quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

FALTA AOS TRIBUNAIS FORMULAÇÃO ROBUSTA SOBRE PRECEDENTES

Falta aos tribunais formulação robusta sobre precedentes

 
Sempre tivemos dificuldades em entender a afirmação “definitiva”, de grande parcela dos pensadores pátrios, de que os enunciados de súmula seriam pronunciamentos dos Tribunais vocacionados à abstração e à generalidade, tal qual as leis, e de que sua aplicação poderia se dar desligada dos casos (julgados) que deram base à sua criação.[1]
Outra assertiva difícil de digerir é a de que o seu uso poderia ser comparado ao dos precedentes no common law, especialmente pela percepção de que lá é vital a ideia de que os tribunais não podem proferir regras gerais em abstrato.[2] É dizer, em países de common law, os precedentes não “terminam a discussão”, são sim, um principium[3]: um ponto de partida, um dado do passado, para a discussão do presente.
Aqui entre nós, a jurisprudência defensiva esforça-se para, logo, formatar um enunciado de Súmula (ou similar) a fim de se encerrar o debate sobre o tema, já que, no futuro, o caso terá pinçado um tema que seja similar ao enunciado de Súmula e, então, a questão estará resolvida quase que automaticamente. No “common law”, ao invés, para que um precedente seja aplicado há que se fazer exaustiva análise comparativa entre os casos (presente e passado, isto é, o precedente), para se saber se, em havendo similitude, em que medida a solução do anterior poderá servir ao atual.
Aqui não pretendemos negar que o uso de enunciados de súmula (e de ementas) se dê no Brasil, equivocadamente, como se lei fossem. Seguindo o mesmo raciocínio de generalidade e de aplicação das normas editadas pelo Parlamento. É como se esses enunciados jurisprudenciais se desgarrassem dos fundamentos determinantes (ratione decidendi ou holding) que os formaram. Não se nega também as razões históricas da criação desses enunciados na década de 1960, com inspiração nos assentos portugueses.
O que se critica é que após todos os avanços da teoria do direito e da ciência jurídica, se aceite a reprodução, mesmo sem se perceber, de uma peculiar aplicação do positivismo normativista da jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz),[4] que defendia a capacidade do Judiciário criar conceitos universais; um sistema jurídico fechado que parte do geral para o singular e que chega a “esse” geral com a negligência às singularidades. Perceba-se: nos séculos XVIII e XIX acreditava-se que o legislador poderia fazer normas “perfeitas”, gerais e abstratas de tal forma que seriam capazes de prever todas as suas hipóteses de aplicação. Descobrimos no século XX que isso não é possível (que, e.g., por detrás de toda pretensa objetividade da lei estavam os preconceitos daquele que a aplicava). Agora, em fins do século XX e início deste apostamos, mais uma vez, no poder da razão em criar regras perfeitas, apenas que agora seu autor não é mais (só) o legislador mas (também) o juiz.
Em assim sendo, apesar de se tematizar com recorrência nosso peculiar movimento de convergência com o common law, chamado pelo amigo Lenio Streck de ‘commonlização’[5], continuamos insistindo nessa equivocada formação e aplicação do direito jurisprudencial.[6]
Falta aos nossos Tribunais uma formulação mais robusta sobre o papel dos “precedentes”. Se a proposta é que eles sirvam para indicar aos órgãos judiciários qual o entendimento “correto”, deve-se atentar que o uso de um precedente apenas pode se dar fazendo-se comparação entre os casos — entre as hipóteses fáticas —, de forma que se possa aplicar o caso anterior ao novo.
E essa assertiva deve também valer para os enunciados de súmulas, é dizer, o sentido destas apenas pode ser dado quando vinculadas aos casos que lhe deram origem.
Nesses termos é se louvar o texto do artigo 520, parágrafo 2º, do CPC projetado ao determinar que “é vedado ao tribunal editar enunciado de súmula que não se atenha às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.”
Devemos perceber (o quanto antes) que qualquer enunciado jurisprudencial somente pode ser interpretado e aplicado levando-se em consideração os julgados que o formaram. Ele não surge do nada. Não há grau zero de interpretação. Nestes termos, sua aplicação deve se dar de modo discursivo, e não mecânico, levando-se a sério seus fundamentos (julgados que o formaram) e as potenciais identidades com o atual caso concreto. Nenhum país que leve minimante a sério o direito jurisprudencial pode permitir a criação e aplicação de súmulas e ementas mecanicamente.
Enquanto não mudarmos essa práxis, continuaremos a trabalhar com pressupostos e com resultados muito perigosos e equivocados. Estaremos inventando uma nova forma de legislação advinda de um novo poder, a juristocracia, que não apenas viola princípios constitucionais (como a separação de poderes, contraditório, ampla defesa e devido processo legal), mas que também padece dos mesmos problemas que a crença absoluta na lei: o “problema” da interpretação. Sim, porque, por mais que se tente acabar com a discussão a partir de um enunciado de Súmula, o fato é que este é um texto e, como tal, possui o mesmo pathos da lei: como não é possível antecipar todas as hipóteses de aplicação, uma e outra estão sujeitas ao torvelinho da práxis que evocará interpretação.

[1] Em sendo assim, os Tribunais Superiores poderiam possuir um grande (e crescente) número de obstáculos ao seu acesso, uma vez que não estão ali para “corrigir a injustiça da decisão”, mas somente para garantir a autoridade da Constituição/lei federal e a uniformidade da jurisprudência. Frente àqueles casos que conseguem ultrapassar a barreira da admissibilidade, os Tribunais Superiores não estariam preocupados com o caso em si, que seria abstraído de suas características de caso concreto e visto apenas a partir do tema de que se trata, a fim de, se valendo do caso (que é irrelevante), alcançar aqueles objetivos acima elencados.
[2] HUGHES, Graham. Common Law systems. MORRISON, Alan. Fundamentals of american law. New York.: Oxford University Press, 1996. p. 19.
[3] RE, Edward D. Stare Decisis. Revista Forense, v. 327, p. 38.
[4] PUCHTA, Georg Fredrich. Lehrbuch der Padekten. Leipzig: Berlag von Johann Ambrolius Barth, 1838.
[5] STRECK, Lenio. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC! Acessível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-21/lenio-streck-agora-apostar-projeto-cpc.
[6] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do direito jurisprudencial: alguns dilemas. Revista do TST. Brasília. V. 79. Abr.- Jun. / 2013. Acessível em: http://pt.scribd.com/doc/176023132/Dierle-Nunes-e-Alexandre-Bahia-Formacao-e-aplicacao-do-Dir-Jurisprudencial-Revista-do-TST
Alexandre Bahia é advogado, doutor em Direito Constitucional pela UFMG e professor adjunto na UFOP e IBMEC-BH.
Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na UFMG e PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2014

ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS NO BRASIL E NO EXTERIOR (PARTE 1)

 

1. IntroduçãoO Direito de Família brasileiro tem-se mostrado bastante receptivo a institutos e figuras dos Direitos Comparado e estrangeiro. Em sendo correto dizer que as bases teóricas clássicas do Direito de Família foram arrasadas após destruição de seu antigo fundamento — a legitimidade —, é também bastante nítida a busca por um novo suporte, embora seja cada vez mais referido o princípio da afetividade.[1]
Ao tempo em que o Direito de Família está em busca de um novo fundamento teórico[2], que corresponda aos profundos câmbios normativos decorrentes da Constituição de 1988 e, com menor intensidade, do Código Civil de 2002, esses novos institutos e figuras surgem por meio de contribuições doutrinárias ou das decisões judiciais, ao exemplo dos chamados “alimentos compensatórios”. E tanto mais polêmicas são essas novas questões quanto nelas se imbrica o problema patrimonial. É o que se observa, por exemplo, no ressarcimento por violação de deveres conjugais ou por abandono afetivo. Nos “alimentos compensatórios”, há uma outra conexão: quando há separação convencional de bens, é possível utilizar essa verba para reequilibrar a situação econômico-financeira dos ex-cônjuges?
São esses interessantes problemas que se terá a oportunidade de discutir nesta e nas próximas colunas, tomando-se por base (a) a jurisprudência, (b) a doutrina nacional e (c) o Direito estrangeiro.
2. O reconhecimento aos alimentos compensatórios no Superior Tribunal de Justiça
2.1. O Caso Collor-RosaneUm dos casos mais importantes para o Direito de Família no ano de 2013 foi o julgamento do recurso especial relativo aos alimentos compensatórios. A despeito do segredo de justiça que envolve o processo, que impediu a página eletrônica do Superior Tribunal de Justiça de divulgar o número do recurso, a situação de fato foi amplamente divulgada nos meios de comunicação, sem qualquer restrição ao nome das partes, a saber: Fernando Affonso Collor de Mello, ex-presidente da República e atualmente senador da República pelo estado de Alagoas, e Rosane Brandão Malta, ex-primeira-dama brasileira.[3]
Como não é possível a consulta aos autos eletrônicos, deve-se confiar no resumo divulgado na página eletrônica do tribunal e dele extrair os elementos descritivos do caso, que foi decidido pela 4ª Turma do STJ, na sessão de 12 de novembro de 2013: [4]
 
