terça-feira, 19 de novembro de 2013

É UM PÁSSARO? UM AVIÃO? NÃO, É O 'SUPERJUIZ'!

 


É um pássaro? Um avião? Não, é o 'superjuiz'!

Por José Miguel Garcia Medina



Tomemos a sério o projeto de novo Código de Processo Civil.

Se, de um lado, é evidente que uma nova lei processual não resolverá todos os problemas da Justiça brasileira, é inaceitável que as discussões em torno do projeto sejam baseadas em retóricas vazias, destituídas de fundamento.

O título do texto da coluna de hoje é uma provocação: alguns afirmam que o projeto de novo CPC cria “superjuízes” com “superpoderes”.

Diz-se que, pelo projeto, se permitiria que os juízes concedessem liminares de antecipação de tutela e cautelares. Seria possível, ainda, a execução de decisões proferidas pelo juiz de primeiro grau, sem que coubesse recurso... Absurdamente, o projeto permitiria o arresto de bens do devedor!

Voltemos os olhos, por um instante, ao Código em vigor. A possibilidade de concessão de liminares cautelares, antes de ouvido o réu, existe desde 1973 (cf. artigo 804 do CPC).[1] A reforma que deu nova conformação à antecipação dos efeitos da tutela, por sua vez, é de 1994.[2] A possibilidade de concessão de arresto, liminarmente, não é criação do projeto hoje em trâmite no Congresso Nacional: todos conhecem a medida prevista nos artigos 813 e seguintes do Código em vigor.[3]

A decisão que concede liminar antecipando efeitos da tutela, por sua vez, pode ser executada de imediato: o recurso cabível, no caso, não tem efeito suspensivo automático (cf. artigos 273, parágrafo 3º, e 558 do CPC). Essa é a disciplina prevista no Código em vigor, a respeito. Nota-se aí, de todo modo, uma incoerência: a decisão que concede liminar — fundada, portanto, em cognição sumária — pode ser executada liminarmente, enquanto a sentença condenatória sujeita-se a recurso que, como regra, deve ser recebido com efeito suspensivo (CPC, art. 520), impedindo sua execução imediata. O Código em vigor, assim, permite a execução imediata de uma liminar fundada em cognição sumária, mas não a execução de sentença fundada em cognição exauriente...

Por falar em “superpoderes”, que dizer do parágrafo 5º do artigo 461 do Código em vigor? No caso, não é a lei, mas o magistrado quem define quais as medidas executivas e o modo de sua realização.

A ampliação dos poderes de decisão do magistrado não decorreu apenas de reformas processuais (os artigos 273 e 461 do Código, a meu ver, são os mais expressivos nesse sentido). A sociedade, cada vez mais complexa, muda muito rapidamente, e os dispositivos de direito material valem-se, cada vez mais, de cláusulas gerais, conceitos vagos e indeterminados. Tudo isso acaba impondo uma maior participação do magistrado na construção da solução jurídica. E temos, ainda, todos os problemas que envolvem as decisões judiciais fundadas em princípios jurídicos.

O projeto de novo CPC, assim, deve ocupar-se de dar os contornos da atuação jurisdicional, nesse contexto (isso é, nesse contexto social, à luz de disposições de direito material dessa natureza).

Embora tenha participado da comissão que elaborou o anteprojeto, tenho minhas críticas ao projeto de novo CPC. Boa parte delas, inclusive, tenho suscitado nos textos da coluna Processo Novo.

É preciso humildade, contudo, ao discutir um projeto de lei de tamanha importância. Há dispositivos com os quais não concordo e, creio, devem ser corrigidos, ainda durante a tramitação do projeto no Congresso Nacional. Mas um Código não deve refletir a opinião de um jurista; um Código deve conter as ideias principais de uma comunidade, ajustadas à sua realidade e ao seu tempo. E isso o projeto contém, sem dúvida.

É inaceitável, assim, que as discussões relacionadas ao projeto se restrinjam a dois ou três dispositivos que, isoladamente, não refletem a principiologia do Código proposto.

Se há algo contra o que o projeto de propõe a lutar é justamente contra o arbítrio e o subjetivismo na construção das decisões judiciais. O artigo 499, parágrafo 1º, do projeto dá novo tratamento do dever de fundamentação das decisões judiciais. Há, por exemplo, exigência de minuciosa fundamentação quando a decisão é fundada em princípios jurídicos. O artigo 520 do projeto, por sua vez, preocupa-se com a concretização de uma jurisprudência íntegra. Além disso, o projeto contém um sem número de disposições contrárias à jurisprudência defensiva, e que tornam o procedimento mais simples. O projeto retrata, ao longo de suas disposições, um ajuste da lei processual às garantias mínimas do processo, decorrentes do devido processo legal.

O projeto não cria um “superjuiz” com “superpoderes”. Se a arbitrariedade e o subjetivismo são as marcas da atuação de um “superjuiz”, ele já está entre nós, e só o desconhecimento da realidade permite dizer que isso seria decorrência do projeto de novo CPC. O projeto não esconde, mas revela os problemas que hoje existem no direito processual civil, e se propõe a lutar contra eles.

Há algum tempo, em outro local, fiz observações a respeito da relação entre direito e humildade. Tomo a liberdade de transcrever, aqui, um trecho do que escrevi naquele espaço:

