alemão — isso não serve-para-nada-mesmo). Então para um agente da justiça é essencial saber o que Fernando Henrique Cardoso pensa sobre desenvolvimentismo (ou algo assim), tudo misturado com alternativas que visam a confundir o utente? Ou falar sobre Foucault e seu velho Vigiar e Punir, como se isso fosse a pólvora? Aliás, por que na questão 97 só uma é verdadeira? Logo vão pedir para os concurseiros a leitura de biografias de filósofos. E por que não também obrigá-los a ler biografias de artistas e cantores — tem uma da qual gosto muito: aquela do Tim Maia, Vale Tudo, escrito por Nelson Motta; quase morri de tanto rir das peripécias do sujeito. Ou a autobiografia do lutador Anderson Silva — que tal perguntar quantos anos ele ficou invicto no UFC, quais foram os recordes que quebrou, por que ele deu um chute no traseiro de um motorista, etecetera.

Há também muitas questões que tratam de cinco assuntos diferentes, porque as cinco alternativas são de coisas que não se ligam. E por que? Porque a banca precisa fazer isso, para poder organizar melhor as pegadinhas e testar os decorebas. Mais ainda: por tudo isso e por outras razões, parcela considerável das questões de direito constitucional ou penal (para citar apenas esses) não servem para nada, mas nada mesmo, para a atividade de um defensor público. Aliás, duvido que sirvam para aquilatar o conhecimento de algum concurseiro. Desafio que me provem o contrário.

Fico aqui a perguntar aos meus longos espinhos de Ouriço: de que modo decorar — sem compreender — a frase de Hegel (ou de Luhmann ou no futuro, de Anderson “Spider” Silva) ajudará um técnico do Judiciário (ou a um defensor, etc) a exercer melhor suas funções? Lembro de uma pesquisa encomendada pelo ministro da Justiça à Fundação Getúlio Vargas quecomprovou que há uma incoerência entre as competências esperadas de um servidor público e o “conhecimento” exigido nos concursos.

De todo modo, esse assunto “quiz shows-concursos públicos” já atinge patamares de dramaticidade. Cada dia piora. Os arguidores se esmeram. Como fazer para que o sujeito que estudou profundamente não passe e o cliente dos cursinhos seja o protagonista dessa nova classe de profissionais que entram na máquina pública? Bingo: o concurso tem a receita para isso!

Poderia, aqui, discutir dezenas de questões. Mas trarei uma que me pareceu emblemática e que retrata simbolicamente a crise paradigmática que atravessa o direito de Pindorama.

Ei-la:


42 - Acerca da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, considere as seguintes afirmativas:
1. Os princípios gerais de direito, estejam ou não positivados no sistema normativo, constituem-se em regras estáticas carecedoras de concreção e que têm como função principal auxiliar o juiz no preenchimento de lacunas.
2. De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o efeito repristinatório da lei revogadora de outra lei revogadora é automático e imediato sobre a velha norma abolida, prescindindo de declaração expressa de lei nova que a restabeleça.
3. A revogação de uma norma por outra posterior tem por espécies a ab-rogação e a derrogação, e pode ser expressa ou tácita, sendo que, neste último caso, é obrigatório conter, na lei nova, a expressão “revogam-se as disposições em contrário”.
4. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados os atos jurídicos consumados, mesmo que inválidos.
5. A cessação da eficácia de uma lei não corresponde à data em que ocorre a promulgação ou publicação da lei que a revoga, mas sim à data em que a lei revocatória se tornar obrigatória.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas 1, 3 e 4 são verdadeiras.
b) Somente as afirmativas 2 e 5 são verdadeiras.
►c) Somente as afirmativas 1 e 5 são verdadeiras.
d) Somente as afirmativas 3, 4 e 5 são verdadeiras.
e) Somente as afirmativas 1, 2, 3 e 4 são verdadeiras.

Claro. A questão tinha que invocar a lei-chocolate LINDB. Uma lei patética, como já referi várias vezes (há vários textos meus trucidando essa malsinada lei). Anacrônica e inconstitucional (uma vez que fala de normas de interpretação das normas do direito, quer ser a norma das normas!). No caso da questão 42, o caminho mesmo é estocar comida. Onde estariam ensinando essas coisas?

Segundo o gabarito, das cinco alternativas, somente a 1 e a 5 são corretas. Então, vamos a elas. Repito a de número 1: [Levando em conta a LINDB] “Os princípios gerais de direito, estejam ou não positivados no sistema normativo, constituem-se em regras estáticas carecedoras de concreção e que têm como função principal auxiliar o juiz no preenchimento de lacunas”.

Quiséssemos brincar, poderíamos, já de cara, fazer o teste do neopositivismo lógico, colocando um “não” na afirmativa. Isso não alteraria nada, porque a afirmativa, além de falsa, cientificamente nada quer dizer.