a) O senador Fernando Collor e sua ex-mulher Rosane Malta casaram-se no ano de 1984, sob o regime de separação convencional de bens. Eram as segundas núpcias de Fernando Collor e as primeiras de Rosane Malta, que ainda não havia completado 20 anos.
b) Durante o matrimônio, Fernando Collor foi governador do estado de Alagoas e depois eleito presidente da República. Seu mandato foi abreviado em razão do impeachment ocorrido em 1992. O casal manteve-se unido, apesar de diversas crises divulgadas na imprensa, até o ano de 2005. A separação foi litigiosa e cumulada por uma oferta de alimentos por Fernando Collor, no valor de R$ 5,2 mil, a qual foi contestada por Rosane Malta, que pretendia receber R$ 40 mil.
c) A sentença do juízo de primeiro grau, da Justiça alagoana, deferiu a Rosane Malta dois automóveis e R$900 mil em imóveis, além de uma pensão de alimentos no valor de 30 salários mínimos mensais, pagáveis enquanto lhes fossem necessários. A matéria foi devolvida ao Tribunal de Justiça de Alagoas, que, ao apreciar a apelação do ex-marido, “reduziu a pensão mensal para 20 salários mínimos pelo período de três anos, mantendo a sentença no restante”. Houve recurso de embargos infringentes, após o que “o tribunal estadual restabeleceu o valor de 30 salários mínimos e afastou a limitação de três anos”.[5]
d) No STJ, a matéria foi apreciada em Recurso Especial, tendo como argumentos da parte do ex-marido, o fato de que não houve pedido expresso de alimentos compensatórios pela ex-mulher e, por essa razão, o julgamento fora extra petita. Rosane Malta argumentou que ela se casou aos 19 anos e permaneceu casada ao lado do marido por 22 anos, sem que o ex-marido houvesse colocado qualquer bem em seu nome, o que implicaria “abuso de confiança” por parte de Fernando Collor.
e) No julgamento do recurso, entendeu-se que: i) é possível a atribuição de alimentos compensatórios, na hipótese de quebra do equilíbrio econômico-financeiro decorrente da separação; ii) os alimentos devem ser fixados em prazo de três anos, a contar do trânsito em julgado da decisão; iii) dever-se-ia admitir a transferência de bens de um cônjuge a outro, nos termos do quanto estabelecido nas instâncias ordinárias.
Quanto ao direito aos alimentos compensatórios, o relator ministro Antonio Carlos Ferreira não foi acompanhado pelo ministro Marco Buzzi, em cujo voto dissidente se salientou que a transferência de bens seria contrária ao pacto antenupcial.
No que se refere ao temporal de três anos resultou das discussões durante a sessão de julgamento, com o voto prevalente dos ministros Antonio Carlos Ferreira (relator), Luís Felipe Salomão e Raul Araújo, sob o fundamento de que esse tempo seria suficiente para a preparação do alimentando para a nova realidade econômica advinda do fim da pensão e sua eventual preparação para o mercado de trabalho. Foram dissidentes os ministros Marco Buzzi e Isabel Gallotti, para quem seria dificultoso para uma mulher na altura dos 50 anos aprender um ofício e ganhar a vida com seu próprio esforço, especialmente após ter-se casado aos 19 anos e haver dedicado grande parte de sua vida no acompanhamento de seu ex-cônjuge em suas atividades políticas.
2.2. Os alimentos compensatórios e a verba decorrente dos frutos dos bens comuns: Dois outros importantes precedentes do STJ
A) RHC 28.853/RSÉ de se registrar que, antes do julgamento do caso relatado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, no STJ houve um acórdão no qual o problema dos alimentos compensatórios surgiu em um dos capítulos decisórios. Trata-se do RHC 28.853/RS, relatora a ministra Nancy Andrighi e redator par o acórdão o ministro Massami Uyeda, julgado em 3º Turma, no dia 1º de dezembro de 2011, com publicação no DJe de 12 de março de 2012. Subjacente ao recurso, havia uma execução de alimentos, que foram decididos em ação de separação judicial litigiosa. Em uma decisão monocrática, nos autos da ação de separação, fixou-se em favor do cônjuge virago uma “verba (...) qualificada não como alimentar (...) por força dos frutos que lhe cabe (sic) do patrimônio do casal, já que o demandado está na posse e administração dos bens”, no equivalente a 10 dez salários mínimos.
Posteriormente, foi decretada a prisão do ex-cônjuge varão, que não pagava os valores estabelecidos. O juízo de primeiro grau, para esse fim, contrariando a decisão anterior, alterou a qualificação da “verba não alimentar” e declarou que essa se constituía em “obrigação alimentar (...) mesmo que de cunho compensatório, já que se destina à mantença da autora”.
O ex-marido impetrou Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O acórdão foi-lhe desfavorável.
No STJ, por meio de recurso ordinário em habeas corpus, o alimentante sustentou que a prisão civil seria “manifestamente ilegal”, porquanto “os alimentos objeto da referida execução não têm caráter alimentar, conforme expressamente consignado na própria decisão que os fixou”.
Estava em jogo a questão de saber se esses valores, estabelecidos com caráter nitidamente compensatório, seriam dotados de natureza alimentar e, em segundo plano, se fosse reconhecida esse caráter à verba, surgiria o problema de os compensatórios também se sujeitarem ao regime da prisão civil no caso de inadimplemento dessa obrigação.
A ministra relatora Nancy Andrighi, louvada na doutrina de Rolf Madaleno, entendeu que a “pensão compensatória” possuía caráter ressarcitório e compensatório, e, por essa razão, esses alimentos “não se submetem aos meios executórios coercitivos previstos no
art. 733 do CPC”. No caso dos autos, porém, a verba assumiria natureza de alimentos, pois não houve “distorção na partilha”, “(...) notadamente porque inexiste a própria partilha, elemento essencial à concretização do desequilíbrio gerador das hipóteses de cabimento da pensão compensatória, a qual tem como primordial escopo restaurar a simetria socioeconômica dissipada com o rompimento dos laços afetivos”. Com base nessa distinção, a relatora manteve a decisão denegatória do HC e negou provimento ao ordinário.
O ministro Massami Uyeda, em divergência, que terminou por ser vitoriosa, deu provimento ao recurso. Segundo o relator para o acórdão: a) as decisões de primeiro grau deixaram “expressamente assente que a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto na posse exclusiva do ex-marido, não teria caráter alimentar”; b) no entanto, na execução de alimentos, houve contraditória atribuição dessa natureza, de molde a permitir a aplicação do artigo 733 do Código de Processo Civil, cuja incidência só se justifica quando houver inadimplemento de “alimentos provisionais”, assim fixados em decisão judicial, o que implica a decretação de prisão civil do alimentante.
Ainda segundo o redator para o acórdão, (c) o dever de prestar alimentos, durante a vigência do casamento, funda-se na assistência mútua dos cônjuges. Uma vez extinta a sociedade matrimonial, esse dever substitui seu fundamento para se esforçar na solidariedade conjugal, tendo um sentido estrito: a conservação dos meios de subsistência, o que se explica pelo binômio necessidade-possibilidade. No caso levado ao exame do STJ, “executa-se a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele se encontra na posse exclusiva do ex-marido”. Essa verba não tem fundamento na solidariedade, muito menos na mútua assistência conjugal, mas no direito de meação. Dito de outro modo: evita-se que, enquanto pendente a partilha, haja enriquecimento sem causa em favor de um dos cônjuges, especificamente aquele que detém a posse dos bens comuns.
O ministro Massami Uyeda, ao enfrentar o tema específico dos “alimentos compensatórios, entendeu que (d) os valores decorrentes da partilha, como se cuida da hipótese do recurso ordinário, não se confundiriam com o conceito de “pensão compensatória” ou “alimentos compensatórios”, “que tem por desiderato específico ressarcir o cônjuge prejudicado pela perda da situação financeira que desfrutava quando da constância do casamento e que o outro continuou a gozar”. A finalidade dos compensatórios é desconectada da oferta de meios indispensáveis à manutenção do alimentando, porquanto “objetivam minorar o desequilíbrio financeiro experimentado por apenas um dos cônjuges em razão da dissolução da sociedade conjugal”. A hipótese de prisão civil, considerados os elementos descritivos do processo oriundo do Rio Grande do Sul, não seria adequada, conforme assinalou o redator para o acórdão.
Neste complexo julgamento, o ministro Sidnei Beneti pediu vista e apresentou um erudito voto acompanhando a divergência e tendo a oportunidade de oferecer algumas considerações sobre a natureza dos alimentos compensatórios:
a) O uso da expressão “alimentos compensatórios” abre margem para equívocos desnecessários quanto à sua natureza pseudoalimentar. Seria mais adequado referir-se a “prestação” (arts. 270-271 do Código Civil francês) ou “pensão” (art. 97 do Código Civil espanhol) e deixar “alimentos” para qualificar o que tradicionalmente se denominou de “verba destinada à subsistência material e social do alimentando (alimentos naturais e civis, ou côngruos)”.
b) Os “alimentos compensatórios” não possuem caráter alimentar ou civil e ostentam, na verdade, “natureza indenizatória”, ao estilo do que ocorre na legislação francesa. Essa distinção essencial impede a incidência do artigo 733 do CPC e, com efeito, a própria noção de custódia civil no caso de inadimplemento é de ser repelida, segundo o ministro Sidnei Beneti.
c) O não encerramento da partilha e o uso astucioso de um terceiro para figurar como recebedor fraudulento de valores em conta-corrente (a mãe do alimentante) não podem, de per si, alterar a natureza jurídica da verba não adimplida, “embora dessas circunstâncias possam-lhe advir consequências adversas no decorrer do processo de execução, desprovido da característica de execução alimentar, quer dizer, ao caso não se aplica o disposto no art. 733, § ún., do Cód. de Proc. Civil”.
O julgamento terminou com o provimento do recurso, por maioria de votos. Acompanharam o voto dissidente do ministro Massami Uyeda os ministros Sidnei Beneti e Villas Bôas Cueva. Vencida a relatora ministra Nancy Andrighi.
B) HC 34.049/RSMuito citado durante o julgamento do RHC 28.853/RS foi o acórdão da 3ª Turma do STJ, prolatado na sessão de 14 de maio de 2004, com publicação na RT 831/219, com relatoria do ministro Carlos Alberto Direito, no qual também se afastou a prisão civil por inadimplemento de verba alimentar.
O essencial desse julgado de 2004 está na interpretação dada ao artigo 4o, parágrafo único, da Lei no 5.478/1968, a conhecida Lei de Alimentos. O caput prevê que o juiz, ao receber a inicial, fixará imediatamente “alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita”. O parágrafo único ressalva que, em se tratando de casamento com regime de comunhão universal, “o juiz determinará igualmente que seja entregue ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns, administrados pelo devedor”.
Em situação idêntica a do RHC 28.853/RS, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decretara a prisão do ex-cônjuge, por ele haver-se recusado a pagar, “enquanto não for concretizada a partilha”, o equivalente a 16 salários mínimos, “‘a título de frutos dos bens comuns’”.
Nos termos do voto condutor, o parágrafo único do artigo 4o da Lei de Alimentos “estabelece distinção entre os alimentos provisórios e os frutos dos bens comuns”. Esse quantum não se confundiria “com os alimentos provisórios, daí não ensejar a prisão civil prevista no art. 733, § 1º, do Código de Processo Civil”.
4. Conclusão