"O ser humano é imperfeito. Por isso - embora não apenas por isso, evidentemente -, temos o Direito. A existência, a necessidade do Direito decorre da imperfeição do ser humano. Fôssemos perfeitos, irrepreensíveis, o Direito poderia ser, até, desnecessário. Isso é algo que aprendemos logo que nos colocamos a estudar o Direito. Aliás, isso vale para o Direito, como vale também para a Bíblia. A Bíblia, ao narrar a história do relacionamento entre Deus e o ser humano, não descreve apenas os feitos, mas também as falhas - às vezes, graves -, de profetas, apóstolos, etc. É certo que há santos referidos na Bíblia, com uma história sem mácula - além dos santos, evidentemente, há Jesus, mas Jesus está em um outro nível, nessa história toda. Aprendemos, com as histórias de Davi e Pedro, por exemplo, que mesmo figuras grandiosas cometem erros. Nem por isso, contudo, desistiram. Sentindo-se amados por Deus, seguiram em frente, pois sabiam que tinham uma meta a cumprir. [...]. Depois que nos descobrimos imperfeitos, vemos quão fracos somos, quão propensos aos erros... Daí, pois, a necessidade do Direito. Os reflexos jurídicos do reconhecimento da imperfeição humana aparecem em todos os cantos. Vejam as regras processuais, por exemplo: confiássemos na infalibilidade dos juízes, certamente as regras relativas à necessidade de fundamentação judicial seriam diferentes - ou sequer existiriam. O Direito é feito em comunidade. Ninguém faz Direito sozinho. A exigência - para mim, um princípio - de que a jurisprudência seja íntegra, também decorre da ideia (ou do humilde reconhecimento) da imperfeição humana: como os juízes não estão sozinhos no mundo - e, evidentemente, não estão sós no mundo jurídico -, devem compreender o que se produz na jurisprudência - do mesmo Tribunal, de orgãos superiores etc. -, seguirem aquilo que se produziu ou, se divergirem, devem indicar os porquês. Ninguém se fez ou se faz sozinho. Devemos muito uns aos outros - ok, talvez esse não seja o seu, mas é o meu caso. O Direito também se faz comunitariamente. Por isso - ou apesar disso - acho estranho quando alguém cria para si uma máscara de perfeição. Aprendi a desconfiar daqueles que vivem a ostentar qualidades (reais?). Exibindo uma falsa perfeição, moralistas de plantão sempre têm algo a esconder. Isso vale para os moralistas, mas também para os juristas/censores de plantão: ninguém sabe tudo. Aqueles que muito estudam sabem que têm muito a aprender. No fundo, somos um monte de gente imperfeita lutando contra nossas imperfeições. Por isso, gosto de pensar que não precisamos ser perfeitos - seríamos um grande fracasso - mas devemos ser íntegros: tentar crescer como seres humanos, tentar melhorar dia a dia, reconhecer os erros e, apesar de nossas imperfeições, continuar lutando, seguindo em frente, aprendendo com a vida, aprendendo uns com os outros. Sejamos humildes, pois - assim na vida, como no Direito."

Creio que esse é o momento em que vivemos. As críticas ao projeto do novo CPC decorrem, em boa medida, de não reconhecermos ou não querermos reconhecer as mazelas do processo civil atual. Assim, afirmar que o projeto de novo CPC cria “superjuízes” é como que uma fuga para não reconhecer os problemas de arbitrariedades e subjetivismos que temos hoje. Mais que tudo, é uma recusa ao reconhecimento de nossos problemas e à tentativa de melhorar o que temos. É, talvez, uma tentativa de manter o status quo.

Tomemos a sério, pois, o projeto de novo Código de Processo Civil. Que o discutamos, mas com seriedade.

[1] O Código de 1939 também previa a possibilidade, em seu artigo 683.

[2] Cf. Lei 8.952/1994, que deu nova redação ao art. 273 do CPC.

[3] No Código de 1939, cf. art. 676, I e 681.


José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.

Revista Consultor Jurídico, 18 de novembro de 2013

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

POR QUE TANTO SE DESCUMPRE A LEI E NINGUÉM FAZ NADA?

 


Por que tanto se descumpre a lei e ninguém faz nada?

Por Lenio Luiz Streck



Os atalhos hermenêuticos
Há muito tenho insistido na tese de que uma lei votada pelo Parlamento só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses: a) se for inconstitucional, b) se for possível uma interpretação conforme a Constituição, c) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto, d) no caso de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto, e) se se estiver em face de resolução de antinomias e f) no caso do confronto entre regra e princípio (com as ressalvas hermenêuticas no que tange ao pamprincipiologismo). Fora disso, estar-se-á em face de ativismos, decisionismos ou coisa do gênero. Portanto, o judiciário possui amplo espaço. Nada mais, nada menos do que seis maneiras. Mas parece que, na cotidianidade, o judiciário prefere um atalho. Sim, um atalho silipsístico.

Um dos dispositivos que simboliza isso é o artigo 212 do Código de Processo Penal. Ali claramente está escrito que o juiz só pode fazer perguntas complementares quando da oitiva das testemunhas. Ali está inscrito o sistema acusatório. Juiz não faz prova. As partes é que fazem. Não é porque eu quero que seja assim. Simplesmente “está na lei”. O legislador, ao votar a nova redação do CPP, disse: não haverá mais inquisitivismo. Simples, pois.

O resultado, entretanto, é que o Judiciário, em sua maior parte, respaldado por equivocadas leituras do STJ e do próprio STF e por uma literatura jurídica conservadora e distante da Constituição, rasgou o texto legal. E onde está escrito “apenas perguntas complementares”, passou-se a ler, “continuemos a fazer audiências como era antes”. E a lei? Bem, a lei...

Um caso emblemático
Recentemente, o TJ-RS, examinou o seguinte caso: em uma cidade do interior, o Promotor de Justiça não pôde comparecer à audiência e o juiz fez toda a prova, inquirindo testemunhas e tudo o mais. E depois, condenou o réu com base na prova que ele mesmo, juiz, produziu. O advogado fez uma preliminar alegando nulidade. O juiz rechaçou, do mesmo modo que o TJ fez na sequencia.

Na apelação, o desembargador relator votou pela nulidade, em preliminar. Com esse voto, a defesa interpôs embargos infringentes, que foram improvidos. Decidiu-se, assim, que o fato de o juiz ter de assumir a exclusividade da inquirição das testemunhas devido à ausência do promotor na audiência não-anula-o-processo-criminal. Afinal, segundo o Tribunal, os artigos 201 e 203 do CPP obrigam o julgador a ouvir vítimas e testemunhas para formar a sua convicção. Já de pronto podemos jogar com a hermenêutica: de fato os artigos 201 e 203 dizem isso... só que, logo depois, explicando como isso se dará, há um dispositivo, novinho em folha, o 212, que estabelece que o juiz não poderá inquirir as testemunhas, com exceção de perguntas complementares. Ah: “complementares”, ao que sei, complementam e, portanto, vem depois de alguma coisa, correto?

