quinta-feira, 15 de maio de 2014

O "decido conforme a consciência" dá segurança a alguém?

O “decido conforme a consciência” dá segurança a alguém?

Caricatura Lenio Streck [Spacca]Advertência da Coluna
Esta coluna não deve ser lida por quem não aprecia questões sofisticadas sobre o Direito. Quem acha que discutir filosofia e “crise de paradigmas” é perfumaria, não deve perder seu precioso tempo. Pare por aqui. Portanto, ninguém poderá alegar desconhecimento acerca do “produto”.
A entrevista do Desembargador Ricardo Dip
Domingo, abro o ConJur e leio o título “Segurança Jurídica” acima do titulo “juiz precisa ter consciência que erra”. Era a entrevista do desembargador Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Pensei: sob esse epíteto “segurança” e esse título da entrevista, vou me deliciar. Finalmente alguém do Judiciário vai entrar rachando na temática “segurança jurídica” e na problemática do “erro de apreciação judicial”. Alvíssaras.
Já no início, fiquei animado. O entrevistado, com base filosófica considerável e grande convivência com a literatura (o que atraiu, de pronto, minha simpatia), faz uma crítica ao neosofistas contemporâneos. E fez críticas ao relativismo. Cada vez mais animado, fui adiante. Confesso que me vi nas palavras do desembargador Dip. Principalmente depois que li, dias antes, que um ministro do STF, abrindo uma conferência, citou um poeta sofista, para quem as coisas são segundo o cristal com se olha, isto é, nada mais, nada menos que a repristinação da máxima de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”. Aqui, um esclarecimento necessário. No caso da sentença de Protágoras, faz-se necessário ressalvar que o fato de ser aqui o homem a medida de todas as coisas não representa um sujeito que por si só descobre os sentidos do mundo, construindo estes (os sentidos) seguindo a sua subjetividade ou consciência (Com Heidegger, é preciso observar que o ambiente da filosofia grega não conhecia conceitos próprios da modernidade como é o caso do conceito de sujeito). De todo modo, repito, o desembargador Dip fez críticas duras aos sofistas (inclusive nominando Protágoras). Que felicidade.
Mas eis que, na sequência, de repente, nosso entrevistado resvala epistemicamente, ao dizer que o juiz deve decidir de acordo com sua consciência. Como eu estava empolgado com o início da entrevista, tive que ler de novo. De fato, ali constava, verbis: “O juiz deve decidir de acordo com sua ciência e consciência. Em rigor, eu digo isso, e é um fato muito pessoal: minha consciência, em determinado momento, está totalmente voltada a Deus. Eu sei que eu vou responder pelos meus acertos e erros perante Deus”. Sobre essa “questão de Deus”, não falarei na coluna, uma vez que sou adepto da secularização plena, por assim dizer.
Prossigo. Em outro momento, quando fala do juiz ideal, lá aparece, esculpido-em-carrara, a figura do juiz solipsista, uma espécie de “juiz do justo concreto”. Então, qual é o problema? Onde reside o resvalo epistêmico?
Explico: os sofistas foram os primeiros positivistas (naquilo que se entende por positivismo de forma sofisticada). E isso é assim por causa de sua concepção convencionalista. Não há qualquer imanência ou ontologia entre palavras e coisas. Por isso o homem é a medida de todas as coisas. Foram combatidos por Platão, pela boca de Sócrates. O livro Crátilo deixa isso muito claro, quando os sofistas são colocados frente à frente com o naturalismo de Crátilo. Aristotéles pensava, inclusive, que Platão bateu pouco nos sofistas.
É certo que o relativismo contemporâneo deita raízes nos sofistas, embora essa concepção possa ser explicada de outros modos. Por exemplo, o pragmaticismo tem relação direta com o nominalismo (pensemos no personagem Humpty Dumpty de Alice Através do Espelho). Assim, o positivismo é relativista (Kelsen reconhece isso; e o positivismo tem um quê forte de nominalismo. E assim por diante. Michel Villey descreve muito bem essa relação do positivismo com o nominalismo e o relativismo.
Já o sujeito — da relação sujeito-objeto — é uma invenção moderna. A partir de Descartes, tem-se que os sentidos, se antes estavam nas coisas (porque estas tinham uma essência), agora passam a estar na consciência. Vale dizer, a filosofia cartesiana transfere a substância aristotélica que se colocava na natureza e naquilo que, diante da constante modificação, permanece inalterado, para a certeza de si do pensamento pensante (cogito). Todas as afirmações e dogmas da tradição foram colocados em dúvida pelo cartesianismo, até que essa dúvida encontrou qualquer coisa que já não podia ser posta em dúvida: enquanto se duvida, não se pode duvidar que aquele que duvida ele próprio existe e que tem que existir para que possa duvidar. Na medida em que duvido, portanto, eu sou. O eu é aquilo que não pode ser colocado em dúvida. Desse modo, antes da teoria acerca do mundo (esse sim, objeto da dúvida), deve colocar-se a teoria acerca do sujeito. Daqui em diante a teoria do conhecimento é o fundamento da filosofia, o que a torna moderna, distinguindo-a da medieval.
Para evitar mal-entendidos sobre o que estou dizendo
