quinta-feira, 17 de outubro de 2013

INFORMATIVO JURISPRUDENCIAL DO STJ Nº. 0526



Informativo n. 0526
Período: 25 de setembro de 2013.
As notas aqui divulgadas foram colhidas nas sessões de julgamento e elaboradas pela Secretaria de Jurisprudência, não consistindo em repositórios oficiais da jurisprudência deste Tribunal. Primeira Seção


DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. INTIMAÇÃO PESSOAL DO REPRESENTANTE DE CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL EM EXECUÇÃO FISCAL. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).


O representante judicial de conselho de fiscalização profissional possui a prerrogativa de ser intimado pessoalmente no âmbito de execução fiscal promovida pela entidade. Incide, nessa hipótese, o disposto no art. 25 da Lei 6.830/1980 (LEF). Deve-se ressaltar, a propósito do tema, que o STF consolidou o entendimento de que os referidos conselhos possuem natureza jurídica autárquica, pois exercem atividade típica de Estado, de modo a abranger, no que concerne à fiscalização de profissões regulamentadas, o poder de polícia, o de tributar e o de punir. Nesse contexto, os créditos dos conselhos de fiscalização profissional devem ser cobrados por execução fiscal, pois a expressão “Fazenda Pública” constante do § 1º do art. 2º da LEF – “Qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades de que trata o artigo 1º, será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública.” –, deve ser interpretada de maneira a abranger as autarquias. Dessa forma, existindo regra específica sobre a intimação pessoal dos representes da Fazenda Pública em execução fiscal (art. 25 da LEF), essa prerrogativa deve ser observada no caso dos representantes dos conselhos de fiscalização profissional. REsp 1.330.473-SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 12/6/2013.


DIREITO ADMINISTRATIVO. AFASTAMENTO DAS CONCLUSÕES DA COMISSÃO EM PAD.


No processo administrativo disciplinar, quando o relatório da comissão processante for contrário às provas dos autos, admite-se que a autoridade julgadora decida em sentido diverso daquele apontado nas conclusões da referida comissão, desde que o faça motivadamente. Isso porque, segundo o parágrafo único do art. 168 da Lei 8.112/1990, quando “o relatório da comissão contrariar as provas dos autos, a autoridade julgadora poderá, motivadamente, agravar a penalidade proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade”. Precedentes citados: MS 15.826-DF, Primeira Seção, DJe 31/05/2013; e MS 16.174-DF, Primeira Seção, DJe 17/02/2012. MS 17.811-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 26/6/2013.


DIREITO ADMINISTRATIVO. DESTITUIÇÃO DE CARGO EM COMISSÃO.


Deve ser aplicada a penalidade de destituição de cargo em comissão na hipótese em que se constate que servidor não ocupante de cargo efetivo, valendo-se do cargo, tenha indicado irmão, nora, genro e sobrinhos para contratação por empresas recebedoras de verbas públicas, ainda que não haja dano ao erário ou proveito pecuniário e independentemente da análise de antecedentes funcionais. Com efeito, é de natureza formal o ilícito administrativo consistente na inobservância da proibição de que o servidor se valha do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública (art. 117, IX, da Lei 8.112/1990). Nesse contexto, não importa, para configuração do ilícito, qualquer discussão acerca da eventual ocorrência de dano ao erário ou da existência de proveito pecuniário, pois o que se pretende é impedir o desvio de conduta por parte do servidor. Ressalte-se que a existência de bons antecedentes funcionais não é suficiente para impedir a aplicação da penalidade, pois a Administração Pública, quando se depara com situações como essa, não dispõe de discricionariedade para aplicar pena menos gravosa, tratando-se, sim, de ato vinculado. MS 17.811-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 26/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. REQUISITOS PARA A ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).


