quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Emenda dos Precatórios: STF pode legislar? Não!

 

Por Lenio Luiz Streck



Explicitando a situação
Como se sabe, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal a Emenda Constitucional 62/2009, que instituiu o novo regime especial para o pagamento de precatórios. O ministro Luiz Fux apresentou no dia 24 de outubro sua proposta de modulação no tempo dos efeitos da decisão da Corte nas ações (ADI 4.357 e ADI 4.425) que questionaram a constitucionalidade da EC 62/2009. Segundo seu voto, o regime fica prorrogado por mais cinco anos, até o fim de 2018, sendo declaradas nulas, retroativamente, apenas as regras acessórias relativas à correção monetária e aos juros moratórios. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Roberto Barroso.

Aqui, o que deve ser dito, antes de tudo — e que poucos se deram conta — é que, após a decisão plenária de 14 de março de 2013 que declarou parcialmente inconstitucional a EC 62/2009, o ministro Fux, monocraticamente, em despacho de 11 de abril de 2013, suspendeu o decidido pelos 11 ministros conjuntamente para determinar a aplicação dos dispositivos declarados inconstitucionais até posterior decisão do plenário. Ou seja, é possível dizer, no contexto, que, sozinho, ele modulou os efeitos do julgamento (que necessita de 8 votos).[1] E essa questão somente veio ao Plenário mais de seis meses depois de sua decisão monocrática, o que contraria a Lei 9.868. Felizmente, até porque não havia outra saída, o Plenário ratificou a decisão monocrática, mas não deixa de ser inusitado um ministro suspender, sozinho, a decisão tomada pelo plenário da Casa. Resultado: se não houver modulação dos efeitos, todos os pagamentos de precatórios no período serão anulados.

No último dia 24 de outubro, em seu voto sobre a questão de ordem (levantada por representantes de estados e municípios), o ministro Luiz Fux propôs tornar nulas as regras relativas ao regime especial apenas a partir do fim do exercício financeiro de 2018. Já falarei disso na sequencia.

Antes disso, cabe referir que o regime especial instituído pela EC 62 consistiu na adoção de sistema de parcelamento de 15 anos da dívida, combinado a um regime que destina parcelas variáveis entre 1% a 2% da receita de estados e municípios para uma conta especial voltada para o pagamento de precatórios. Desses recursos, 50% seriam destinados ao pagamento por ordem cronológica, e os demais 50% destinados a um sistema que combina pagamentos por ordem crescente de valor, por meio de leilões ou em acordos diretos com credores. Observe-se que a aprovação dessa emenda foi vista como um avanço, em vista da enorme dificuldade de caixa dos estados e municípios.

Voltando ao voto do ministro Fux: o pagamento de precatórios por leilões ou acordos, segundo a proposta de modulação, deve ser declarado nulo imediatamente após o trânsito em julgado das ADIs, porém sem efeitos retroativos. Foram declaradas nulas, com eficácia retroativa, as regras que instituíam o índice da caderneta de poupança para correção monetária e o cômputo dos juros moratórios dos precatórios, por serem considerados insuficientes para recompor ou remunerar os débitos.

Vencido o prazo fixado (fim de 2018), o ministro afirmou que deverá ser imediatamente aplicável o artigo 100 da Constituição Federal, que prevê a possiblidade de sequestro de verbas públicas para satisfação do débito quando não ocorrer dotação orçamentária. Ele chamou a atenção para a necessidade de o STF rever sua jurisprudência sobre a intervenção federal em caso de inadimplência de governos locais com precatórios. Para o ministro, a intervenção, ainda que não resolva a questão da falta de recursos, serviria como incentivo ao administrador público para manter suas obrigações em dia. Segundo a jurisprudência da Corte, a intervenção federal está sujeita à comprovação do dolo e da atuação deliberada do gestor público. Claro que esses aspectos são todos meritórios. No entanto, vejamos na sequência o que pode(rá) ocorrer.

Problemas da modulação proposta pelo ministro Fux
O voto do ministro Luiz Fux manda aplicar retroativamente a inconstitucionalidade do índice de correção monetária para todos os precatórios, inclusive os pagos na ordem cronológica mandando recalcular as diferenças. Dois problemas (efeitos colaterais do voto):

a) nos acordos diretos, leilões e na ordem invertida o cálculo do precatório para fins de aplicação do deságio se deu com a poupança, e esses pagamentos ele preserva. Como não preservar os pagamentos da ordem cronológica? E o princípio da isonomia?

b) Já a diferença o ministro manda pagar na ordem cronológica. Ora, se é assim, será necessário suspender todos os pagamentos e recalcular os anteriores, pois eles preferem na ordem e por isso foram pagos. É impossível rever esses cálculos.

Uma questão extremamente grave para as finanças públicas: a prevalecer o efeito ex tunc para declarar o cômputo do INPC ou IPC-A em substituição à TR, somente em relação aos precatórios ainda pendentes de pagamento, isso ocasionará um acréscimo no passivo da ordem de 20% (no mínimo). Por isso, tudo indica que o ideal seria aplicar a TR até a publicação do acórdão e daí em diante outro índice. Aliás, adotar a EC tal qual ordenado na liminar é pagar com TR enquanto se aguarda o julgamento final. Daí a pergunta: esses cálculos são questionáveis? De que adianta pagar então? Parece haver, aqui, uma contradição.

c) Com relação aos juros de mora, parece-me extremamente relevante que o STF deixe claro a constitucionalidade de aplicação dos juros de mora de 0,5% ao mês. Ou não. Caso contrário, haverá questionamentos para aplicação de 1% nos precatórios de natureza previdenciária e de Selic nos precatórios de natureza tributária. Ora, conhecendo a sistemática jurídica de terrae brasilis, em que “judicializamos tudo e de tudo”, colonizando o mundo da vida por intermédio dos litígios (para usar uma expressão cara a Habermas), corre-se perigosamente o risco do caos.

A questão fulcral: o Supremo Tribunal Federal não pode legislar
De todo modo, a questão fulcral é: pode o STF (e, no caso, o voto do ministro Fux) estabelecer o prazo de cinco anos para pagar todo o estoque atual? Assim fazendo, está legislando. Indubitavelmente. Parece-me muito simples a questão:

a) ou o STF aceita o prazo de 15 anos da EC que termina tudo em 2024

b) ou não há que se falar em prazo.

Nem se pode exigir que o STF estabeleça percentual sobre a RCL para pagar precatórios. Também nesse caso estaria legislando. Ou se aceita a Emenda Constitucional na sua redação original ou não se aceita. Como venho referindo: há somente seis hipóteses — e não encontrei, ainda, a sétima — em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei (ou uma EC), conforme explicito em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (RT, 2013). Para deixar de aplicar um ato normativo votado democraticamente, deve ser utilizado sempre a jurisdição constitucional. Assim, se a EC, votada pelo Parlamento, estabelece um prazo, ou ele é cumprido ou ele é declarado inconstitucional (ou, ainda, dele se faz uma interpretação conforme — verfassungskonforme Auslegung — ou uma nulidade parcial sem redução de texto — Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung — o que parece nem de longe ser o caso). Essa questão não está dentro da possibilidade de “modulação”.

Efeitos colaterais e futuros
Não esqueçamos que a Súmula 17 do STF está diretamente ligado à espécie. Como está redigida, há dúvidas acerca do termo inicial de incidência dos juros de mora quando o pagamento do precatório não se dá no prazo constitucional. Vários credores querem (quererão) a aplicação retroativa dos juros sem expurgo do período da graça (período compreendido entre a data da expedição do precatório e o último dia do ano de vencimento para pagamento do precatório). São dezoito meses. Daí o busílis: como se contam os juros de mora? Arrisco uma resposta: após a extrapolação do prazo previsto para pagamento, sem retroação.

Ainda outro ponto da decisão que merece um cuidado: ela impede a compensação unilateral de precatórios com dívida ativa dos entes. Ora, há casos no plano dos Estados ou municípios que a Viúva terá que pagar precatório para quem lhe deve dinheiros, “sabendo” que o credor do precatório não pagará seu tributo na sequencia... Pelo menos se deveria permitir a penhora do precatório até que se decida a execução fiscal.

