1. IntroduçãoO Direito de Família brasileiro tem-se mostrado bastante receptivo a institutos e figuras dos Direitos Comparado e estrangeiro. Em sendo correto dizer que as bases teóricas clássicas do Direito de Família foram arrasadas após destruição de seu antigo fundamento — a legitimidade —, é também bastante nítida a busca por um novo suporte, embora seja cada vez mais referido o princípio da afetividade.[1]
Ao tempo em que o Direito de Família está em busca de um novo fundamento teórico[2], que corresponda aos profundos câmbios normativos decorrentes da Constituição de 1988 e, com menor intensidade, do Código Civil de 2002, esses novos institutos e figuras surgem por meio de contribuições doutrinárias ou das decisões judiciais, ao exemplo dos chamados “alimentos compensatórios”. E tanto mais polêmicas são essas novas questões quanto nelas se imbrica o problema patrimonial. É o que se observa, por exemplo, no ressarcimento por violação de deveres conjugais ou por abandono afetivo. Nos “alimentos compensatórios”, há uma outra conexão: quando há separação convencional de bens, é possível utilizar essa verba para reequilibrar a situação econômico-financeira dos ex-cônjuges?
São esses interessantes problemas que se terá a oportunidade de discutir nesta e nas próximas colunas, tomando-se por base (a) a jurisprudência, (b) a doutrina nacional e (c) o Direito estrangeiro.
2. O reconhecimento aos alimentos compensatórios no Superior Tribunal de Justiça
2.1. O Caso Collor-RosaneUm dos casos mais importantes para o Direito de Família no ano de 2013 foi o julgamento do recurso especial relativo aos alimentos compensatórios. A despeito do segredo de justiça que envolve o processo, que impediu a página eletrônica do Superior Tribunal de Justiça de divulgar o número do recurso, a situação de fato foi amplamente divulgada nos meios de comunicação, sem qualquer restrição ao nome das partes, a saber: Fernando Affonso Collor de Mello, ex-presidente da República e atualmente senador da República pelo estado de Alagoas, e Rosane Brandão Malta, ex-primeira-dama brasileira.[3]
Como não é possível a consulta aos autos eletrônicos, deve-se confiar no resumo divulgado na página eletrônica do tribunal e dele extrair os elementos descritivos do caso, que foi decidido pela 4ª Turma do STJ, na sessão de 12 de novembro de 2013: [4]
a) O senador Fernando Collor e sua ex-mulher Rosane Malta casaram-se no ano de 1984, sob o regime de separação convencional de bens. Eram as segundas núpcias de Fernando Collor e as primeiras de Rosane Malta, que ainda não havia completado 20 anos.
b) Durante o matrimônio, Fernando Collor foi governador do estado de Alagoas e depois eleito presidente da República. Seu mandato foi abreviado em razão do impeachment ocorrido em 1992. O casal manteve-se unido, apesar de diversas crises divulgadas na imprensa, até o ano de 2005. A separação foi litigiosa e cumulada por uma oferta de alimentos por Fernando Collor, no valor de R$ 5,2 mil, a qual foi contestada por Rosane Malta, que pretendia receber R$ 40 mil.
c) A sentença do juízo de primeiro grau, da Justiça alagoana, deferiu a Rosane Malta dois automóveis e R$900 mil em imóveis, além de uma pensão de alimentos no valor de 30 salários mínimos mensais, pagáveis enquanto lhes fossem necessários. A matéria foi devolvida ao Tribunal de Justiça de Alagoas, que, ao apreciar a apelação do ex-marido, “reduziu a pensão mensal para 20 salários mínimos pelo período de três anos, mantendo a sentença no restante”. Houve recurso de embargos infringentes, após o que “o tribunal estadual restabeleceu o valor de 30 salários mínimos e afastou a limitação de três anos”.[5]
d) No STJ, a matéria foi apreciada em Recurso Especial, tendo como argumentos da parte do ex-marido, o fato de que não houve pedido expresso de alimentos compensatórios pela ex-mulher e, por essa razão, o julgamento fora extra petita. Rosane Malta argumentou que ela se casou aos 19 anos e permaneceu casada ao lado do marido por 22 anos, sem que o ex-marido houvesse colocado qualquer bem em seu nome, o que implicaria “abuso de confiança” por parte de Fernando Collor.