A oposição de embargos à execução fiscal depois da penhora de bens do executado não suspende automaticamente os atos executivos, fazendo-se necessário que o embargante demonstre a relevância de seus argumentos ("fumus boni juris") e que o prosseguimento da execução poderá lhe causar dano de difícil ou de incerta reparação ("periculum in mora"). Com efeito, as regras da execução fiscal não se incompatibilizam com o art. 739-A do CPC/1973, que condiciona a atribuição de efeitos suspensivos aos embargos do devedor ao cumprimento de três requisitos: apresentação de garantia, verificação pelo juiz da relevância da fundamentação e perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. Para chegar a essa conclusão, faz-se necessária uma interpretação histórica dos dispositivos legais pertinentes ao tema. A previsão no ordenamento jurídico pátrio da regra geral de atribuição de efeito suspensivo aos embargos do devedor somente ocorreu com o advento da Lei 8.953/1994, que promoveu a reforma do processo de execução do CPC/1973, nele incluindo o § 1º do art. 739 e o inciso I do art. 791. Antes dessa reforma, inclusive na vigência do Decreto-lei 960/1938 – que disciplinava a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública em todo o território nacional – e do CPC/1939, nenhuma lei previa expressamente a atribuição, em regra, de efeitos suspensivos aos embargos do devedor. Nessa época, o efeito suspensivo derivava de construção doutrinária que, posteriormente, quando suficientemente amadurecida, culminou no projeto que foi convertido na citada Lei n. 8.953/1994. Sendo assim, é evidente o equívoco da premissa de que a Lei 6.830/1980 (LEF) e a Lei 8.212/1991 (LOSS) adotaram a postura suspensiva dos embargos do devedor antes mesmo de essa postura ter sido adotada expressamente pelo próprio CPC/1973 (com o advento da Lei 8.953/1994). Dessa forma, à luz de uma interpretação histórica dos dispositivos legais pertinentes ao tema e tendo em vista os princípios que influenciaram as várias reformas no CPC/1973 e as regras dos feitos executivos da Fazenda Pública – considerando, em especial, a eficácia material do processo executivo, a primazia do crédito público sobre o privado e a especialidade das execuções fiscais –, é ilógico concluir que a LEF e o art. 53, § 4º, da Lei 8.212/1991 foram, em algum momento, ou são incompatíveis com a ausência de efeito suspensivo aos embargos do devedor. Isso porque, quanto ao regime jurídico desse meio de impugnação, há a invocação – com derrogações específicas sempre no sentido de dar maiores garantias ao crédito público – da aplicação subsidiária do disposto no CPC/1973, que tinha redação dúbia a respeito, admitindo diversas interpretações doutrinárias. Por essa razão, nem a LEF nem o art. 53, § 4º, da LOSS devem ser considerados incompatíveis com a atual redação do art. 739-A do CPC/1973. Cabe ressaltar, ademais, que, embora por fundamentos variados – fazendo uso da interpretação sistemática da LEF e do CPC/1973, trilhando o inovador caminho da teoria do diálogo das fontes ou utilizando da interpretação histórica dos dispositivos (o que se faz nesta oportunidade) – a conclusão acima exposta tem sido adotada predominantemente no STJ. Saliente-se, por oportuno, que, em atenção ao princípio da especialidade da LEF, mantido com a reforma do CPC/1973, a nova redação do art. 736 do CPC, dada pela Lei 11.382/2006 – artigo que dispensa a garantia como condicionante dos embargos –, não se aplica às execuções fiscais, haja vista a existência de dispositivo específico, qual seja, o art. 16, § 1º, da LEF, que exige expressamente a garantia para a admissão de embargos à execução fiscal. Precedentes citados: AgRg no Ag 1.381.229-PR, Primeira Turma, DJe de 2/2/2012; e AgRg nos EDcl no Ag 1.389.866-PR, Segunda Turma, DJe de DJe 21/9/2011. REsp 1.272.827-PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/5/2013.


DIREITO TRIBUTÁRIO. BASE DE CÁLCULO DAS CONTRIBUIÇÕES PARA O PIS/PASEP E DA COFINS NA HIPÓTESE DE VENDA DE VEÍCULOS NOVOS POR CONCESSIONÁRIA DE VEÍCULOS. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).


Na venda de veículos novos, a concessionária deve recolher as contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS sobre a receita bruta/faturamento (arts. 2º e 3º da Lei 9.718/1998) – compreendido o valor de venda do veículo ao consumidor –, e não apenas sobre a diferença entre o valor de aquisição do veículo junto à fabricante concedente e o valor da venda ao consumidor (margem de lucro). Decerto, entre a pessoa jurídica fabricante (montadora-concedente) e o distribuidor (concessionária), há uma relação de concessão comercial cujo objeto é o veículo a ser vendido ao consumidor. Esse vínculo, sob o ponto de vista comercial, é regido pela Lei 6.729/1979, que caracteriza o fornecimento de mercadorias pela concedente à concessionária como uma compra e venda mercantil, pois estabelece que o preço de venda ao consumidor deve ser livremente fixado pela concessionária, enquanto na relação entre concessionária e concedente cabe a esta fixar “o preço de venda” àquela (art. 13). Confirma o entendimento de que há uma compra e venda mercantil o disposto no art. 23 da mencionada lei, segundo o qual há obrigação da concedente de readquirir da concessionária o estoque de veículos pelo "preço de venda” à rede de distribuição. Desse modo, é evidente que, na relação de "concessão comercial" prevista na Lei 6.729/1979, existe um contrato de compra e venda mercantil que é celebrado entre o concedente e a concessionária e outro contrato de compra e venda que é celebrado entre a concessionária e o consumidor, sendo que é o segundo contrato que gera faturamento para a concessionária. Saliente-se, a propósito, que não há mera intermediação, tampouco operação de consignação. Isso, inclusive, é confirmado pelo art. 5º da Lei 9.718/1998, que, quando equipara para fins tributários as operações de compra e venda de veículos automotores usados a uma operação de consignação, parte do pressuposto de que a operação de compra e venda de carros novos não configura consignação. Efetivamente, só se equipara aquilo que não o é; se já o fosse, não seria necessário equiparar. Sendo assim, caracterizada a venda de veículos automotores novos, a operação se enquadra dentro do conceito de "faturamento" definido pelo STF quando examinou o art. 3º, caput, da Lei n. 9.718/1998, fixando que a base de cálculo do PIS e da COFINS é a receita bruta/faturamento que decorre exclusivamente da venda de mercadorias e/ou de serviços, não se considerando receita bruta de natureza diversa. Precedentes citados: AgRg nos EREsp 529.034-RS, Corte Especial, DJ 1º/8/2006; AgRg no AREsp 67.356-DF, Primeira Turma, DJe 30/4/2012. REsp 1.339.767-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 26/6/2013. Terceira Seção


DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO DE ANISTIADO POLÍTICO MILITAR AOS BENEFÍCIOS INDIRETOS DOS MILITARES.