Mas, avancemos. A assertiva sobre princípios é particularmente instigante. Já há alguns anos, as pesquisas que realizo apontam para necessidade de, nesse quadrante da história, superarmos os discutíveis privativismos[2] que acompanham a trajetória do pensamento jurídico brasileiro durante todo o século XX. No caso, a finada LICC (Lei de Introdução ao Código Civil) alçou à condição de texto normativo a previsão dos princípios gerais do direito como ferramentas de colmatação de lacunas (veja-se a assertiva 1 da questão em pauta). Uma discussão metodológica, indeed. Com Karl Larenz, diríamos: uma discussão de “ciência dogmática do direito”. Já na década de 1950 do século passado, o Constitucionalismo Contemporâneo começou a articular um significado para o conceito de princípio que ultrapassa essa discussão sobre metodologia jurídica para solução de casos concretos. Princípios, agora, relacionam-se com os fundamentos da comunidade política. Dizem respeito aos aspectos centrais daquilo que, como comunidade, somos e aspiramos ser. Igualdade, democracia, liberdade, devido processo legal... todos apontam para uma discussão política profunda, num sentido de uma co-originariedade entre Direito e Moral. Juízes legislando? LINDB? Colmatação de lacunas? Mas isso é tão velho quanto nocivo à democracia! Como digo há tempos e sofrendo com minha LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo), acreditar nessas coisas apenas demonstra o atraso de nossa reflexão jurídica.

Retomando, fica muito claro que, em um contexto como esse, não podemos mais continuar a falar em princípios constitucionais como princípios gerais do direito. São coisas bem distintas. Mas bem distintas mesmo! Do ponto de vista de uma adequada teoria do direito, é possível afirmar que os princípios constitucionais operaram uma ultrapassagem em relação aos princípios gerais do direito. Não sobra para estes últimos nenhum significado prático (a velha função metodológica dos princípios gerais é superada pelo “fechamento interpretativo” provocado pelos princípios constitucionais). Se algum interesse há sobre esse vetusto conceito jurídico, ele está reservado ao campo da história do direito e não da hermenêutica jurídica (ou, como gostam alguns que insistem em cindir interpretação de aplicação, da “aplicação do direito”). É por isso que, em Verdade e Consenso, formulei a tese — inspirado nas lições de Bobbio sobre o Estado —, da descontinuidade entre os PGD e os Princípios Constitucionais.

Mas a LINDB, que alterou muito pouco a LICC, uma vez que mudou-se onomem juris da Lei e revogou-se uns poucos artigos, perdeu a chance de deixar para trás esse anacronismo chamado princípios gerais do direito. Manteve-os, tal qual estavam esculpidos no diploma anterior. E as provas de concurso continuam a reproduzi-lo. Insistem em enfrentar os tormentosos mares do direito de caravelas. E estimulam os pobres concursandos a seguir os mesmos passos, impedidos que estão de refletir sobre questões importantíssimas como essa. A LINDB representa simbolicamente a idade das trevas da produção jurídica de Pindorama. E o silêncio eloquente da comunidade jurídica sobre isso e a sua reprodução em concursos apenas mostra que, fôssemos médicos, ainda não teríamos descoberto a penicilina.

Tendo em conta a questão em específico, a perplexidade é ainda maior: por que os tais princípios gerais seriam “regras estáticas”? Sim, que diabos é umaregra estática? Há, então, uma regra dinâmica (e se isso fosse correto, por que o princípio geral do direito seria estático e não dinâmico)? Digam-me por favor! E pior: repararam que, de acordo com o enunciado, o princípio é uma... regra?!? Sim, o concurso transforma o princípio em uma regra ...estática.

Nesse caso, temos que reconhecer que a LINDB é “menos néscia”, porque não faz esse tipo de referência esdrúxula aos princípios gerais. A pergunta do concurso é que “inova”. Bingo! Ao mesmo tempo: por que um princípio geral do direito estaria, por assim dizer, expressamente positivado no ordenamento jurídico? Ora, ora (e ora): se a função é auxiliar na colmatação de lacunas (sic), sua previsão expressa já não seria um caso de não-lacuna? Elementar, pois não? E regras carecedoras de concreção? O que é isto?

Se a prova da defensoria fosse uma decisão judicial, caberiam embargos de declaração — se entendem a minha ironia. Há de tudo um pouco aqui: omissão, contradição e obscuridade.

Só isso já anula a questão. Se formos a fundo, também a alternativa 5 não se sustenta, porque confunde os conceitos de validade com eficácia. Mas não falarei sobre isso. Não sou o ombudsman do concurso. Aliás, li alguns comentários sobre a LINDB que circulam por ai... Confundem vigência com validade. Socorro, Ferrajoli.

O aspecto simbólico
O concurso em liça é apenas mais um componente desse caleidoscópio trágico do imaginário-senso-comum-dogmático de terrae brasilis. Insiste-se nesse tipo de prova, nesse tipo de raciocínio, nesse tipo de concurso quiz. Depois nos queixamos, quando o Parlamento quer transformar os que não passam nos exames de Ordem em advogados pigmeus ou para-legais.

Como dizia Nelson Rodrigues, se a coisa está tão ruim é porque nos esforçamos para deixá-la assim. Essa tragédia toda é fruto de muita luta, se me entendem o sarcasmo.

Esse é caldo de cultura que conforma o imaginário de terrae brasilis. Não surpreende, portanto, que o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA) decida que a amante concubina-adulterina receba a metade da herança (em detrimento da lei, da Constituição, dos direitos da esposa e dos filhos do casamento). Não surpreende que um juiz de Minas Gerais tire da cartola uma interpretação estendendo a licença maternidade em favor de uma mulher que tem trigêmeos em mais três meses (ler aqui), sem qualquer amparo legal para isso, a não ser o que ele-considera-como-justo. Tivesse ela quadrigêmos seria mais quatro meses? De onde ele tirou isso?