e) No julgamento do recurso, entendeu-se que: i) é possível a atribuição de alimentos compensatórios, na hipótese de quebra do equilíbrio econômico-financeiro decorrente da separação; ii) os alimentos devem ser fixados em prazo de três anos, a contar do trânsito em julgado da decisão; iii) dever-se-ia admitir a transferência de bens de um cônjuge a outro, nos termos do quanto estabelecido nas instâncias ordinárias.
Quanto ao direito aos alimentos compensatórios, o relator ministro Antonio Carlos Ferreira não foi acompanhado pelo ministro Marco Buzzi, em cujo voto dissidente se salientou que a transferência de bens seria contrária ao pacto antenupcial.
No que se refere ao temporal de três anos resultou das discussões durante a sessão de julgamento, com o voto prevalente dos ministros Antonio Carlos Ferreira (relator), Luís Felipe Salomão e Raul Araújo, sob o fundamento de que esse tempo seria suficiente para a preparação do alimentando para a nova realidade econômica advinda do fim da pensão e sua eventual preparação para o mercado de trabalho. Foram dissidentes os ministros Marco Buzzi e Isabel Gallotti, para quem seria dificultoso para uma mulher na altura dos 50 anos aprender um ofício e ganhar a vida com seu próprio esforço, especialmente após ter-se casado aos 19 anos e haver dedicado grande parte de sua vida no acompanhamento de seu ex-cônjuge em suas atividades políticas.
2.2. Os alimentos compensatórios e a verba decorrente dos frutos dos bens comuns: Dois outros importantes precedentes do STJ
A) RHC 28.853/RSÉ de se registrar que, antes do julgamento do caso relatado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, no STJ houve um acórdão no qual o problema dos alimentos compensatórios surgiu em um dos capítulos decisórios. Trata-se do RHC 28.853/RS, relatora a ministra Nancy Andrighi e redator par o acórdão o ministro Massami Uyeda, julgado em 3º Turma, no dia 1º de dezembro de 2011, com publicação no DJe de 12 de março de 2012. Subjacente ao recurso, havia uma execução de alimentos, que foram decididos em ação de separação judicial litigiosa. Em uma decisão monocrática, nos autos da ação de separação, fixou-se em favor do cônjuge virago uma “verba (...) qualificada não como alimentar (...) por força dos frutos que lhe cabe (sic) do patrimônio do casal, já que o demandado está na posse e administração dos bens”, no equivalente a 10 dez salários mínimos.
Posteriormente, foi decretada a prisão do ex-cônjuge varão, que não pagava os valores estabelecidos. O juízo de primeiro grau, para esse fim, contrariando a decisão anterior, alterou a qualificação da “verba não alimentar” e declarou que essa se constituía em “obrigação alimentar (...) mesmo que de cunho compensatório, já que se destina à mantença da autora”.
O ex-marido impetrou Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O acórdão foi-lhe desfavorável.
No STJ, por meio de recurso ordinário em habeas corpus, o alimentante sustentou que a prisão civil seria “manifestamente ilegal”, porquanto “os alimentos objeto da referida execução não têm caráter alimentar, conforme expressamente consignado na própria decisão que os fixou”.
Estava em jogo a questão de saber se esses valores, estabelecidos com caráter nitidamente compensatório, seriam dotados de natureza alimentar e, em segundo plano, se fosse reconhecida esse caráter à verba, surgiria o problema de os compensatórios também se sujeitarem ao regime da prisão civil no caso de inadimplemento dessa obrigação.