A condição de anistiado político confere ao militar o direito aos planos de seguro e de assistência médica, odontológica e hospitalar assegurados aos militares. Isso porque, conforme o art. 14 da Lei 10.559/2002 (Lei de Anistia), ao “anistiado político são também assegurados os benefícios indiretos mantidos pelas empresas ou órgãos da Administração Pública a que estavam vinculados quando foram punidos”. Portanto, os anistiados políticos fazem jus aos benefícios em questão, pois estes constituem direito dos militares, consoante o disposto no art. 50, IV, "e", da Lei 6.880/1980 (Estatuto dos Militares). MS 10.642-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 12/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR O CRIME DE PECULATO-DESVIO.


Compete ao foro do local onde efetivamente ocorrer o desvio de verba pública – e não ao do lugar para o qual os valores foram destinados – o processamento e julgamento da ação penal referente ao crime de peculato-desvio (art. 312, "caput", segunda parte, do CP). Isso porque a consumação do referido delito ocorre quando o funcionário público efetivamente desvia o dinheiro, valor ou outro bem móvel. De fato, o resultado naturalístico é exigido para a consumação do crime, por se tratar o peculato-desvio de delito material. Ocorre que o resultado que se exige nesse delito não é a vantagem obtida com o desvio do dinheiro, mas sim o efetivo desvio do valor. Dessa forma, o foro do local do desvio deve ser considerado o competente, tendo em vista que o art. 70 do CPP estabelece que a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração. CC 119.819-DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 14/8/2013. Segunda Turma


DIREITO ADMINISTRATIVO. AUXÍLIO-ALIMENTAÇÃO REFERENTE A PERÍODO DE FÉRIAS.


O servidor público tem direito ao recebimento de auxílio-alimentação referente a período de férias. Precedentes citados: AgRg no AREsp 276.991-BA, Segunda Turma, DJe 8/5/2013; e AgRg no REsp 1.082.563-CE, Sexta Turma, DJe 1º/2/2011. AgRg no REsp 1.360.774-RS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 18/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. CUMULAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DE RECOMPOSIÇÃO DO MEIO AMBIENTE E DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO.


Na hipótese de ação civil pública proposta em razão de dano ambiental, é possível que a sentença condenatória imponha ao responsável, cumulativamente, as obrigações de recompor o meio ambiente degradado e de pagar quantia em dinheiro a título de compensação por dano moral coletivo. Isso porque vigora em nosso sistema jurídico o princípio da reparação integral do dano ambiental, que, ao determinar a responsabilização do agente por todos os efeitos decorrentes da conduta lesiva, permite a cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar. Ademais, deve-se destacar que, embora o art. 3º da Lei 7.347/1985 disponha que "a ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer", é certo que a conjunção "ou" – contida na citada norma, bem como nos arts. 4º, VII, e 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 – opera com valor aditivo, não introduzindo, portanto, alternativa excludente. Em primeiro lugar, porque vedar a cumulação desses remédios limitaria, de forma indesejada, a Ação Civil Pública – importante instrumento de persecução da responsabilidade civil de danos causados ao meio ambiente –, inviabilizando, por exemplo, condenações em danos morais coletivos. Em segundo lugar, porque incumbe ao juiz, diante das normas de Direito Ambiental – recheadas que são de conteúdo ético intergeracional atrelado às presentes e futuras gerações –, levar em conta o comando do art. 5º da LINDB, segundo o qual, ao se aplicar a lei, deve-se atender “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, cujo corolário é a constatação de que, em caso de dúvida ou outra anomalia técnico-redacional, a norma ambiental demanda interpretação e integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura, haja vista que toda a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos há sempre de ser compreendida da maneira que lhes seja mais proveitosa e melhor possa viabilizar, na perspectiva dos resultados práticos, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma. Por fim, a interpretação sistemática das normas e princípios ambientais leva à conclusão de que, se o bem ambiental lesado for imediata e completamente restaurado, isto é, restabelecido à condição original, não há falar, como regra, em indenização. Contudo, a possibilidade técnica, no futuro, de restauração in natura nem sempre se mostra suficiente para reverter ou recompor integralmente, no âmbito da responsabilidade civil, as várias dimensões do dano ambiental causado; por isso não exaure os deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação integral do dano. Cumpre ressaltar que o dano ambiental é multifacetário (ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do vasto universo de vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às gerações futuras e aos processos ecológicos em si mesmos considerados). Em suma, equivoca-se, jurídica e metodologicamente, quem confunde prioridade da recuperação in natura do bem degradado com impossibilidade de cumulação simultânea dos deveres de repristinação natural (obrigação de fazer), compensação ambiental e indenização em dinheiro (obrigação de dar), e abstenção de uso e nova lesão (obrigação de não fazer). REsp 1.328.753-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 28/5/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. LEGITIMIDADE PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DE ZONA DE AMORTECIMENTO DE PARQUE NACIONAL.


O MPF possui legitimidade para propor, na Justiça Federal, ação civil pública que vise à proteção de zona de amortecimento de parque nacional, ainda que a referida área não seja de domínio da União. Com efeito, tratando-se de proteção ao meio ambiente, não há competência exclusiva de um ente da Federação para promover medidas protetivas. Impõe-se amplo aparato de fiscalização a ser exercido pelos quatro entes federados, independentemente do local onde a ameaça ou o dano estejam ocorrendo e da competência para o licenciamento. Deve-se considerar que o domínio da área em que o dano ou o risco de dano se manifesta é apenas um dos critérios definidores da legitimidade para agir do MPF. Ademais, convém ressaltar que o poder-dever de fiscalização dos outros entes deve ser exercido quando determinada atividade esteja, sem o devido acompanhamento do órgão local, causando danos ao meio ambiente. AgRg no REsp 1.373.302-CE, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 11/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. SUBSTITUIÇÃO DE BEM PENHORADO EM EXECUÇÃO FISCAL.