Não surpreende também que um juiz (processo 160/3.14.0000050-1-RS) diga — em admoestação — para as partes: “Estão de brincadeira comigo? O Daer diz que a responsabilidade é do Detran e este diz que é daquele. Não se entendem”. Pergunto: de onde ele acha que ele tirou esse poder de puxar a orelha das partes (por sinal, estatais)? Da Constituição, que diz que todo poder emana do povo? Ele é juiz ou censor? Queria ver o advogado perguntar para o juiz: “— Vossa Excelência está estroinando comigo”? O que ele faria?

Concursos públicos... Ah, os concursos. São eles o caminho de entrada no sistema. Se não consertamos isso e não fizermos um concerto acerca de como podemos resolver isso, afundaremos cada vez mais.

Pindorama é assim. O arguidor do concurso pergunta o que quer (ou sobre os livros de SUA predileção). A resposta é aquela que ele quer que seja... Do mesmo modo, cada um decide como quer. Resultado: perdemos a capacidade de separar o joio do trigo. Na verdade, separamos o joio do trigo...ficando com o joio.

Post scriptum: uma notícia indignante, embora sem relação (direta) com o tema
Para mostrar que o réu não se ajuda (falo da Viúva — porque tudo cai na conta dela, mormente os concursos públicos, porque todo mundo quer ser “do Estado”), saiu no Diário Oficial que o Ministério da Cultura liberou mais de R$ 4 milhões via Lei Rouanet para Luan Santana, grande filósofo contemporâneo, espraiar sua obra por Pindorama afora. Fofo isso, não? Coitadinho, sem dinheiro, tinha que se aninhar na bolsa da Viúva para divulgar sua “bela música”. Fim dos tempos. Enquanto a malta morre sem receber atendimento médico por falta de macas, o ministério, de forma ímproba, distribui a rodo o dinheiro dos impostos. Onde vive essa gente? Que país eles habitam? Isso tem nome: estroinar com a patuleia. Por isso, só estocando comida. E construir um bunker (mas sem dinheiro da Lei Rouanet).

E por que construir um bunker? “— Porque sim”!



[1] O estagiário levanta a placa com os dizeres “ironia”.


[2] Os princípios gerais de direito são construções novecentistas, destinados a resolver o problema representado pela clausura do ordenamento jurídico, “fechado” pelo art. 4º. do Código Civil francês. Ou seja, foram introduzidos no Direito como um “critério positivista de fechamento do sistema”, visando a preservar, assim, a “pureza e a integridade” do mundo de regras. Já não se pode falar hoje em princípios gerais do direito na era dos princípios constitucionais (se alguém falar, azar – está defasado; e se até o STF usa, vale igualmente a observação). Quem fez a pergunta (ou afirmação) não sabe que houve uma descontinuidade entre princípios gerais do direito e os princípios constitucionais. Caso contrário, nem mesmo os (pam)prinpicialistas brasileiros conseguiriam escrever as coisas que escrevem. O que diriam os defensores, por exemplo, do princípio da afetividade diante da notícia de que princípio é regra estática carente de concreção? Essa é boa, não?
1


Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 14 de agosto de 2014, 08:08h

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

ABANDONAR AS PRÓPRIAS VONTADES PARA JULGAR É CUSTO DA DEMOCRACIA


Abandonar as próprias vontades para julgar é o custo da democracia"


A força da doutrina parece ser a grande causa deLenio Streck. O jurista defende que os pensadores do Direito arregacem as mangas e ponham-se a discutir o que acontece na Justiça brasileira, para constranger quem julga errado e incentivar quem acerta, criando uma jurisprudência sólida. O advogado, professor e procurador aposentado parece ser o ponto de encontro entre a academia e o tribunal.

Os primeiros a irem para o "paredão do constrangimento", se houvesse uma lista, seriam aqueles que julgam ou acusam seguindo a própria vontade, abandonando os autos para decidir com base no que sentem. A coerência e a integridade do sistema judicial, como um todo, diz ele, é uma garantia fundamental do cidadão. Abandonar as próprias crenças para julgar de acordo com os códigos é o que Streck chama de “custo da democracia”.

A ideia de que não existem verdades, ou de que tudo é relativo, diz o jurista, não se aplica ao Direito — e nem à realidade. Por isso, se define como anti-relativista, para quem as causas devem ser julgadas seguindo padrões e critérios que possam ser replicados, com base no texto jurídico.

É essa mesma linha de se ater ao Direito que faz com que Lenio Streck seja um grande crítico do chamado ativismo judicial. Ao determinar a função dos três Poderes, a Constituição não deu ao Judiciário a opção de mudar o próprio texto constitucional. Assim, por exemplo, não caberia ao Supremo Tribunal Federal decidir a favor do casamento homoafetivo, uma vez que a Constituição reconhece a união estável apenas entre um homem e uma mulher. “E não importa as nossas posições com relação ao justo ou injusto sobre essa questão, porque todos os grandes países europeus fizeram isso via Parlamento”, diz.