Mas o mais inusitado é que o juiz e o tribunal sustentaram que “a defesa não apontou o efetivo dano causado pelo fato de o juiz ter iniciado as perguntas.” Confesso que não entendi. Como assim? O sujeito foi condenado a sete anos e meio de reclusão, com prova feita exclusivamente pelo juiz e ainda assim necessita provar que houve prejuízo?

Outro ponto interessante é que a relatora dos embargos, no grupo, sustentou que a nulidade prevista no artigo 564, inciso III, alínea ‘d’, do CPP, é relativa e foi considerada sanada. E isto porque a irregularidade (sic) não foi arguida em tempo oportuno, como prevê o artigo 572 do mesmo diploma legal. Mas o que diz o artigo 564, III, “d”, do CPP? “A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III — por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública.”

Pronto. Isso não quer dizer nada? Se o MP não está na audiência, não faz a prova, tal circunstância não se enquadra na hipótese desse dispositivo? Mais: somando a clareza meridiana do artigo 212 com a do artigo 564, III, d, a pergunta é: poderia a audiência ser realizada? E, se sim, como ultrapassar a nulidade decorrente da prova feita pelo juiz?

Ainda: onde está escrito que essa nulidade é relativa? E onde está escrito que o advogado deve “protestar” em tempo hábil? Não seriam as regras que estabelecem o sistema acusatório “regras procedimentais de direitos fundamentais” e, por isso, a simples violação já não acarretaria nulidade insanável? Aliás: diz-se, hoje, que todas as nulidades são relativas. Pois é. E digo eu: se tudo é, nada é. Logo, todas não são relativas. Questão de lógica.

Convenhamos: o juiz fez a prova. Fez as perguntas às testemunhas. De que modo? Ora, o inquisidor só faz perguntas que venham a sustentar a decisão que ele já tomou. Esse é o cerne do inquisitivismo. O resultado já está dado. Busca, então, a argumentação. Por isso, o prejuízo é evidente. E é por isso que as provas devem ser feitas pela defesa e pelo MP.

Tentarei ser mais claro: o juiz que conduz a produção da prova, por mais bem intencionado que seja, termina se contaminando pelo objeto da busca, saindo do seu lugar de isenção. Vincula-se psicologicamente ao que procura. E como diz o adágio, “quem procura, acha”. E por que procura? Diante do princípio constitucional da presunção de inocência — que impõe à acusação o ônus de buscar provas — qual a motivação de um juiz que se substitui ao acusador? Será que alguém desinteressado, imparcial, procuraria? Indo mais a fundo, o que motiva alguém que deve estar em um lugar imparcial a produzir provas? Essa separação de funções no processo, em todos os seus atos e em todas as fases, é uma garantia não só para o acusado, mas para a sociedade.

A justificativa mais comum para essa anomalia na atuação do juiz se dá com base no falacioso princípio da “verdade real”. Vai-se no guarda-roupas do voluntarismo, despe-se da toga e veste a beca da acusação. E por que a da acusação? Porque o ônus de provar o alegado é do acusador. Ora, se a função do acusador é comprovar a materialidade a e autoria dos fatos, o magistrado que também investiga termina por usurpar a prerrogativa do Ministério Público nesse ônus. Sai do seu lugar de fala imparcial. A cadeira do juiz fica vazia. Onde isso ocorria? Na inquisição. A missão do juiz em uma democracia tem que ser maior do que isso. Que deixe as partes atuarem e cumprirem seus papéis. O trabalho do juiz é o de resgatar a historicidade dos fatos. Atuar assim é elevar a função de juiz.

O furo é mais embaixo
O caso pode nem ser importante (a não ser, é claro, para o réu, condenado a 7 anos e meio de reclusão, se me permitem a ironia). O mais importante é o simbólico. O STJ, o STF e os tribunais em geral insistem em descumprir a lei (pelo menos em parte considerável do território nacional). O STF, em vários HCs, decidiu que a nulidade decorrente do descumprimento do artigo 212 do CPP é relativa. Em um deles, disse que o advogado deveria “protestar”, sob pena de a nulidade ser convalidada. Impressionante como os limites semânticos valem tão pouco. E por que isso é assim? Porque continuamos a desconfiar do Parlamento. Consideramos o Parlamento impuro. Por isso, apostamos na virtuosidade — que seria sempre decorrente da técnica — do Judiciário. A técnica seria inerente apenas ao Judiciário. Consequentemente, como o Parlamento faz política, o faz sem técnica. Com isso, a política fica relegada a uma a-tecnicidade. Assim, a técnica corrige a lei, porque é mal feita, imprecisa, injusta.... E como fazemos isso? Com nossos juízos morais. Sim, substituímos os juízos que são do legislador pelos nossos. E por que os nossos seriam melhores do que daqueles que se elegem? Afinal, queremos uma demo-cracia ou uma juristo-cracia?

Temos que nos livrar do “fantasma de Oskar Bülow”, isto é, a aposta no protagonismo judicial que atravessou os séculos. É evidente que o judiciário deve zelar pelo cumprimento da correta aplicação da legislação. Para tanto, ele dispõe do controle de constitucionalidade difuso e concentrado, além das técnicas de interpretação conforme, etc.. O que ele — o Judiciário — não pode fazer é se substituir ao legislador. Se o legislador é ruim para mim, o é também para todos. E se ele for bom, o é para todos. Esse é o mínimo de previsibilidade que eu exijo, como cidadão.

Minha leitura lenta, lentíssima, do artigo 212 do CPP
Vejamos como se formou esse ovo da serpente. Guilherme Nucci, logo que saiu a Lei, sustentou aquilo que o Poder Judiciário queria ouvir (v.g. STJ - HC 121215/DF DJ 22/02/2010), isto é, que a “inovação [do artigo 212 do CPP], não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido.”[1] No mesmo acórdão e no mesmo sentido, foi citada doutrina de Luís Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, que dizem: “A leitura apressada deste dispositivo legal pode passar a impressão de que as partes devem, inicialmente, formular as perguntas para que, somente a partir daí, possa intervir o juiz, a fim de complementar a inquirição. Não parece se exatamente assim. (...) Melhor que fiquemos com a fórmula tradicional, arraigada na ‘praxis’ forense (...)”.[2]

Minha pergunta: uma leitura apressada, professor? Então eu sou muito lento. Na verdade, alguém poderia me chamar de Esse-lentíssimo (se me entendem a ironia). Vamos ler, juntos, de novo o dispositivo? Assim: “as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.” E no parágrafo único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”. Veja-se: sobre pontos não esclarecidos. Somente sobre estes é que é lícito ao magistrado complementar a inquirição. Bingo.