Em execução fiscal, o juiz não pode indeferir o pedido de substituição de bem penhorado se a Fazenda Pública concordar com a pretendida substituição. Isso porque, de acordo com o princípio da demanda, o juiz, em regra, não pode agir de ofício, salvo nas hipóteses expressamente previstas no ordenamento jurídico. Assim, tendo o credor anuído com a substituição da penhora, mesmo que por um bem que guarde menor liquidez, não poderá o juiz, de ofício, indeferi-la. Ademais, nos termos do art. 620 do CPC, a execução deverá ser feita pelo modo menos gravoso para o executado. REsp 1.377.626-RJ, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 20/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MP EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA DEFESA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.


O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública a fim de obter compensação por dano moral difuso decorrente da submissão de adolescentes a tratamento desumano e vexatório levado a efeito durante rebeliões ocorridas em unidade de internação. Isso porque, segundo o art. 201, V, do ECA, o MP é parte legítima para "promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência". Precedente citado: REsp 440.502-SP, Segunda Turma, DJe 24/9/2010. AgRg no REsp 1.368.769-SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 6/8/2013.


DIREITO TRIBUTÁRIO. RESTITUIÇÃO DO ICMS PAGO A MAIOR NA HIPÓTESE EM QUE A BASE DE CÁLCULO REAL SEJA INFERIOR À PRESUMIDA.


Na hipótese em que a base de cálculo real do ICMS for inferior à presumida, é possível pedir a restituição da diferença paga a maior a estados não signatários do Convênio Interestadual 13/1997. De fato, o STF, no julgamento da ADI 1.851-AL, já decidiu que, no regime de substituição tributária, somente haverá direito à restituição quando não ocorrer o fato gerador. Deve-se ressaltar, todavia, que os efeitos dessa decisão não alcançam todos os estados integrantes da Federação, mas apenas aqueles que sejam signatários do referido convênio. AgRg no REsp 1.371.922-SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 6/8/2013. Terceira Turma


DIREITO CIVIL. NÃO CARACTERIZAÇÃO DA "FERRUGEM ASIÁTICA" COMO FATO EXTRAORDINÁRIO E IMPREVISÍVEL PARA FINS DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO.


A ocorrência de “ferrugem asiática” na lavoura de soja não enseja, por si só, a resolução de contrato de compra e venda de safra futura em razão de onerosidade excessiva. Isso porque o advento dessa doença em lavoura de soja não constitui o fato extraordinário e imprevisível exigido pelo art. 478 do CC/2002, que dispõe sobre a resolução do contrato por onerosidade excessiva. Precedente citado: REsp 977.007-GO, Terceira Turma, DJe 2/12/2009. REsp 866.414-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/6/2013.


DIREITO CIVIL. EMISSÃO DE CPR SEM A ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO DO PREÇO.


A emissão de Cédula de Produto Rural – CPR em garantia de contrato de compra e venda de safra futura não pressupõe, necessariamente, a antecipação do pagamento do produto. Isso porque a emissão desse título de crédito pode se dar tanto para financiamento da safra, com o pagamento antecipado do preço, como numa operação de hedge, na qual o agricultor, independentemente do recebimento antecipado do pagamento, pretenda apenas se proteger dos riscos de flutuação de preços no mercado futuro. Nesta hipótese, a CPR funciona como um título de securitização, mitigando os riscos para o produtor, que negocia, a preço presente, sua safra no mercado futuro. Além disso, o legislador não incluiu na Lei 8.929/1994 qualquer dispositivo que imponha, como requisito de validade desse título, o pagamento antecipado do preço. Assim, não é possível, tampouco conveniente, restringir a utilidade da CPR à mera obtenção imediata de financiamento em pecúnia. Se a CPR pode desempenhar um papel maior no fomento ao setor agrícola, não há motivos para que, à falta de disposições legais que o imponham, restringir a sua aplicação. Precedente citado: REsp 1.023.083-GO, Terceira Turma, DJe 1º/7/2010. REsp 866.414-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/6/2013.


DIREITO CIVIL. CLÁUSULA DE CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE QUE EXCLUA A COBERTURA RELATIVA À IMPLANTAÇÃO DE "STENT".


É nula a cláusula de contrato de plano de saúde que exclua a cobertura relativa à implantação de stent. Isso porque, nesse tipo de contrato, considera-se abusiva a disposição que afaste a proteção quanto a órteses, próteses e materiais diretamente ligados a procedimento cirúrgico a que se submeta o consumidor. Precedentes citados: AgRg no Ag 1.341.183-PB, Terceira Turma, DJe 20/4/2012; e AgRg no Ag 1.088.331-DF, Quarta Turma, DJe 29/3/2010. REsp 1.364.775-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/6/2013.


DIREITO CIVIL. DANO MORAL DECORRENTE DA INJUSTA RECUSA DE COBERTURA POR PLANO DE SAÚDE DAS DESPESAS RELATIVAS À IMPLANTAÇÃO DE "STENT".


Gera dano moral a injusta recusa de cobertura por plano de saúde das despesas relativas à implantação de "stent". Isso porque, embora o mero inadimplemento contratual não seja, em princípio, motivo suficiente para causar danos morais, deve-se considerar que a injusta recusa de cobertura agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito daquele que, ao pedir a autorização da seguradora, já se encontra em condição de dor, de abalo psicológico e com a saúde debilitada. Precedentes citados: REsp 735.750-SP, Quarta Turma, DJe 16/2/2012; e REsp 986.947-RN, Terceira Turma, DJe 26/3/2008. REsp 1.364.775-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/6/2013.