A ministra relatora Nancy Andrighi, louvada na doutrina de Rolf Madaleno, entendeu que a “pensão compensatória” possuía caráter ressarcitório e compensatório, e, por essa razão, esses alimentos “não se submetem aos meios executórios coercitivos previstos no
art. 733 do CPC”. No caso dos autos, porém, a verba assumiria natureza de alimentos, pois não houve “distorção na partilha”, “(...) notadamente porque inexiste a própria partilha, elemento essencial à concretização do desequilíbrio gerador das hipóteses de cabimento da pensão compensatória, a qual tem como primordial escopo restaurar a simetria socioeconômica dissipada com o rompimento dos laços afetivos”. Com base nessa distinção, a relatora manteve a decisão denegatória do HC e negou provimento ao ordinário.
O ministro Massami Uyeda, em divergência, que terminou por ser vitoriosa, deu provimento ao recurso. Segundo o relator para o acórdão: a) as decisões de primeiro grau deixaram “expressamente assente que a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto na posse exclusiva do ex-marido, não teria caráter alimentar”; b) no entanto, na execução de alimentos, houve contraditória atribuição dessa natureza, de molde a permitir a aplicação do artigo 733 do Código de Processo Civil, cuja incidência só se justifica quando houver inadimplemento de “alimentos provisionais”, assim fixados em decisão judicial, o que implica a decretação de prisão civil do alimentante.
Ainda segundo o redator para o acórdão, (c) o dever de prestar alimentos, durante a vigência do casamento, funda-se na assistência mútua dos cônjuges. Uma vez extinta a sociedade matrimonial, esse dever substitui seu fundamento para se esforçar na solidariedade conjugal, tendo um sentido estrito: a conservação dos meios de subsistência, o que se explica pelo binômio necessidade-possibilidade. No caso levado ao exame do STJ, “executa-se a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele se encontra na posse exclusiva do ex-marido”. Essa verba não tem fundamento na solidariedade, muito menos na mútua assistência conjugal, mas no direito de meação. Dito de outro modo: evita-se que, enquanto pendente a partilha, haja enriquecimento sem causa em favor de um dos cônjuges, especificamente aquele que detém a posse dos bens comuns.
O ministro Massami Uyeda, ao enfrentar o tema específico dos “alimentos compensatórios, entendeu que (d) os valores decorrentes da partilha, como se cuida da hipótese do recurso ordinário, não se confundiriam com o conceito de “pensão compensatória” ou “alimentos compensatórios”, “que tem por desiderato específico ressarcir o cônjuge prejudicado pela perda da situação financeira que desfrutava quando da constância do casamento e que o outro continuou a gozar”. A finalidade dos compensatórios é desconectada da oferta de meios indispensáveis à manutenção do alimentando, porquanto “objetivam minorar o desequilíbrio financeiro experimentado por apenas um dos cônjuges em razão da dissolução da sociedade conjugal”. A hipótese de prisão civil, considerados os elementos descritivos do processo oriundo do Rio Grande do Sul, não seria adequada, conforme assinalou o redator para o acórdão.
Neste complexo julgamento, o ministro Sidnei Beneti pediu vista e apresentou um erudito voto acompanhando a divergência e tendo a oportunidade de oferecer algumas considerações sobre a natureza dos alimentos compensatórios:
a) O uso da expressão “alimentos compensatórios” abre margem para equívocos desnecessários quanto à sua natureza pseudoalimentar. Seria mais adequado referir-se a “prestação” (arts. 270-271 do Código Civil francês) ou “pensão” (art. 97 do Código Civil espanhol) e deixar “alimentos” para qualificar o que tradicionalmente se denominou de “verba destinada à subsistência material e social do alimentando (alimentos naturais e civis, ou côngruos)”.
b) Os “alimentos compensatórios” não possuem caráter alimentar ou civil e ostentam, na verdade, “natureza indenizatória”, ao estilo do que ocorre na legislação francesa. Essa distinção essencial impede a incidência do artigo 733 do CPC e, com efeito, a própria noção de custódia civil no caso de inadimplemento é de ser repelida, segundo o ministro Sidnei Beneti.