Consequentemente, parece evidente que, respeitados os limites semânticos do que quer dizer cada expressão jurídica posta pelo legislador, houve uma alteração substancial no modo de produção da prova testemunhal. Repito: isso até nem decorre somente do “texto em si”, mas de toda a história institucional que o envolve, marcada pela opção do constituinte pelo modelo acusatório. Por isso, é extremamente preocupante que setores da comunidade jurídica de terrae brasilis, por vezes tão arraigados aos textos legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade (ou a sintaxe) mínima que sustenta a alteração. Daí a minha indagação: em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?

E, permito-me insistir: por vezes, cumprir a “letra da lei” é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las “à risca” é nosso dever. Levemos o texto jurídico a sério, pois! Por isso, não é possível concordar com as considerações de Nucci e Luiz Flávio sobre a “desconsideração” da alteração introduzida pelo legislador democrático no artigo 212.

E, por favor, que não se venha com a velha história de que “cumprir a letra ‘fria’ (sic) da lei” é assumir uma postura positivista...! Aliás, o que seria essa “letra fria da lei”? E qual seria a letra “quente”? Na verdade, confundem-se conceitos. As diversas formas de positivismo não podem ser colocadas no mesmo patamar e tampouco podemos confundir uma delas (ou as duas mais conhecidas) com a sua superação pelo e no interior do paradigma da linguagem. Tudo isto já deixei explicitado em inúmeros textos. Apenas quero relembrar que saltamos de um legalismo primitivo, que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia de direito presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal — e me recordo aqui de Elias Dias —, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional.

Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer “à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga.

Portanto, deve haver um cuidado com o manejo da Teoria do Direito e da hermenêutica jurídica. Olhando para a decisão do TJ-RS e para as posições doutrinárias citadas, é de se pensar em que momento o direito legislado deve ser obedecido e quais as razões pelas quais fica tão fácil afastar até mesmo — quando interessa — a assim denominada “literalidade da lei”[3].

Indago: juristas críticos (pós-positivistas?) seriam (são?) aqueles que “buscam valores” que estariam “debaixo” da “letra da lei” (sendo, assim, pós-exegéticos) ou aqueles que, baseados na Constituição, lançam mão da “literalidade da lei” para preservar direitos fundamentais?

Numa palavra final: vale a pena insistir? Eis a Montanha do Purgatório
A questão fulcral, aqui, não é discutir o caso ou os milhares de casos em que as leis são descumpridas e mutiladas. O ponto do estofo é saber o que queremos de nossas instituições. Já não estamos cansados de tanto ativismo?

Qual é o sentido se, em uma democracia, uma vez construída a legislação, no dia seguinte o judiciário decida simplesmente não cumpri-la. E o Ministério Público se queda silente... E a OAB se queda silente... O próprio Parlamento se queda silente...

E isso vai de seca à meca. Um dia é o STF determinando posse de juiz em TRF em decisão flagrantemente contrária à “letra” da Constituição; noutro, em nome de argumentos meta-jurídicos, a Suprema Corte cassa mandato que, dias antes, dissera ser prerrogativa do Parlamento; o próprio STF descumpre a Lei 9.868, ao emitir liminares e não as levar ao Plenário da Corte, como por exemplo, a ADI 4.917 (dos Royalties), cuja liminar é de março de 2013, além de outras sete ações desde 2009[4] que pendem de ir a Plenário; o STJ emite súmulas contra-legem... Os tribunais descumprem o artigo 212 e o 564 do CPP. E assim por diante.

E a doutrina? Bem, a doutrina já de há muito se entregou, assumindo um lugar confortável de reproduzir o que os tribunais dizem. Pior são os doutrinadores que sustentam que o direito é o que o Judiciário diz que é, como que a repetir, tardiamente, um bordão do realismo jurídico.

O que levou a tudo isso? A resposta é simples: com esse ensino jurídico e com a mediocridade que tomou conta do imaginário jurídico, nada mais pode nos surpreender. Confesso que estou cansando. Com pouca ajuda, penso em recolher minhas armas epistêmicas. Angariar antipatias cotidianas... vale a pena?

Enfim... Sinto-me como Ulisses — e a inspiração me veio de um texto do jornalista Luis Antonio Araujo — que, ao deixar os encantos de Circe, conduz sua expedição até as Colunas de Hércules (o Estreito de Gibraltar), onde era o limite do mundo, e exulta os companheiros a transpô-lo para conhecer o que se encontra mais além (“Feitos não fostes para viver como animais mas para buscar virtude e conhecimento”). Mas, no meio do oceano, sua última visão é a da Montanha do Purgatório, que se ergue no poente, mas já um tufão se levanta e sepulta o navio e seus tripulantes (“Até que o mar sobre nós se fechou”)!
[1] Cf. Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 479-480. (grifei)
[2] Cf. Gomes, Luís Flávio; Cunha, Rogério Sanches. Pinto, Ronaldo Batista. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 302. (grifei)
[3] Sobre “literalidade da lei”, remeto o leitor à introdução do Verdade e Consenso.
[4] Veja-se nesse sentido, denúncia do ministro Gilmar Mendes na ADI 4.638.


Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 14 de novembro de 2013

ESCOLA É CONDENADA A PAGAR 200 MIL A ALUNA QUE MANTINHA RELAÇÕES SEXUAIS COM PRESTADOR DE SERVIÇOS



Escola terá de indenizar em R$ 200 mil aluna que mantinha relações sexuais com prestador de serviço
Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aumentou em dez vezes o valor da indenização que um colégio do Rio de Janeiro foi condenado a pagar a aluna que mantinha relações sexuais com um prestador de serviço da escola.