DIREITO CIVIL. SUSPENSÃO OU INTERRUPÇÃO DA TRANSMISSÃO DE OBRAS MUSICAIS EM RAZÃO DA FALTA DE PAGAMENTO DO VALOR DOS RESPECTIVOS DIREITOS AUTORAIS.


A autoridade judicial competente pode determinar, como medida de tutela inibitória fundada no art. 105 da Lei 9.610⁄1998, a suspensão ou a interrupção da transmissão de determinadas obras musicais por emissora de radiodifusão em razão da falta de pagamento ao ECAD do valor correspondente aos respectivos direitos autorais, ainda que pendente ação judicial destinada à cobrança desse valor. Deve-se destacar, inicialmente, que o ajuizamento de medida destinada à obtenção de tutela ressarcitória não exclui a possibilidade de que se demande pela utilização de mecanismo apto à efetivação de tutela inibitória. De fato, trata-se de pretensões que não se confundem, pois, enquanto a tutela ressarcitória visa à cobrança dos valores devidos, a tutela inibitória se destina a impedir a continuação ou a repetição do ilícito. Observe-se que o caput do artigo 68 da Lei 9.610/1998 dispõe que, sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas em representações e execuções públicas. Por sua vez, o § 4º do mesmo artigo especifica que, previamente à realização da execução pública, o empresário deverá apresentar ao escritório central de arrecadação e distribuição a comprovação dos recolhimentos relativos aos direitos autorais. Portanto, conclui-se que a autorização para exibição ou execução das obras compreende o prévio pagamento dos direitos autorais, feito por meio do recolhimento dos respectivos valores ao ECAD. Nesse contexto, admitir que a execução das obras possa continuar normalmente, ainda que sem o recolhimento dos valores devidos, porque essa cobrança já seria objeto de tutela jurisdicional própria, seria o mesmo que permitir a violação dos direitos patrimoniais do autor, em razão da relativização da norma contida no art. 68, caput e § 4º, da Lei 9.610/1998, comprometendo, dessa maneira, a sua razão de ser. Ressalte-se, ainda, que a tutela inibitória do art. 105 da Lei 9.610⁄1998 – que permite que a autoridade judicial competente determine a imediata suspensão ou interrupção da transmissão e da retransmissão realizadas mediante violação de direitos autorais – apresenta, de fato, caráter protetivo dos direitos autorais. Assim, autorizar sua aplicação quando houver violação dos direitos patrimoniais de autor, representada pelo não recolhimento dos valores devidos, não a transforma em medida coercitiva. Diversamente, põe-se em evidência a proteção dos direitos autorais, impedindo-se que se prossiga auferindo vantagens econômicas, derivadas da exploração da obra, sem o respectivo pagamento. REsp 1.190.841-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 11/6/2013.


DIREITO EMPRESARIAL. MITIGAÇÃO DA EXCLUSIVIDADE DECORRENTE DO REGISTRO NO CASO DE MARCA EVOCATIVA.


Ainda que já tenha sido registrada no INPI, a marca que constitui vocábulo de uso comum no segmento mercadológico em que se insere – associado ao produto ou serviço que se pretende assinalar – pode ser utilizada por terceiros de boa-fé. Com efeito, marcas evocativas, que constituem expressão de uso comum, de pouca originalidade, atraem a mitigação da regra de exclusividade decorrente do registro, possuindo um âmbito de proteção limitado. Isso porque o monopólio de um nome ou sinal genérico em benefício de um comerciante implicaria exclusividade inadmissível a favorecer a detenção e o exercício do comércio de forma única, com prejuízo não apenas à concorrência empresarial – impedindo os demais industriais do ramo de divulgarem a fabricação de produtos semelhantes através de expressões de conhecimento comum, obrigando-os a buscar nomes alternativos estranhos ao domínio público –, mas sobretudo ao mercado geral, que teria dificuldades para identificar produtos similares aos do detentor da marca. Nesse sentido, a Lei 9.279/1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, em seu art. 124, VI, dispõe não ser registrável como marca sinal de caráter genérico, necessário, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma característica do produto ou serviço. Vale destacar que a linha que divide as marcas genéricas – não sujeitas a registro – das evocativas é extremamente tênue, por vezes imperceptível, fruto da própria evolução ou desenvolvimento do produto ou serviço no mercado. Há expressões, por exemplo, que, não obstante estejam diretamente associadas a um produto ou serviço, de início não estabelecem com este uma relação de identidade tão próxima ao ponto de serem empregadas pelo mercado consumidor como sinônimas. Com o transcorrer do tempo, porém, à medida que se difundem no mercado, o produto ou serviço podem vir a estabelecer forte relação com a expressão, que passa a ser de uso comum, ocasionando sensível redução do seu caráter distintivo. Nesses casos, expressões que, a rigor, não deveriam ser admitidas como marca – por força do óbice contido no art. 124, VI, da Lei 9.279/1996 – acabam sendo registradas pelo INPI, ficando sujeitas a terem sua exclusividade mitigada. Precedente citado: REsp 1.166.498-RJ, Terceira Turma, DJe 30/3/2011. REsp 1.315.621-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECUSA DO RÉU À PRETENSÃO DO AUTOR DE DESISTIR DA AÇÃO APÓS O DECURSO DO PRAZO PARA A RESPOSTA.