Streck aponta o próprio ativismo como um dos fatores para que o Brasil tenha uma espécie de “cidadão de segunda classe” — que conta com Ministério Público, Defensoria e magistrados para resolverem seus problemas.

Na sua busca pelas contradições da Justiça, o gaúcho nascido em Agudo ganhou notoriedade. É autor e coautor de 70 livros, entre os quais estáComentários à Constituição do Brasil, que escreveu com o ministro do STF Gilmar Mendes, e o jurista português Joaquim José Gomes Canotiho e o juiz gaúcho Ingo Wolfgang Sarlet.

Colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico desde março de 2012, Streck é presença constante na lista de textos mais lidos — e mais comentados — do site. Ele também é “âncora” do programa Justiça e Literatura, que passa na TV Justiça três vezes por semana.

Em visita à redação da ConJur, deu entrevista e conversou com os jornalistas sobre sua carreira. Aposentado do Ministério Público desde maio deste ano, vai se dedicar à advocacia, focando na produção de pareceres sobre questões constitucionais. Depois de ser apontado em notícias como possível ocupante de uma cadeira no Supremo, Streck se atém a comentar que “é um cargo para o qual ninguém diria não”.

Participaram da entrevista os jornalistas Alessandro Cristo, Márcio Chaer, Marcos de Vasconcellos e Maurício Cardoso.

Leia a entrevista:

ConJur – A interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal à teoria do domínio do fato no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, foi indiretamente criticada pelo próprio Claus Roxin — pai da teoria. Como isso se assenta nas instâncias inferiores? O juiz vai passar a decidir usando a interpretação do Supremo ou vai seguir a sua própria interpretação dessa teoria?
Lenio Streck – Essa é uma parte da perda do país com o caso do mensalão. Cada vez que acontece algo, a doutrina tem que urgentemente dizer: “Aqui estão os acertos e aqui estão os equívocos”. A doutrina não decide, não é normativa, mas influencia. Nós temos 92 programas de pós-graduação no Brasil, que têm de servir para alguma coisa! O governo investe fortunas para pessoas irem estudar no exterior. O Brasil tem o sistema de pós-graduação mais organizado do mundo, porque ele é ranqueado. Esse sistema tem que produzir doutrina! O estudioso que faz uma tese ou uma dissertação tem que servir para que o juiz e o ministro julguem melhor.

ConJur – Nosso sistema de educação parece sempre presente nas suas colunas, com a ideia do combate ao Direito raso, à simplificação do Direito. Mas como se combate a simplificação do Direito ao mesmo tempo em que 115 mil estudantes, por ano, fazem a prova da OAB — que chega a reprovar mais de 90% desses estudantes?
Lenio Streck – Com essa massa é impossível. O que se pode fazer é formar nichos de qualidade. Isso é como classes sociais. Talvez o grande problema do Direito brasileiro, da sua crise, seja uma espécie de classe média do conhecimento, que não chega a ser proletarizada, naquele sentido dos direitos simplificados, mas também não é de uma elite mais "intelectual". Classe média no sentido de atravancar, porque ela é conservadora, está dentro do senso comum, é avessa a sofisticações, usa a frase "isso sempre é assim", ou "juiz decide assim mesmo". Ela não deixa aqueles que trabalham de forma mais sofisticada influenciarem o sistema. Então eles mantêm o domínio da produção dogmática. E essa mesma dogmática foi uma perda do mensalão, porque confiou em um certo senso comum. Pessoas repetem que “o juiz decide conforme sua vontade”, inclusive nos tribunais, e ninguém para pra pensar no que é essa vontade. Numa democracia, se o meu direito depende da vontade de alguém, pra que eu devo estudar Direito, então? Se eu tiver que saber quais são os gostos pessoais de quem julga para poder influencia-lo, o que eu menos preciso fazer é estudar. Direito não é um agir estratégico. O advogado necessariamente tem que fazer isso [agir estrategicamente], mas o advogado é um dos atores. Quem decide não pode colocar na sua decisão os seus gostos as suas questões. A subjetividade do juiz tem que estar controlada pela intersubjetividade.

ConJur – Mas os juízes sempre vão poder decidir de maneira diferente?
Lenio Streck – Podem sim. O [Ronald] Dworkin diz que isso é um romance em cadeia. É como se todos nós escrevêssemos um romance, cada um escrevendo um capítulo. Com certeza faremos capítulos diferentes, mas será a mesma história. É a coerência e a integridade de um sistema. Por isso é que se o Supremo tivesse decidido em exigir o cumprimento de 1/6 da pena para que presos no regime semiaberto [no caso do mensalão] pudessem trabalhar, ele teria escrito outro capítulo, diferente, e, no dia seguinte, todos os demais [julgadores] teriam que seguir o romance com esse capítulo já posto. Isso é a responsabilidade política. Direito não é um conjunto de casos isolados, decisões ad hoc etc. A questão é saber como decidir a partir de uma criteriologia. Eu tenho direito fundamental a que meu caso seja julgado com coerência e integridade.