A adolescente, de 12 anos, e o prestador de serviço mantinham encontros frequentes, por mais de um ano, sempre em horário escolar. As relações sexuais aconteciam dentro do estabelecimento de ensino e foram descobertas pelos pais da menina.

Os pais decidiram mover ação por danos materiais e morais, decorrentes da negligência do colégio em vigiar adequadamente seus alunos e funcionários. A sentença, confirmada em acórdão de apelação, julgou parcialmente procedente o pedido e condenou a instituição ao pagamento de R$ 20 mil, a título de compensação pelos danos morais.

Direito de personalidade

A escola e a menor, representada pelos pais, recorreram ao STJ. A relatora, ministra Nancy Andrighi, não só reconheceu a negligência da instituição, mas também que o valor da indenização arbitrado não se mostrou condizente com a gravidade da situação e o princípio da razoabilidade.

“Os episódios narrados certamente marcarão a vida da aluna e de sua família por toda a vida, violando de maneira indelével o seu direito de personalidade. À vista de todo o exposto, sopesadas as especificidades reveladas nos autos, reputo adequado fixar o valor da compensação pelos danos morais em R$ 200 mil”, concluiu a relatora.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
FONTE; STJ

EX-CÔNJUGE TEM DIREITO A ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS, DECIDIU O STJ



DECISÃO Quarta Turma admite fixação de alimentos compensatórios para ex-cônjuge
Presentes na doutrina, mas ainda pouco discutidos na jurisprudência brasileira, os alimentos compensatórios se destinam a restaurar o equilíbrio econômico-financeiro rompido com a dissolução do casamento. Na sessão desta terça-feira (12), a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a fixação de alimentos compensatórios ao julgar recurso vindo de Alagoas.

No caso julgado, o ex-marido propôs duas ações – de oferecimento de alimentos e de separação judicial litigiosa. O juiz da 27ª Vara Cível da Comarca de Maceió reuniu as ações. O ex-marido ofereceu R$ 5,2 mil; a ex-mulher pediu R$ 40 mil.

Frustradas as tentativas de conciliação, o juiz proferiu sentença conjunta, arbitrando os alimentos em 30 salários mínimos mensais, a serem pagos enquanto a ex-mulher necessitar. Garantiu também à ex-mulher dois veículos (Corolla e Palio ou similares) e imóveis no valor total de R$ 950 mil.

Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça de Alagoas, por maioria, reduziu a pensão mensal para 20 salários mínimos pelo período de três anos, mantendo a sentença no restante. No entanto, houve embargos infringentes, um tipo de recurso cabível quando a sentença é reformada por decisão não unânime. Nesse segundo julgamento, o tribunal estadual restabeleceu o valor de 30 salários mínimos e afastou a limitação de três anos.

Fora do pedido

No STJ, o ex-marido alegou que, na contestação, a ex-mulher fez referência tão somente aos alimentos no valor de R$ 40 mil, não mencionando nenhum valor a título compensatório. Para a defesa do ex-marido, isso representaria um julgamento extra petita, isto é, fora do pedido. Por isso, requereu a exclusão da obrigação quanto aos imóveis e aos veículos.

A defesa do ex-marido pediu, ainda, que o STJ fixasse um prazo certo para o pagamento dos alimentos, pois estes não poderiam configurar uma espécie de “aposentadoria”, estimulando o ócio. A ex-mulher tem 46 anos e possui formação superior.

Já a defesa da ex-mulher argumentou que ela se casou aos 19 anos e permaneceu ao lado do ex-marido por 22 anos, sem que qualquer bem tivesse sido colocado em seu nome, algo que demonstraria “abuso de confiança” por parte dele.

Livre convicção

Ao proferir seu voto, na sessão de 6 de novembro de 2012, o relator, ministro Antonio Carlos Ferreira, entendeu não estar configurado julgamento extra petita. “A apreciação do pedido dentro dos limites propostos pelas partes na petição inicial ou na apelação não revela julgamento ultra ou extra petita”, afirmou.

O ministro explicou que o juiz fixa os alimentos segundo o seu convencimento, adotando os critérios da necessidade do alimentado e da possibilidade do alimentante. “Na ação de alimentos, a sentença não se subordina ao princípio da adstrição judicial à pretensão”, explicou.

O relator observou que a entrega dos apartamentos e dos veículos arbitrada pela sentença e a condenação ao pagamento de alimentos naturais (necessários) e alimentos civis (destinados à preservação da condição social da ex-mulher) levou em conta os elementos apresentados nos autos pelas partes.

Desequilíbrio

Para o relator, no caso, houve ruptura do equilíbrio econômico-financeiro com a separação, sendo possível a correção desse eventual desequilíbrio com a fixação de alimentos compensatórios.

Quanto ao prazo para os alimentos, o ministro Antonio Carlos destacou que o pagamento vem sendo feito desde 2002. Assim, como a ex-mulher tem idade e formação que permitem sua inserção no mercado de trabalho, o ministro votou, inicialmente, pelo pagamento de prestação alimentícia por três anos, a contar do trânsito em julgado da decisão.

Na sessão desta terça-feira, após os votos-vista da ministra Isabel Gallotti, proferido em 19 de setembro, e do ministro Marco Buzzi, a Turma, por maioria de votos, deu parcial provimento ao recurso, acompanhando o voto do relator.

O ministro Luis Felipe Salomão ressaltou que a conclusão do relator corresponde à jurisprudência do STJ. Há precedentes da Corte que fixam a tese de que o pedido de pensão formulado é meramente estimativo. Não configura decisão extra petita o arbitramento de valor maior que o solicitado, com base nos elementos do processo.

Nesse ponto, o ministro Marco Buzzi ficou vencido. Reconheceu o julgamento fora do pedido apresentado pelas partes e considerou que a cessão de bens viola o regime de casamento estabelecido em acordo pré-nupcial.

Prazo da pensão

No mesmo recurso, o ex-marido contestou o valor da pensão estabelecido em 30 salários mínimos, e sua duração por tempo indeterminado – enquanto a mulher necessitasse e o alimentante pudesse pagar, ou até a ocorrência de algum fato novo que permitisse a revisão dos alimentos. Na ação, o ex-marido ofertou pensão alimentícia de R$ 5,2 mil e a ex-mulher pediu R$ 40 mil.