Não quero fazer raciocínios consequencialistas. Trata-se de outra coisa, isto é, de invocar uma análise a partir das relações entre os Poderes da República (veja-se a diversidade de modos para fazer ativismo: de um lado, por vezes, utilizando argumentos meta-jurídicos; de outro, buscando substituir o legislador, o que parece ser o caso na questão do prazo de até 2018; por exemplo, por que não 2.019? ou 2017? Qual é o critério? Isso não é tarefa do legislador?). E isso é uma questão de princípio e não de política. Não cabe ao STF legislar sobre a matéria. Insisto: defender isso é tratar o fenômeno a partir de princípios e não de políticas. Por isso, decisões desse quilate devem ser examinadas e reexaminadas amiúde, para evitar que a emenda fique pior que o soneto (ou que a modulação fique pior que a emenda).

Finalmente, se a EC veio para dar uma solução e nela foram encontrados problemas, há que se prolatar (encontrar) uma decisão no Supremo que não represente uma espécie de “descontrole” nos orçamentos públicos, uma vez que a Emenda Constitucional esteve vigente e válida, ocasionando efeitos no mundo dos fatos (e houve pagamentos). E que a decisão do STF não represente uma nova Emenda Constitucional. E, finalmente, que a própria decisão do STF não dê azo a milhares de ações, buscando correções, diferenças, etc, a partir de um rosário de interpretações decorrentes de vaguezas ou ambiguidades do acórdão. Ou seja, para além da impossibilidade de o STF legislar, o que não deve ocorrer é, via modulação, colocar em dúvida os pagamentos já efetuados de precatórios, contribuindo, assim, para a eternização das dívidas (e mais milhares de ações). E depois ainda se diz por aí que o ativismo no Brasil é um mito. Pois é!

[1] Aliás, não é a primeira vez que isso ocorre no STF. O Min. Gilmar Mendes, na ADI 4638, já chamava a atenção para um considerável número de ADIns (de 2009 para cá, foram 8, sem contar a presente) em que a decisão monocrática não foi levada de imediato ao plenário. Entre outras coisas, dizia o Min. Gilmar: “o sistema definido pela Lei 9868/99 para a concessão de medidas cautelares deixa pouco espaço para a ocorrência de casos em que seja necessária uma decisão monocrática fora dos períodos de recesso e de férias. A técnica da modulação dos efeitos, posta à disposição do Tribunal no julgamento da medida cautelar, é instrumento hábil para se assegurar a decisão de mérito na ação direta e, dessa forma, ela praticamente elimina as hipóteses em que seja necessária uma urgente decisão monocrática do Relator. Ficam abertas apenas as hipóteses em que a suspensão da vigência da norma seja imprescindível para estancar imediatamente a produção de seus efeitos sobre fatos e estados de coisas que, de outra forma, não poderiam ser revertidos”.


Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2013

Proteção aos vulneráveis e as insuficiências do Direito

 


Por Otavio Luiz Rodrigues Junior



As diversas crises do sistema capitalista no século XX, muitas vezes causadas ou agravadas pelos conflitos mundiais de 1914-1918 e 1939-1945 ou pelas guerras pós-coloniais, de entre as quais as mais expressivas foram as da Coréia, da Argélia e do Vietnã, refletiram-se em alterações normativas, com a criação de microssistemas ou de regimes de qualificação autônomos, ao exemplo do Direito do Trabalho, do Direito do Consumidor, das leis do inquilinato, de leis específicas para idosos, crianças e outros vulneráveis. Essas transformações também receberam diferentes tentativas de explicação e de justificação teórica, as quais receberam diversos “selos” como a socialização ou a publicização do Direito, posto que, na atualidade, seja muito arriscado se utilizar dessas expressões sem riscos quanto à integridade e à coerência da exposição da matéria analisada. É sempre bom recordar que Anton Menger von Wolfensgrün, um dos célebres nomes da crítica ao Direito Civil clássico, foi um dos primeiros a censurar as ideias de Karl Marx. A ponto de ter sido publicamente contestado por Karl Kautsky, colaborador de Friedrich Engels, sob o argumento de que suas ideias depositavam uma fé irreal na capacidade de transformação do Direito. Segundo Kautsky, a “concepção jurídica” desenvolvida por Menger seria tipicamente burguesa e havia retirado Deus da centralidade do Direito e colocado, em seu lugar, o homem. O “direito humano” sucedeu ao “direito divino”, assim como o Estado teria substituído a Igreja.

Considerada essa limitação histórica desses “novos direitos do século XX”, pode-se dizer sobre eles que se lhes aplica a advertência do jovem Trancredi a seu tio, o príncipe de Salina, no clássico (também do século passado) Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.

Não é sem causa que todos nós expressamos um sentimento de impotência diante dos quotidianos abusos cometidos no âmbito de incidência de muitos desses direitos de caráter especial e protetivo, que se destinam a regular as situações jurídicas que fogem do paritetismo dos sistemas gerais. O fato de termos uma das melhores legislações de consumo do mundo não foi suficiente para que nos livrássemos das contínuas ofensas aos direitos asseguradas pelo Código de Defesa do Consumidor, uma das mais bem-sucedidas experiências normativas nacionais. As deficiências regulatórias talvez sejam as mais importantes causas da ineficácia protetiva das leis de proteção aos vulneráveis. Um exemplo disso é o novo selo de identificação dos assentos nas aeronaves. Ao entrar em um equipamento comercial para uma viagem interna, o passageiro poderá saber qual o padrão de largura e de distância entre os assentos, conforme um sistema de letras e de cores, semelhante ao que se encontram em eletrodomésticos para informar o nível de consumo de energia elétrica. Esse selo, uma determinação regulatória da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), é tão informativo quanto inútil. Saber o quão desconfortável será o voo é uma informação muito pouco relevante para um passageiro, que sofrerá em si mesmo os efeitos desse desconforto.

Se é verdadeira a premissa de que as normas dos direitos protetivos, ao menos na lógica e na organização do sistema capitalista, não conseguem resolver os conflitos sobre os quais pretendem incidir, qual seria sua função? Podem-se identificar duas delas.

A primeira é simbólico-pedagógica. Ressalvadas as hipóteses de regulação capturada ou ineficiente, as normas protetivas legais (ou mesmo regulatórias) podem induzir mudanças de comportamento; formas alternativas de controle social de fornecedores; rejeições coletivas a produtos e a serviços ofertados por determinada pessoa jurídica; reforço nos mecanismos de accountability; alteração da cultura interna das empresas e perda do valor de mercado das corporações. Tanto maior a essencialidade dos produtos ou serviços, no entanto, tanto menor será o impacto dessa força simbólica e educativa das normas protetivas de consumo. O exemplo do transporte aéreo é eloquente: qual minha alternativa, diante de um duopólio no setor? Deixar de voar ou submeter-me ao transporte aéreo em um avião que ostenta o selo C ou D, na classificação da Anac para os assentos? A resposta é ociosa.

A segunda função das leis protetivas (especificamente de Direito do Consumidor) está na solução tópica, mesmo que não individual, de problemas gerados pela assimetria de posições técnicas (informações e conhecimento), econômicas e jurídicas entre fornecedores e consumidores. É a funda de Davi contra o poderoso Golias. O conhecimento e o estudo das normas de Direito do Consumidor também se prestam a ampliar o foco dessa segunda função, na medida em que permite o exame dos conflitos de maneira mais adequada e eficaz. Essa segunda função, que se pode dizer corretiva, é mais (re)conhecida pelas gentes. Seu efeito está nas milhares de sentenças proferidas diariamente e que modificam ou declaram abusivas cláusulas contratuais; reconhecem os direitos (legítimos) dos consumidores; retiram produtos inadequados, perigosos ou nocivos do mercado; asseguram a fruição de direitos e impedem a interrupções de outros tantos.

Há, no entanto, de se reconhecer um inevitável(?) e deletério efeito colateral da função corretiva dos direitos protetivos, especialmente os relativos ao consumo, que é o abandono da técnica jurídica em nome de um certo moralismo interpretativo. Se as normas protetivas são uma funda de Davi, cada Golias abatido é uma glorificação para quem lhe atinge com a pedra pontiaguda da Justiça. E nessa condição pretendem-se não apenas juízes, como todos os que atuam no sistema jurídico, figurando, na linha de frente, os doutrinadores.