E aí é que está o problema da entrevista do desembargador. Vou pontuar bem essa questão para evitar mal-entendidos (sei que haverá muitos mal-entendidos, mas vou tentar reduzir os “danos” o máximo que puder). Note-se: o desembargador Dip faz menção à decisão conforme à “ciência e a consciência” (algo que me faz lembrar diversos pronunciamentos do ministro Marco Aurélio no plenário do STF) em uma pergunta cujo contexto está ligado ao atual apelo midiático do poder judiciário e ao excessivo caráter de publicidade que temos hoje em certos julgamentos, especialmente aqueles que são transmitidos pela TV Justiça. Todavia, nesse momento, aparece, como um sintoma, algo que está recrudescido no imaginário gnosiológico dos juristas: a ideia de que a “liberdade de decisão do juiz” está ligada a uma ideia de responsabilidade subjetiva dos julgamentos que profere. Algo como dizer que o-juiz-constrói-sua-decisão-a-partir-de-uma-simbiose-de-razões-e-sentimentos que são apenas seus (vale dizer, um juiz solipsista — um Selbstsüchtiger). Ora, dizer que o juiz decide conforme sua consciência retira o caráter institucional e político que reveste as decisões do Poder Judiciário. Daí que o desembargador, da — acertada — crítica que faz àquilo que se chama de “pós-modernidade” e ao relativismo dos sofistas, acaba por cair em um outro tipo de relativismo: aquele próprio da filosofia da consciência (ou nas vulgatas moderno-voluntaristas). É nisso que reside a “coisa”.
Daí a minha pergunta: De que adianta dizer que não há segurança jurídica hoje no Brasil e, ao mesmo tempo, sustentar que o juiz deve decidir conforme sua consciência? Ora, em termos de paradigmas filosóficos, estamos apenas saindo da crítica de uma concepção sofistica e indo em direção a uma concepção solipsista, para dizer o menos. Que segurança tem o jurisdicionado quando sabe que a decisão é dada conforme a consciência individual do decisor? Ainda que isto esteja afiançado por uma instância transcendente com pretensões de objetividade (Deus ou a Natureza).
Mas não estou satisfeito. Sigo para aprofundar mais ainda essa questão. É que da crítica bem feita aos sofistas o desembargador Dip cai na filosofia da consciência (ou nas vulgatas moderno-voluntaristas). Daí a minha pergunta: De que adianta dizer que não há segurança jurídica hoje no Brasil se, ao mesmo tempo, sustentar que o juiz deve decidir conforme sua consciência? Ora, em termos de paradigmas filosóficos, ele apenas saiu da critica de uma concepção sofistica e caiu em uma concepção solipsista, para dizer o menos. Trazendo para o direito: Em vez de a decisão ser dada de acordo com uma estrutura (na hermenêutica chamamos a isso de a priori compartilhado, que compreende a reconstrução da história institucional do direito, com coerência e integridade, o decisor prolata a sentença de acordo com o que a sua consciência. Ora, dizer que alguém decide assim implica ingressar na problemática dos paradigmas filosóficos. Sem tirar nem por.
Eis a grande discussão a ser feita e que venho sustentando há tantos anos e que está no livro O Que É Isto – Decido Conforme Minha Consciência? Não há Direito sem Filosofia. Não há direito sem paradigmas filosóficos. Parece que já superamos o paradigma epistemológico da filosofia da consciência em outras áreas. A própria filosofia, depois daquilo que se consignou a chamar de linguistic turn, movimenta-se fora dos estreitos caminhos da subjetividade assujeitadora do mundo. Isso tanto no campo da filosofia analítica quanto no âmbito da assim chamada filosofia continental, no interior da qual se situa a corrente hermenêutica. Mas não no Direito. Parece que no Direito isso está impregnado. E desse enclausuramento de imaginário temos uma sequência de implicações à listar mas que, de um modo ou de outro, convergem para o mesmo ponto: a aposta no protagonismo judicial. O instrumentalismo processual começou com um “grito” solipsista de Oskar Büllow. Isso também pode ser visto nas posturas que defendem o realismo jurídico. É o que se chama também de positivismo fático. Enfim, um mix de posturas que acabam na defesa de posturas discricionaristas, que, ao fim ao cabo, são o produto da prevalência do sujeito indomado da modernidade.
Portanto, a defesa da segurança jurídica por parte do desembargador Dip se transforma na defesa de uma insegurança jurídica ou a segurança-conforme-o-decidir- individua(ista) da consciência de si do pensamento pensante (do julgador). E isso não dá segurança para ninguém. Apenas a sensação de que temos de torcer para que o juiz que decide nossa causa seja um “homem de bem”. E quem acredita na bondade dos bons?
Digo de novo: Não é implicância minha com quem assume a postura do “decidir conforme a consciência”, ou de sentença vem de sentire ou ainda de posturas que repristinam o velho socialismo processual dos tempos de Menger e Klein. São os paradigmas filosóficos que falam (d)isso. Cada um fala de determinado lugar. Lorenz Puntel explica bem que, quando fazemos filosofia, fazemos teoria. E que teoria pressupõem um quadro referencial teórico que permita articular os seus resultados em um contexto de sistematicidade. Ernildo Stein afirma algo similar, mas chama esse contexto amplo que acomoda a sistematicidade da reflexão de paradigmas filosóficos. Falar de um determinado lugar implica compromissos. Por isso, defender que o uma decisão deve ser dada conforme a consciência é permanecer refratário a todas as conquistas do giro linguístico do século XX. E isso não é invenção minha. Nem implicância.
O contexto e o nível da crítica