Por unanimidade de votos, a Turma manteve a pensão em 30 salários mínimos. Contudo, após intenso debate, a maioria dos ministros fixou o prazo de três anos para pagamento da pensão, a contar da publicação do acórdão desse julgamento.

O ministro Antonio Carlos Ferreira aderiu, no ponto, aos votos dos ministros Luis Felipe Salomão e Raul Araújo, que consideraram o prazo de três anos, a contar dessa decisão, suficiente para a mulher se organizar e ingressar no mercado de trabalho.

A ministra Isabel Gallotti e o ministro Marco Buzzi ficaram vencidos. Votaram pela manutenção do prazo indeterminado. Segundo eles, é muito difícil para uma mulher de aproximadamente 50 anos de idade, sem nenhuma experiência profissional, inserir-se no mercado de trabalho. Apesar de ter concluído o ensino superior, a mulher nunca trabalhou. Casou-se aos 19 anos e sempre acompanhou o marido em sua carreira política.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.



Fonte: STJ

terça-feira, 12 de novembro de 2013

DEVE CABER REPERCUSSÃO GERAL SEMPRE QUE HOUVER DIVERGÊNCIA

 


Deve caber repercussão geral sempre que houver divergência

Por José Miguel Garcia Medina
Imprimir



O recurso extraordinário, atualmente, deve ser estudado sob o viés da repercussão geral, bem como da tendência de “objetivação”[1]. Tenho manifestado preocupação quanto aos caminhos percorridos pela jurisprudência em relação à repercussão geral e ao movimento da objetivação. Parte dos problemas deriva do fato de os procedimentos do recurso extraordinário e da ação direta de inconstitucionalidade terem muito pouco em comum, e a jurisprudência do STF estar realizando adaptações para aproximá-los. O texto de segunda-feira (11/11), aqui na coluna Processo Novo, versará sobre algumas das questões têm surgido em relação a esses fenômenos que, a meu ver, se entrelaçam.

***

É importante compreender, inicialmente, que prequestionamento e repercussão geral são requisitos que não devem ser visualizados separadamente. Explica-se:

Para a admissibilidade do recurso extraordinário, a questão constitucional deverá ser qualificada pela repercussão geral.

O fundamento do recurso extraordinário é um só: alegação de questão constitucional (contrariedade à norma constitucional) que ostente repercussão geral, questão esta existente na decisão recorrida. Embora isso não esteja explícito no artigo 102, inciso III, alínea “a”, da CF, esta disposição deve ser lida através do parágrafo 3º do mesmo artigo[2].

A questão constitucional, assim, não pode ser simples (no sentido do que ocorre com a questão federal-infraconstitucional veiculada através de recurso especial): a questão constitucional deve ser qualificada.

Por isso que, a rigor, repercussão geral não é um requisito a mais, além do prequestionamento, já que a questão prequestionada é a própria questão constitucional qualificada pela repercussão geral.

As situações previstas nas demais alíneas do artigo 102, inciso III, são hipóteses de cabimento que decorrem da alínea “a” — esta compreendida, sempre, em simbiose com o disposto no parágrafo 3º do mesmo artigo.

***

A repercussão geral opera em dois planos, em relação ao recurso extraordinário: de um lado, funciona como mecanismo de restrição das questões constitucionais que podem ser levadas ao STF; de outro, funciona como veículo de transposição de recurso extraordinário, já que, uma vez havendo repercussão geral, tende a jurisprudência do Supremo a abrandar a exigência de presença de outros requisitos do recurso.

Algo semelhante ocorre em relação ao recurso extraordinário do direito argentino. A jurisprudência da Corte Suprema daquele país criou, na década de 1960, a doctrina de la gravedad institucional, segundo a qual em determinados casos, considerados institucionalmente graves, podem ser desprezados alguns requisitos formais do recurso extraordinário (o leading case é o caso “Jorge Antonio”).

Não se confunde o fenômeno com a transcendência da questão constitucional (semelhante à repercussão geral da questão constitucional, para o recurso extraordinário brasileiro), que, de acordo com o artigo 280 do CPC argentino (na redação da Lei 23.774/1990),[3] é requisito para que o recurso extraordinário seja conhecido (embora exista evidente relação entre os fenômenos).

A exigência de repercussão geral da questão constitucional para cabimento do recurso extraordinário, assim, torna as hipóteses em que o recurso extraordinário deve ser admitido bastante restritas (repercussão geral como mecanismo de restrição).

Por outro lado, tendo em vista que a jurisprudência do STF tem se manifestado no sentido de dar a maior rendimento às suas decisões, alguns requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário têm sido mitigados, nos casos em que aquele Tribunal note que a higidez da orientação fixada por sua jurisprudência, acerca da interpretação da norma constitucional, esteja sendo colocada em risco (repercussão geral como veículo de transposição).

Nesse sentido, já decidiu o STF no sentido da “flexibilização do prequestionamento nos processos cujo tema de fundo foi definido pela composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir a adoção de soluções diferentes em relação à decisão colegiada. É preciso valorizar a última palavra — em questões de direito — proferida por esta Casa”.[4] Caso se consolide a orientação estabelecida no julgado citado, poder-se-á dizer que, sempre que for caso de incidência do parágrafo 3º do artigo 543-A do CPC, será caso de “flexibilização” dos requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.

***

Ao decidir recurso extraordinário que veicule questão constitucional que ostente repercussão geral, o STF julga não apenas a questão que interessa ao caso concreto, mas delibera, também, sobre a tese jurídica a ser observada no julgamento de recursos que veiculem idêntica questão de direito. Julgado o recurso extraordinário selecionado, espera-se que os órgãos jurisdicionais recorridos se conformem à decisão proferida pelo STF, revendo as decisões impugnadas pelos recursos que tenham ficado sobrestados (CPC, artigo 543-B, parágrafo 3º).