As causas desse moralismo interpretativo, que tem encontrado a crítica sincera e de variegada origem ideológica nos textos e acórdãos de Lenio Luiz Streck, Paulo Roque Khouri, José Oliveira Ascensão, José Antonio Dias Toffoli, Antonio Junqueira de Azevedo, Martônio Barreto, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Antonio Carlos Ferreira, Gabriel Nogueira Dias, Ingo Wolfgang Sarlet, José Antonio Peres Gediel Torquato Castro Junior e outros igualmente notáveis juristas, podem-se inventariar com alguma dificuldade.

É certo, contudo, que a metáfora davídica, para além de sua expressividade e da força imagética das figuras bíblicas, é também reveladora da atualidade das discussões entre Menger e Kautsky. Não se pode querer que o Direito assuma um papel de divindade laica, capaz de resolver todas as injustiças de um sistema que é estruturalmente assimétrico, de onde, aliás, para muitos, ele consegue retirar sua própria superação e renovação contínuas. É preciso sempre recordar os limites históricos e materiais do Direito e sua inserção em dado sistema econômico.

A grande vantagem desse reconhecimento dos limites do Direito, especialmente os morais, está em se deixar abertas as vias para o debate em fóruns democráticos não jurídicos. Seguindo-se uma estrutura de pensamento desenvolvida por Christian Edward Cyril Lynch,[1] por este colunista e por José Antonio Dias Toffoli[2], no Império, o poder moderador era a chave para a solução dos conflitos regionais e de classes, o qual era combinado com a ação de órgãos como o Conselho de Estado, com a deliberada contenção do Exército e com a indicação de pessoas oriundas de províncias diferentes para ocupar a chefia civil e militar dessas unidades imperiais. Na Primeira República, o mecanismo tornou-se o Estado de Sítio. Após a Revolução de 1930, o protagonismo militar, que se havia ensaiado com o golpe republicano de 1889, tornou-se central no processo político. De 1930 a 1985, o Brasil assemelhou-se aos últimos estágios do Império Romano, com as legiões decidindo quem seriam os césares. Após 1988, o Poder Judiciário, sob a liderança do Supremo Tribunal Federal, assumiu grande parte dessas funções históricas anteriormente cometidas ao imperador, ao presidente (no estado de sítio) e aos militares.

A procura pelo Poder Judiciário, como disse Luiz Werneck Vianna, em uma das mais inteligentes metáforas que já ouvi, assemelha-se à ocupação da praça Tahrir pelo povo egípcio. As pessoas para lá se dirigiram porque acreditaram que naquele espaço (um espaço físico, mas profundamente simbólico) é que seriam resolvidos os conflitos que tragaram o Egito nos estertores da era Mubarak. Os cidadãos recorrem à Justiça porque é nesse espaço (mais simbólico do que físico) que lhes disseram, desde que foi aprovada a “Constituição-Cidadã”, haver um pote de ouro no final do arco-íris.

A vertigem desse novo poder, voltado para a defesa dos pobres e vulneráveis, com a carga simbólica herdada da monarquia, foi ampliada pela cooperação de um coro grego, a cantar loas em uníssono, que são muitos professores de Direito, incapazes de exercer seu ofício com a necessária e cívica função crítica, a nós atribuída pelo também insuspeito ideologicamente Friedrich Carl Freirrer [barão] von Savigny, em seu clássico Sistema de Direito Romano Atual.

As jornadas de junho de 2013, com as pessoas quebrando bancos, lojas de telefonia e outros símbolos da “sociedade de consumo”, que lhes apresentou um igualitarismo (pós-?)moderno sob a forma da aquisição permanente de bens supérfluos e de programada obsolescência, podem ter sido o indício de que esse modelo começa a se esgotar. A ausência de canais democráticos efetivos poderá conduzir para o radicalismo totalitário, à esquerda ou à direita, ou à reinvenção dos mecanismos de representatividade partidária, o melhor modelo de filtragem da vontade popular até agora existente. O certo é que as pessoas começam a despertar para os limites do Direito, especialmente no que se refere a campos nos quais a prometida desigualdade seria superada por meio de ações judiciais. Atrás da montanha, onde fica essa “praça Tahrir” simbólica, há um exército de Golias.

O esperado enfraquecimento desse moralismo interpretativo, que começa a despertar críticas doutrinárias, poderá permitir que o Direito se volte para o rigor técnico e assuma os custos argumentativos que lhes são inerentes. Eros Roberto Grau, a propósito, acaba de lançar a sexta edição refundida de Ensaio e discurso sobre a a interpretação/aplicação do Direito sob o título Por que tenho medo dos juízes (São Paulo: Malheiros, 2013), obra na qual ele expõe sua profissão de fé positivista. Segundo ele, enquanto não mudarem os tempos e surgir uma nova alvorada, ele continuará entoar o cântico de sua juventude, pois aprendeu que a última barreira de proteção do pobre é a objetividade, a igualdade e a cegueira da lei.

O respeito à técnica, às categorias, ao rigor teórico, menos do que um apelo fora de moda a um passado perdido, é uma necessidade de que o Direito preservará os espaços duramente conquistados ao longo século contra o arbítrio da política (leia-se, dos poderosos, quaisquer que sejam os nomes que se lhes atribuam os povos, Kaiser, imperator, negus, xá, sultão ou presidente), da religião e dos supostos valores morais autônomos.

Os juízes, professores, advogados, membros do Ministério Público, enfim, todos os que oficiam perante essa deusa caprichosa e inatingível, a respeito de cuja existência milhares de pessoas no mundo não duvidam (até porque cursam faculdades de Direito e invocam-na nos templos em sua honra, que são os tribunais), são cada vez mais úteis e necessários no combate à mistificação do Direito. Não é preciso ser positivista, naturalista, culturalista, criticista ou historicista para assim o fazer.

[1] LYNCH, Christian Edward Cyril. O momento monarquiano o poder moderador e o pensamento político imperial. Teses de Doutorado. Programas de Pós-graduação do IUPERJ/Ciência Política. Rio de Janeiro, 2007.
[2] DIAS TOFFOLI, José Antonio Dias. O CNJ tira poderes das elites estaduais. Entrevista por Eumano Silva e Leonel Rocha. Revista Época, edição 712, p. 56-58, 9/1/2012.




Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).

Revista Consultor Jurídico, 30 de outubro de 2013

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ATIVISMO JUDICIAL?: JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL E POLÍTICA NO STF PÓS-88


Ativismo judicial?: Jurisprudência constitucional e política no STF pós-88


 Andrei Koerner


Ativismo judicial é um termo que tem sido utilizado para apreciar as instituições e agentes judiciais nas democracias contemporâneas. O termo tem distintas designações, como modelo ou programa para a decisão judicial, atitude ou comportamento dos juízes, ou ainda tendência das decisões judiciais em conjunto. Tal como o seu oposto, a contenção judicial, ele tem sido criticado por sua ambiguidade, dificuldades de utilização para analisar e classificar decisões particulares e carga valorativa. As controvérsias sobre sua utilidade foram acompanhadas de tentativas de teorização e refinamento conceitual em diversas disciplinas.
Resumo

O artigo analisa o debate acadêmico sobre o ativismo judicial. Critica o seu enfoque no problema da autonomia individual do juiz na tomada de decisão e seu propósito normativo de
definir o modelo apropriado para o Judiciário numa ordem constitucional democrática. O debate coloca em segundo plano o caráter institucionalmente inserido dos tribunais e simplifica as relações entre a prática judicial e o contexto político. Em seguida, propõe um quadro para a análise das relações entre jurisprudência e política, baseado nos conceitos de regime governamental e regime jurisprudencial. Enfim, é apresentada uma análise preliminar das mudanças no controle da constitucionalidade pelo STF após 1988.
Palavras-chave
Análise política do pensamento jurídico, Ativismo judicial, Direito e política, Supremo Tribunal Federal

 
Fonte: Revista Novos Estudos (http://novosestudos.uol.com.br)
 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

RESENHA DO LIVRO "O MAL-ESTAR DA PÓS-MODERNIDADE"



Karyne Dias Coutinho

Mestranda em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul





BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.Inquietações da vida contemporânea e suas formas atuais de organização: uma relação de imanência.