c) O não encerramento da partilha e o uso astucioso de um terceiro para figurar como recebedor fraudulento de valores em conta-corrente (a mãe do alimentante) não podem, de per si, alterar a natureza jurídica da verba não adimplida, “embora dessas circunstâncias possam-lhe advir consequências adversas no decorrer do processo de execução, desprovido da característica de execução alimentar, quer dizer, ao caso não se aplica o disposto no art. 733, § ún., do Cód. de Proc. Civil”.
O julgamento terminou com o provimento do recurso, por maioria de votos. Acompanharam o voto dissidente do ministro Massami Uyeda os ministros Sidnei Beneti e Villas Bôas Cueva. Vencida a relatora ministra Nancy Andrighi.
B) HC 34.049/RSMuito citado durante o julgamento do RHC 28.853/RS foi o acórdão da 3ª Turma do STJ, prolatado na sessão de 14 de maio de 2004, com publicação na RT 831/219, com relatoria do ministro Carlos Alberto Direito, no qual também se afastou a prisão civil por inadimplemento de verba alimentar.
O essencial desse julgado de 2004 está na interpretação dada ao artigo 4o, parágrafo único, da Lei no 5.478/1968, a conhecida Lei de Alimentos. O caput prevê que o juiz, ao receber a inicial, fixará imediatamente “alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita”. O parágrafo único ressalva que, em se tratando de casamento com regime de comunhão universal, “o juiz determinará igualmente que seja entregue ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns, administrados pelo devedor”.
Em situação idêntica a do RHC 28.853/RS, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decretara a prisão do ex-cônjuge, por ele haver-se recusado a pagar, “enquanto não for concretizada a partilha”, o equivalente a 16 salários mínimos, “‘a título de frutos dos bens comuns’”.
Nos termos do voto condutor, o parágrafo único do artigo 4o da Lei de Alimentos “estabelece distinção entre os alimentos provisórios e os frutos dos bens comuns”. Esse quantum não se confundiria “com os alimentos provisórios, daí não ensejar a prisão civil prevista no art. 733, § 1º, do Código de Processo Civil”.
4. Conclusão
O acórdão do STJ, no caso Collor-Rosane, apresenta diversas questões de interesse para o Direito de Família, como (a) os limites à interferência judicial em um regime de separação convencional de bens; (b) a extensão temporal do direito aos alimentos; (c) a existência dos chamados “alimentos compensatórios” como figura jurídica autônoma no ordenamento jurídico e a (d) formulação de um princípio do equilíbrio econômico nas relações conjugais.
Inicia-se, com esta coluna, uma série sobre os “alimentos compensatórios”, sempre considerando o enfoque doutrinário nacional e também o Direito estrangeiro, mas, por limitações de espaço, centrando-se nos itens (c) e (d). Quanto ao item (a), recomenda-se a leitura das colunas Limites da intervenção judicial na separação de bens e Suprema Corte britânica valida pacto antenupcial. Na próxima coluna, será exposta a visão da doutrina nacional sobre o problema dos alimentos compensatórios.
[1] Publicou-se em 2013 uma interessante obra de Ricardo Lucas Calderón, prefaciada por Luiz Edson Fachin, que tenta dar contornos ao princípio da afetividade: Calderón, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
[2] Busca essa que, para muitos doutrinadores brasileiros, já se encerrou com a adoção do princípio da afetividade como sucedâneo do princípio da legitimidade.
[3] Em uma rápida pesquisa na internet é possível informações sobre o caso e as partes envolvidas: STJ retoma julgamento do pedido de pensão da ex-primeira-dama Rosane Collor e Vida dura, ambos acessados em 24/12/2013.
[5] Transcrição das informações divulgadas no sítio eletrônico do STJ, neste link. Acesso em 22/12/2013.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2014
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