Deve caber repercussão geral sempre que houver divergência
Por José Miguel Garcia Medina
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O recurso extraordinário, atualmente, deve ser estudado sob o viés da repercussão geral, bem como da tendência de “objetivação”[1]. Tenho manifestado preocupação quanto aos caminhos percorridos pela jurisprudência em relação à repercussão geral e ao movimento da objetivação. Parte dos problemas deriva do fato de os procedimentos do recurso extraordinário e da ação direta de inconstitucionalidade terem muito pouco em comum, e a jurisprudência do STF estar realizando adaptações para aproximá-los. O texto de segunda-feira (11/11), aqui na coluna Processo Novo, versará sobre algumas das questões têm surgido em relação a esses fenômenos que, a meu ver, se entrelaçam.
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É importante compreender, inicialmente, que prequestionamento e repercussão geral são requisitos que não devem ser visualizados separadamente. Explica-se:
Para a admissibilidade do recurso extraordinário, a questão constitucional deverá ser qualificada pela repercussão geral.
O fundamento do recurso extraordinário é um só: alegação de questão constitucional (contrariedade à norma constitucional) que ostente repercussão geral, questão esta existente na decisão recorrida. Embora isso não esteja explícito no artigo 102, inciso III, alínea “a”, da CF, esta disposição deve ser lida através do parágrafo 3º do mesmo artigo[2].
A questão constitucional, assim, não pode ser simples (no sentido do que ocorre com a questão federal-infraconstitucional veiculada através de recurso especial): a questão constitucional deve ser qualificada.
Por isso que, a rigor, repercussão geral não é um requisito a mais, além do prequestionamento, já que a questão prequestionada é a própria questão constitucional qualificada pela repercussão geral.
As situações previstas nas demais alíneas do artigo 102, inciso III, são hipóteses de cabimento que decorrem da alínea “a” — esta compreendida, sempre, em simbiose com o disposto no parágrafo 3º do mesmo artigo.
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A repercussão geral opera em dois planos, em relação ao recurso extraordinário: de um lado, funciona como mecanismo de restrição das questões constitucionais que podem ser levadas ao STF; de outro, funciona como veículo de transposição de recurso extraordinário, já que, uma vez havendo repercussão geral, tende a jurisprudência do Supremo a abrandar a exigência de presença de outros requisitos do recurso.
Algo semelhante ocorre em relação ao recurso extraordinário do direito argentino. A jurisprudência da Corte Suprema daquele país criou, na década de 1960, a doctrina de la gravedad institucional, segundo a qual em determinados casos, considerados institucionalmente graves, podem ser desprezados alguns requisitos formais do recurso extraordinário (o leading case é o caso “Jorge Antonio”).
Não se confunde o fenômeno com a transcendência da questão constitucional (semelhante à repercussão geral da questão constitucional, para o recurso extraordinário brasileiro), que, de acordo com o artigo 280 do CPC argentino (na redação da Lei 23.774/1990),[3] é requisito para que o recurso extraordinário seja conhecido (embora exista evidente relação entre os fenômenos).
A exigência de repercussão geral da questão constitucional para cabimento do recurso extraordinário, assim, torna as hipóteses em que o recurso extraordinário deve ser admitido bastante restritas (repercussão geral como mecanismo de restrição).
Por outro lado, tendo em vista que a jurisprudência do STF tem se manifestado no sentido de dar a maior rendimento às suas decisões, alguns requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário têm sido mitigados, nos casos em que aquele Tribunal note que a higidez da orientação fixada por sua jurisprudência, acerca da interpretação da norma constitucional, esteja sendo colocada em risco (repercussão geral como veículo de transposição).
Nesse sentido, já decidiu o STF no sentido da “flexibilização do prequestionamento nos processos cujo tema de fundo foi definido pela composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir a adoção de soluções diferentes em relação à decisão colegiada. É preciso valorizar a última palavra — em questões de direito — proferida por esta Casa”.[4] Caso se consolide a orientação estabelecida no julgado citado, poder-se-á dizer que, sempre que for caso de incidência do parágrafo 3º do artigo 543-A do CPC, será caso de “flexibilização” dos requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.