Vejam os leitores: minha crítica vai nesse nível em respeito e homenagem ao entrevistado. Se ele desfila um leque importante de autores e faz importantes críticas filosóficas no e do direito, penso que essa matéria deve ser enfrentada em um nível similar. Por isso faço esta coluna, jogando nas regras no jogo epistêmico, colocando à lume uma flagrante contradição. Na verdade, ao cair na armadilha da modernidade, o entrevistado anula toda a sua crítica ao modo atual de aplicação do direito. Ao colocar os exemplos para falar do “juiz ideal”, pouco mais fez do que repetir os próprios sofistas. Só que em uma versão 2.0. Sim, porque a diferença entre os sofistas e os filósofos da consciência está na “questão do sujeito”. Os sofistas estavam inseridos em uma dimensão de época — ou, poderíamos dizer, em um paradigma filosófico — que não conhecia a ideia de sujeito. Um mundo cheio de determinismos e, no interior do qual, os sentidos estavam dados.
O sujeito da modernidade, mesmo nos filósofos racionalistas, é livre para construir o próprio conhecimento. Não existe um sentido que lhe seja apresentado como determinante para a organização de sua vida. Ele é auto-nomos. Por certo que a modernidade filosófica não é uma mal-em-si. Destruir as “qualidades” que nos prendiam ao mundo antigo, no sentido de destruição das essências, é um aspecto fundamental para o processo civilizatório. Todavia, há que se ter em mente que essa libertação operada pela modernidade implica mais e não menos responsabilidade — pública — do sujeito/decididor. Dostoievsky, melhor do que todos, compreendeu isso quando perguntava: “Deus morreu, e agora? Podemos tudo?”, ao que já se emendava a resposta: “- não, agora é que não podemos nada”.
Enfim... O juiz do “caso Bernardo” decidiu conforme sua consciência...
O problema, em síntese, nem é o da aparente opção (ou permanência) no paradigma da filosofia da consciência. A questão a ser debatida — e isso venho fazendo amiúde — é a vulgata deste paradigma.
Afirmar que o juiz deve decidir conforme sua consciência, atentando para a realidade ao seu redor, é ressuscitar o velho socialismo processual (para dizer o minus). Veja-se que o juiz do “caso Bernardo” (o menino de Três Passos (RS) que foi morto pela madrasta e pela enfermeira amiga dela, com a possível anuência do pai), ao decidir que o menino ficaria sob a guarda do pai, justificou-se, dizendo: “— decidi conforme minha consciência”. Sim, ele conhecia a realidade da pequena cidade...(hermeneuticamente podemos dizer que esses “sentidos empíricos exsurgidos da imediatez” é que são os mais perigosos, porque provocam uma espécie de “assujeitamento” do intérprete a esse “imediato”, sem questioná-lo e sem suspendê-lo). Veja-se o perigo que é decidir conforme a consciência. Afinal — o que é isto — a consciência de cada um? Este é o busílis da questão! Poderia ele, o juiz, ter decidido que não daria a guarda ao pai. Infelizmente, sua escolha foi ruim (em termos finalísticos, porque com a permanência da guarda, o menino foi morto). Eis aí, pois, a “coisa”: decidir não é o mesmo que escolher, como tenho escrito ad nauseam. Não é e não pode ser. Escolhas sempre podem nos levar a erros. E direito não é filosofia moral, se me entendem.
Por óbvio que (um)a decisão judicial não pode ser compreendida como um fato isolado em um cadeia de eventos — pensemos em Dworkin, que já nos alertou sobre a necessidade de integridade e coerência.
O perigo de tal afirmação — a de que o juiz decide conforme a sua consciência (ou segundo uma instância de fundamentum inconcussum como o ens creatum) — reside na possibilidade de o juiz valer-se, por exemplo, de argumentos metajurídicos criados ad hoc para legitimar sua decisão, que segundo “sua consciência” deveria apontar em certa direção (e que talvez pudesse ser diferente dependendo do juiz ou do humor do mesmo juiz naquele dia)  para mitigar as consequências indesejáveis de sua decisão. Ou o juiz valer do conhecimento empírico “da realidade ao seu redor”...
Se acreditarmos nisso, teremos que passar a prestar atenção no que o juiz come, para que time torce, etc. Isso significa(ria) admitir que o fato de o juiz, quando pequeno, não ter ganhado uma bicicleta no Natal pode(ria) proporcionar — hoje — uma decisão X em lugar de y. Ora, ora. Outro dia vi uma pesquisa dando conta de que os juízes de Israel liberam mais acusados (réus presos) logo depois do café da manhã e são mais rigorosos antes do almoço. Ora, isso apenas prova que o juízes precisam se alimentar melhor... e que o Tribunal de Israel precisa colocar uma nutricionista na vida desses juízes (ironia, é claro!). Se uma decisão depender da fome ou de algo correlato, estamos lascados, para usar uma linguagem mais simples. Se dependermos desse modo de escolhas, podemos dizer: Fracassamos. Fechemos as Faculdades, paremos de escrever livros. E passemos a estocar comida...para dar uma parte da ração aos tais juízes que são mais rigorosos perto do almoço!
Por fim — e sempre ressalvando a importância do entrevistado e a relevância de suas críticas ao imaginário jurídico lato sensu (em boa parte com elas estou de acordo) — é inegável que é preciso resgatar a ideia de verdade na decisão judicial, e neste ponto o entrevistado está absolutamente correto. A descrença no conceito de verdade, seja moderna, negando sua objetividade, ou pós-moderna, negando sua existência, tem repercussões teóricas perigosíssimas para a teoria do direito. No programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos (Capes nota 6, máxima do ranking) mantemos um grupo de pesquisa com 15 integrantes (entre alunos e professores) que estudam esse tema.[1]
O problema surge nas soluções para este dilema. Na grande maioria das vezes, a resposta mira no padre e acerta na igreja. Contra a rigidez objetivista se aposta no voluntarismo niilista, e o contrário também é verdadeiro.