ConJur – As pessoas dizem que o processo garante o equilíbrio. O processo é mais importante que a causa?
Lenio Streck – O processo acabou ficando com um fim em si mesmo. Com isso acabamos deixando de lado aquilo que se pode chamar da substância. No meu livro Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica tem um capítulo que fala em substancialismo e procedimentalismo; são os dois contrapontos. Quando a gente está falando em processo, ele tem que garantir que eu não seja surpreendido, que não possam usar presunções contra mim e que as partes sejam ouvidas. O grande problema no Brasil nos últimos anos é aquilo que chamamos de instrumentalismo, isto é o excesso de protagonismo judicial, do juiz que pode fazer prova, mexer no procedimento e decidir com livre convencimento. Precisamos tirar isso no novo Código de Processo Civil. O processo é justamente para evitar o protagonismo.

ConJur – Como evitar a aleatoriedade do julgamento? Como no caso de um juiz que foi assaltado e, no dia seguinte, vai julgar o caso de um assalto...
Lenio Streck – São contingências. Sempre pode acontecer isso, mas não deve. Os juízes têm que entender o papel que exercem. Ele pode odiar algo, mas tem uma responsabilidade como agente político do Estado. Se a comunidade jurídica — que podemos chamar de comunidade de princípios — tem uma posição, uma doutrina adequada, que diz que para manter alguém preso precisa de alguns requisitos, e o juiz está julgando alguém que ele odeia, mas cujo caso cumpre esses requisitos, pode se declarar impedido e cair fora, ou tem que segurar as vontades pessoais e soltar o réu. É o custo da democracia.

ConJur – Mas é possível uma sanção a esse juiz que não segue a doutrina?
Lenio Streck – Pela independência da magistratura, me parece muito difícil. Só se corrige isso com um forte constrangimento doutrinário. Decidir não é uma questão de gosto, vontade ou subjetividade. Decidir é um ato de responsabilidade política. Essa história de que gosto não se discute, gosto não se discute no plano do gosto, agora isso não significa que eu não tenha uma resposta constitucional e eu não possa dizer que essa resposta é melhor que a outra. Se eu não conseguir fazer isso é porque eu fracassei. Se o Direito não conseguir dizer que uma decisão é correta e a outra é incorreta no plano das práticas sociais e jurídicas e da doutrina etc. é porque eu fracassei. Ou seja, eu sou anti-relativista. Uma das questões fundamentais da democracia é ser anti-relativista. Essa história de que cada um tem a sua opinião funciona para o rádio, para uma discussão. Você é obrigado a ouvir a minha opinião; posso ser obrigado a ouvir, mas se sua opinião é furada não tem sentido. O Direito não é relativista, a realidade não é relativista. A pessoa que acha que tudo é relativo caiu numa contradição, porque isso que ela disse também é. O sujeito que diz que não há verdades, ótimo, inclusive o que ele disse: não há verdades, inclusive que não há verdades. Ele caiu num paradoxo. Então o direito é uma ciência aplicativa pela qual eu posso demonstrar aquilo que as pessoas acham que está no mero plano da subjetividade. Esse é o grande avanço que nós temos que dar. 

ConJur – Ou seja, a autonomia jurisdicional do juiz tem limites.
Lenio Streck – Tem limites evidentemente, como a sua autonomia de trocar o nome das coisas. Se você chamar um copo d'água de ônibus, quando você tiver sede, pode ser atropelado. A sua autonomia termina na sua esquizofrenia. Eu fui à Bahia fazer uma conferência – eu conto seguidamente isso – e um menino fez uma conferência lá, e ele tinha o “kit carreira jurídica”, vestido de terno Hugo Boss, andando de Audi A4, um jovem, que tinha acabado de fazer o mestrado. Ele dizia "não há verdades" e fez um discurso apoplético — as meninas e meninos adoraram aquilo. Quando me deram a palavra, eu disse: “Não acredite em nada que esse menino falou, acredite no mais velho aqui. Entender filosofia é uma coisa importante”. Peguei uma garrafa d'água e disse: “Isso aqui não é uma garrafa d'água só porque eu quero que ela seja. E assim como você tem sua autonomia no cotidiano e não quer ser chamado esquizofrênico por trocar o nome das coisas, também no plano das práticas jurídicas, nós temos uma dogmática, nós temos conceitos. Eu não posso transformar homicídio em estelionato. O texto jurídico é muito importante. Uma interpretação tem que ter algo, você não pode inventar as coisas. Com isso o sujeito já tem no mínimo a garantia que existe uma lei”.

ConJur – Falando em texto da lei, o nosso texto constitucional sofre críticas por ser enorme. Mas há quem diga também que reduzir ele, enxugar a Constituição só serviria para retirar direitos. Qual sua opinião?
Lenio Streck – Tem gente que diz que a Constituição mais enxuta do mundo é a que mais dura, que é a dos Estados Unidos: 7 artigos, 26 emendas. Quem disse que ela é mais curta? O sistema é da common law e cada decisão da Suprema Corte americana é um precedente e um precedente é como se fosse uma nova lei, portanto ela é maior que a nossa. É uma ilusão achar que a nossa Constituição é tão grande assim, tão extensa. 