Na hipótese em que o autor, após o decurso do prazo para a resposta, pretenda desistir da ação, constituirá motivação apta a impedir a extinção do processo a alegação do réu de que também faz jus à resolução do mérito da demanda contra si proposta. De fato, após a contestação, a desistência da ação pelo autor depende do consentimento do réu (art. 267, VIII e § 4º, do CPC), pois ele também tem direito ao julgamento de mérito. Dessa forma, o conceito de tutela jurisdicional deve levar em consideração não apenas o ponto de vista do autor, que movimentou a máquina judiciária, mas também o do réu, que, quando contesta a ação, está buscando essa tutela, só que em sentido contrário àquela que busca o autor. Assim, o processo não pode ser entendido simplesmente como um modo de exercício de direitos do autor, mas como um instrumento do Estado para o exercício de uma função sua, qual seja, a jurisdição. Nesse contexto, deve-se considerar que a sentença de improcedência interessa muito mais ao réu do que a sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, haja vista que, em decorrência da formação da coisa julgada material, o autor estará impedido de ajuizar outra ação com o mesmo fundamento em face do mesmo réu. Vale ressaltar, ademais, que a recusa do réu deve ser fundamentada e justificada, não bastando apenas a simples alegação de discordância, sem a indicação de qualquer motivo relevante. Assim, a recusa do réu ao pedido de desistência do autor sob o fundamento de ter direito ao julgamento de mérito da demanda consiste em argumento relevante e fundamentação razoável apta a impedir a extinção do processo sem resolução do mérito, não havendo que falar em abuso de direito por parte do réu. REsp 1.318.558-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ANÁLISE DOS EFEITOS DE IRREGULARIDADE PROCESSUAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO MÁXIMO APROVEITAMENTO DOS ATOS PROCESSUAIS.


O fato de um recurso ter sido submetido a julgamento sem anterior inclusão em pauta não implica, por si só, qualquer nulidade quando, para aquele recurso, inexistir norma que possibilite a realização de sustentação oral. Isso porque, apesar da ocorrência de irregularidade processual (inobservância do art. 552 do CPC), deve ser considerada a regra segundo a qual o ato não se repetirá, nem se lhe suprirá a falta, quando não prejudicar a parte (art. 249, § 1º, do CPC), em consonância com o princípio do máximo aproveitamento dos atos processuais. REsp 1.183.774-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXIGIBILIDADE DE MULTA COMINATÓRIA NA HIPÓTESE DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO A DESTEMPO.


O cumprimento da obrigação após o transcurso do prazo judicialmente fixado, ainda que comprovado por termo de quitação, não exime o devedor do pagamento da multa cominatória arbitrada. Ressalte-se, inicialmente, que a quitação – direito subjetivo do devedor que paga – constitui verdadeira declaração do credor de ter recebido a prestação devida, sendo meio apto à prova do adimplemento obrigacional. Ocorre que a quitação somente será apta a afastar a aplicação de multa cominatória quando declarar que o efetivo cumprimento da obrigação tenha ocorrido dentro do prazo judicialmente assinalado. Isso porque a multa cominatória – instituto processual por meio do qual o juiz força a vontade do devedor no sentido de efetivamente cumprir a obrigação judicialmente acertada –, embora se destine à realização do interesse do credor, caracteriza-se como verdadeira sanção a ser aplicada na hipótese de desobediência a uma ordem judicial. REsp 1.183.774-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2013. Quarta Turma


DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ERRO NÃO INTENCIONAL DE ARBITRAGEM.


Não gera dano moral indenizável ao torcedor, pela entidade responsável pela organização da competição, o erro não intencional de arbitragem, ainda que resulte na eliminação do time do campeonato e mesmo que o árbitro da partida tenha posteriormente reconhecido o erro cometido. Segundo o art. 3º da Lei 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor), para todos os efeitos legais, a entidade responsável pela organização da competição e a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo equiparam-se a fornecedor nos termos do CDC. Todavia, para cogitar de responsabilidade civil, nos termos do art. 14 do CDC, é necessária a constatação da materialização de ato ilícito – omissivo ou comissivo –, nexo de causalidade e o dano. Vale destacar que, pelas características de uma partida de futebol, com a vedação de utilização de recursos tecnológicos, o árbitro, para a própria fluidez da partida e manutenção de sua autoridade em jogo, tem a delicada missão de decidir prontamente, valendo-se apenas de sua acuidade visual e da colaboração dos árbitros auxiliares. Assim, diante da ocorrência de erro de arbitragem, ainda que com potencial para influir decisivamente no resultado da partida esportiva, mas não sendo constatado o dolo do árbitro, não há falar em ato ilícito ou comprovação de nexo de causalidade com o resultado ocorrido. A derrota de time de futebol, ainda que atribuída a erro da arbitragem, é dissabor que também não tem o condão de causar mágoa duradoura, a ponto de interferir intensamente no bem-estar do torcedor, sendo recorrente em todas as modalidades de esporte que contam com equipes competitivas. Nesse sentido, consoante vêm reconhecendo doutrina e jurisprudência, mero aborrecimento, contratempo, mágoa – inerentes à vida em sociedade –, ou excesso de sensibilidade por aquele que afirma dano moral, são insuficientes à caracterização do abalo, tendo em vista que este depende da constatação, por meio de exame objetivo e prudente arbítrio do magistrado, da real lesão a direito da personalidade daquele que se diz ofendido. Por fim, não se pode cogitar de inadimplemento contratual, pois não há legítima expectativa – amparada pelo direito – de que o espetáculo esportivo possa transcorrer sem que ocorra algum erro de arbitragem não intencional, ainda que grosseiro, a envolver marcação que hipoteticamente pudesse alterar o resultado do jogo. REsp 1.296.944-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/5/2013.


DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE DE HOSPITAL PARTICULAR POR EVENTO DANOSO OCORRIDO NA VIGÊNCIA DO CC/1916 E ANTES DO INÍCIO DA VIGÊNCIA DO CDC/1990.


Para que hospital particular seja civilmente responsabilizado por dano a paciente em razão de evento ocorrido na vigência do CC/1916 e antes do início da vigência do CDC/1990, é necessário que sua conduta tenha sido, ao menos, culposa. Isso porque, nessa hipótese, devem ser observadas as regras atinentes à responsabilidade subjetiva prevista no CC/1916, e não aquela que dispõe sobre a responsabilidade objetiva do fornecedor, prevista no art. 14 do CDC, inaplicável a fatos anteriores à data de início de sua vigência. REsp 1.307.032-PR, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 18/6/2013.


DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DE TAXA AO ECAD NA HIPÓTESE DE EXECUÇÃO DE MÚSICAS, SEM AUTORIZAÇÃO DOS AUTORES, DURANTE FESTA DE CASAMENTO REALIZADA EM CLUBE.


Os nubentes são responsáveis pelo pagamento ao ECAD de taxa devida em razão da execução de músicas, sem autorização dos autores, na festa de seu casamento realizada em clube, ainda que o evento não vise à obtenção de lucro direto ou indireto. Anteriormente à vigência da Lei 9.610⁄1998, a jurisprudência prevalente no âmbito do direito autoral enfatizava a gratuidade das apresentações públicas de obras musicais, dramáticas ou similares como elemento de extrema relevância para distinguir o que ensejava ou não o pagamento de direitos. De fato, na vigência da Lei 5.988⁄1973, a existência do lucro se revelava como imprescindível à incidência dos direitos patrimoniais. Ocorre que, com a edição da Lei 9.610⁄1998, houve significativa alteração em relação a esse ponto. De fato, o confronto do art. 73 da Lei 5.988⁄1973 com o art. 68 da Lei 9.610/1998 revela a supressão, no novo texto, da cláusula "que visem a lucro direto ou indireto", antes tida como pressuposto para a cobrança de direitos autorais. Nesse contexto, o STJ, em sintonia com o novo diploma legal, alterou seu entendimento, passando a não mais considerar a utilidade econômica do evento como condição para a percepção da verba autoral. Passou-se, então, a reconhecer a viabilidade da cobrança dos direitos autorais também nas hipóteses em que a execução pública da obra protegida não tenha sido realizada com o intuito de lucro. Destaque-se, ademais, que o art. 46, VI, da Lei 9.610⁄1998, efetivamente, autoriza a execução musical independentemente do pagamento de qualquer taxa, desde que realizada no recesso familiar. Todavia, não é possível admitir interpretação que confira à expressão “recesso familiar” amplitude não autorizada pela norma, de modo a abarcar situações como a ora analisada. Com efeito, não é admissível que sejam ultrapassados os limites legais impostos aos direitos de autor, tendo em vista que a interpretação em matéria de direitos autorais deve ser sempre restritiva, à luz do art. 4º da Lei 9.610⁄1998. Observe-se que a referida lei, nos termos de seu art. 68, § 2º, considera execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade. Além disso, o § 3º do mesmo artigo considera os clubes, sem qualquer exceção, como locais de frequência coletiva. Portanto, deve-se concluir que a limitação do art. 46, VI, da Lei 9.610⁄1998 não abarca eventos – mesmo que familiares e sem intuito de lucro – realizados em clubes. Assim, é devida a cobrança de direitos autorais pela execução de músicas durante festa de casamento realizada em clube, mesmo sem a existência de proveito econômico. Quanto à definição de quem deve ser considerado devedor da taxa em questão – cobrada pelo ECAD em decorrência da execução de músicas em casamentos – não há previsão explícita na Lei de Direitos Autorais. Em seu capítulo sobre a comunicação ao público, há um alerta no sentido de que, anteriormente à realização da execução pública, o empresário deverá apresentar ao escritório central a comprovação dos recolhimentos relativos aos direitos autorais (art. 68). Mais à frente, quando da previsão das sanções civis decorrentes das violações de direitos autorais, a Lei 9.610⁄1998 prevê que respondem solidariamente por estas os organizadores dos espetáculos, os proprietários, diretores, gerentes, empresários e arrendatários dos locais previstos no referido art. 68. Sobre o assunto, o próprio sítio eletrônico do ECAD informa que os valores devem ser pagos pelos usuários. Ademais, o regulamento de arrecadação do ECAD afirma que devera ser considerada “usuário de direito autoral toda pessoa física ou jurídica que utilizar obras musicais, lítero-musicais, fonogramas, através da comunicação pública, direta ou indireta, por qualquer meio ou processo similar, seja a utilização caracterizada como geradora, transmissora, retransmissora, distribuidora ou redistribuidora”. Nesse contexto, conclui-se ser de responsabilidade dos nubentes, usuários interessados na organização do evento, o pagamento da taxa devida ao ECAD, sem prejuízo da solidariedade instituída pela lei. REsp 1.306.907-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 6/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA EM RELAÇÃO A SALDO REMANESCENTE.