[1] Um dos pontos fulcrais, por exemplo, é que, para os sofistas, o problema da verdade estava no âmbito retórico, principalmente. Na modernidade, o problema é outro, metafísico. A necessidade de objetividade no conhecimento deslocou a fonte dos sentidos da coisa para o sujeito. Nesse sentido, ver o meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 2013. 
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2014

Direitos metaindividuais não são heterogêneos

Direitos metaindividuais não são heterogêneos

Os direitos metaindividuais, ou coletivos em sentido amplo, podem ser entendidos como o gênero, do qual fazem parte os direitos difusos, os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos, conforme previsão na Lei 8.078/1990, artigo 81, parágrafo único, incisos I, II e III (Código de Defesa do Consumidor) e na Lei 7.347/1985, artigo 1º, inciso IV, e 21 (Lei da Ação Civil Pública)[1].
Os mencionados direitos transindividuais são aptos a serem tutelados, assim, por meio de ação civil pública ou ação coletiva.
Os direitos difusos são conceituados como “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato” (art. 81, parágrafo único, inciso I, da Lei 8.078/1990).
No direito difuso, quanto ao aspecto subjetivo, seus titulares são pessoas indeterminadas; quanto ao aspecto objetivo, o objeto do direito (bem jurídico) é indivisível[2]. Nessa modalidade de direitos coletivos, um mesmo fato dá origem ao direito difuso, com as referidas características.
A indivisibilidade do bem jurídico é facilmente constatada, pois basta uma única ofensa para que todos os titulares do direito sejam atingidos. Do mesmo modo, a satisfação do direito beneficia a todos os titulares indeterminados ao mesmo tempo.
No âmbito trabalhista, pode-se exemplificar com a hipótese de pretensão no sentido de que o ente público realize concurso público para a admissão de servidores e empregados públicos, o que envolve interesse de toda a sociedade.
Os direitos coletivos (em sentido estrito), por sua vez, são definidos como “os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (art. 81, parágrafo único, inciso II, da Lei 8.078/1990).
O objeto dos referidos direitos é indivisível (aspecto objetivo)[3], tendo como titular um agrupamento de pessoas, as quais são determináveis (aspecto subjetivo), pois serão todas aquelas que constituem o grupo. Por isso se verifica a “relação jurídica base”, que liga todas as pessoas inseridas no grupo, categoria ou classe[4].
No campo trabalhista, cabe mencionar a hipótese em que certa empresa utiliza substância insalubre em seu ambiente de trabalho, o que causa prejuízo à saúde do grupo de empregados que ali presta serviços.
Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, são os “decorrentes de origem comum” (art. 81, parágrafo único, inciso III, da Lei 8.078/1990).
Deve-se esclarecer que os mencionados direitos são, em sua essência, individuais[5]. Por consequência, possuem titulares determinados e objeto divisível. A particularidade está em que muitas pessoas são detentoras, cada uma delas, de direitos individuais substancialmente iguais (podendo cada titular ter determinadas particularidades não exatamente equivalentes perante os demais). Ainda assim, na essência, os direitos são os mesmos, daí serem “homogêneos”, justificando a possibilidade de serem reunidos para a tutela por meio da mesma ação coletiva, ganhando, assim, configuração metaindividual, pois envolvem grupos de pessoas numa mesma situação.
Essa homogeneidade de direitos decorre da “origem comum”. Como se sabe, a origem dos direitos subjetivos são os fatos[6]. Assim, direitos homogêneos são aqueles direitos subjetivos que decorrem dos mesmos fatos.
Efetivamente, há diversas situações em que, a partir de um mesmo fato lesivo, várias são as pessoas atingidas de maneira uniforme, homogênea. Por isso, essas pessoas passam a ser titulares, simultaneamente, de direitos subjetivos substancialmente iguais, homogêneos. Tendo em vista essa particularidade, o sistema processual prevê a aplicabilidade dos instrumentos pertinentes à tutela jurisdicional metaindividual, com o objetivo de defendê-los de maneira mais célere e eficiente.
Ainda na esfera trabalhista, pode-se exemplificar com situação em que a existência de substância insalubre no local de trabalho gera aos empregados da empresa a pretensão de recebimento do adicional de insalubridade.
Portanto, a mesma situação de fato pode dar origem a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, conforme a causa de pedir e o pedido que são apresentados na demanda.
Apesar do acima exposto, deve-se frisar que, quando o caso envolve questões nitidamente individuais, que dependem do exame de cada uma das hipóteses concretas, com ausência de possíveis questões comuns, ou mesmo quando as questões particulares prevalecem sobre as comuns, na realidade, não se observa a presença de direito individual homogêneo.
Nesse enfoque, segundo esclarece Sergio Pinto Martins: “No reconhecimento de vínculo de emprego em ação civil pública não há interesse ou direitos individuais homogêneos, pois as circunstâncias de fato podem não ser as mesmas: cada caso é um caso. [...] Não se pode declarar na ação civil pública que todos os trabalhadores são empregados ou que devam ser anotadas as Carteiras de Trabalho de todos trabalhadores, pois os interesses ou direitos são individuais em relação a cada trabalhador, mas não são homogêneos. Há necessidade de prova individual para cada trabalhador envolvido. Os trabalhadores não são individualizados na ação civil pública nem o Ministério Público do Trabalho sabe quem são eles individualmente. Pode não existir a mesma situação de fato para cada trabalhador. [...] Nos casos em que se discute vínculo de emprego, o Ministério Público do Trabalho não tem legitimidade para propor ação civil pública contra as empresas [...], pois a questão é individual e não coletiva” (destaquei)[7].
Na jurisprudência, cabe destacar o seguinte julgado:
“SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DECLARAÇÃO DE RELAÇÃO DE EMPREGO. DIREITO INDIVIDUAL SEM DIMENSÃO COLETIVA. INADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NECESSIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DOS SUBSTITUÍDOS. A declaração da existência do vínculo de emprego pressupõe a investigação da situação pessoal de cada um dos substituídos, já que para a efetividade do provimento é imprescindível averiguar o concurso dos requisitos do artigo 3º da Consolidação. A situação não envolve direito individual homogêneo, que, além da origem comum, pressupõe a prevalência das questões comuns sobre as questões individuais de cada substituído. A hipótese é de direito individual puro ou heterogêneo, que não tem dimensão coletiva porque as questões individuais prevalecem sobre as questões comuns. Ao contrário do que ocorre com o direito individual homogêneo, em que a predominância das questões comuns conduz a situação de uniformidade que permite a emissão de provimento genérico e torna desnecessária a identificação dos substituídos até o momento de liquidação da sentença, a efetividade da declaração da existência de vínculo de emprego exige a prévia identificação dos substituídos, já que a eliminação da crise de certeza a que se destina o provimento declaratório depende da cognição de questões individuais de cada um dos trabalhadores. Sem a identificação dos substituídos, o pedido é indeterminado e, de consequência, sua apreciação conduziria a provimento desprovido de qualquer utilidade. Apelo da entidade sindical ao qual se nega provimento para o fim de confirmar a extinção do processo sem resolução do mérito inadequação da via processual.” (TRT/SP – 2ª Reg., 6ª T., RO, Processo nº: 00114-2007-081-02-00-8, Acórdão nº: 20080351217, Rel. Des. Salvador Franco de Lima Laurino, DOE/SP 02.05.2008).
Como se pode notar, a prevalência de questões individuais afasta a possibilidade da tutela dos mencionados direitos de forma metaindividual, inclusive por ser inviável, bem como inadequado e incorreto, o tratamento de direito individual puro, ou nitidamente heterogêneo, de modo coletivo[8].