Liberdade. Se é possível apontar uma idéia que serve como o fio que conduz Bauman a escrever acerca daquilo que poderíamos considerar como inquietações/incômodos da vida contemporânea, talvez esta idéia seja a de liberdade - não apenas porque tal temática é posta em discussão na maioria dos (senão em todos os) quatorze capítulos que compõem O mal-estar da pós-modernidade, mas também (e talvez principalmente) porque a própria idéia de liberdade - que, mais do que uma ambição, se tornou uma constante e indispensável exigência contemporânea - alimenta as inquietações pós-modernas, diferentemente das inquietações de outrora, que nasciam do demasiado desejo de controle e ordem.

É pelo viés da liberdade individual como condição e demanda pós-moderna que Bauman coloca sob análise algumas transformações e alguns importantes deslocamentos em operação no mundo atual, relativamente às condições sob as quais tratamos de organizar nossas formas de viver. Tais deslocamentos vão sendo apontados ao longo do livro no sentido de situar determinadas características próprias do projeto moderno e daquilo que poderíamos chamar de pós-modernidade, não para demarcar limites entre um e outro, senão para ir assinalando algumas descontinuidades históricas a partir das quais diferentes meios de governarmos - a nós mesmos e aos outros - vão sendo colocados em funcionamento. Em outras palavras: não se trata, de modo algum, de uma tentativa de compreender a "essência" de uma ou outra condição (a moderna e a pós-moderna), descrevendo-as a partir de uma seqüência cronológica de fatos, fases ou mudanças de caráter social, histórico, econômico ou cultural. Trata-se, ao invés disso, de enfatizar determinadas transformações nas formas de conduzirmos nossas vidas para colocar em questão algumas contingências dos espaços e tempos que nós habitamos - e que nos habitam - fazendo do nosso mundo o que hoje é e de nós mesmos o que hoje somos.

Nesse sentido, Bauman salienta que o advento da era moderna coincidiu com a exaltação da ordem como uma desejável realização capaz de construir um mundo estável, seguro, coerente, limpo, sólido, enfim, puro. Daí que a descrição supostamente exata e a classificação da totalidade dos aspectos da vida, decifrados, definidos e organizados, seja uma das mais importantes pretensões modernas. Sob essa perspectiva, aumentariam consideravelmente as chances de intervirmos no mundo (porque totalmente descoberto e explicado) e de o modificarmos no sentido de lhe devolver uma ordem que, por excelência, seria pura e inquestionável. O perfeito mundo moderno seria aquele sobre o qual pudéssemos ter o máximo de controle possível. Dessa forma, o "sucesso" de futuras ações, devidamente planejadas (levando em conta ações passadas), estaria assegurado.

Segurança - que serviu como uma das promessas modernas de um mundo melhor -, Bauman nos alerta: é exatamente com ela que já não podemos mais contar. Em vez dela, vivemos com a companhia constante de uma profunda ansiedade que se faz tão mais presente quanto tão mais as tentativas de uma segura apreensão do real se intensificam. Disso resulta que as nítidas divisões, a inflexibilidade e rigidez disciplinar, a solidez da estrutura da ordem moderna, em que as ações humanas podiam encontrar certezas e portos seguros, deslocam-se para a pós-moderna sensação flutuante de ser. A incerteza e a insegurança que ocupam lugares cada vez mais centrais nos modos de vida contemporâneos estão profundamente conectadas ao fato de que, hoje, a organização dos espaços e o controle da ordem (tanto no que se refere aos problemas de ordem coletiva quanto de ordem individual) estão passando por um crescente e intenso processo de desregulamentação e privatização - que Bauman chama de a nova desordem do mundo: "o que quer que venha a tomar o lugar da política dos blocos de poder assusta por sua falta de coerência e direção e também pela vastidão das possibilidades que pressagia" (p.33).

O autor enfatiza que, na maioria das transformações da organização da vida atual, o que se vê é o crescente engrandecimento das forças de mercado que, de uma forma cada vez mais intensa, chamam para si (porque conferimos a elas) a função de conduzir a ordem do mundo. Eis o paradoxo a partir do qual o autor trabalha com o que o título do livro nos sugere: ordem dá idéia de uma certa fixidez, de uma disposição das coisas cada uma em seus devidos lugares e em nenhum outro mais, um arranjo disciplinar rígido que visa ao bom funcionamento das coisas segundo certas relações. O que acontece, no entanto, no caso das forças de mercado, é que elas estão em constante movimento - e isso significa não fazer parte de nenhum lugar específico; em função de sua mobilidade, novos pontos de convergência aparecem a todo o momento, assim como também são facilmente descartados. Não é de se estranhar que, com formas de ordenação que mudam muito depressa, a segurança que supostamente se tem diante de acontecimentos regulares, precisos e estáveis fica, senão completamente extinta, certamente enfraquecida, exatamente porque as forças de mercado dificilmente mantêm regularidades e porque trabalham com a escassez cada vez maior de regulamentos normativos. Disso resulta que, ao "administrar" a ordem, as forças de mercado - e a incomparável liberdade dada ao capital - acabam por gerar inúmeras desordens responsáveis pela contínua sensação contemporânea de incerteza e desconfiança - alguns dos muitos mal-estares pós-modernos.

Talvez um dos motivos que me movem a escolher tal obra para sobre ela redigir uma resenha seja o fato de as análises de Bauman servirem-me de inspiração em estudos que venho realizando no curso de mestrado. Tenho de confessar a enorme admiração que sinto por suas colocações acerca das mudanças pelas quais nosso complexo mundo vem passando e, em especial, pela forma com que as apresenta. Mas um outro motivo também se faz preferencialmente presente: considero imprescindível divulgar uma obra que, apesar de não tratar especificamente do campo educacional, em muito contribui para que possamos entender sob outra perspectiva a chamada "crise" pela qual a educação - e a escola, considerada como local legítimo do saber - vem passando. Tal contribuição se acentua se levarmos em conta o fato de que vivemos uma época em que o neoliberalismo tem uma significativa predominância sobre outras formas de racionalidade política - ou seja, sobre outras formas de efetivação do exercício de governo -, utilizando-se da educação (institucionalizada ou não) como um importante meio de produção de sujeitos que correspondam à lógica competitiva neoliberal, ao mesmo tempo em que indivíduos cada vez mais "neoliberalizados" acabam por produzir saberes e práticas que também correspondam a essa mesma lógica.

Se digo que tal obra nos possibilita entender a "crise" educacional do nosso tempo sob outra perspectiva é precisamente porque termos como emancipação, liberdade, autonomia, entre outros, são tematizados por Bauman de uma forma um tanto diferente daquela utilizada por muitos discursos educacionais. Nesse sentido, o autor salienta que, dada a dimensão prioritária que a competição do mercado assume na sociedade contemporânea, a questão da liberdade individual de escolha ganha também proporções quase ilimitadas nesse jogo incerto, "aventureiro" e cada vez mais desigual que se tornou a vida cotidiana. Nele, quanto maior for nossa possibilidade e flexibilidade de ação, enquanto seres livres para escolher diante de uma variedade de opções e de caminhos que nos é apresentada, maiores também serão as chances de a liberdade do capital ("à custa de todas as outras liberdades" ) seguir desenfreadamente crescendo. Este é um dos muitos pontos de O mal-estar da pós-modernidade que eu destaco como particularmente interessante às discussões que são travadas no campo educacional. Algumas análises têm continuamente advogado em favor da liberdade contra a idéia de sermos governados por uma busca incessante do capital, pelo consumo desenfreado, por meios de comunicação social e determinadas instâncias culturais que fazem circular a idéia da supremacia da lógica do mercado, ou por qualquer outra forma de governo que supostamente impediria o despertar de uma consciência crítica capaz de nos guiar a uma vida livre de todo o tipo de dominação. Nesse sentido, tais análises caracterizam-se por defender a proposição/consecução de determinados objetivos educacionais que primam pela formação de sujeitos livres, autônomos e responsáveis como algo indispensável e urgente ao processo de transformação social, em busca de melhoria das condições de vida de "toda" a sociedade. Não está em discussão aqui se tais intenções são ou não são realmente boas. Mas certamente não terão o efeito esperado, na medida em que tais análises não levam em conta que, em vez de ser o "outro" do governo - constituindo-se como uma barreira a ele -, a liberdade é exatamente um meio através do qual o governo pode assegurar seus fins, ou seja, é um recurso do governo para que ele se efetive mais rápida e eficientemente. Se, noutras perspectivas, a liberdade é apontada como elemento essencial para que a sociedade se faça mais "justa" e "igualitária" (embora tais termos sejam bastante discutíveis), a perspectiva a partir da qual Bauman trabalha põe em discussão a idéia de que, em nossa época contemporânea, a liberdade não tem feito outra coisa melhor que sobrepor camadas sociais: "a liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna" (p.118).

