Fundamentação de decisões ainda não dá conta do básico
Por José Miguel Garcia Medina

É o que ocorre, por exemplo, com o problema da fundamentação das decisões judiciais. Por aqui, tenho enfatizado questões como saber como decidir com base em princípios jurídicos, saber como deve ser a relação entre lei e jurisprudência, se o juiz deve ouvir a sociedade, se súmulas vinculantes têm caráter normativo etc. Faço um mea culpa: aqui mesmo na Coluna Processo Novo acabo me estendendo em temas dessa natureza, que não podem ser exauridos em uma, senão em várias, muitas e repetidas voltas ao tema.[1]
Saber como deve, democraticamente, ser fundamentada e controlada a decisão judicial é um dos temas sensíveis, entre jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Não se trata apenas de algo que deve constar do Estatuto da Magistratura, como, a primeira vista, poderia parecer dizer o texto constitucional,[2] mas de verdadeira garantia constitucional. Concordo com o Prof. Lenio Streck, que afirma que ao dever de fundamentar as decisões corresponde o direito fundamental a uma resposta adequada ao sistema normativo, a partir da Constituição.[3]
Como, contudo, tratar com firmeza de questões um pouco mais complexas relacionadas à motivação dos julgados, se nem mesmo superamos o mais rudimentar, que é o direito (a que corresponde o dever) a uma resposta, uma mera resposta? Ora, sequer esse direito vem sendo reconhecido, por nossos tribunais.
Coloque-se a seguinte questão: tendo o pedido (ou o recurso, por exemplo) vários fundamentos, cada um deles hábil a levar ao seu acolhimento, pode ser julgado improcedente (ou o recurso, ser desprovido) sem que sejam todos eles examinados?[4]
Tenho a impressão de que qualquer estudante de direito responderia negativamente a essa questão. Afinal, se meu pedido tem os fundamentos A, B, C e D, não pode ser considerada fundamentada a decisão judicial que o julga improcedente sem examinar cada uma dessas alegações.[5]
Tal não é, contudo, a orientação dominante em nossa jurisprudência. Mesmo o Supremo Tribunal Federal, a respeito, decidiu que “o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão”.[6]
Penso, diversamente, que não pode a pretensão da parte ser rejeitada, sem que todas as alegações que poderiam levar ao seu acolhimento sejam examinadas. Em termos simples: se meu pedido (ou defesa) assenta-se em cinco fundamentos, meu pedido (ou defesa) só pode ser rejeitado se cada um desses fundamentos for examinado e rejeitado.
O projeto de novo Código de Processo Civil, quanto a esse aspecto, corretamente estabelece que “não se considera fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que [...] não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.[7]
O Supremo Tribunal tem, agora, a chance de corrigir o rumo das coisas. Recentemente, foi admitido recurso extraordinário com repercussão geral em que se debate a seguinte questão: em recurso, a parte suscitou várias questões, mas o tribunal de origem não as analisou; logo, em razão da ausência de prequestionamento, o recurso extraordinário não seria cabível. A repercussão geral foi reconhecida,[8] e o recurso aguarda julgamento.
O direito a uma resposta é o mínimo, o mais raso, que decorre do artigo 93, IX da Constituição. Quando o Supremo Tribunal Federal diz que nem todos os fundamentos de meu pedido precisam ser examinados e julgados, acaba por dizer que eu não teria direito a uma resposta. Esse modo de pensar, para mim, contraria a Constituição.
O modo básico do dever de fundamentação às decisões judiciais está em decidir as questões que poderiam levar ao acolhimento daquilo que pede a parte, não podendo ser considerado fundamentado o julgado que rejeita o pedido ou recurso da parte, sem examinar cada uma de tais questões.
Se não conseguimos satisfazer a isso, tenho dúvidas de que teremos condições de solver problemas um pouco mais complexos, no que diz respeito à fundamentação das decisões judiciais.
[1] Cf., aqui, lista dos textos já publicados, nesta coluna.
[2] A Constituição tratou da fundamentação da decisão judicial no artigo 93, IX. De acordo com o caput desse artigo, seus incisos dispõem sobre princípios a serem observados pela lei complementar que disporá sobre o Estatuto da Magistratura.
[3] Ver, a respeito, vários dos textos da Coluna Senso Incomum, aqui na ConJur, bem como a obra Verdade e Consenso, p. 619.
[4] A questão não se coloca do mesmo modo se, havendo vários fundamentos que conduzem à procedência do pedido, este é acolhido com base em apenas um deles, sem que os demais sejam examinados. Aqui, dedicamo-nos à hipótese inversa.
[5] Tenho defendido esse ponto de vista em vários trabalhos, em que o problema atinente à fundamentação das decisões judiciais é examinado com mais profundidade (cf., dentre outros, Constituição Federal comentada, 2.ed., Ed. RT, comentário ao art. 93; Código de Processo Civil comentado, 2.ed., Ed. RT, comentário ao art. 458).
[6] STF, AI 791292 QO-RG, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 26.06.2010; íntegra disponível aqui.
[7] Cf. artigo 476, parágrafo único, IV da versão do Senado (disponível aqui) e artigo 499, parágrafo único, IV da versão da Câmara dos Deputados (disponível aqui).
[8] STF, RE 719870 RG, rel. Min. Marco Aurélio, j. 29/08/2013; íntegra disponível aqui.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2013
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