O acórdão do STJ, no caso Collor-Rosane, apresenta diversas questões de interesse para o Direito de Família, como (a) os limites à interferência judicial em um regime de separação convencional de bens; (b) a extensão temporal do direito aos alimentos; (c) a existência dos chamados “alimentos compensatórios” como figura jurídica autônoma no ordenamento jurídico e a (d) formulação de um princípio do equilíbrio econômico nas relações conjugais.
Inicia-se, com esta coluna, uma série sobre os “alimentos compensatórios”, sempre considerando o enfoque doutrinário nacional e também o Direito estrangeiro, mas, por limitações de espaço, centrando-se nos itens (c) e (d). Quanto ao item (a), recomenda-se a leitura das colunas Limites da intervenção judicial na separação de bens e Suprema Corte britânica valida pacto antenupcial. Na próxima coluna, será exposta a visão da doutrina nacional sobre o problema dos alimentos compensatórios.

[1] Publicou-se em 2013 uma interessante obra de Ricardo Lucas Calderón, prefaciada por Luiz Edson Fachin, que tenta dar contornos ao princípio da afetividade: Calderón, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
[2] Busca essa que, para muitos doutrinadores brasileiros, já se encerrou com a adoção do princípio da afetividade como sucedâneo do princípio da legitimidade.
[3] Em uma rápida pesquisa na internet é possível informações sobre o caso e as partes envolvidas: STJ retoma julgamento do pedido de pensão da ex-primeira-dama Rosane Collor e Vida dura, ambos acessados em 24/12/2013.
[4] Disponível neste link . Acesso em 22/12/2013.
[5] Transcrição das informações divulgadas no sítio eletrônico do STJ, neste link. Acesso em 22/12/2013.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2014

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Uma lista de pedidos de um jurista para o Papai Noel

 