É a partir desta e de algumas outras idéias igualmente muito interessantes que Bauman põe em discussão (preferencialmente nos seis primeiros capítulos do livro) aquilo que ele chama de estranhos, destacando quem são os estranhos modernos e quem são os estranhos pós-modernos, como chegam a ser estranhos e sob que formas cada sociedade não apenas os cria, como também luta contra eles. Ao fazer isso, o autor também trabalha com as dimensões da incerteza pós-moderna (algumas delas comentadas anteriormente nesta resenha), passando por questões de identidade, diversidade, pobreza, justiça, entre outras.

Diferentes objetos vão sendo tematizados ao longo do livro, seguindo a maneira envolvente e criativa com que o autor nos apresenta suas idéias. Nos capítulos 7 e 8, Bauman tece comentários extremamente interessantes acerca do significado conferido à arte pós-moderna em sua relação com o Modernismo, tomando-o como um movimento artístico de vanguarda, mas de inspiração e ideais ainda modernos.

Temas como "a verdade, a ficção e a incerteza" povoam o capítulo 9, fazendo dele, a meu ver, um dos que mais podem interessar ao campo educacional não apenas porque trabalha com as noções de verdade, razão, ciência, história e diferença, mas também porque, ao fazer isso, passa por questões referentes ao papel conferido ao filósofo e à tarefa assumida pela filosofia moderna.

Nos outros cinco capítulos finais, Bauman discute, respectivamente, o conceito de cultura, enfatizando a "crise paradigmática" pela qual o discurso cultural está passando (capítulo 10); a "redistribuição pós-moderna do sexo", revisitando a História da sexualidade, de Foucault, na qual aponta três desvios fundamentais, envolvidos com a revolução educacional, e trabalha com a questão da infância e dos sentidos conferidos à sua sexualidade no que se refere à organização e remodelação do espaço e das relações sociais (capítulo 11); a imortalidade e os valores religiosos pré-modernos, modernos e pós-modernos, a partir dos quais faz uma muito útil discussão acerca da importância assumida por "especialistas da alma" e "restauradores da personalidade" em nossa época contemporânea, que, em suas palavras, é "a era do surto de aconselhamento" (capítulos 12 e 13); a origem e os sonhos do liberalismo e do comunitarismo, argumentando que apesar de todas as diferenças de princípios que aparentemente possa haver entre eles, "tanto um como outro são projeções de sonhos nascidos da contradição real inerente à difícil situação dos indivíduos autônomos" (p.245).

Perante tais temas e a forma como são abordados e desenvolvidos no livro, o que mais posso eu dizer de O mal-estar da pós-modernidade se não que, além de ser extremamente atraente, cativante, convidativo e simpático, é da mesma forma útil e de grande proveito a todos/as aqueles/as que estão interessados/as em uma séria, curiosa e instigante discussão acerca de algumas das mais importantes transformações contemporâneas que são, simultaneamente, operações de e operadas por nossas formas também contemporâneas de viver. O livro traz como temáticas de discussão coisas tão aparentemente distantes entre si mas que certamente convergem, senão em muitos aspectos, ao menos em um: o mal-estar da pós-modernidade. Talvez seja isso, e a forma como Bauman coloca isso, o que de mais sedutor encontrei nesta obra.
 
Fonte: Scielo (aqui)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

CONSTITUIÇÃO, DEMOCRACIA E INDETERMINAÇÃO SOCIAL DO DIREITO


Constituição, democracia e indeterminação social do direito


Samuel Barbosa 


Uma tentativa de diagnóstico dos 25 anos da ordem constitucional esbarra em muitas dificuldades, a começar pelas lacunas de conhecimento empírico — em que pese a ampla bibliografia hoje disponível sobre o STF — sobre a aplicação da Constituição nas várias instâncias do Judiciário, assim como sobre outros temas relevantes. Outra se impõe pela diversidade de perspectivas disciplinares que, da história constitucional e ciência política aos debates de teoria do direito e teoria constitucional, visam a constituição. Menos evidente é a dificuldade de natureza conceitual: escolher um conceito de direito largo o suficiente para cobrir e interligar dimensões empíricas e normativas e produtivo o suficiente para incorporar e criticar as ofertas de explicação e compreensão da ordem constitucional vigente.

Resumo


O artigo explora a tese de que a ordem constitucional vigente sob a Constituição Federal de 1988 é caracterizada pela indeterminação social do direito. Esse conceito combina dimensões


empíricas e normativas: a multiplicidade de arenas decisórias especializadas na estabilização de expectativas e a luta de justificação sobre a interpretação política das normas jurídicas.




Palavras-chave
Constituição democrática, Constituição Federal de 1988, Democracia, Indeterminação social do direito

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Fonte: REVISTA NOVOS ESTUDOS

Publicada há mais de trinta anos pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) a revista Novos Estudos é um periódico multidisciplinar (em sistema de avaliação por pares cega) de ciências humanas, literatura e artes. Quadrimestral, traz artigos de autores nacionais e estrangeiros, debates, entrevistas, resenhas e ficções inéditas.

Consolidada no panorama intelectual brasileiro, a revista tem como objetivo apresentar análises aprofundadas de temas das ciências humanas e acompanhar o debate de ideias no país, contribuindo para o adensamento das discussões num amplo leque de temas, das artes plásticas às políticas públicas.



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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Como se mede a “régua” para aplicar a lei: quem a fixa?

 


Por Lenio Luiz Streck

O dilema: passar a régua ou não?
Li interessante matéria na Folha de S.Paulo com o título
Procurador eleitoral promete não ‘tolher’ debate político. A matéria dá conta de entrevista do novo procurador eleitoral dr. Eugênio Aragão, criticando sua antecessora, dra. Sandra Cureau, que teria sido muito dura na apreciação do direito eleitoral. Ele defendeu uma forma diferente de o Ministério Público Eleitoral agir. Criticou o fato de a dra. Cureau “passar a régua” e processar todo mundo (parece-me ser esse o sentido de “passar a régua”, pois não? Ou entendi mal?). Minha pergunta, de pronto, é: quem tolhe o debate (ou não tolhe o debate) é o agente ou os pressupostos estão fixados na lei?

Onde entra a chatice epistêmica de Lenio Streck nesse debate? Simples. Eis um bom exemplo de como o Direito não deve ser. Não tomo partido do dr. Aragão nem da dra. Cureau. Ambos sempre se mostraram competentes. O que quero dizer é que o Direito Eleitoral, como qualquer ramo do direito, não pode depender da posição pessoal dos seus manejadores-intérpretes-aplicadores (até porque os titulares tiram férias, pois não?).

Eis a questão. Já escrevi muito sobre isso em livros e aqui na ConJur. Se, por exemplo, em uma decisão sobre o aborto — suponhamos que o STF esteja decidindo a descriminalização — ficarmos esperando a posição pessoal (ou subjetividade pessoal) do ministro do STF estamos (ou estaremos) mal. Imagino a discussão: “ele é católico; ele não é; ele é agnóstico; ele é liberal; ele é conservador...” e assim por diante. Assim foi no caso dos embargos infringentes. Não preciso tomar posição para um lado ou outro para dizer que o país não pode ficar refém, em suspense, acerca de que como o ministro X ou Y vai decidir. Sua posição pessoal em nada (deveria) importa(r). Como bem diz Dworkin, não me importa o que pensam os juízes. Não me importa para que time torcem, sua preferencias sexuais etc. Decidir não é o mesmo que escolher. Decidir é um ato de responsabilidade política. Devo insistir nisso.

Isso tudo vale (também) para o Ministério Público. Quer dizer que o Direito Eleitoral brasileiro depende da régua do encarregado de aplicar a lei? Teremos que, dependendo do lado em que estivermos, torcer para que um “durão” ou um “não durão” seja guindado ao cargo? Quer dizer que o destino do Direito Eleitoral (ou de outro ramo) pode depender da posição (subjetividade) dos detentores do poder? Isso vale para o STF, para o STJ etc.