[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 894-896.
[2] Cf. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 26.
[3] Cf. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública, cit., p. 54.
[4] Cf. WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 803. “Essa relação jurídica-base é a preexistente à lesão ou ameaça de lesão do interesse ou direito do grupo, categoria ou classe de pessoas. Não a relação jurídica nascida da própria lesão ou da ameaça de lesão”.
[5] Cf. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública, cit., p. 60: “Eles são verdadeiros interesses individuais, mas circunstancialmente tratados de forma coletiva” (destaques do original).
[6] Cf. LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 8, t. 1, p. 16: “No direito material, a causa donde brota o direito subjetivo, e, portanto, a relação jurídica, é o fato ou o ato jurídico material: o contrato, o ato ilícito, o nascimento, a morte, o testamento etc.”.
[7] Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 609.
[8] Cf. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Interesses individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 21-22 (fazendo referência a GRINOVER, Ada Pellegrini. Da “class action for damages” à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, n. 20): “Com efeito, sem que se conclua pela prevalência do coletivo sobre o individual, a tutela coletiva de interesses individuais de origem comum não se viabiliza. Torna-se ineficaz. Apresenta-se – acrescentaria – como um sistema processual indevido. Efetivamente, prevalecendo aspectos individuais sobre o coletivo, diante, v.g., do reduzidíssimo número de envolvidos e da especial consequência suportada por cada um, a tutela individual, feita segundo as regras individualistas do Código de Processo Civil, mostrar-se-ia mais eficaz, proporcionando com a dedução de pedidos certos, aptos à satisfação da situação fática reclamada por cada um dos interessados, tutela jurisdicional mais adequada, mais rápida e mesmo mais econômica. [...] Numa palavra, aspectos coletivos devem sobressair em relação a situações individuais para que a tutela coletiva de interesses individuais se justifique” (destaquei).
Gustavo Filipe Barbosa Garcia é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário, advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho.
Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2014

terça-feira, 13 de maio de 2014

É cabível no processo do trabalho alienação do bem penhorado por iniciativa particular

A execução trabalhista é regida pelo Direito Processual do Trabalho. Mas, eventuais omissões deste podem ser supridas pela Lei de Execução Fiscal, Lei nº 6.830/1980, podendo, ainda, o Código de Processo Civil ser aplicado subsidiariamente. Sendo assim, a 3ª Turma do TRT mineiro entende ser cabível no Processo do Trabalho a alienação do bem penhorado por iniciativa particular. Por esse fundamento, expresso no voto do desembargador Luiz Otávio Linhares Renault, a Turma deu provimento ao agravo de petição interposto pelo trabalhador para autorizar a venda do imóvel penhorado por iniciativa particular. Trata-se de um processo de alienação promovida pelo credor, por intermédio de corretores credenciados, mais eficiente que a praça pública e com possibilidades de obtenção de melhores preços, já que os imóveis à venda são divulgados e recolhidas propostas dos interessados.
O processo já estava na fase de execução quando o ex-empregado pediu ao Juízo de 1º Grau que fosse permitida a alienação do bem penhorado da executada por iniciativa particular. Entretanto o pedido foi indeferido, sob o argumento de que esse procedimento não seria aplicável no Processo do Trabalho, por haver disposição expressa na CLT sobre o tema.
Ao julgar o recurso do trabalhador, o relator deu razão a ele, destacando que a alienação por inciativa particular, prevista no artigo 685-C do Código de Processo Civil, pode contribuir para que o crédito em execução seja satisfeito de forma mais rápida, além de atender ao princípio da economia processual. O desembargador destacou ser este o entendimento do TRT da 3ª Região, disposto no artigo 1º do Provimento nº 2 de 02/08/2012: "Nas execuções trabalhistas, tendo sido esgotada a possibilidade de o exequente adjudicar o bem penhorado, móvel ou imóvel, poderá haver alienação por sua própria iniciativa ou por intermédio de corretor, devidamente credenciado no respectivo Conselho, se se tratar de corretor de imóveis, e perante a autoridade judiciária, sempre sob o comando do Juízo".
De acordo com o relator, além do impulso executório de ofício do Juízo, a parte exequente deverá fornecer todos os meios concretos para a satisfação do crédito em execução. Portanto, é perfeitamente cabível a alienação do bem penhorado por iniciativa particular, tendo em vista a necessidade de satisfação do crédito para a efetividade do comando judicial.
Dessa forma, a Turma deu provimento, nesse aspecto, ao agravo de petição do exequente, e determinou a realização de alienação por iniciativa particular do imóvel penhorado, nos termos do artigo 685-C do Código de Processo Civil e do Provimento nº 2/2012 do TRT da 3ª Região.
Fonte: TRT3ª Região

Ausência de prejuízo leva Terceira Turma a afastar nulidade decretada por suspeita de patrocínio infiel

Antes de considerar nulo um ato processual formalmente defeituoso, é necessário investigar se, além de não ter alcançado o objetivo ao qual se destinava, ele causou efetivamente prejuízo a uma das partes.
 
Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o recurso especial de um arrematante contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
 
O tribunal paulista manteve a decisão do juízo de primeira instância que considerou nula a arrematação de três imóveis integrantes de massa falida e destituiu do cargo o síndico representante da massa.
 
O TJSP entendeu que se tratava de um caso de patrocínio infiel, pois o mesmo advogado que defendeu os interesses da massa atuou posteriormente em favor do arrematante.
 
O leilão
 
Durante o processo de falência de uma sociedade, três imóveis foram leiloados. O auto de arrematação foi finalizado com a assinatura da juíza, do arrematante e do leiloeiro. Ao verificar que seu sobrenome havia sido grafado incorretamente, o arrematante constituiu para requerer a correção do erro o mesmo advogado que havia atuado em favor da massa falida.
 
A promotora de Justiça que atuava na primeira instância se manifestou contra o ato de arrematação, sob a alegação de patrocínio infiel. Mesmo com a afirmação do representante da massa falida de que a arrematação não havia gerado prejuízo aos credores, o juízo decretou a nulidade do ato.
 
De acordo com a ministra Nancy Andrighi, a ciência processual contemporânea recomenda que somente seja decretada a nulidade de atos processuais quando se verificar a existência de prejuízo.
 
Segundo a relatora, a doutrina considera que um ato processual não será nulo apenas por ser formalmente defeituoso. Para a doutrina, um ato será nulo quando, cumulativamente, “se afastar do modelo formal indicado em lei, deixar de realizar o escopo ao qual se destina e, por esse motivo, causar prejuízo a uma das partes”, afirmou a ministra.
 
Sem objeções
 
Andrighi destacou que a existência de prejuízo somente pode ser verificada se o defeito constatado impedir que o ato atinja a finalidade à qual se destina. No caso julgado, nenhum dos interessados na arrematação dos bens apresentou objeção alegando eventual prejuízo.
 
A relatora mencionou que o Código de Processo Civil, em seu artigo 694, considera a arrematação perfeita, acabada e irretratável quando o auto for assinado pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro.
 
Nancy Andrighi verificou que o único ato praticado pelo advogado contratado pelo recorrente foi protocolar a petição solicitando a retificação da grafia do nome no auto de arrematação. “A atuação do causídico neste processo, portanto, foi posterior à perfectibilização da arrematação”, afirmou.
 
Para a ministra, “se a hasta pública não apresentou vício em sua estrutura íntima, e tampouco se detectou a existência de defeito anterior à sua realização, não se pode invalidar a arrematação ocorrida com fundamento em causa superveniente, e que com ela sequer se relaciona diretamente”.
 
A Turma ressaltou que a invalidade de um ato não pode ser decretada a partir do exame de elementos posteriores à sua conformação. Por essas razões, os ministros reconheceram a validade da arrematação.
 