ConJur – Mas o senhor acredita que haja um outro país no mundo onde o Judiciário tenha tanta interferência na vida do país?
Lenio Streck – Porque se deu isso no Brasil? Porque temos um país em modernidade tardia, com problemas sociais enormes e aí chega em 1988 e faz uma Constituição, que coloca em seu texto promessas da modernidade. O paraíso na Constituição e o inferno na realidade. A Constituição diz que o Brasil é uma República e visa erradicar a pobreza. O que tem que se fazer então? Tem que fazer políticas públicas para isso. O Legislativo e o Executivo não fizeram, por causa do presidencialismo de coalizão. O Legislativo não foi fazendo as leis, o Executivo foi tendo que atender demandas a todo tempo, o que fez com que as pessoas corressem ao Judiciário. E o judiciário no Brasil não soube – e aí a doutrina de novo falhou –estabelecer a diferença entre judicialização e ativismo. Essas são coisas diferentes e é inexorável que haja judicialização em qualquer país no mundo. Judicialização é um problema de competência e incompetência: um poder é incompetente, a Constituição diz X, o Poder não faz, o Judiciário manda fazer. Ativismo é quando o Judiciário se substitui aos poderes que são do legislador e, por exemplo, acaba interferindo nas esferas dos demais Poderes e fazendo com que se fragmente o sistema. A judicialização acontece, em qualquer país do mundo e o ativismo acaba sendo ruim para a democracia. Acabamos criando o judiciário muito forte, como uma espécie de grande pai da nação. O ativismo é vulgata da judicialização.

ConJur – No caso do casamento homoafetivo, por exemplo...
Lenio Streck – O tribunal foi ativista. E não importa as nossas posições com relação ao justo ou injusto sobre essa questão, porque todos os grandes países europeus fizeram via parlamento, e aqui no Brasil foi via Judiciário.

ConJur – O que significa um país de 200 milhões de habitantes ter 100 milhões de processos.
Lenio Streck – Não todos processos strictu sensu. Nosso país tem Embargos Declaratórios, Agravos, e muitos deles são usados para fazer estatística e para cumprir metas do CNJ. Tiremos dos números também os processos de contravenções penais — a contravenção penal é uma lei que já não deveria existir, porque é inconstitucional. É o caso da bagatela. Nós não temos uma doutrina sobre bagatela e continuamos processando pessoas por furtar sabonete. Tem também os Embargos Declaratórios, que não deveriam existir. Um país não pode sobreviver com um sistema jurídico que diz que o juiz pode produzir uma sentença omissa, contraditória ou obscura. A decisão deveria ser nula, porque ele tem que fundamentar a miúde, não embargar. Isso diz que o agente político do Estado está autorizado a fazer obras mal feitas para serem embargadas e depois embargadas dos embargos, dos embargos e do agravo e do agravo... Precisamos tirar tudo isso desses 100 milhões de processos. Será no mínimo a metade. O Brasil precisa parar de se preocupar com efetividades quantitativas. As efetividades tem que ser qualitativas. 

ConJur – O CNJ tem mirado bastante na quantidade. Por que isso é ruim?
Lenio Streck – Essas metas fazem exatamente que se exacerbe essa questão de estatísticas. E, no fundo, parece que o Judiciário ideal seria o judiciário sem processos. Aquela metáfora do queijo suíço, na qual quanto mais furos tiver, melhor é o queijo. Assim, mo queijo ideal seria o “não-queijo”, pois seria só os furos.

ConJur – Mas um processo demorar dez anos é um problema.
Lenio Streck – Sim! Mas não precisa ser resolvido em dois meses. O que está escrito é que o processo deve ter duração razoável. Razoável é dez anos, ou um ano? Alguém tem um aparelho chamado “razoalômetro”? Uma decisão bem fundamentada tem menos possibilidade de sofrer embargos, agravos etc. Processos feitos para cumprir estatísticas acabam gerando um problema de fragmentação.

ConJur – Na sua visão, o Brasil precisa aumentar a máquina do Judiciário?
Lenio Streck – Penso que os tribunais superiores podem ter mais membros. Não há nenhum problema de ter um STJ com 66 ou 99 ministros. O José Rogério Tucci escreveu que temos que combater a jurisprudência defensiva. Fazemos isso aumentando as possibilidades de examinar a substância. Isso seria possível aumentando o número de ministros, ou então vamos transformar os ministros em gestores de busca de defeitos nos processos para que eles não sejam conhecidos. A decisão de primeiro grau bem fundamentada nos moldes de uma criteriologia faria com que a possibilidade de recursos seria menor.

ConJur – Então o senhor defende que haja uma redução de instâncias?
Lenio Streck – Eu defendo um novo proceder dos juízes. A decisão do primeiro grau tem que ter mais valor. O professor Ovídio Baptista, de saudosa memória, sempre dizia que os juízes de primeiro grau não podem ser simplesmente um rito de passagem, um pedágio a ser pago. Ele dizia uma frase: deem-me cinco dias e uma biblioteca de cinco mil volumes que eu faço uma decisão que ninguém modifica. 