Tomar decisões no campo jurídico é ter responsabilidade política. Não é simplesmente escolher um lado ou outro. Repito: decisão não é escolha. A razão prática do juiz ou do membro do MP devem ser suspensas. Se assim não for, não podem assumir cargos.

Vou explicitar isso melhor: compreendo a decisão jurídica, em especial a judicial, como um ato de responsabilidade política. O que quero dizer com isso? Que o magistrado, ao proferir sua decisão, deve estar comprometido com os fundamentos do Estado Constitucional, que tem como seu núcleo a democracia. Portanto, proferir uma decisão judicial não implica resgatar antigos dilemas (já superados), como o de buscar a vontade da lei, a vontade do legislador ou tampouco apelar para um suposto “poder discricionário”.

A decisão judicial deve, ao contrário de tudo isso, ser construída de acordo com a legalidade (constitucional). É o que chamo de respostas constitucionalmente adequadas (ou corretas), somente obtidas através do filtro de uma Teoria da Decisão Judicial, que eu proponho e descrevo nos meus Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica.

Impasse entre decisão e escolha?
Ora, a questão é singela, para quem trata disso a partir da Filosofia. A existência deste (pseudo) impasse foi o que colocou a doutrina e os julgadores “nos braços” do subjetivismo (e voluntarismo). Ou seja, fosse todo provimento jurisdicional um ato de decisão, não haveria espaço para a discricionariedade. “Escolha” diz respeito a gostos e opiniões, o que deve ser afastado dos julgamentos. Enfim, escolha e subjetividade são irmãs siamesas. Escolha quer dizer “discricionariedade”. Na decisão, há algo que se antecipa, que é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como direito. Um bom exemplo de escolha — portanto, de discricionariedade — é a decisão do ministro Barroso (AP 565), que, em um dia decide com base na “letra” da Constituição (caso Cassol) que é o Congresso que tem o poder de cassar mandatos e, dias depois, determina a anulação da decisão do Congresso que não cassou o mandato do deputado Donadon (MS 32.326), desta vez com base em argumentos metajurídicos (permito-me a repetição do exemplo, mas ele tem uma importância simbólica ímpar — e ainda terá nos próximos anos).

Tudo isso leva a ativismos. E o que é ativismo? É uma corrupção funcional entre os poderes. Alguns ativismos até podem produzir resultados produtivos, mas não necessariamente isso signifique que o ativismo seja bom. Um relógio estragado também acerta a hora duas vezes por dia. O que precisa ficar claro é que discutir sobre o ativismo implica debater os limites da atuação do Judiciário (e do Ministério Público), que, ao extrapolar suas funções, pode agir para o bem ou para o mal. Antoine Garapon, autor que quase não trabalho, mas, no contexto cai bem, diz que o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar. A questão que se coloca é: de que lado a gente está? Eis a questão...

Sigo. O problema é justamente este: acharemos “bom” quando o ativismo produzir decisões contrárias a todos os avanços do Direito? É preciso lembrar que o ativismo judicial tem relação ao kelseniano conceito de que interpretação é um ato de vontade (claro, isso no plano do que Kelsen entendia como decisão jurídica). E atos de vontade não tem controle. E onde não há controle, não há democracia. Simples, pois.

A personalidade do procurador ou do magistrado: importa?
Quando um juiz decide, ele deve perguntar: o que a legalidade (constitucional, e falo aqui no sentido de Elías Díaz) diz sobre esta questão? Vejamos: um problema jurídico deve ser respondido por argumentos jurídicos. Direito não é moral. Moral não corrige o Direito. Nada importa sobre a personalidade do juiz. Ao Direito não importam as inclinações do magistrado, porque temos uma Constituição e Códigos para responderem as questões jurídicas (desde logo, remeto o leitor para as três últimas linhas desta coluna). É isso o que se chama de Direito democraticamente construído: um Direito que dispensa opiniões e convicções pessoais. Se a democracia depender de opiniões pessoais, teremos que rezar para que teremos “homens bons” conduzindo o Direito. E, como diz o psicanalista Agostinho Ramalho Marques Neto, “Deus me livre da bondade dos bons”. PS: é evidente — e, por favor, já escrevi muito sobre isso — não propugno neutralidade. Acaciano isso. Trata-se de responsabilidade política e “dos dois corpos do rei”. E também se trata de conduzir o processo com fairness (equanimidade).

No caso do Ministério Público é a mesma coisa. Quando o MP acusa, esta acusação deve estar fundamentada na legislação produzida democraticamente. Este é o ponto: a fundamentação jurídica (seja ela judicial ou acusatória) deve ser um exercício rigoroso de legalidade e, por conseguinte, de constitucionalidade, o que não está presente na personalidade do juiz ou promotor. O Ministério Público deve(ria) ser uma magistratura: já na denúncia deve haver um ato de decisão e não de mera escolha.

Numa palavra: o tamanho das réguas e o leito de Procusto
Por tudo isso, fiquei preocupado com o que disse o ilustre Procurador Eugênio Aragão. Mas fiquei preocupado também com a Procuradora que o antecedeu. Pelo que li, o direito eleitoral dependeu e dependerá do tamanho da régua dos dois. Cá para nós, não acho que deva ser assim. Talvez ele não quisesse ter dito isso. Mas disse. Na verdade, com tudo que já li e escrevi até hoje, tenho convicção que não é assim. Se não tenho razão, então teremos que fazer como disse dia desses aqui no Conjur um importante professor paulista, Oscar Vilhena, quando falou que até os almoços influenciam na decisão... Pois é. Interpretação seria, além de um ato de vontade, um problema de saciedade de apetites (o que, no fundo, tem seu grau de razão...!).

Talvez tenhamos que, em vez de estudar Direito (e teoria da decisão, coisa que não fazemos), estudar estratégias para saber o que cada juiz, ministro ou procurador eleitoral (ou não eleitoral) comeu no café da manhã, o que cada um gosta de fazer nas horas vagas, para que time torce, quais os livros que lê etc, etc e etc. Mais do que isso, precisaremos descobrir que tipo de régua usará para mensurar um crime. E “fazer Direito” vai virar (na verdade, já virou há muito tempo) um mero jogo de poder.

Uma “régua” (para usar as palavras de Aragão) não é uma régua em si; assim como uma coisa não é em si e nem uma lei é “em si”. O texto não é a coisa. No texto não está a lei. Mas nem a lei é aquilo que o interprete-manejador diz o que ela é. Em termos de régua, se é com ela que medimos o alcance da lei, o seu tamanho não pode depender do manejador. Nem a lei tem o tamanho em si, como se nela já estivesse contida a sua régua e nem o manejador usa a régua que quer, fazendo com que esta — a lei — passe a ter o tamanho da régua do manejador. Caso contrário, teremos que torcer para que tenhamos manejadores com “boas escolhas de réguas”.

Desculpem-me, mas, como cidadão, quero saber, por exemplo, se o Bolsa Família beneficiou 2.168 políticos (clique
aqui para ler) é crime ou não. E se determinada manifestação em inauguração de obra é ou não campanha antecipada. E que saibamos todos de antemão o que se pode e o que não se pode fazer na campanha eleitoral. E não quero que isso dependa do tamanho da régua que irá medir o alcance da lei. É por isso que decidir não é o mesmo que escolher!

Calha lembrar a lenda do Leito de Procusto, que tinha um castelo no deserto, sendo que dava guarida a todos os viajantes que por ali passavam. Só tinha uma condição: que dormissem no seu leito. E aqueles que medissem mais do que ele, cortava-lhes as pernas; se medissem menos, espichava-os. Tudo de acordo com... a sua régua! Bingo!

A propósito: o Direito não é e não pode ser aquilo que o Judiciário ou o Ministério Público dizem que é. Pensemos, por exemplo, em um famoso case: quando Hitler foi julgado pela tentativa de golpe (Putsch de Munique, de 9 de novembro de 1923), a lei dizia, claramente, que a pena para estrangeiros — e Hitler era um — seria a expulsão, além da prisão. Pois os juízes “cavaram” valores e interesses por debaixo da lei e... bingo: não o expulsaram, condenando-o somente à prisão. O resto todos sabem (antes que alguém me acuse de originalista ou “positivista” ou algo assim, sugiro a leitura do artigo Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista?, disponível neste
link). Saludos!


Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2013

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O cego de Paris II — o que é “a verdade” no Direito?