Esta notícia se refere ao processo: REsp 1422926
 
Fonte: STJ

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

 
Em recentes acontecimentos que tiveram lugar no território nacional, só possíveis no incrível realismo fantástico tupiniquim, tomamos conhecimento de que um número considerável de brasileiros não viram mal algum em trucidar, em linchamento público, uma pobre dona de casa, vizinha dos justiceiros, mãe de duas belas crianças, suportados na suspeita improvável e logo após desmentida de que a vítima, identificada pelos carrascos através de retrato falado de alguns anos, fosse praticante de uma mal explicada seita onde se sequestravam crianças para rituais de magia negra. É bom que se diga que a morta, sacrificada em holocausto à ignorância que pontifica em boa parte de nossa sociedade cordial, portava no momento do justiçamento público uma Bíblia, pois voltava, segundo o que divulgaram, de um culto evangélico. Quase no mesmo dia, torcedores de um grande time nordestino, confirmando a barbárie em que se transformaram os estádios brasileiros, revolucionaram a conhecida crueldade que informa a nossas “bem comportadas” torcidas organizadas, promovendo o arremesso de um vaso sanitário sobre a cabeça de torcedores rivais, matando um pobre e indefeso transeunte. Dias antes, duas mulheres teriam confessado, segundo a imprensa, a morte de uma criança de 11 anos.
Como todos sabem, não são eventos isolados. São apenas os exemplos mais próximos. Portanto, não podemos nos enganar: numa sociedade como a brasileira, sem dúvida das mais diversificadas do mundo (tanto do ponto de vista racial, como econômico, cultural, educacional e político), vai se tornando cada vez mais improvável que alguma instituição (igreja, estado, educação ou mesmo a família) tenha a capacidade de integrar minimamente os seus cidadãos. E ninguém quer compartilhar a responsabilidade pelo outro e pela esfera pública. A impressão que se forma é a de que somos todos campeões de direitos, mas temos incrível dificuldade de administrar os compromissos que os deveres correspondentes a esses direitos nos impõem. Mais do que isso, a sociedade não quer se vincular a valores mínimos que possam coordenar minimamente seu comportamento.
O mal não é só nosso, não obstante ganhe aqui notas de paroxismo. A ideia de que exista um fundamento último, uma ética essencial a atravessar a moral, a política e o Direito, com o qual poderíamos, em cada caso concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela melhor proposta política, ou sobre a melhor conduta no plano moral, ou sobre a melhor decisão no plano jurídico, funda-se na mesma perspectiva de uma mundo governado por uma razão única, em que, existindo boa vontade, poderíamos divisar sempre, e de forma indiscutível, o que é certo e o que é errado. A partir do ponto de vista que nos permitiria a representação da única resposta correta, torna-se possível moralizar a política e até mesmo o Direito. Assim se mostraria possível perscrutar no voto, ou na opinião, ou na decisão divergente, não apenas o desacordo do olhar, mas a imoralidade de não pensar corretamente, isto é, “de não pensar como nós, os intelectualmente capacitados e moralmente incorruptíveis, pensamos”. Contudo, e esse é o lado positivo, a realidade atual não é composta de uma verdade única. Esse é um mundo, com certeza, que não existe mais.
I. O lado bom da tolerância e da diversidadeComo bem sintetizado por Kundera, a verdade está mais para uma narrativa ambígua e insegura dos personagens de um romance do que para a certeza e a univocidade de uma teoria totalizante que se pretenda impor de fora da vida e da história pela autoridade indiscutível de algum filósofo predestinado (cito)[1]: “Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza, isso não exige menos força. (...) O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado. Nesse ‘ou — ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”
O mundo mudou. As ações morais já não podem contar com um ponto de referência certo e igualmente vinculativo em tudo e para todos. Com a incrível diferenciação funcional das complexas sociedades contemporâneas, os seus subsistemas (direito, política, imprensa, economia etc) passam a autogovernar-se por meio de códigos próprios e autônomos, que prescindem de critérios morais externos de uniformização. No quadro de uma moral fragmentada e cada vez mais sem capacidade de comunicar-se com os outros subsistemas (Niklas Luhmann)[2], a mesma conduta pode encontrar diferentes coeficientes de legitimação. O servidor público que se transformou em fonte de um jornalista para falar e expor toda a verdade de um fato tem uma conduta positiva no âmbito do subsistema da imprensa e da informação, mas, ao romper o sigilo profissional (artigo 154, do CP), ou quebrar o segredo de justiça de uma interceptação telefônica (artigo 10, da Lei 9.296/96), pratica uma conduta negativa no subsistema do direito e pode, inclusive, ser punido por isso.
II. As dificuldades jurídicas e morais da fragmentação dos valoresNum mundo mais tolerante e diversificado, já não temos uma moral que nos assegure a unidade de pensar e de agir, o que é bom, mas nos impõe seriíssimos desafios. Como será possível a coordenação (inclusive jurídica) de condutas com base em parâmetros comuns numa sociedade de valores tão fragmentados? E, mesmo num quadro de fragmentação moral, muito embora exigíveis limites mínimos, já necessários à própria sobrevivência da sociedade, como dizer e impor o que é certo e errado a grupos de pessoas cuja miséria (indigência) é menos econômica do que cultural e ética?
Antes, as condutas morais podiam, por exemplo, fundamentar-se na figura de Deus e impor-se pela revelação dos comandos que partiam do amor divino, ou do medo provocado pela ira divina[3]. Hoje, contudo, a moral de fundo cristã perdeu, em todo o Ocidente, para o bem ou para o mal, a sua força socialmente vinculativa. A impressão que se tem é que a própria comunicação não conseguirá superar sua contingência imanente e as pessoas estarão verdadeiramente sozinhas. De fato, como será possível duas pessoas se comunicarem em um universo de valores, regras e comportamentos, além de discursos e semânticas (linguagens) tão diversificados? A questão, pois, é saber como a sociedade contemporânea poderá lidar com essa drástica fragmentação moral e, já agora, até mesmo de sua linguagem[4].
Parece mesmo duvidoso, como bem deduzido por Detlef Horster, que diante de uma tal fragmentação de valores, exista “um ponto de referência comum para todas as condutas e regras morais e, mais do que isso, para todas as regras e decisões jurídicas, que possa valer, como base e condição contextual, para a interação dos indivíduos que vivem em sociedade”. Em uma sociedade em que se idolatra o individualismo, o normal é que não exista mesmo um ponto comum de consenso como nas comunidades mais antigas, baseadas na revelação de origem cristã[5]. Como se viu, isso é bom e ao mesmo tempo ruim.
Não se pode mais partir, numa sociedade radicalmente diferenciada em suas funções de “uma identidade abrangente (umfassender Identität ) do indivíduo com a sociedade”. Por isso, ainda segundo Detlef Horster, “A não-identidade do indivíduo e sociedade reflete-se na diversificação do direito e moral, de uma forma que era impensável à época de Sócrates, já que para ele (consoante o que podemos intuir do seu díalogo com Criton 53) a virtude individual e o direito da comunidade eram um e a mesma coisa, e uma violação ao direito seria também ilegítimo e indigno (unanständig) do ponto de vista moral” [6].
Não parece existir hoje qualquer instituição, como a Igreja na Idade Média, que consiga ligar as pessoas de uma mesma comunidade, ao longo de suas vidas, por intermédio de valores ou de objetivos comuns. Mais do que nunca, sabemos da existência de outros territórios, de outras visões de mundo, de outros valores e até mesmo de linguagens e de comportamentos ao mesmo tempo diferentes, mas também legitimados. As pessoas estão livres para associarem-se a grupos, valores e comportamentos, permanecendo vinculadas a eles enquanto estiverem satisfeitas.
Resumindo, ao fim a sociedade torna-se vítima de suas próprias virtudes: quanto mais tolerante, mais fragmentada, desunida e, infelizmente, no nosso caso, mais violenta.
Governos e instituições, aí incluído o Poder Judiciário, desorientam a comunidade com mensagens contraditórias, subtraindo da própria ordem jurídica a capacidade — sua principal característica — de estabilizar expectativas e comportamentos. Não é de surpreender, pois, que sejamos confrontados cotidianamente com comportamentos e valores que julgávamos inexistentes ou extintos da história de nossa cultura (linchamentos e todos os tipos perversos de violência contra a pessoa). Nada indica que esse estado de coisas encontrará um adversário à altura, sobretudo, se continuarmos insistindo com a ideia de que o mal está exclusivamente no Estado, e não na sociedade como um todo; e com o dogma de que o problema é a qualidade dos agentes públicos brasileiros, e não de formação e de comportamento de todos os indivíduos que compõem a sociedade, estejam ou não no Estado. Enquanto esses (auto)enganos servirem de alívio à consciência e à hipocrisia nacional, todos nós teremos uma ponta de responsabilidade por acontecimentos tão nefastos como aqueles que introduziram o presente artigo.