 
Pendurando a meia na árvoreNesta época ficamos mais sensíveis. Fazem-se festas com “amigo oculto”, mandam-se cartões e também são elaboradas listas de pedidos ao Papai Noel. Quando menino, tinha de me ajoelhar diante do Weihnachtsmann e fazer uma pequena oração, para que, depois, pudesse fazer meus pedidos. Assim era a oração: “Ich bin Klein, mein Herz ist rein, Darf niemand drin wohnen als Jesus allein” (“sou pequeno, meu coração é puro, nele não deve morar ninguém, a não ser Jesus”). Sem pieguice, mas, repetindo isso agora, uma pequena lágrima desceu pelas rugas que já tenho. Embarguei. Mesmo. Lembrei também que, um mês antes do Natal, rezava todas as noites, como num pensamento mágico. Mesmo pobre de marré, achava que, rezando, Papai Noel viria. Mas, vamos lá. Como deveria ser a lista de um jurista para o Papai Noel? Como em um pensamento mágico “daqueles tempos”... Vai que dá certo... afinal, sou pequeno, meu coração é puro... Então:
1. Que voltemos a ter “casos jurídicos” e não meramente “teses” discutidas abstratamente, através de enunciados feitos em reuniões realizadas em finos hotéis litorâneos ou produtos de ementas fabricadas por estagiários. E que os doutrinadores não caiam na armadilha de saírem por aí comentando os tais enunciados... que, como se sabe, Papai Noel, não são lei.
2. Que as provas sejam examinadas pelos juízes e tribunais, e que os casos subjacentes aos processos sejam vistos sob uma ótica normativo-constitucional e não meramente econômico-quantitativa. De que por trás dos processos há pessoas (e na frente deles haja também).
3. Que as partes, querido Papai Noel, não sejam mais tratadas como requerente, requerido ou, para nossa vergonha, suplicante e suplicado, mas como cidadãos que merecem igual respeito e consideração, seja qual for a posição que ocupem nos polos das relações jurídicas. Que às partes se reconheça igual dignidade, independentemente do status ou posição financeira e social que ocupem. Que a igualdade seja a virtude soberana e que essa igualdade transborde do discurso para as práticas judiciais.
4. Que, quando uma lei for aprovada pelo Parlamento e esta não for inconstitucional (e não se enquadrar nas seis hipóteses de que falo no Verdade e Consenso), o Judiciário simplesmente... a aplique. Sim: um faz a lei, o outro... a aplica.
5. Que seja proibido o uso de princípios flambadores no Direito, como o da “confiança no juiz da causa”, da “rotatividade”, do “fato consumado”, da “amorosidade” e similares. Querido Santa Claus: não dá mais para aguentar isso.
6. Que, por favor, não mais se use a frase “na colisão de regras, age-se no tudo ou nada” e colisão de princípios “usa-se a ponderação” e que não mais se escreva ou diga que “princípios são valores”.
7. Que seja proibido dizer que Kelsen era um positivista exegético ou legalista (Papai Noel, não traga presentes para quem disser isso).
8. Que os “ponderadores” não usem mais o exemplo do caso Lüth (e ainda dizendo Lut), sem saber do que se trata.
9. Que os professores parem de querer fazer espetáculo nas salas de aula, cantando, gritando e fazendo charadinhas para decorar “fórmulas” jurídicas; violão e músicas da Xuxa, nem pensar, Papai Noel.
10. Querido Santa Claus: Que os professores que se apresentam na TV falando de prescrição e decadência, função social da propriedade (bem novo isso, não?), erro de tipo, direito do consumidor ou do direito dos portos (ou algo assim) usando exemplos infames e colando de seus tablets sejam submetidos às provas dos concursos públicos para os quais eles mesmos dizem estar “dando dicas”; se não passarem, devem prometer não mais ir à TV.
11. Que os advogados de todo o Brasil não mais sejam humilhados nas audiências, principalmente na justiça do trabalho e que quando o advogado tiver uma pergunta indeferida e pedir para consignar na ata, que o juiz não diga que o advogado o está desrespeitando (Papai Noel, seja duro nisso, tá?).
12. Que os servidores de balcão do Judiciário não tratem a “repartição” como se fosse sua ou se estivessem fazendo favor ao jovem causídico; às vezes, é a sua primeira causa (Papai Noel, zele pelos jovens causídicos; não deixe que os serventuários, porteiros ou juízes os maltratem).
13. Que os desembargadores e ministros, durante a sustentação oral das partes, não fiquem olhando os seus tablets; prestem atenção no esfalfelamento do causídico (ou finjam que estão prestando atenção).
14. Papai Noel – eis um pedido sarcástico: Que os Tribunais de todo o Brasil façam licitações (qualitativas) para comprar obras jurídicas (aquelas que ficam sobre as bancadas e são filmadas). A Lei das Licitações veda “simplificações”, “facilitações”, “resumões” e outros textinhos fofinhos.
15. Queridíssimo Santa (veja a minha intimidade com Santa Claus): Que os embargos declaratórios não sejam “despachados” com decisões padronizadas do tipo “nada há a esclarecer” e que o causídico não necessite fazer uma preliminar ao STJ, em sede de RESP, invocando a negativa de vigência do dispositivo que dá direito ao uso dos embargos declaratórios.
16. E que, quando os tais embargos forem feitos sobre outros embargos (aqueles que tiveram a decisão dizendo “nada há a...”) não sejam “vítimas” de pesadas multas.
17. Grande Santa Claus: incentive a que os doutrinadores façam críticas aos Tribunais quando estes, por exemplo, editam súmulas contra-legem; e, já que estamos falando no assunto, a doutrina poderia voltar a doutrinar e parar de ficar se arrastando para a jurisprudência? Dê de presente um pacote de “lego”, para montagem do significado da palavra dou-tri-na!
18. Que não mais se fundamentem prisões com chavões como “flagrante prende por si só” ou “a gravidade do crime prende por si” (sei, Papai Noel, que a violência está grande, mas o STF de há muito já se pronunciou sobre isso...).
19. Lieber Weihnachtsmann (Papai Noel em alemão), atenda esta prece: Que o juiz ou tribunal não decida conforme sua consciência, e, sim, a partir do direito. Aproveito para deixar aqui nesta preclara meia – pendurada nesta humilde árvore - o conceito de direito, caso o senhor necessite usar para atender este meu pedido: Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador (mesmo que seja o STF).
20. Que o Supremo Tribunal e os demais órgãos do Judiciário (e também o Ministério Público, Santa Claus) não mais usem, em 2014, argumentos metajurídicos. Isso, caro Pai Natal (assim se diz em Portugal), pode ser problemático, porque cada juiz tem os seus argumentos metajurídicos (portanto, morais e moralizantes), que, por acaso, podem não ser os das partes ou da maioria da sociedade ou, ainda, daquele que faz as leis, o legislador.
21. Que o governo de terrae brasilis, Papai Noel, faça indicações para o STF e depois não fique falando contra as (indicações) que “ele-mesmo-fez”, como se estas — as indicações — fossem fruto da cegonha, do coelhinho da páscoa ou até suas, Grande Santa Claus, que nem sei se entende desse riscado.
22. Que em 2014 sejamos poupados do uso de ponderações pelo Brasil afora. Papai Noel: como presente, quero que pergunte às renas ou a quem mais saiba e me responda (a mim e ao restante dos patuleus que colocam suas meias nas árvores natalinas): um importante jurista (bem importante), dia desses, usou o seguinte exemplo para explicar o que é a tal da ponderação. Eis o que ele disse, Santa Claus (está gravado): “um velho Opala desce uma ladeira e o motorista vê um velório passando lá na parte debaixo e se percebe sem freio... então o motorista pensa ‘vou mirar no caixão’”. Isso é ponderar, escolher o menos pior... E digo eu, então: Caro Santa, onde estaria, aí, a regra adstrita de Direito Fundamental? Onde estão os passos da formula? Afinal, quem pondera é quem decide ou quem dirige o automóvel? O motorista é um “ponderador”?
23. Que no próximo ano, querido Santa, a comunidade jurídica não tenha que ler, em livro de Direito Constitucional, que o controle concentrado (sic) poderá ocorrer pela via incidental (sic) nos casos do artigo 102, I, alínea “d”, o qual estabelece a competência originária do STF para julgar HC, MS e HD de determinadas pessoas. É sempre bom lembrar, generoso Papai Noel, que o controle concentrado possui condições estruturais específicas, tais quais o processo objetivo e a “abstração” do pedido, objeto da ação. Não se trata, simplesmente, de ser concentrado porque “concentrado” em um único tribunal...
24. Que todos tribunais tenham uma plataforma de i-process que seja comunicável; se passamos pelo estado moderno — que era um poder unitário — não podemos agora regredir ao medievo, com pequenos reinos, ducados, principados, cada Estado ou Tribunal com suas regras próprias... Ah: se minha defesa tiver mais que 30 mb, seja-me permitido explicar meu direito, que, por vezes, não cabe em um leito de procusto, querido Santa.
25. Que os administradores não se safem de seus malfeitos sob o argumento (do século XIX) de que “ato foi imoral...mas foi legal”. Dear Santa, quem está ensinando Direito Administrativo para o corpo jurídico que protege a Viúva?
26. Que o governo pare de incentivar que o povo compre automóveis em 60 meses. Isso vai dar subprime. Cuidado com suas renas, Papai Noel. Como não mais haverá lugar para andar de automóvel, serão requisitados seus trenós e suas renas. Algo como: Ministro usa as renas da FAB para visitar sua família... no Natal (compreende a ironia, Lieber Weihnachtsmann?)
27. Pai Natal, agora um pedido relacionado à academia jurídica: que não mais sejam feitas dissertações e teses — mormente se for com dinheiro da combalida Viúva (se for em Universidade privada e sem bolsa, por mim o nativo pode estudar o que quiser) — sobre embargos, agravos, tipo penal, poder do árbitro, a origem do cheque, Constituição como ordem de valores, afetividade no Brasil, ponderação, etc. Invistamos esse dinheiro em soro e leitos hospitalares. Ah: e que não sejam concedidas bolsas para fazer tese sobre temas como “o papel dos trabalhadores rurais brasileiros”... a serem estudados em algum país europeu ou latino-americano; ou uniões homoafetivas ou ECA em Burgos, Espanha (nem existe ECA na Espanha); ou violência contra a mulher no Brasil em... Sevilha. Peço isso, Pai Natal, porque se os temas são estritamente daqui, qual é a razão para desprezarmos mais de 30 programas de doutorado em direito de terrae brasilis? Sei que é chique estudar lá fora. Muito. Mas tese sobre Lei Maria da Penha... na Inglaterra? Também quero! Ajude-nos a nos livrar da síndrome de caramuru, papalis noelis brasiliensis. E do complexo de vira-lata.
28. Que Dworkin (que não é Dworking, por favor), em aulas, palestras e livros não seja mais epitetado de jusnaturalista. Respeitemos a sua alma. Ajuda nisso, Santa? Ah: e dê zero para quem misturar Alexy com Habermas.
29. Que não mais necessitamos nos deparar com a invocação do “princípio” da verdade real. Na verdade, Papai Noel, se quem invoca isso soubesse um pouco de filosofia, dar-se-ia (boa mesóclise, não? — quero presente em dobro... afinal, Ich bin Klein...) conta de que está na pré-modernidade.
30. Que as companhias de telefonia móvel parem de nos enganar e que retransfiram os seus call centers do Judiciário de volta para as suas próprias sedes...
31. Que as companhias aéreas respeitem os direitos humanos-fundamentais dos utentes e parem com a picaretagem (pilantragem, vigarice, proxenetismo) de encolher os espaços entre as poltronas; não dá nem para ler um livro. Querido Santa: o senhor pode dar umas varadas de marmelo nos caras da Anac?
32. Que os concursos públicos e os exames de ordem não mais sejam quiz shows. Questões como as da “ladra Jane” serão punidas com palmadas... (desculpe, Papai Noel, mas sou politicamente incorreto). E que os néscios que manipulam essas questões (ou o modelo de questões) sejam colocados em uma roda e sejam submetidos aos concursandos, que lhes fariam perguntas do mesmo estilo que eles fazem ou defendem. E, claro, se for necessário, vara de marmelo neles, Santa.
33. Que não receba presente quem faça afirmações como “o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é” ou “o texto é apenas a ponta do iceberg”, ou, ainda, “além do texto existem os valores que são ‘condição de possibilidade do texto’”.
34. Que nas audiências criminais o juiz não assuma a posição de inquisidor nos interrogatórios, nem conduza os depoimentos orais, a despeito da previsão do artigo 212 do CPP, nem inicie a redação da sentença condenatória antes mesmo do fim das alegações finais orais da defesa (embora que, muitas vezes, ela nem perceba isso). Podes ajudar nisso, bom velhinho?
35. Que o Judiciário não fundamente suas decisões com base em ementas de precedentes, sem a averiguação da pertinência entre a ementa e o caso concreto que lhe deu origem (a facticidade ou o senhor fato), bem como não haja mais julgamento por adesão a uma das teses, sem abordagem da antítese, para julgar mais rápido (referencial bias). Ah, queria pedir também que o legislador aprove o novo CPC com as emendas que tentam fazer com que as decisões tenham coerência e integridade, para que cada um pare de decidir como quer.
36. Que os tribunais não implantem ou, se já o fizeram, ponham fim aos chamados “Gabinetes Criminais de Crise”, instituídos por meio de uma Portaria, um vício de inconstitucionalidade de origem, sem falar, claro do ferimento do princípio do Juiz Natural.
37. Que os juristas, principalmente os jovens ainda sem curriculum, quando escreverem seus artigos, antes se inteirem bem sobre o que estão falando (por exemplo, o que quer dizer cada conceito), para evitar algaravias conceituais. E interceda para que os neófitos, mormente eles, façam críticas honestas e não escamoteiem fatos e circunstâncias (com gracinhas “tipo” Kant-Descartes, Aristóteles-Leibniz, com o uso de hifens a la 171 do Código Penal, como se se tratasse da mesma coisa...). E, na crítica, não ataquem o autor, mas as ideias. Com isso, Papai Noel, o senhor estará ajudando a academia de terrae brasilis.
Numa palavraPois é, Papai Noel. O senhor me deve um monte. Quantas vezes tive que repetir o Ich bin Klein... e o senhor... nada. Comigo o senhor está como o Eike Batista: devendo os tubos. Pois é chegada a hora de se recuperar. Atenda aos pedidos acima. Afinal, eu acredito em Papai Noel... (se me entende a ironia, querido Santa!).
Parafraseando a oração que fazia quando menino na esperança de ganhar presentes, diria, hoje, que sou um jurista que continua estudando todos os dias, que meu coração ainda é puro depois de 26 anos de MP, e que nele não deve morar ninguém, a não ser o amor, a esperança... e, é claro, a indignação contra o autoritarismo, enfim, os solipsistas![1] Feliz Natal a todos!