Por Lenio Streck

Em “O Cego de Paris I”...
... eu perguntava (clique aqui para ler) como é que se dá esse fenômeno da “busca da verdade real” (ou da verdade lato sensu). Na doutrina jurídica mais consumida, a verdade ora é confundida com um dado bruto (o fato em si?) ao qual o sujeito cognoscente deve se amoldar, ora é resumida a uma construção, erguida — a partir de uma pseudo “consciência metodológica” — pelo sujeito cognoscente, algo que aparece claramente no conceito de “livre convencimento” ou “livre apreciação da prova”.

Já em outros momentos a dogmática jurídica produz um mix. De todo modo, o que fica claro é que não há qualquer preocupação (por assim dizer, epistêmica) com as condições de possibilidade desse “pensamento”.

O quero explicitar é que é extremamente relevante que estudemos as teorias da verdade (Wahrheitstheorien). Os filósofos discutem isso desde sempre, e parece que alguns juristas não sabem disso, assumindo, ingenuamente, uma teoria da correspondência, sem saber disso, como se o real pudesse ser açambarcado pelo sujeito.

“Real” em que sentido? A dogmática corre sozinha... e perde!
Vê-se (e ouve-se) de tudo. Com efeito. Ao mesmo tempo em que “existiria” a verdade como um “dado” real, haveria também o “livre convencimento...” (ou livre apreciação da prova), tudo isso independentemente dos problemas que as próprias concepções clássicas ou modernas da filosofia revelem. Mas, então, permito-me indagar: de que modo ela — a verdade — seria, então, um dado “real”? “Real” em que sentido? O real é o verdadeiro “em si” ou algo verdadeiro dito sobre o real? Qual é a diferença entre a verdade e o verdadeiro?

Outra pergunta: independente da correlação com uma ou outra concepção filosófica sobre o conceito de “verdade”, de que modo seria possível compatibilizar essas “teses”? Ao exame de parcela considerável da doutrina processual penal brasileira (embora esse problema esteja nos demais ramos do direito também), confesso que não foi possível encontrar uma resposta satisfatória a esse dilema. Dessa maneira, do que lê por aí, tem-se que:

— De um lado, há uma verdade real “nos fatos”, onde o intérprete “busca” a verdade nas essências das coisas/dos fatos e que são verdades irrefutáveis, indiscutíveis e, portanto, não há convencimento, uma vez que sequer há sujeito – chamemos a isso de metafísica clássica (ou de objetivismo[1] ou, talvez, de uma vulgata construída assistematicamente);

— De outro, há um livre convencimento, no qual é possível se deduzir, autônoma e racionalmente, através do método construído pela subjetividade, aquilo que é verdadeiro ou não (chamemos a isso, de forma bem generosa, de filosofia da consciência).[2]

No mais, o que mais preocupa é que tais teses ignoram o fato de que as teorias da verdade estão sempre relacionando alguma coisa (normalmente o logos) ao invés de serem “qualidades” de um determinado locus. Ainda que o locus seja “a coisa”, os gregos já sabiam que não poderiam ter acesso “tátil” a essa coisa. O problema é que determinados processualistas acham que isso é possível depois de 2.500 anos de filosofia. Incrível. De todo modo, para o espaço desta coluna, é suficiente dizer o que estou dizendo.

Assim, buscando traduzir isso em outras palavras, perguntaria: de que modo é possível esperar que avancemos em termos de teoria processual ou na elaboração de questões de concursos públicos se a dogmática-jurídica-não-consegue-apresentar-uma-noção-adequada de “verdade processual” e, muito menos, explicar o-que-quer-dizer-com-essa-ficção-chamada “verdade real”? Isso para dizer (ou perguntar) o mínimo. Só para iniciar a discussão. E isso é coisa séria. Os céticos — e entendam a minha ironia do duplo endereçamento — podem acreditar nisso. Com certeza (sic).

No fundo, é possível dizer que a dificuldade de a dogmática jurídica lidar com conceitos como o da “verdade real” é apenas a ponta do iceberg da crise da Teoria do Direito em terrae brasilis. A mesma dificuldade a dogmática tem para lidar com o que os conceitos de positivismo, princípios, mutação constitucional, etc, bastando ver a derrota sofrida pela dogmática jurídica no julgamento do mensalão. Algo do tipo: “correu sozinha e chegou em segundo lugar”...

O estado d’arte
Não nego que a Ação Penal 470 (mensalão) me instigou a esta reflexão, assim como o exame de uma série de livros de processo penal que tratam desse “mistério”. Faço-o, pois, com respeito a todos os autores. Por amor à ciência jurídica (ou do que dela resta) e ao debate. Mesmo que parcela considerável da comunidade jurídica despreze discussões filosóficas.

Apenas quero dizer que o direito não está imune à filosofia. O Direito não está blindado aos paradigmas filosóficos. O que temos, então? Simples: o que há no horizonte dogmático é uma mixagem produzida no âmbito do senso comum teórico. E, lembremos: o senso comum por si já denota uma falácia realista-objetivista; portanto, também aqui estamos na presença da filosofia.

Por isso, não é temerário afirmar que a própria dogmática jurídica não consegue “colocar” a propalada “verdade” (“real” ou não) no respectivo (ou em algum) solo filosófico, eis que, não raras vezes, confunde o paradigma ontológico-clássico (ou ontoteológico) com o da filosofia da consciência (ou de suas diversas vulgatas) e vice-versa, resultando disso um conceito absolutamente sincrético, autocontraditório.

Tudo é relativo, não existem verdades etc?
Poderia iniciar minha apreciação analisando dezenas de manuais jurídicos que buscam tratar do assunto. Esses manuais são os livros mais utilizados nas salas de aula e fomentam os cursos de preparação para concursos e, por justiça, cabe referir que são citados por ministros do STJ e STF, o que também comprova que a crise do Direito avançou para o interior dos tribunais superiores; veja-se que se trata de uma mera descrição daquilo que é possível constatar facilmente. Um simples olhar para as bancadas já dá uma ideia...

As análises desses livros oscilam entre a “busca da verdade real” e sua antítese — o “ceticismo” e/ou “relativismo” (embora, diga-se, em nenhum dos autores essa discussão adentra no terreno da filosofia, como se essa fosse despicienda para a explicação do fenômeno). Os “céticos” (ou neo-céticos-neo-niilistas) o são por “pura intuição” (sic). Seguem o senso comum, do tipo “cada-um-tem-sua-opinião-sobre-o-mundo”, “cada-um-tem-a-sua-verdade”, “tudo-é-relativo”, “não-existem-verdades”, e mais uma centena de citações anêmicas, fofas, flambadas...

Já escrevi sobre isso.[3] Efetivamente, não é fácil entender o que a dogmática processual pretende dizer com a defesa da “verdade real” (ou à sua crítica). Como já referi em O cego de Paris parte I, por vezes, parece que a “tal” verdade real é uma busca ontológica clássica, uma adeaquatio intellectum et rei; em outras passagens, fica-se convencido que a verdade real é o corolário da filosofia da consciência (adeaquatio rei et intellectum). Mas, enfim, o que estaria por trás de toda essa discussão no processo penal?

Na verdade, isso é apenas uma pequena parcela do problema. Alguém poderá dizer/perguntar: por que o professor Lenio insiste neste ponto? Por que essa chatice epistêmica? Qual é a razão de o professor insistir nas críticas à dogmática jurídica (mais) tradicional? E por que, raios, agora vem criticar de novo a Guilherme Nucci, já que já o havia feito em outro contexto (sobre a PEC 37)?

Minha resposta, com o benefício da tutela antecipatória é: a crítica deve ser feita aos juristas mais citados nas salas de aula, nos cursinhos de preparação e nos próprios tribunais pátrios. Se vou fazer uma crítica aos narradores de futebol, por certo a farei a Galvão Bueno e não ao locutor da Rádio Indinópolis, de Lagoa do Brejo. Como se diz por aí, cada um é responsável por aquilo que cativa... e escreve.