Embora o julgamento do mérito do recurso extraordinário não seja vinculante (no sentido do que sucede em uma ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo), o mecanismo previsto na Constituição e no CPC dificulta a manutenção de decisões que contrariem a orientação firmada no julgamento de um recurso extraordinário.[5]

O julgamento de um recurso extraordinário, assim, interessa não apenas a recorrente e recorrido (como, antes da EC 45/2004, poderia ocorrer), mas a todos aqueles que se envolvem em situação jurídica em que a tese firmada pelo STF será, muito provavelmente, aplicada.

Afirma-se que, com a implantação da repercussão geral da questão constitucional para o recurso extraordinário, a tendência de “objetivação” que já se vinha verificando, na jurisprudência do STF[6] se consolidou.[7] A repercussão geral, sob esse prisma, fez com que se aproximassem os controles difuso e concentrado de constitucionalidade.

Assim, temas como modulação dos efeitos do julgamento, e o modo como tal técnica pode ser empregada, passam a interessar, assim, também ao julgamento de recursos extraordinários. Por exemplo, decidiu-se “no sentido da exigência de quórum de 2/3 para modular os efeitos de decisão em sede de recurso extraordinário com repercussão geral”.[8]

Tenho afirmado que um dos problemas, quanto a esse aspecto, está no fato de, nos casos em que se dá a “objetivação”, ficar-se sabendo disso a posteriori, isso é, no curso ou após o julgamento do recurso extraordinário.

***

A repercussão geral da questão constitucional deve ser demonstrada “nos termos da lei”, diz o parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição. O tema é objeto do artigo 543-A do CPC, segundo o qual, “para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (artigo 543-A, parágrafo 1º, do CPC).

Não ficam claros, pelo que consta do referido dispositivo legal, os critérios a serem considerados, para se dizer que uma questão constitucional é relevante do ponto de vista econômico, por exemplo. Não por acaso, boa parte das decisões proferida pelo STF quanto à existência de repercussão são tomadas por maioria.

Tenho defendido que o requisito deve ser compreendido com vistas a assegurar a plena realização da função do Supremo Tribunal Federal, em nosso ordenamento jurídico.

Como o STF somente examina a conformidade das decisões judiciais com a Constituição quando a questão constitucional nelas examinada tem repercussão geral, sobram, sem controle, as demais decisões proferidas pelos tribunais que versam sobre questões constitucionais destituídas de repercussão geral.[9]

Pode ocorrer, assim, que vários tribunais do país interpretem de modo diverso um mesmo tema da Constituição: se o STF entender que, a respeito de determinado dispositivo constitucional (isto é, da situação fática sobre a qual ele incida) não há repercussão geral, a interpretação divergente a respeito perdurará, sem correção.

Esse estado de coisas contraria a razão de ser do recurso extraordinário e os motivos — político e jurídico — que exigiram a criação desse recurso.

Por tal razão, defendo que deve ser reconhecida a repercussão geral da questão constitucional, sempre que o dispositivo constitucional for objeto de divergência, na jurisprudência.

Deve ser reconhecida a repercussão geral sob o ponto de vista jurídico, assim, sempre que o recorrente demonstrar a existência de dissídio jurisprudencial a respeito da inteligência da norma constitucional, já que, caso se permita a manutenção da divergência, se estará a contrariar a própria razão de ser do recurso extraordinário, que, além corrigir decisões contrárias à Constituição, tem por função também uniformizar a inteligência da norma constitucional.

A Câmara dos Deputados tem, agora, a oportunidade de minimizar o problema. Basta que, no art. 1.048, § 3.º do projeto de novo CPC,[10] seja inserido inciso que reconheça haver repercussão geral sempre que o recurso questionar decisão que der à Constituição interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

***

Passei ao largo de muitas questões importantes, relacionadas ao tema, mas delas tratarei em textos vindouros desta coluna. Até breve!
[1] A respeito, cf., especialmente, o que escrevi em Prequestionamento e repercussão geral, 6. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2012.
[2] Com a reforma decorrente da EC 45/2004, o art. 102, § 3.º, da CF passou a estabelecer que “no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geraldas questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei”. A Lei 11.418/2006, posteriormente, inseriu no CPC o art. 543-A, com a finalidade regulamentar o requisito. A mesma Lei inseriu também o art. 543-B do CPC, que dispôs sobre o sobrestamento dos recursos extraordinários, no contexto da análise da repercussão geral. Assim, precisará o recorrente demonstrar que o tema constitucional discutido no recurso extraordinário tem uma relevância que transcende aquele caso concreto, revestindo-se de interesse geral.
[3] Estabelece o referido dispositivo legal: “La Corte, según su sana discreción, y con la sola invocación de esta norma, podrá rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio federal suficiente o cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia”.
[4] STF, AgRg no AgIn 375.011/RS, rel. Min. Ellen Gracie, j. 05.10.2004.
[5] Cf. regime previsto no art. 103, § 2.º, da Constituição e nos arts. 543-A e 543-B do CPC.
[6] A respeito, cf. voto do ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do AgRg em SE 5.206-EP: “E a experiência demonstra, a cada dia, que a tendência dominante – especialmente na prática deste Tribunal – é no sentido da crescente contaminação da pureza dos dogmas do controle difuso pelos princípios reitores do método concentrado. [...]. Ainda que a controvérsia lhe chegue pelas vias recursais do controle difuso, expurgar da ordem jurídica lei inconstitucional ou consagrar-lhe definitivamente a constitucionalidade contestada são tarefas essenciais da Corte, no interesse maior da efetividade da Constituição, cuja realização não se deve subordinar à estrita necessidade, para o julgamento de uma determinada causa, de solver a questão constitucional nela adequadamente contida” (o voto foi proferido em 1997; cf. íntegra aqui, especialmente fls. 990-991). Esta orientação foi confirmada no julgamento do RE 388.830/RJ (2.ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.02.2006), em que se afirmou que o recurso extraordinário “deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva”.
[7] “A exigência de repercussão geral da questão constitucional tornou definitiva a objetivação do julgamento do recurso extraordinário e dos efeitos dele decorrentes, de modo a que a tese jurídica a ser firmada pelo Supremo Tribunal Federal seja aplicada a todos os casos cuja identidade de matérias já tenha sido reconhecida pelo Supremo Tribunal (art. 328 do RISTF) ou pelos juízos e tribunais de origem (art. 543-B do CPC), ainda que a conclusão de julgamento seja diversa em cada caso” (STF, RE 565.714/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, j. 23.04.2008).
[8] STF, QO no RE 586.453, j. 20.03.2013. Íntegra do acórdão aqui.
[9] Há, assim, uma lacuna sistêmica, após a EC 45/2004: decisões sobre variados temas de direito constitucional (sem repercussão geral) passam em julgado, a despeito de poder haver divergência na jurisprudência a respeito. A outra face dessa situação, decorrente da ausência de controle acerca da unidade de inteligência da norma constitucional nos casos em que não há repercussão geral, é o consequente aumento de poder de interpretação “final” dos tribunais locais a respeito da Constituição.
[10] A versão da Câmara está disponível para download aqui.