[1] Mesmo que alguns neófitos não entendam o sentido da palavra “solipsismo”. Mas, enfim, o que fazer?
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 12 de dezembro de 2013

16 facadas e morreu envenenada? O Natal e a prova da OAB

 

 
Natal é época em que se reúnem parentes chatos e não chatos, advogados e não advogados, juízes e não juízes, promotores e não promotores, estudantes de qualquer coisa e o sobrinho que está fazendo a “escola” (que deve ser a dos juízes, do MP, da OAB ou algo assim, mas ele diz, com a boca cheia de panetone: “a escola”).
É tempo de discussões. O parente juiz conta como mandou o advogado se calar na audiência do dia anterior. Já o juiz dos juizados especiais relata como o juiz leigo coloca a malta em um corredor polonês. E acha engraçado. Todos riem. Menos um tio, que, lá do fundo, pragueja, dizendo que teve que ir no “foro” só para ouvir a Companhia Telefônica, que lhe passou a perna, dizer que não fazia acordo. Antes disso, teve que ouvir o meirinho gritar: “Quem quer fazer acordo, fique à minha direita; quem não quer, à minha esquerda”. Aliás, desconfio de que a cultura da conciliação termina sendo, para as concessionárias de serviços públicos e as grandes corporações, a obliteração da prévia efetivação de direitos coletivos. Paradoxalmente, os maiores violadores são, também, os maiores conciliadores... Bingo! Eis o paradoxo!
O parente promotor de justiça conta que, quando não vai à audiência, o juiz “faz tudo por ele”. Há casos em que “nem pedi a condenação e o juiz assim mesmo tascou uma pena dura no meliante”. Quieto em meu canto, pergunto-me: Será que um juiz que age assim faz tudo pela Constituição? Ou melhor dizendo, o que ele faz da Constituição? A velha tia diz: “ meu filho, esse juiz é dos bons, não? Tem de dar duro nessa gente”. E o velho tio, já na terceira dose, pergunta: “mas você concorda com isso? Quem é o promotor? Você ou o juiz?”. E o sobrinho promotor responde: “meu tio, tem uma coisa que você não conhece, chamada verdade real... Com ela, tudo se resolve”. E assim a conversa vai fluindo, na véspera da comemoração da chegada do Papai Noel. Deixei de acreditar em Papai Noel aos sete anos. Mas tem muito adulto por aí ainda acreditando na “verdade real”. Mas se a fantástica história de Papai Noel culmina em inocentes presentes, a única verdade da “verdade real” está nos abusos que causa ao Estado Democrático de Direito.
Outro advogado da família fala das agruras do processo eletrônico. Não se sabe se o processo foi enviado “via sistema”. Em tempos de Natal, imagino a virtualização como o rebento que nasceu para ser uma espécie de Messias da prática forense —o salvador de um Judiciário que não dá conta da demanda — mas que nunca chega. Pelo contrário, o “sistema” não avisa. Tem de pegar o carro e ir ao tribunal para verificar. Assim, o sistema é virtual, mas as dificuldades continuam bem reais... Realíssimas. O CNJ legisla. Para além do CPC. Para além da CLT. Para além da Constituição. Pelo desespero, parece ser o único sujeito sensato da festa.
E a conversa muda de rumo. Acabara de chegar a sobrinha gordinha, que chumbou em concurso para defensoria pública em Estado vizinho. Ficou por uma questão, que indagava se se transformar, por intermédio de operação plástica, em lagarto, com dinheiro do SUS, era um direito fundamental... Coitada. Respondeu que não. Perdeu! Cansada, traz uma sacola cheia de livros. Chega a estar com um ombro mais baixo que o outro. Mesmo na noite de Natal, diz que continuará a estudar, porque está inscrita para o concurso da AGU, MPU, TCU, CGU... Ela até já fez o cursinho de um professor (fácil de achar no Youtube) que ensina como se deve estudar direito para concursos. Começa confessando que chumbou em 20 concursos. E só depois passou. Hum, hum. Na verdade, com tantos concursos chumbados, deve ter passado por usucapião... Mas, enfim, lá vem a gordinha. Coloca em uma mesinha o seu material de batalha: manuais, manuaizinhos, resumos, resumões, resumos plastificados, direitos facilitados, simplificados e a grande inovação: direito em rimas... Ela acabou de comprar. Sim, direito ri-ma-dôo! Direito penal é lê-e-gal. Penso, rimando: afinal, qual é o busílis de terrae brasilis? Tem chance de dar certo? Muita flambagem. Como o personagem estudante de chinês do livro Reprodução, de Bernardo Carvalho, ela, a sobrinha, fala sobre o direito por intermédio de drops, siglas, palavras-chaves. Não há espaço para a reflexão. Só flexão. Ajoelhar-se diante dos pretensos doutrina-dores, que não fazem mais do repetir lugares comuns e chavões, tudo com a profundidade dos calcares de uma formiga anã. Ela parece um ser de outro mundo. Incrível: os concurseiros criaram uma novilíngua. Como em 1984, do G. Orwell. Ela lê o mundo por intermédio desse material. Some-se a isso os blogs, como o do concurseiro solitário (sic), com dicas “valiosas”, como a de não ler grandes doutrinas e se dedicar às apostilas, além de material do “ponto de concursos” (que deve ser sei-lá-o-que-de-concursos). Tem também os blogs com música de concurseiro, para decorar o Direito. E, para não esquecer, repito: tem também agora o direito rimado. Penso comigo: o mundo vai acabar. Sem chance. Meu bunker está pronto. Só falta cavar o fosso e colocar os jacarés. E vou estocar comida.
Um pouco atrasado, chega outro convidado, um magistrado de tribunal de segunda instância. Diz-se um pragmático. Não gosta de ler. Diz que “Direito é bom senso” (o dele, é claro). Só faltou dizer o clássico chavão do solipsista: o de que “sentença vem de sentire”. E eu, o que sinto? Sinto muito, Constituição... Para ele, qualquer coisa que ultrapasse cinco linhas é filigrana e firula. É idealizador do projeto sentença 60 linhas ou algo desse quilate (incluindo a assinatura, é claro). Seu sonho é dar sentenças via Twitter, intimando da mesma forma ou pelo Facebook. Idolatra Richard Posner, o rei dos pragmatistas. Posner é um Deus, ele diz, mascando três nozes ao mesmo tempo e golejando um espumante (já) com pouca perlaje. Claro, não conhece o Posner envergonhado do The crisis of capitalist democracy — no qual reconheceu (depois do fiasco de 2008) suas falhas em imaginar um mercado autorregulávele nem o abandono da maximização da riqueza como fundamento eficiente do Direito.
Junto com ele veio outro, da área cível. Julga causas de dano moral. Conta que julga as causas de acordo com a cara do “freguês”. Diz que apurou com o tempo o seu “sentirômetro” (sentença não vem de “sentire”?). O pragmático lhe dá um tapa nas costas, do tipo “esse é o cara”. “Ele bota o olho e já sabe...”. Fico pensando, cá com minhas pestanas: foi para isso que fizemos a Constituição? E, para homenagear (de novo) o direito rimado: qual será o busílis de terrae brasilis?
Também foi convidado um professor que dá aula em mestrado e doutorado. Publica dezenas de coletâneas de livros por ano. Tudo eletrônico, porque é a pós-modernidade. Custa R$ 10 a página. Os alunos é que pagam. Ele é o “cara das publicações”. Ninguém lê esses “livros”. Nem se sabe se o professor leu o que os alunos escreveram e ele colocou seu nome junto. Mas ele tem muitas publicações. Dezenas. Portanto, ele fala “de cadeira”. Desde logo, alia-se na discussão entabulada pelo magistrado pragmatista sobre a efetividade da justiça. “A culpa da morosidade da Justiça é da falta de gestão. Falta pós-graduação em gestão”. Para ele, o juiz não é mais do que o gerente de uma sucursal judiciária. E já se juntam em um canto, para propor uma especialização em gestão. Eles adoram isso. Penso com meus botões: Esse papo está me dando é indigestão... Onde está meu vidro de Olina, aquele composto de ervas bem gaúcho? Enquanto isso, olho para o tio, aquele: já está roncando baixinho num canto da sala.
Há também o mais novo namorado da mais velha filha do dono da casa. O tipo é metido a filósofo. Na verdade, apresenta-se como sendo “o filósofo da família”. De fato, cursou dois ou três semestres da faculdade de Filosofia, mas, vá lá. Começa a falar em um bolinho de gente. Ele fala cuspindo restos de panetone. Em pouco tempo, fica-se sabendo que a filosofia de Heidegger é “nazista”, que Gadamer “não escreveu nada de útil sobre o Direito” e que Habermas “não é um filósofo”. Também, que, “na Alemanha, ninguém lê essa gente”. O sujeito tem uma unha enorme: “Não há como levar Dworkin a sério”, diz, também, misturando gravidade e um ar blasé em doses equilibradas. Hum, hum. Sei. Quem presta, então? Ah, ninguém que eu conheça, claro! Sua dica? “Que os juristas estudem... Direito.” E que deixemos a filosofia para quem manja do riscado, como... ele. Chega o garçom e salva a festa. Eu estava pronto para pegar-lhe pelo pescoço. Mais uma dose? Claro, claro...
Outro professor na festa. Escreveu até hoje um fonograma e um texto em um site jurídico. Não conhece os conceitos da filosofia no Direito e se mete “de pato a ganso”. Não consegue escrever duas frases sem citar um autor... americano. Para ele, o Brasil é ruim. Aqui nada se produz. Sofre da síndrome de caramuru. E do complexo de vira-lata. Junto com ele veio para a festa outro jurista... Também não gosta do Brasil. Quando alguém escreve algo, diz: “não é por aí...”. Mesmo que muitos nativos já tenham escrito sobre determinado assunto, ele faz um texto “grau zero”. De todo modo, eles não se enturmam na festa. Ficam sozinhos, se auto louvando. Traço comum dos dois e tantos desse jaez: sempre estudando e viajando às custas da Viúva.
Ah, também veio um estagiário, que trabalha em uma Câmara de Tribunal. Diz, de boca cheia: “na nossa Câmara, decidimos desse modo... e blá, blá, blá”. “Faço dez acórdãos por semana”, acrescenta, orgulhoso. “Somos uma Câmara dura em Direito Penal... Não adianta o advogado vir com muita churumela. Advogado que argumenta muito, enchendo linguiça com princípios, teorias etc., não tem argumento. Ou ele cita os clássicos ou nem lemos...” (os clássicos que ele cita vocês já imaginam). E o tio, que acabara de acordar, pergunta: “nossa Câmara? Nós quem cara pálida?” Ouço aquilo e ligo para o meu fornecedor de jacarés: vou dobrar o número de Melanosuchus niger do fosso do meu bunker. Melhor me prevenir. Com um bom estoque de comida. E discos do Frank Sinatra.
Quem está faltando na festa? O professor de universidade pública, presidente de banca de concurso no qual os membros externos se negaram a assinar a ata. Já na chegada, um sobrinho, estudante de Direito, dá-lhe de presente um livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Começa um bate-boca. Os contendores são retirados para a biblioteca da casa,de mala e cuia. Ô noite de Natal agitada.
Logo depois chegou o primo em segundo grau do tio do dono da casa. Ele é professor de Direito (mais um; afinal, quem não é?). Ele é daquelas figuras que aparecem nos programas de TV com gel no cabelo e sapatos grandes, bicudos, com iPad na mão, ensinando “coisas geniais” como agressão atual é a que está a-com-te-cen-do. Também dá aula sobre a complexa matéria chamada “direito de vizinhança”. Mas também já falou em Direito Marítimo. Esse não era ele? Sei lá. Todos são tão parecidos... Sabe(m) tudo, ele(s). Professor Totalflex. É amigão do pragmatista. Odeia que se fale em teoria, porque, para ele, na prática a teoria é outra. Gênio(s) da raça. É autor e coautor de literatura fofinha, flambada, dúctil, simplificatio-facilitatio. Nem tem tempo para começar a falar, porque o peru já está sendo servido. Alvíssaras. Finalmente o peru.
Ainda no meio da ceia chegou um professor que fez parte da banca que elaborou a última prova da OAB. Logo foi indagado por um recém bacharel acerca da questão 11, que perquiria sobre o utilitarismo. Eu, escutando, fico meditando, entre um gole e outro de John[1] Daniels... Quem teria sido o gênio que fez essa pergunta? Antifundacionalismo? Que coisa mais “brega”, filosoficamente falando. O utilitarismo era antifundacionalista? Sim? E daí? Para a prova da OAB? Hum, hum. E a pergunta sobre o estupro (59)? Bráulio (que nome mais cri-a-ti-vo, não? Vejam no Google os “bons tempos do Bráulio” — ver aqui) encontra moça em show de rock. Pratica sexo com ela, de forma consentida. Depois se descobre que ela tinha 13 anos... Ai, ai, ai. Céus. Onde estão meus jacarés? Pego meu celular. “Alô? Mande-me mais seis, agora da espécie Crocodylus niloticus e mais seis da 'marca' Crocodylus acutus.” Melhor ainda foi a questão 63: Paula desfere 16 facadas no peito de Maria... Esta morre duas horas depois. E se descobre que foi por envenenamento, porque tinha tendências suicidas. Parem as máquinas! Rufem os tambores! Pausa para que eu me role de rir. Farfalhar. Tomo dois goles de Olina. Agora, ligo para o meu fornecedor de óleo quente. Sim, além dos jacarés e crocodilos, colocarei tinas de óleo fervente para me proteger contra a barbárie. Paro por aqui. É Natal, batem os sinos... E o réu não se ajuda.
Os presentes que Papai Noel trouxeHo! Ho! Ho! Chega Papai Noel, finalmente, com um saco de livros (reais e imaginários) para distribuir. Para o sobrinho juiz, dois livros: o Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht e o recém lançado, em alemão: Warum sollte Ich nicht autoritärsein (a versão em espanhol parece que é Las razones por las que no debo ser un déspota) do professor Fritz Selbstsüchtiger, da Universidade de Hinterden Hügeln). Para o promotor, dois livros: Como cumprir seu dever, de L. L. Sohannson e um sobre a verdade: As mentiras da verdade, de Llosa. Para o sobrinho que está fazendo a “Escola”, Machado de Assis (os contos A Teoria do Medalhão, no qual o pai Janjão ensina ao filho como se tornar um medalhão, exatamente porque o filho sofre de inópia mental e o conto Ideias de Canário).
Para o professor (o do concurso e da ata), dois livros: a Nau dos Insensatos e o recém lançado Why should not behave this way more, do professor Puller Ears, da University of Redneck, campus Behindthe Hills (lembremos que alguém já lhe dera o do Faoro). Para o professor de pós, os livros Como se Faz uma Tese (do Eco) e Publish or Perish, do professor holandês radicado nos EUA, Heeft Weinig, da University of Larceny, publicado pela PublisherBehindBackyard.
Para o advogado irritado com o processo eletrônico, vai minha solidariedade. Do Papai Noel ele recebeu o livro O Otimista, de Voltaire. Já para a sobrinha gordinha, além de Reprodução (B. Carvalho), o lançamento em alemão Warum sollte „Recht für Dummies“ nicht lesen (em português, a versão é Porque não devo ler “direito para ingênuos ou bobos”, publicada pela Editora Fondo di Casa). Para o magistrado de segundo grau (o do “bom senso” e pragmatista), o livro do Dworkin (A Justiça de Toga) em que ele assim qualifica Posner: "Um juiz preguiçoso, que escreve um livro antes do café-da-manhã, decide vários casos antes do meio-dia, passa a tarde dando aulas na Faculdade de Direito de Chicago e faz cirurgia do cérebro depois do jantar". Para o colega dele, aquele do “dano moral no olhômetro”, Santa Claus dá o livro O Idiota, de Dostoyevsky, com comentários do professor Nicht Nutzlos, da Faculdade de Scheizwald. E também um exemplar do livro O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência.
Para o sobrinho neo-proto-filósofo, Papai Noel dá o livro El Curioso Impertinente, de Cervantes. E outro, recém lançado, chamado Wie Philosophen kann langweilig sein, da Faculdade de Rammenschnitzel (a versão em espanhol é Cómo filósofos puedem ser aburridos, da Editora Fondo de la Casa, subsidiária da Editora Fondo di Casa). Também leva o livro Como Falar dos Livros que Não Lemos, de Pierre Bayard. Para a dupla que ficou em um canto (os que sofrem da síndrome de caramuru), Pai Natal dá dois livros: What is this - the academic silipsismo do professor Kleinnefuss Großen Nagel, radicado nos EUA (a versão em português é O que é isto – o solipsismo acadêmico, da Editora Fondo Di Casa (é italiana, recém instalada em Pindorama); e um em alemão: Wenn Sie aus dem Ausland kommen, ist es am besten (a versão espanhola parece que é assim: Se vem do estrangeiro, é melhor, da editora Burgo-Iuspostulandum, de Burgos, conveniada com a Editora Fondo de la Casa).
Para o professor dos cursinhos-que-dão-aulas-pela-TV-e-que-usam-sapatos-bicudos, o presente é a coleção completa das Seleções do Reader’s Digest, para aprimorar as piadinhas nas aulas e contar os “flagrantes da vida real”, uma seção especial dessa sofisticada revista. De lambuja, a coleção do Almanaque Biotonico Fontoura (se não sabe o que é, veja no Google — be a bá, be e bé, be e bi...o-to-ni-co Fontoura)! Eu adorava tomar o tal biotônico; mas minha tia Ana,[2] que pesava 120 kg, não deixava; ela dizia: nein, nein, mein Kleine, es sieht aus wie Pferdepisse; du must Emulsão Scott trinken — não, não, meu pequeno, isso parece urina de cavalo; tu deves tomar Emulsão Scott — que, registre-se, não tinha um gosto bom; o Biotônico é que era gostoso).
Aos demais que não estudaram o ano todo, que não sabem o que é (in)diferença ontológica e acreditam em ponderação (e a pregam) etc., por não terem se comportado, levarão um vale-presente do meu novo livro Os Alquimistas da Hermenêutica, no prelo (inspirado no mago Paul Rabbit). Não se comporte e Papai Noel, no próximo Natal, dar-lhe-á, além desta mesóclise, um kit (o livro mais uma vara de marmelo). Ah: o professor da prova da OAB recebe dois livros: Porque é feio fazer perguntas utilizando exemplos bizarros: uma releitura neoconstitucional(ista) e Porque Não Devo Fazer Perguntas Com Base em Resumos Plastificados, ambos escritos pelo catedrático Exnunco Abovo, da Editora Fondo Di Casa (que publica qualquer coisa a dez “real” a “foia”).
Pronto. Parece que Papai Noel fez uma boa distribuições de livros. Boas leituras. E Boas Festas para os meus leitores. Esta coluna já passou do 100. A propósito: Que livro você gostaria de ganhar? Comente aqui na ConJur e/ou no Facebook (Lenio Streck oficial). Está aberta a votação. Feliz Natal e Venturosíssimo Ano Novo a todos os leitores.