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Ao decidir recurso extraordinário que veicule questão constitucional que ostente repercussão geral, o STF julga não apenas a questão que interessa ao caso concreto, mas delibera, também, sobre a tese jurídica a ser observada no julgamento de recursos que veiculem idêntica questão de direito. Julgado o recurso extraordinário selecionado, espera-se que os órgãos jurisdicionais recorridos se conformem à decisão proferida pelo STF, revendo as decisões impugnadas pelos recursos que tenham ficado sobrestados (CPC, artigo 543-B, parágrafo 3º).
Embora o julgamento do mérito do recurso extraordinário não seja vinculante (no sentido do que sucede em uma ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo), o mecanismo previsto na Constituição e no CPC dificulta a manutenção de decisões que contrariem a orientação firmada no julgamento de um recurso extraordinário.[5]
O julgamento de um recurso extraordinário, assim, interessa não apenas a recorrente e recorrido (como, antes da EC 45/2004, poderia ocorrer), mas a todos aqueles que se envolvem em situação jurídica em que a tese firmada pelo STF será, muito provavelmente, aplicada.
Afirma-se que, com a implantação da repercussão geral da questão constitucional para o recurso extraordinário, a tendência de “objetivação” que já se vinha verificando, na jurisprudência do STF[6] se consolidou.[7] A repercussão geral, sob esse prisma, fez com que se aproximassem os controles difuso e concentrado de constitucionalidade.
Assim, temas como modulação dos efeitos do julgamento, e o modo como tal técnica pode ser empregada, passam a interessar, assim, também ao julgamento de recursos extraordinários. Por exemplo, decidiu-se “no sentido da exigência de quórum de 2/3 para modular os efeitos de decisão em sede de recurso extraordinário com repercussão geral”.[8]
Tenho afirmado que um dos problemas, quanto a esse aspecto, está no fato de, nos casos em que se dá a “objetivação”, ficar-se sabendo disso a posteriori, isso é, no curso ou após o julgamento do recurso extraordinário.
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A repercussão geral da questão constitucional deve ser demonstrada “nos termos da lei”, diz o parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição. O tema é objeto do artigo 543-A do CPC, segundo o qual, “para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (artigo 543-A, parágrafo 1º, do CPC).
Não ficam claros, pelo que consta do referido dispositivo legal, os critérios a serem considerados, para se dizer que uma questão constitucional é relevante do ponto de vista econômico, por exemplo. Não por acaso, boa parte das decisões proferida pelo STF quanto à existência de repercussão são tomadas por maioria.
Tenho defendido que o requisito deve ser compreendido com vistas a assegurar a plena realização da função do Supremo Tribunal Federal, em nosso ordenamento jurídico.
Como o STF somente examina a conformidade das decisões judiciais com a Constituição quando a questão constitucional nelas examinada tem repercussão geral, sobram, sem controle, as demais decisões proferidas pelos tribunais que versam sobre questões constitucionais destituídas de repercussão geral.[9]
Pode ocorrer, assim, que vários tribunais do país interpretem de modo diverso um mesmo tema da Constituição: se o STF entender que, a respeito de determinado dispositivo constitucional (isto é, da situação fática sobre a qual ele incida) não há repercussão geral, a interpretação divergente a respeito perdurará, sem correção.
Esse estado de coisas contraria a razão de ser do recurso extraordinário e os motivos — político e jurídico — que exigiram a criação desse recurso.
Por tal razão, defendo que deve ser reconhecida a repercussão geral da questão constitucional, sempre que o dispositivo constitucional for objeto de divergência, na jurisprudência.
Deve ser reconhecida a repercussão geral sob o ponto de vista jurídico, assim, sempre que o recorrente demonstrar a existência de dissídio jurisprudencial a respeito da inteligência da norma constitucional, já que, caso se permita a manutenção da divergência, se estará a contrariar a própria razão de ser do recurso extraordinário, que, além corrigir decisões contrárias à Constituição, tem por função também uniformizar a inteligência da norma constitucional.