[1] Milan Kundera. A arte do romance. Tradução Teresa Bulhões. Carvalho da Fonseca. — São Paulo : Companhia das Letras, 2009, p. 14/15.
[2] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[3] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[4] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), S. 367 – 389.
[5] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 1 (367 – 389).
[6] Detlef Horster, Recht und Moral: Analogie, Komplementaritäten und Differenzen. Zeitschrift für philosophische Forschung, 51. Jg. (1997), p. 2 (367 – 389).
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2014

Erro em informação de site de tribunal impõe devolução de prazo

Erro em informação de site de tribunal impõe devolução de prazo

 
Ainda que os dados disponibilizados pela internet não substituam a publicação oficial, a divulgação no site do tribunal de informações erradas sobre andamento processual impõe a devolução de prazo. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, por ser fonte oficial, as informações processuais divulgadas não podem confundir as partes, induzindo a erros e conduzindo à perda de oportunidades.
Esse foi o entendimento aplicado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso especial interposto pelo estado de Mato Grosso do Sul contra acórdão do Tribunal de Justiça local, que não autorizou a devolução do prazo recursal apesar de erro na divulgação de informações processuais pela internet.
O caso envolveu a interposição de embargos à execução. De acordo com o estado de Mato Grosso do Sul, o erro publicado no sistema de informações processuais teria sido a causa de os embargos serem considerados intempestivos, isto é, apresentados fora do prazo legal. 
O TJ-MT manteve a decisão monocrática que acolheu a preliminar de intempestividade. Segundo o acórdão, “a intempestividade dos embargos à execução é matéria de ordem pública, cognoscível de ofício e em qualquer grau de jurisdição, por não estar sujeita à preclusão, e o andamento processual encartado pelo apelado tem caráter meramente informativo e não vale como certidão”. 
O ministro Humberto Martins, relator, reconheceu que a antiga jurisprudência do STJ considerava que erro na divulgação das informações processuais via internet, dado seu caráter meramente informativo, não autorizava a devolução de prazo. No entanto, Martins observou que esse entendimento foi superado pela Corte Especial.
Segundo o ministro, ficou consolidado que, "ainda que os dados disponibilizados pela internet sejam meramente informativos e não substituam a publicação oficial (fundamento dos precedentes em contrário), isso não impede que se reconheça ter havido justa causa no descumprimento do prazo recursal pelo litigante (artigo 183, caput, do Código de Processo Civil), induzido por erro cometido pelo próprio tribunal".
“O entendimento adotado no acórdão recorrido encontra-se em desacordo com a recente jurisprudência do STJ. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para determinar o retorno dos autos ao Tribunal de Justiça, a fim de que verifique a admissibilidade dos embargos à luz da atual orientação do STJ e, sendo o caso, prossiga com o julgamento de mérito”, concluiu o relator. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Clique aqui para ler o acórdão.REsp 1.438.529
 
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2014

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Em retratação, STJ aplica definição de índice de correção do balanço de 1989 (Plano Verão)

Em retratação, STJ aplica definição de índice de correção do balanço de 1989 (Plano Verão)

 
A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao aplicar entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em repercussão geral, assegurou o direito de uma empresa a utilizar o índice de IPC de 42,72% em janeiro de 1989 e o reflexo lógico de 10,14% em fevereiro de 1989 como indexadores da correção monetária das demonstrações financeiras do balanço relativo ao ano-base de 1989. 

A mudança tem reflexo na base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSSL). O relator do recurso especial foi o ministro Mauro Campbell Marques.

A argumentação das empresas que recorreram à Justiça quanto ao indexador era que, quando da transição entre a OTN e o BTN, houve um significativo expurgo da parcela real de correção monetária apurada para os meses de janeiro e fevereiro de 1989, utilizada para a fixação do valor da OTN empregada para a correção monetária das demonstrações financeiras do ano-base de 1989 e conversão em BTN. Em consequência, houve aumento do valor do tributo (IRPJ e CSSL) cobrado das empresas.

Repercussão geral

O STF reconheceu a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 30 da Lei 7.730/89 e do artigo 30 da Lei 7.799/89. Essas normas veiculavam a indexação da correção monetária das demonstrações financeiras no período-base de 1989, para efeito da apuração do IRPJ e CSSL, no âmbito do Plano Verão. O entendimento do STF foi adotado sob repercussão geral (RE 242.689).

Assim, ao julgar o recurso especial na Segunda Turma, o ministro Campbell aplicou o juízo de retratação previsto no artigo 543-B, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil (CPC). Por conta do julgamento do STF, ele considerou retirados do mundo jurídico os dispositivos declarados inconstitucionais, e concluiu que se fazia necessária a revisão da jurisprudência do STJ.

Na hipótese dos autos, o ministro entendeu que a correção monetária das demonstrações financeiras no período-base 1989 deverá tomar como parâmetro os termos da legislação revogada pelo Plano Verão. O magistrado ponderou que “até 15 de janeiro de 1989, a OTN já era fixada com base no IPC, e somente no próprio mês de janeiro, por disposição específica da Lei 7.799 (artigo 30, declarado inconstitucional), seu valor foi determinado de forma diferente (NCz$ 6,92). Também a BTN criada passou a ser fixada pelo IPC”, disse.

Sendo assim, o ministro relator concluiu que deverá ser aplicado o IPC para o período, como índice de correção monetária, conforme o artigo 6º, parágrafo único, do Decreto-Lei 2.283/86; o artigo 6º, parágrafo único, do Decreto-Lei 2.284/86; e o artigo 5º, parágrafo 2º, da Lei 7.777/89. Os índices aplicáveis a título de IPC são 42,72% em janeiro de 1989 e 10,14% em fevereiro de 1989, já estabelecidos pela jurisprudência do STJ.

Esta notícia se refere ao processo: REsp 1115895

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...