[1] Como no filme Perfume de Mulher, John é em face de minha amizade íntima com a família Jack Daniels, dos EUA profundos.
[2] Registro natalino: minha tia Ana é a mesma que tentava matar meu porquinho Bolão, cuja história já contei dia desses em uma coluna falando dos direitos dos animais. Ela era sogra de minha tia-madrinha Norma. Ou seja, a “norma” é algo que trago comigo de infância. Por isso é que “norma” só tem vontade quando diz “farei bolinhos de chuva para você, meu afilhado”. Lembram quando eu falo que “norma só tem vontade quando...”? E os juristas ainda falam em vontade da norma e do legislador...
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2013

O realismo ou “quando tudo pode ser inconstitucional”

 

 
Nos Estados Unidos... e não aqui, é claroEsse primeiro subtítulo da coluna é para completar o título acima e tranquilizar os leitores, no sentido de que o que tratarei é de outro sistema jurídico e de outra realidade. Nada a ver com o Brasil, portanto.
Aprenda se divertindoMeu amigo Dierle Nunes, professor da UFMG, mandou um vídeo que os alunos legendaram. Todos conhecem o desenho animado Pinky e Cérebro. O vídeo escolhido pelos alunos é um episódio em alemão. Claro que a legenda não corresponde à fala. Mas ficou muito engraçado e mostra a corrente jusfilosófica chamada “realismo jurídico”. Portanto, aprenda se divertindo. Não leia o resto da coluna sem ver o vídeo.