ConJur – O senhor concorda que a grande dificuldade de condenar de 30 anos atrás virou, atualmente, uma grande dificuldade em absolver? 
Lenio Streck – Penso que a facilidade em condenar vem da insegurança, do imaginário social. Devemos ter muito claro que o Estado falha ao dar segurança. Eu sou absolutamente a favor de todas as liberdades, mas não se pode sair por aí dizendo que é proibido proibir. Cria-se um imaginário de que o bom bandido é o bandido morto, que o bom réu é o réu condenado. Claro que nós estamos ideologizando essas discussões, temos um Código Penal que protege muito mais a propriedade que a vida, que continua achando que sonegar tributos é menos grave do que furtar. Um sujeito que furta e devolve a res furtiva, tem o desconto de pena e olhe lá; agora, se ele sonega tributos e paga depois, ele tem isenção de pena. Mas por que isso? O que é mais grave: furtar ou sonegar tributos? Em 1990, um ano e dois meses depois da Constituição, eu escrevi um artigo recomendando aplicar a Lei de Sonegação de Tributos para os furtos — e, posteriormente, fui o primeiro a aplicar isso, quando eu fui promovido a procurador.

ConJur – O que sobrou da Justiça Alternativa no Sul?
Lenio Streck – Sobrou muito pouco, porque ela perdeu seu tempo. Antes da Constituição, tinha um Estado mau, uma legislação autoritária, e o que restava para um jurista era nas brechas da institucionalidade tentar convencer o juiz, e aí eu preciso do acionalismo. Mas no momento em que todas as reivindicações são colocadas na Constituição, ele muda o foco. Aí não precisa-se do acionalista, é preciso que se cumpra a Constituição. Então o Direito Alternativo, ou o realismo jurídico – porque o Direito Alternativo é uma espécie de braço do velho realismo jurídico escandinavo ou norte americano — é uma posição política sobre o Direito, uma oposição política em relação a um stablishment ruim, autoritário.

ConJur – Nós temos uma forte inserção do Executivo na escolha dos julgadores de tribunais, seja nos estados pelos governadores, seja no âmbito federal pelo presidente. A maior parte das leis importantes que são aprovadas, são de iniciativa do Executivo. Ou seja, nós ainda temos um Executivo que faz as leis e faz os juízes. Isso acabará um dia?
Lenio Streck – O presidente da República tem “50% mais um” no presidencialismo, desde 1891. Eu não tiraria o poder de nomear do presidente da República, porque ele tem legitimidade. Nós votamos bem ou mal e, se eu não gostar, eu troco. Temos que saber que quando o Legislativo não faz uma lei sobre determinada coisa, não basta falar mal do Legislativo, mas podemos trocar o legislador. O que não pode é achar que o Judiciário pode substituir o Legislativo. Temos que criar uma criteriologia para nomeação dos ministros do Supremo e das cortes superiores. 

ConJur – Muitos advogados reclamam da postura inflexível do Ministério Público na hora de negociar um TAC, por exemplo, ou na hora de discutir alguma coisa com o advogado, não necessariamente no Tribunal. O Ministério Público é realmente assim inflexível ou ele tem as suas razões para se manter distante dos advogados?
Lenio Streck – Ministério Público, como Judiciário, não pode ser um Ministério Público ativista simplesmente. As mesmas restrições que opõe o problema da diferença entre judicialização e ativismo vai para o Ministério Público. O Brasil é um país complexo, o que acaba fazendo com que todo mundo recorra à Defensoria e ao Ministério Público etc. Estamos correndo o risco de criar cidadãos de segundo plano, ou de terceirizar a cidadania. As pessoas já não lutam pelos seus direitos, eles têm o pai promotor, o pai defensor, o pai juiz e vão correndo para eles pedir ajuda. Os deputados, em vez de fazer CPI's e investigarem os crimes, levam representação ao Procurador Geral, e o Ministério Público e o Judiciário vão crescendo. O MP tem que se comportar como um magistrado. Ele não escolhe simplesmente denunciar alguém. Ele decide denunciar alguém. Isso é um ato de responsabilidade política. O promotor é promotor de Justiça. Não é o promotor da lei, como se a lei fosse plena e potenciária. Eu, em até 80% dos casos, me posicionava a favor dos interesses do réu.

ConJur – E a obrigatoriedade da ação penal?
Lenio Streck – Isso é uma ficção ultrapassada. Não tem sentido em uma Constituição que diz que o Ministério Público é o dominus lite — e o próprio código diz que se o sujeito agiu sob o pálio da lei ele não responde por crime — por que eu teria obrigatoriedade de levar essa questão? O Ministério Público tem uma parcela de soberania. Minha postura, durante 28 anos, foi de colocar o Ministério Público como uma magistratura de pé; assim como o juiz é o magistrado sentado. Para mim, fazer uma denúncia é como uma sentença; ela começa a decidir a vida da pessoa.

ConJur – Mas promotor ou procurador pode ser responsabilizado por um erro nessa acusação, ou por manter uma acusação que ele saiba que é falsa?
Lenio Streck – É o mesmo caso de um erro crasso de um juiz. É um problema que o sistema brasileiro não resolveu ainda. Nós temos que amadurecer ao ponto de nós podermos responsabilizar tanto os juízes como os promotores. 