José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.

Revista Consultor Jurídico, 11 de novembro de 2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

É NULA CLÁUSULA CONTRATUA QUE LIMITA INDENIZAÇÃO DA CEF POR JOIA FURTADA



É nula cláusula contratual que limita indenização da CEF por joia furtada
A cláusula contratual que impõe limite de uma vez e meia o valor da avaliação para indenização que a Caixa Econômica Federal (CEF) tenha de pagar em caso de extravio, furto ou roubo de joia sob sua guarda é abusiva.

A decisão é da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar recurso interposto por consumidor do Paraná que questionava a validade da cláusula do contrato de penhor. A joia, que estava sob os cuidados da instituição, foi furtada de uma de suas agências e o cliente questionou o valor oferecido como compensação.

O consumidor ingressou com ação judicial para declarar nula a cláusula do contrato de penhor que limitava a indenização a uma vez e meia o valor da avaliação da joia. Alegou que a limitação restringia a responsabilidade civil do fornecedor do serviço e pediu compensação por danos materiais e morais.

Hipossuficiência

O juízo de primeira instância decidiu que a cláusula era ilegal e estabeleceu a quantia de quatro vezes o valor da avaliação da joia empenhada, observadas a limitação de 100% do preço de mercado do bem e a compensação do empréstimo não quitado.

Essa decisão foi reformada em segundo grau. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) entendeu que a cláusula contratual era legal e contemplava a devida compensação por danos materiais e morais.

Contrariamente ao entendimento do TRF4, a Quarta Turma do STJ decidiu que a cláusula era abusiva, tendo em vista a notória condição de hipossuficiência do consumidor que, necessitando de empréstimos, adere a um contrato cujos termos são inegociáveis.

De acordo com o relator, ministro Raul Araújo, a cláusula, além de unilateral, é focada precipuamente nos interesses da CEF, já que o valor da avaliação é sempre inferior ao preço cobrado do consumidor no mercado varejista de joias.

Expectativa de volta

O ministro apontou que o consumidor, quando se submete ao contrato de penhor, não está interessado em vender as joias empenhadas, mas em transferir a posse temporária dos bens ao agente financeiro, em garantia do empréstimo. Pago o empréstimo, o cliente tem a expectativa de retorno do bem.

A Quarta Turma entendeu que houve violação do artigo 51, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, e restabeleceu o valor de indenização por danos materiais, segundo os parâmetros fixados pelo juízo de primeiro grau.

O relator destacou que os bens empenhados, muitas vezes, têm valor sentimental. O dano moral está presente e deve corresponder ao valor do dano material apurado, sem o abate do valor do empréstimo.
Fonte: STJ

CONSUMIDOR: CLÁUSULA QUE ESTABELECE PERDA INTEGRAL DO PREÇO É NULA



Consumidor que desistiu de pacote turístico tem direito à restituição de 80% do valor pago

Cláusula contratual que estabelece a perda integral do preço pago, em caso de cancelamento do serviço, constitui estipulação abusiva, que resulta em enriquecimento ilícito.

Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que determinou a perda integral do valor de R$ 18.101,93 pagos antecipadamente por um consumidor, que desistiu de pacote turístico de 14 dias para Turquia, Grécia e França.

Segundo o processo, o consumidor desistiu da viagem e propôs ação de rescisão contratual cumulada com repetição do indébito contra a empresa Tereza Perez Viagens e Turismo Ltda., postulando a restituição de parte do valor pago pelo pacote.

Multa de 100%

O juízo de primeiro grau julgou os pedidos procedentes e determinou a restituição ao autor de 90% do valor total pago. A empresa apelou ao TJMG, que reconheceu a validade da cláusula penal de 100% do valor pago, estabelecida no contrato para o caso de cancelamento. O consumidor recorreu ao STJ.

Para o relator do recurso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o valor da multa contratual estabelecido em 100% sobre o montante pago pelo pacote de turismo é flagrantemente abusivo, ferindo a legislação aplicável ao caso, seja na perspectiva do Código Civil, seja na perspectiva do Código de Defesa do Consumidor.

Citando doutrina e precedentes, o relator concluiu que o entendimento adotado pelo tribunal mineiro merece reforma, pois não é possível falar em perda total dos valores pagos antecipadamente, sob pena de se criar uma situação que, além de vantajosa para a fornecedora de serviços, mostra-se excessivamente desvantajosa para o consumidor.

Abuso

Segundo o ministro, a perda total do valor pago viola os incisos II e IV do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, que determina: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código; IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.”

“Deve-se, assim, reconhecer a abusividade da cláusula contratual em questão, seja por subtrair do consumidor a possibilidade de reembolso, ao menos parcial, como postulado na inicial, da quantia antecipadamente paga, seja por lhe estabelecer uma desvantagem exagerada”, afirmou o relator em seu voto.

Paulo de Tarso Sanseveino também ressaltou que o cancelamento de pacote turístico contratado constitui risco do empreendimento desenvolvido por qualquer agência de turismo, e esta não pode pretender a transferência integral do ônus decorrente de sua atividade empresarial aos consumidores.

Assim, em decisão unânime, a Turma deu provimento ao recurso especial para determinar a redução do montante estipulado a título de cláusula penal para 20% sobre o valor antecipadamente pago, incidindo correção monetária desde o ajuizamento da demanda e juros de mora desde a citação.


Fonte: STJ

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...