Então, o que é esse “realismo jurídico”? Visto o vídeo, vamos à lição. Primeiro, o realismo jurídico não tem nada a ver com o realismo filosófico, que é a concepção objetivista do mundo (sobre isso, por falta de espaço na coluna, ver meu Hermenêutica Jurídica em Crise).
Conforme explico em meu Verdade e Consenso, realismo e pragmati(ci)smo são irmãos siameses. As primeiras manifestações pragmaticistas no Direito podem ser encontradas no realismo escandinavo (Alf Ross, Olivecrona) e norte‑americano (Wendell, Pound e Cardozo), daí a “semelhança” entre as duas posturas sobre o direito (realismo jurídico e pragmatismo). Para os adeptos do pragmatismo, não se deve conferir “autoridade última a uma teoria, já que o objetivo crítico de raciocinar teoricamente não é chegar a abstrações praticáveis, mas, sim, explicitar pressuposições tácitas quando elas estão causando problemas práticos. Para o pragmatismo jurídico, teorias éticas ou morais operam sobre a formulação do Direito, mas, na maior parte das vezes (ou, ao menos, frequentemente), a porção mais importante de uma legislação é a previsão ‘exceto em caso em que fatores preponderantes prescrevam o contrário’”[1]. Contemporaneamente, o pragmatismo pode ser identificado sob vários matizes, como a análise econômica do direito, de Richard Posner, nos Critical legal studies e nas diversas posturas que colocam na subjetividade do juiz o locus de tensão da legitimidade do direito (protagonismo judicial). O pragmatismo pode ser considerado uma teoria ou postura que aposta em um constante “estado de exceção hermenêutico” para o direito; o juiz é o protagonista, que “resolverá” os casos a partir de raciocínios e argumentos finalísticos. Trata‑se, pois, de uma tese anti‑hermenêutica e que coloca em segundo plano a produção democrática do direito. No Brasil, o direito alternativo tinha raízes realistas. Nas práticas judiciárias, não é difícil encontrar uma série de manifestações realistas.
O jusfilósofo espanhol Garcia Figueroa é contundente, ao dizer que “na atualidade, parece haver uma espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais. Afinal, o realismo jurídico baseia-se na concepção de que o raciocínio judicial decorre de um processo psicológico. E isso acontece porque os juristas — em especial os juízes — descreem da capacidade justificadora do sistema jurídico. O realismo é cético diante das normas, pois a considera “puro papel até que se demonstre o contrário”. Assim, a vida do direito é “experiência”. Por isso, direito passa ser aquilo que os juízes dizem que é”.[2]
Desse modo, quando você ouve alguém dizer que “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais- dizem-que-é”, bingo! Está diante de uma postura realista (ou de uma Pantoffel theses do realismo). Compreendeu? Por isso, a estorinha do Pinky e do Cérebro retrata um pouco dessa velha corrente que — mesmo em tempos de intersubjetividade — ainda aposta no ceticismo em relação às normas e em raciocínios decorrentes de processos psicológicos.
No fundo, as posturas realistas e suas congêneres — lembremos que Posner é uma pragmati(ci)sta, que mata a sede no realismo — desconfiam da malta que vota. Desconfia das Instituições, a não ser a mais imaculada: o Judiciário. Por isso, o realismo (e seus genéricos) é também chamado de positivismo fático. Para quem gosta de estudar os mistérios do positivismo, saiba logo — e tenho insistido muito nisso — que positivista não é apenas o do velho formalismo (exegético-legalista). É muito mais do que isso. Enfim...
Direito é aquilo que os tribunais dizem que é?Claro que, quando penso nos Estados Unidos — e é só lá que isso pode(ria) acontecer, pois não? — lembro logo do caso Dred Scott v. Stanford e nas decisões da US Supreme Court dos anos 20 (claro que há outros julgamentos “do bem”... por assim dizer).
Paro por aqui. De fato, realismo jurídico e essas coisas do tipo “o-direito-é-aquilo-que-os-tribunais-dizem-que-é” são coisas dos outros. Como dizia Sartre, o inferno são os outros. Dos americanos. E quiçá das Antilhas Holandesas ou Guiné Bissau... Por aqui, nos trópicos, não se fazem dessas coisas... Longe disso. Se bem que, há poucos dias, o ministro Roberto Barroso, do Supremo Federal em entrevista à Folha de S.Paulo, a propósito do julgamento da ADI 4.650-DF, que trata das doações em campanhas eleitorais, que “(...) a gente, para fazer andar a história, não precisa estar com o povo gritando atrás. É preciso interpretar e fazê-la andar. (...) Está ruim, não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar”.
Se não estou enganado, a expressão “a gente” significa “o Poder Judiciário”, estou certo? Estaríamos, então, dando razão à dupla Pinky e Cérebro, do desenho animado? Pode o Judiciário empurrar a história? O dr. Cérebro, do desenho, acha que sim. Mas, permito-me insistir na pergunta: Pode empurrar a história mesmo quando a Constituição-não-diz-o-que-o-Judiciário-diz-o-que-ela-diz?
Como sou desconfiado — afinal, penso que essas coisas só acontecem nos outros países — vou atrás das notícias. Encontrei o Informativo 732 do STF, no qual o relator (ministro Luiz Fux) da citada ADI 4.650-DF “julgou inconstitucional o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais baseado na renda, porque dificilmente haveria concorrência equilibrada entre os participantes nesse processo político”.
Vejam: o relator disse ser inconstitucional o modelo de campanhas eleitorais. Na sequencia, acrescentou que “a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate e que a excessiva participação do poder econômico no processo político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade política entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro representativo”.
Ainda, por fim, “recomendou ao Congresso Nacional a edição de um novo marco normativo de financiamento de campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes parâmetros: a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral ou a partidos políticos por pessoa natural, deverá ser uniforme e em patamares que não comprometam a igualdade de oportunidades entre os candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios pelos candidatos; e c) em caso de não elaboração da norma pelo Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a competência para regular, em bases excepcionais, a matéria”.
Pronto. Faltou apenas acrescentar: tudo sob pena de chicoteamento... Fico pensando com meus botões já desgastados de tanto com eles pensar: Será que entendi bem? Ora, não preciso ser a favor ou contra o financiamento feito por empresas para entender o que está acontecendo. Por via das dúvidas, deixo claro que sou contra a doação por parte das empresas.
Mas, por favor, como lido com a Constituição e sou obrigado a defendê-la, tenho de me perguntar: a Constituição estabelece um (outro) modelo de financiamento de campanhas eleitorais? É assim tão fácil apontar onde está a parametricidade constitucional que sustenta as afirmações dos votos dos quatro ministros (relator e mais três) que votaram por essa inconstitucionalidade?[3] Há um porção de coisas das quais não gosto, mas daí a serem inconstitucionais no sentido daquilo que se entende por parametricidade, vai um zilhão de quilômetros de distância.
E desde quando o STF declara inconstitucionais “modelos” de alguma coisa? De forma moralista, ele faz a escolha pelo povo e em lugar do povo? O Parlamento serve para o quê? Alguém dirá: mas neste caso o STF está acertando... então por que você está criticando? Respondo: as questões (in)constitucionais não estão a disposição do STF. E um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia, pois não?
E desde quando o STF manda o Congresso fazer uma lei estipulando as condições e requisitos, se a própria Constituição, parâmetro maior para qualquer julgamento, nada fala a respeito? Além do problema da difusa e discutível parametricidade, o estabelecimento de prazo somente teria sentido se o STF dissesse — de forma fundamentada — estar em face de uma Appellentscheidung. Vou tentar explicar isso melhor: uma coisa é fazer uma Appellentscheidung (apelo ao legislador), que ocorre quando a Constituição determina algo, o Congresso não faz e a Corte Constitucional exorta a que o Parlamento faça a regulamentação em um prazo razoável para que aquela situação não se converta em uma inconstitucionalidade. Para ser mais claro: o apelo ao legislador (Appellentscheidung) só ocorre quando a Corte reconhece que a lei ou a situação jurídica não se tornou ainda inconstitucional. Então, faz a exortação. Em outras situações, o Tribunal restringe-se a constatar a inconstitucionalidade, sem, no entanto, declará-la. No caso da ADI essa, nem de longe se está em face da possibilidade de uma Appellentscheidung. Em verdade, parece-me que o STF simplesmente está não só legislando como também dizendo como o Congresso deverá fazer no futuro. Mas, ínsito: onde está a concreta situação que propicia(ria) o/um apelo ao legislador?
Não preciso pesquisar muito sobre a tal falta de parametricidade. Para tanto, valho-me dos exatos termos da declaração de um dos quatro ministros do STF que já votaram na ADI 4.650, o ministro Roberto Barroso: "Em tese, não considero inconstitucional em toda e qualquer hipótese a doação [a campanhas eleitorais] por empresa".
Não, os leitores não leram errado. Ele disse isso mesmo. Mas, então, perguntaria o Pinky da estorinha, ele votou contra a ADI 4.650-DF? Não, meu caro Pinky. Não, meus caros leitores. Ele votou a favor. Então, digo eu, com o meu bilhete aéreo de ida na mão para ir aos Isteites conhecer o tal “realismo jurídico”: se ela — a inconstitucionalidade — não existe... então... ela não existe. Questão de sintaxe e de semântica. Podem as doações ser ruins, inadequadas, aéticas, imorais, etc, etc (e mais um etc!). E o são. Mas, a pergunta que a Suprema Corte de terrae brasilis (e não a dos Isteites) deve responder é tão-somente essa: são elas, as doações, inconstitucionais? Podem ser ruins, mas...inconstitucionais? Aliás, as palavras não são minhas, são do próprio ministro Barroso, que-não-considera-inconstitucional-em-toda-e-qualquer-hipótese a doação a campanhas eleitorais por empresa. Vejam: em-toda-e-qualquer-hipótese.
Observação: por certo, alguém dirá que o Supremo invocou princípios e que, afinal, o direito é um sistema de regras e princípios. Correto. Mas, é possível extrair do princípio republicano um modelo de financiamento de campanha? E essa “extração de sentido” se faz agora, depois de tantas eleições? Nas anteriores o modelo valeu? Eu poderia discutir a questão se o princípio invocado fosse o da igualdade. Afinal, a igualdade de participação no processo eleitoral não está a disposição das maiorias políticas, porque essa questão está no núcleo do regime democrático. Mas não foi nessa linha que os quatro votos trilharam. Mas esse seria apenas o começo da discussão... Dizendo de outro modo: uma coisa é declarar inconstitucional determino dispositivo por ferir, na especificidade, a igualdade (ou outro princípio); outra coisa é dizer que todo o modelo conformado por tais dispositivos é inconstitucional; e outra coisa ainda é o STF se transformar em legislador positivo.
Mas, enfim, peço desculpas, porque desviei da rota. Estava falando das mazelas do realismo jurídico dos Estados Unidos e do ativismo de lá.[4] Mania que eu tenho de misturar os assuntos. Deve ser o final do ano. Cansado, dá tilt no meu sistema...
Ainda bem que o Brasil......está imune ao realismo jurídico, aos ativismos, decisionismos e coisas desse gênero. Todos sabemos disso. Por aqui tudo vai bem. Todos os julgamentos são feitos com base em critérios. Não há risco de uso abusivo de princípios (pamprincipiologismo). Em terrae brasilis não há panconstitucionalismo, variante perigosa do pamprincipilogismo.[5] Por aqui não se faz uso de argumentos metajurídicos. Vou me mudar para os Isteites. Só para ver como funciona esse tal de realismo, já que, como no livro de Alan Riding (Paris, a Festa Continuou), por aqui Tout va très bien dans le monde juridique (“tudo vai bem no mundo jurídico”, que adaptei da frase original “Tudo vai bem, Madame La Marquise”). Como vou para os Isteites ver o realismo — que aqui não tem — desejo a todos um Happy New Year (já estou treinando)!
PS 1: na bagagem, dois barões: O de Itararé e o de Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu. Foi ele que teve a infeliz ideia de fazer divisão de funções nos e dos Poderes.
PS 2: diz-se por aí, à meia-boca, que a OAB, animada com o resultado parcial da ADI 4.650, vai ingressar com nova ação,[6] desta vez contra o sistema de partidos e o modelo de presidencialismo de coalizão. Afinal, por ele — o presidencialismo — ser de “coalizão”, pode estar violando vários princípios da Constituição. Logo, é inconstitucional (afinal, está abolida a exigência de parametricidade, porque, por certo, a Constituição é uma ordem concreta de valores[7] — veja-se, aí, o parentesco do realismo com a Wertungsjurisprudenz — a tal jurisprudência dos valores). Consequentemente, o próprio mandato da presidenta pode ser nulo. E também todos os seus atos. De todo modo, caberá modulação de efeitos...[8]
PS 3: para quem não entendeu o que escrevi, vai um resumo para Twitter em 123 caracteres: Na democracia, o Judiciário, inclusive o STF, não pode tudo. Tem limites. Caso contrário, esta(re)mos em uma juristocracia.
Ainda numa palavra, ... e falando muito sério, penso que é dever do STF, no exercício da jurisdição constitucional, garantir a igualdade de chances no processo eleitoral. E que, para isso, deve levar em consideração a desigualdade em termos de poder econômico (e também político-administrativo!). Entretanto, não concordo que o STF deva fazer isso em termos paternalísticos. Para mim, o STF deve dizer que condições de financiamento na atual legislação não garantem a igualdade de participação, ao invés de querer impor um sistema específico de financiamento ao legislativo, apenas para que esse o regulamente, sob pena de que, se não o fizer em 24 meses, a Justiça Eleitoral deverá fazê-lo. Esse é o ponto que fragiliza a decisão do STF até aqui. O STF não pode estabelecer "o" sistema de financiamento de campanha, optando por um modelo específico de financiamento, em substituição ao Congresso. Mas penso que o STF pode e deve declarar inconstitucionais pontos específicos da legislação vigente em matéria de financiamento de campanha, caso esses pontos não sejam compatíveis com a igualdade de participação política. Mas, haja, aqui, fundamentação. E fundamentação da fundamentação.
Todavia, em que perspectiva? Isto para mim é chave: o STF não pode dizer qual é "único" sistema que garanta a igualdade (se público, privado ou misto), mas quais pontos do sistema já vigente, seja ele público, privado ou misto, não garante a igualdade política. O problema é como o STF se vê, por um lado, como "legislador positivo" (concorrente ou subsidiário), já definindo qual sistema de financiamento garante a igualdade (o público, por exemplo) ou, mais especificamente para o caso da ADI 4.650, como o STF compreende o tal instituto do "apelo ao legislador" (predefinindo não apenas os prazos — 24 meses — para o legislativo legislar, mas predefinindo parâmetros dentro dos quais o legislador deve legislar), enfim, o modo com que o STF aplica a discutível Lei 9.868/1999. O interessante é que o tal “apelo” nem foi discutido até o momento.
Numa palavra: em uma democracia constitucional, são os próprios cidadãos, mediante seus representantes políticos ou diretamente, quem tem o direito de definir o que consideram relevante do ponto de vista da igualdade e da desigualdade, sobre o pano de fundo de uma história política de aprendizado constitucional vivido com a experiência da violação da igualdade, que não deve admitir retrocessos, embora eles possam acontecer.
Se o sistema deve ser só público ou não, e mesmo assim qual deve ser esse sistema público, penso que isso deve ser decidido "politicamente", obviamente dentro de parâmetros constitucionais que levem coerentemente os direitos políticos a sério, pelo Poder Legislativo, mediante debate público mais amplo.
Se permitirmos que o STF “regulamente” isso, estaremos dando uma carta branca a um Poder que não foi eleito para isso. Não confundamos demo-cracia com juristo-cracia.
[1] Cf. Eisenberg, José. Pragmatismo jurídico. In: Barretto, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, pp. 656‑657.
[2][2] Cf. García Figueroa, Alfonso. A motivação. Conceitos fundamentais. In: Moreira, Eduardo Ribeiro (Org). Argumentação e Estado Constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, pp. 433 e segs.
[3] Essa crítica é muito bem feita por José Levi do Amaral, aqui na Conjur (leia aqui) e por Rafael Tomaz de Oliveira (leia aqui).
[4] Advertência: há sempre um estagiário comigo, com uma placa que é erguida quando falo determinada coisa. Neste caso, a placa levantada é “sarcasmo”.
[5] Como já havia inventado a expressão “pamprincipiologismo”, estou cunhando, agora, a expressão “pamconstitucionalismo”, que significa... “pamconstitucionalismo”.
[6] Nunca se esqueça, em nenhum minuto, do estagiário que me acompanha... Qual a placa os leitores acham que ele levantou, neste momento?
[7] Outra placa dizendo “ironia”.
[8] Outra placa!