A Câmara dos Deputados tem, agora, a oportunidade de minimizar o problema. Basta que, no art. 1.048, § 3.º do projeto de novo CPC,[10] seja inserido inciso que reconheça haver repercussão geral sempre que o recurso questionar decisão que der à Constituição interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
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Passei ao largo de muitas questões importantes, relacionadas ao tema, mas delas tratarei em textos vindouros desta coluna. Até breve!
[1] A respeito, cf., especialmente, o que escrevi em Prequestionamento e repercussão geral, 6. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2012.
[2] Com a reforma decorrente da EC 45/2004, o art. 102, § 3.º, da CF passou a estabelecer que “no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geraldas questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei”. A Lei 11.418/2006, posteriormente, inseriu no CPC o art. 543-A, com a finalidade regulamentar o requisito. A mesma Lei inseriu também o art. 543-B do CPC, que dispôs sobre o sobrestamento dos recursos extraordinários, no contexto da análise da repercussão geral. Assim, precisará o recorrente demonstrar que o tema constitucional discutido no recurso extraordinário tem uma relevância que transcende aquele caso concreto, revestindo-se de interesse geral.
[3] Estabelece o referido dispositivo legal: “La Corte, según su sana discreción, y con la sola invocación de esta norma, podrá rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio federal suficiente o cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia”.
[4] STF, AgRg no AgIn 375.011/RS, rel. Min. Ellen Gracie, j. 05.10.2004.
[5] Cf. regime previsto no art. 103, § 2.º, da Constituição e nos arts. 543-A e 543-B do CPC.
[6] A respeito, cf. voto do ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do AgRg em SE 5.206-EP: “E a experiência demonstra, a cada dia, que a tendência dominante – especialmente na prática deste Tribunal – é no sentido da crescente contaminação da pureza dos dogmas do controle difuso pelos princípios reitores do método concentrado. [...]. Ainda que a controvérsia lhe chegue pelas vias recursais do controle difuso, expurgar da ordem jurídica lei inconstitucional ou consagrar-lhe definitivamente a constitucionalidade contestada são tarefas essenciais da Corte, no interesse maior da efetividade da Constituição, cuja realização não se deve subordinar à estrita necessidade, para o julgamento de uma determinada causa, de solver a questão constitucional nela adequadamente contida” (o voto foi proferido em 1997; cf. íntegra aqui, especialmente fls. 990-991). Esta orientação foi confirmada no julgamento do RE 388.830/RJ (2.ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.02.2006), em que se afirmou que o recurso extraordinário “deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva”.
[7] “A exigência de repercussão geral da questão constitucional tornou definitiva a objetivação do julgamento do recurso extraordinário e dos efeitos dele decorrentes, de modo a que a tese jurídica a ser firmada pelo Supremo Tribunal Federal seja aplicada a todos os casos cuja identidade de matérias já tenha sido reconhecida pelo Supremo Tribunal (art. 328 do RISTF) ou pelos juízos e tribunais de origem (art. 543-B do CPC), ainda que a conclusão de julgamento seja diversa em cada caso” (STF, RE 565.714/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, j. 23.04.2008).
[8] STF, QO no RE 586.453, j. 20.03.2013. Íntegra do acórdão aqui.
[9] Há, assim, uma lacuna sistêmica, após a EC 45/2004: decisões sobre variados temas de direito constitucional (sem repercussão geral) passam em julgado, a despeito de poder haver divergência na jurisprudência a respeito. A outra face dessa situação, decorrente da ausência de controle acerca da unidade de inteligência da norma constitucional nos casos em que não há repercussão geral, é o consequente aumento de poder de interpretação “final” dos tribunais locais a respeito da Constituição.
[10] A versão da Câmara está disponível para download aqui.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 11 de novembro de 2013
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