É dever da doutrina que se pretende crítica (como é o meu caso nesta coluna que, não por acaso, se chama Senso Incomum) trazer à lume essa problemática. A crítica, portanto, é meritória. Não vou atrás de textos que não tenham importância simbólica no contexto da operacionalidade cotidiana do Direito. No mínimo, trago à lume as contradições dos doutrinadores. O Brasil não está acostumado ao debate. Via de regra, as críticas são levadas para o plano pessoal. Não deve(ria) ser assim. Temos que nos acostumar a enfrentar os mais acalorados debates (circunstância muitas vezes não compreendida pelos leitores-comentadores dos sites jurídicos, que, também não raras vezes, ofendem os colunistas).

Então, vamos lá: O conceito de Nucci sobre “verdade real”
Por tais razões, sim, elejo, pela sua importância, um dos doutrinadores brasileiros mais festejados, Guilherme Nucci (Manual de processo penal e execução penal, RT, 2012, p. 112), que, embora tente fazer uma ressalva no sentido de que “jamais, no processo, pode assegurar o juiz ter alcançado a verdade objetiva”, na sequência assevera que o juiz possui, isso sim, “uma crença segura na verdade que transparece através das provas colhidas (...)”. Pergunto: como explicar tal contradição do ilustre processualista? Para ele, existe “verdade” e, ao mesmo tempo, não existe? Como assim?

A partir do que diz Nucci, qual é a diferença entre “verdade objetiva” e “verdade que transparece através das provas colhidas”? De que modo Nucci responde(ria) a isso? Mas, por que digo isso? Pela simples razão de que, afinal, ambas as assertivas do autor fazem parte daquilo que se pode denominar de adequatio intellectum et rei (pelo menos é o que se pode depreender dessa espécie de realismo filosófico). Portanto, o que surpreende, neste caso, é que Nucci diz não acreditar no objetivismo... Mas, veja-se que, como contraponto, faz uso do próprio objetivismo (filosófico).

Em outras palavras: Nucci não acredita na possibilidade de haver uma verdade, mas a seguir afirma existir uma verdade que transparece das provas colhidas... Afinal, como essa verdade “transparece”? Ela estaria contida “na coisa”? Existiria, então, uma essência a ser descoberta pelo juiz? Ora, desde logo é necessário lembrar que, após Kant — que na Crítica da Razão Pura afirmava a impossibilidade de apreensão da realidade como noumeno, restando-nos, portanto, apenas o phaenomenon — é suprema ousadia tentar reivindicar a realidade em essência.

Mas, não estou satisfeito. E, por amor ao debate e por dever acadêmico, preciso avançar, até para evitar mal entendidos. Aponto, então, para a gravidade da afirmação seguinte de Nucci: “a verdade é una e sempre relativa” (op. cit., p. 114). Redarguo, com toda a lhaneza acadêmica: se a verdade é relativa, a própria afirmação do autor deve ser assim considerada, isto é, a própria afirmação de Nucci deve ser considerada “relativa”... Logo, Nucci caiu em uma contradição insolúvel.

Por isso — e, por favor, isso não é assim porque eu quero, portanto, não deve ser visto como implicância minha — se a verdade é una, como diz Nucci, não é possível que ela seja, também, relativa. E vice-versa. De fato, ou se trata de uma verdade una (absoluta, apodítica) ou se trata de uma “verdade relativa” (e que nem pode ser “a verdade”, eis-que-é-relativa!). Ora, não é possível compreender esse medo da afirmação de existirem verdades, eis que qualquer afirmação a respeito da verdade deve ser verdadeira (pois deve ser aplicada sobre a própria afirmação). Consequentemente, não parece existir dúvida de que Nucci resvala em uma contradição performática (poderíamos dizer que é a kantiana aporia da “coisa em si”).

Entretanto, as contradições não terminam nesse ponto. Isto porque, ao final, Nucci vai dizer que “a verdade é apenas uma noção ideológica da realidade, motivo pelo qual o que é verdadeiro para uns, não o é para outros” (op. cit., p.114). Já de pronto, permito-me acrescentar, ao final dessa frase, a afirmação “inclusive-isto-que-o-autor-acabou-de- afirmar”, de modo que ela seria lida dessa forma: “a verdade é apenas uma noção ideológica da realidade, motivo pelo qual o que é verdadeiro para uns, não o é para outros”, “inclusive isto que acabo de afirmar”! Então, esta própria afirmação é válida para uns e não o é para outros! Observe-se o grau de sincretismo: Nucci navega pelo objetivismo (ou uma vulgata do realismo filosófico) até chegar ao relativismo pós-moderno. Um “salto paradigmático” considerável, pois.

De todo modo, seria interessante esclarecer de que maneira é possível fazer esse mix de posições filosóficas, principalmente se considerarmos que, no início de sua explanação sobre o “princípio” (sic) da verdade real, Guilherme Nucci se posiciona a favor da verdade objetiva (que, ao fim e ao cabo, representaria o cerne da assim denominada “verdade real”), assumindo, entretanto, na sequência, uma postura relativista. E, o pior: no plano da dogmática do Direito (e quiçá em algumas teorias sedizentes críticas), o magistrado e professor Nucci não está só. Portanto, o problema na Teoria do Direito (se quisermos, no processo em geral) é responder a pergunta: De que modo se compatibilizam essas teses contraditórias entre si? De que maneira esse sincretismo sobrevive no imaginário dos juristas de terrae brasilis? Será que alguns juristas ainda não descobriram que os autos do processo são apenas uma narrativa? Ora, a própria frase "o que não está nos autos não está no mundo" (quod non est in actis, non est in mundo) indica isso!

É o que veremos na coluna que se chamará O Cego de Paris III — A Missão. Já comecei a escrevê-la. Como falei, em se tratando de obras que “fazem a cabeça” de milhares de estudantes e profissionais (como é o caso da extensa obra de Guilherme Nucci), o dever de quem deseja fazer Teoria do Direito é colocar os pontos contraditórios e apontar os lugares em que não se dá a compreensão do fenômeno. No caso específico tratado nessa trilogia (Cego de Paris I, II e III), a temática diz respeito à questão da verdade (real) no processo penal (que de certo modo pode ser estendida ao processo civil).

Numa palavra: examinando as posturas da dogmática jurídica sobre o conceito de verdade, nota-se, facilmente, que nem de longe se coloca em questão a própria dicotomia sujeito-objeto (S-O). De onde surge isso? As primeiras linhas da "Metafísica" de Aristóteles trazem luz a essa indagação. Essa mediação do real aparece exemplarmente em Aristóteles: "a alma é de alguma forma todas as coisas (pánta tá ónta)"; ou ainda: "o ente (tó ón) é dito de diversas maneiras"); ou nos escolásticos: quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur. Bem, por enquanto, paro por aqui.

Como disse, isso tudo não é assim por implicância minha ou por minha chatice epistem(ológ)ica. Paradigmas filosóficos conformam a nossa existência. Não posso pensar que estou fora deles. Ou seja, tenho que sempre me preocupar com os efeitos colaterais de uma paralaxe cognitiva (lembro, aqui, da coluna sobre o Combo de Palavras... esse combo da paralaxe valeria uma fortuna no mercado futuro – uma verdadeira commodity). Até o Cego de Paris III — A Missão!
[1] Objetivismo no sentido filosófico e não no sentido da dicotomia vontade da lei-vontade do legislador.
[2] Um ponto decisivo para compreensão do direito e da hermenêutica contemporânea é a compreensão do papel assumido pelo sujeito na modernidade. É preciso compreender que a modernidade efetivamente “cria” o sujeito (e o sujeito “cria” a modernidade). Antes da vigorosa ruptura filosófica operada por Descartes – que é quem institui a modernidade filosófica – o conceito de sujeito cobria uma outra esfera de significados. É preciso, portanto, encontrar um meio de conseguir notar como as transformações no conceito do hipokeimenon aristotélico e do sub-jectum medieval acontecem na configuração do sujeito moderno. Nesse sentido, Koselleck oferece um importante instrumento de análise para colocação de temas histórico-filosóficos no direito. De todo modo, é importante lembrar que aquilo que chamo de “filosofia da consciência” no direito é, na verdade, uma vulgata, porque se trata de um voluntarismo praticado a partir da concepção individual (ou daquilo que se pensa ser a subjetividade do intérprete). Ver, também, Gadamer, Verdade e Método II: A história do conceito como filosofia. Ainda, Heidegger, Nietzsche II.
[3] V.g., “O que é isto – a verdade real? Uma crítica ao sincretismo jusfilosófico de terrae brasilis, na Revista dos Tribunais, Volume 921.



Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2013

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