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 2 de janeiro de 2014

PROCESSO DO TRABALHO: O ÔNUS DA PROVA DEVE PROTEGER A PARTE COM MAIOR DIFICULDADE





A teoria da aptidão para a prova, pela qual se retira o ônus do autor das alegações e o transfere a quem tem melhores condições de prová-lo, tem aplicação para proteger o interesse da parte que tem dificuldade em demonstrar o seu direito. Com base na aplicação desse princípio, a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) deu razão a um empregado para reconhecer como data de admissão aquela informada por ele na petição inicial, uma vez que a anotada na carteira de trabalho não foi considerada verdadeira.

No caso, o empregado afirmou que foi admitido pela empresa em 5 de setembro de 2011, sem que a carteira de trabalho fosse anotada, e essa irregularidade foi sanada somente em 2 de janeiro de 2012. A empresa alegou a exatidão da data informada na carteira e negou a prestação de qualquer serviço em data anterior. Em 1ª instância, o juiz afirmou que o empregado não provou sua alegação, pois o único meio de prova foi um depoimento testemunhal, considerado frágil.

O trabalhador recorreu ao TRT-3. Segundo relator, juiz convocado Paulo Eduardo Queiroz Gonçalves, apesar da fragilidade da prova testemunhal, a questão mudou após o exame da prova documental apontada pelo reclamante: um controle de ponto, trazido pela própria empregadora. Nele consta que o reclamante faltou ao serviço nos dias 26, 27, 28, 29 e 31 de dezembro de 2011 e trabalhou normalmente no dia 30 do mesmo mês. E, conforme frisou o juiz, não haveria sentido em apontar faltas se a empresa não contasse com o trabalho do reclamante.

No dia apontado como efetivamente trabalhado havia a assinatura do reclamante, comprovando que ele estava na empresa e prestou serviços antes de 2 de janeiro de 2012. Em relação à prova testemunhal, ainda segundo o magistrado, revelou que o trabalho sem assinatura da carteira era uma prática comum na empresa.

Diante disso, o relator considerou que o trabalhador desincumbiu-se do ônus da prova quanto ao termo inicial do contrato antes de assinatura, apontando como correta a data de 5 de setembro de 2011. Assim, e tendo a prova principal da falsidade da data anotada sido produzida pela própria empresa, o magistrado concluiu, com base no princípio da aptidão da prova, que ela deve comprovar a data correta, já que é detentora dos registros de prestação de serviços. O relator acolheu a data informada pelo trabalhador na inicial e determinou a retificação da carteira de trabalho, arbitrando multa diária para o caso de atraso no cumprimento da obrigação. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3.


Revista Consultor Jurídico, 1º de janeiro de 2014

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...