ConJur – O Ministério Público tem a isenção necessária para investigar como ele pleiteia?
Lenio Streck – O problema não é ele ter isenção ou não. O Ministério Público tem poder de determinar, requisitar da polícia. O grande problema é que no Brasil, não conseguimos fazer um controle externo da atividade policial, isso é uma ficção, lamentavelmente, e as brigas corporativas não conseguem resolver um problema que ajudaria toda a população. Devia-se terminar com certos corporativismos e, de fato, chegar a um meio denominador comum. O Ministério Público não é juiz, mas o delegado também não é promotor, e defensor não é promotor. No Brasil todo mundo quer ser a mesma coisa! Chegamos a um ponto em que o Estado tem um promotor bem pago para acusar alguém, e a vítima pede para se habilitar como assistente de acusação via Defensoria Pública. Que Estado incompetente é esse que tem alguém que está pago para acusar e o próprio Estado confessa que esse cara não tem condições de levar isso adiante? A pergunta é: Por que eu tenho que transferir recursos da população em geral para “dar felicidade” para uma vítima que quer se habilitar como assistente de acusação se ela já tem o promotor pago exatamente para isso? E isso está acontecendo. O dia em que o Ministério Público necessitar de um assistente de acusação pago pelo próprio Estado, ele pode fechar as portas.Imagine o seguinte caso: no Tribunal do Júri, o Ministério Público, que é o dono da ação penal, pede absolvição em plenário. Já o Defensor Público, como assistente de acusação, pede a condenação. O que o jurado faz? O jurado se suicida ou sai correndo!

ConJur – Nos casos em que o MP e a Defensoria se enfrentam, não é paradoxal o Estado atacar e defender?
Lenio Streck – A Defensoria é a condição de possibilidade em um país de modernidade tardia para dar um mínimo de democracia e Justiça à essa população imensa, que, historicamente, ficou de fora do butim social.

ConJur – Uma defensora pública em São Paulo conseguiu que uma aluna que ficou em recuperação tivesse a nota alterada, para passar de ano...
Lenio Streck – Isso é um bom mau exemplo de ativismo judicial. Judiciário não corrige nota de aluno incompetente. E nem de aluno competente se estiver no lado contrário. E a resposta é muito simples: por que eu vou transferir recursos de outros lugares da sociedade para dar felicidade para aquele aluno? Esse é o problema de criar um cidadão de segunda classe. É duro fazer democracia. Hoje, a autonomia do Direito não pode ficar a reboque, por exemplo, de idiossincrasias pessoais. Um aluno que quer fazer curso de medicina e não gosta de sangue ou não quer dissecar os animais, não pode conseguir no Judiciário o direito de cursar uma disciplina à parte. Por uma razão simples: não há direito fundamental a cursar Medicina. Faça outro curso. A primeira pergunta que o juiz e o promotor têm que fazer é: “Eu posso universalizar essa conduta?” A própria questão de uma pessoa que pede remédio experimental de R$ 200 mil. É conduta universalizável? Se não é, acabou.

ConJur – Mas o doente que pede remédio de R$ 200 mil não é o desigual que tem que ser tratado de forma desigual?
Lenio Streck – Esse é uma dilema moral. O juiz não responde dilemas morais do sistema. De algum modo, aquele paciente chegou ali e não vai resolver com o juiz essa questão. Se o sistema fizer depender do juiz, nós temos um sistema de dilemas morais, não mais uma democracia. O Direito não vai responder dilemas morais.

ConJur – No julgamento dos planos econômicos, que opõe poupadores e bancos, o que se coloca é que o Supremo vai decidir entre um direito e a possibilidade de cumprir esse direito...
Lenio Streck – Nesse debate, eu perguntaria: “A viúva terá que pagar alguma parte caso os poupadores vençam?” Se sim, por que eu tenho que transferir recursos das outras pessoas que não tinham poupança para dar felicidade para aquelas que tinham?

ConJur – Em que o Direito Internacional pode ajudar ou atrapalhar no Direito nacional?
Lenio Streck – Em algumas questões que talvez o Direito brasileiro não trabalhe adequadamente... O Direito Internacional que trata dos direitos humanos tem validade. Como os tratados internacionais que acabam vetando, por exemplo, a prisão por dívida. Isso é importante. Mas não acho que os tribunais internacionais são melhores ou podem produzir decisões melhores que o Brasil. Não é uma instância acima do poder nacional.

ConJur – Como o senhor avalia a influência do noticiário nas ações do Ministério Público e nas decisões judiciais?
Lenio Streck – A mídia não pode pautar o judiciário e o Ministério Público. Um direito que é decidido por princípios tem que ficar fora das questões construídas pelo imaginário social. Quem disse que o imaginário social está certo? A Constituição é um remédio contra as maiorias. E se a maioria estiver na rua pedindo pena de morte, o Judiciário vai decidir contra a Constituição? Não. Esse é um bom exemplo.

ConJur – E tem o inverso disso, o quanto o Ministério Público e a Polícia pautam a imprensa com acusações...
Lenio Streck – Eu fico impressionado como que em determinadas operações eles vão sangrando os acusados um a um. Vazando informações a conta-gotas. Esses vazamentos são ilegais. Ou vaza todos ou não vaza nenhum. Ou o processo é público ou o processo não é público. Tem que punir quem faz isso com muito rigor. O comportamento no varejo de alguns membros do Ministério Público que fazem isso não deve ser transportado para o atacado. É como o juiz que vai dar uma sentença e chama a imprensa.

ConJur – O senhor critica muito a fixação por números que o CNJ parece ter. A função do Conselho Nacional do Ministério Público tem sido cumprida?
Lenio Streck – O CNMP segue na trilha do CNJ. Tem acertos e erros. Sempre que colocam metas, acabam comprometendo a substância.


Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2014, 09:55h

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...