Na fase de cumprimento de sentença, caso o exequente, após o levantamento dos valores depositados em seu favor, apresente memória de cálculo relativa a saldo remanescente, deverá ser concedida ao executado nova oportunidade para impugnação. O direito de impugnação – inclusive quanto à alegação de saldo remanescente – é decorrência natural do direito de ação, possibilitando ao executado reagir contra execução que se desenvolva de forma injusta ou ilegal. Assim, em situações como a descrita, tendo em vista tratar-se de novo procedimento executivo versando valores não abrangidos na execução anterior, deve-se conceder ao devedor a possibilidade de apresentar nova defesa, não havendo preclusão. REsp 1.265.894-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 11/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. GARANTIA DO JUÍZO COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA À IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.


A garantia do juízo constitui condição para a própria apresentação de impugnação ao cumprimento de sentença, e não apenas para sua apreciação. Conforme o art. 475-J, § 1º, do CPC, o executado será intimado, de imediato, do auto de penhora e de avaliação, podendo oferecer impugnação no prazo de quinze dias. Da interpretação desse dispositivo legal, tem-se por inequívoca a necessidade da prévia garantia do juízo para que seja possível o oferecimento de impugnação. Reforça esse entendimento o teor do art. 475-L, III, do CPC, que admite, como uma das matérias a serem alegadas por meio de impugnação, a penhora incorreta ou avaliação errônea. Precedentes citados: REsp 1.303.508-RS, Quarta Turma, DJe 29/6/2012; e REsp 1.195.929-SP, Terceira Turma, DJe 9/5/2012. REsp 1.265.894-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 11/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA PARA IMPUGNAR ATO JUDICIAL QUE TENHA DETERMINADO A CONVERSÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AGRAVO RETIDO.


É cabível mandado de segurança para impugnar decisão que tenha determinado a conversão de agravo de instrumento em agravo retido. Isso porque, nessa hipótese, não há previsão de recurso próprio apto a fazer valer o direito da parte ao imediato processamento de seu agravo. Precedentes citados: AgRg nos EDcl no RMS 37.212-TO, Segunda Turma, DJe 30/10/2012; e RMS 26.733-MG, Terceira Turma, DJe 12/5/2009. RMS 30.269-RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 11/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONVERSÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AGRAVO RETIDO NO ÂMBITO DE EXECUÇÃO.


O agravo de instrumento não pode ser convertido em agravo retido quando interposto com o objetivo de impugnar decisão proferida no âmbito de execução. Isso porque a retenção do referido recurso é incompatível com o procedimento adotado na execução, em que não há sentença final de mérito. Precedentes citados: AgRg no AREsp 5.997-RS, Primeira Turma, DJe 16/3/2012; e REsp 418.349-PR, Terceira Turma, DJe 10/12/2009. RMS 30.269-RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 11/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES EM FACE DE ACÓRDÃO QUE TENHA DADO PROVIMENTO A AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO DE DECISÃO QUE DECRETE FALÊNCIA.


São cabíveis embargos infringentes em face de acórdão que, por maioria de votos, dê provimento a agravo de instrumento interposto com o objetivo de impugnar decisão que tenha decretado falência. Isso porque, no curso do processo de falência, o agravo de instrumento previsto no art. 100 da Lei 11.101/2005 faz as vezes da apelação. Ademais, é o conteúdo da matéria decidida que define o cabimento dos embargos infringentes, e não o nome atribuído ao recurso pela lei. Precedentes citados: REsp 818.497-MG, Terceira Turma, DJe 6/5/2010; e EREsp 276.107-GO, Corte Especial, DJ 25/8/2003. REsp 1.316.256-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/6/2013.


DIREITO EMPRESARIAL. PRAZO PRESCRICIONAL PARA A COBRANÇA DE DEBÊNTURES.


Prescreve em cinco anos a pretensão de cobrança de valores relativos a debêntures. Isso porque, nessa hipótese, deve ser aplicada a regra prevista no art. art. 206, § 5º, I, do CC, que estabelece em cinco anos o prazo de prescrição “de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”. Ressalte-se que não cabe na hipótese, por ampliação ou analogia, sem qualquer previsão legal, aplicar às debêntures o prazo prescricional relativo às notas promissórias e às letras de câmbio, bem como o prazo prescricional para haver o pagamento de título de crédito propriamente dito. Com efeito, deve-se considerar que a interpretação das normas sobre prescrição e decadência não pode ser realizada de forma extensiva. Precedentes citados: AgRg no AREsp 94.684-DF, Primeira Turma, DJe 25/5/2012; e AgRg no REsp 1.149.542-PR, Segunda Turma, DJe 21/5/2010. REsp 1.316.256-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE PARA O AJUIZAMENTO DA MEDIDA DE BUSCA E APREENSÃO DO ART. 3º DO DECRETO-LEI 911/1969.


Na hipótese em que o contrato de alienação fiduciária em garantia tenha sido celebrado na vigência do CC/2002 e da Lei 10.931⁄2004, falta legitimidade, para propor a medida de busca e apreensão prevista no art. 3º do Decreto-lei 911/1969, à entidade que não seja instituição financeira ou à pessoa jurídica de direito público titular de créditos fiscais e previdenciários. Isso porque, de acordo com o art. 8º-A do referido decreto, incluído pela Lei 10.931/2004, aquele procedimento somente é aplicável quando se tratar de operações do mercado financeiro e de capitais ou de garantia de débitos fiscais ou previdenciários. Deve-se destacar, ainda, que a medida de busca e apreensão prevista no Decreto-lei 911/1969 constitui processo autônomo, de caráter satisfativo e de cognição sumária, que ostenta rito célere e específico. Trata-se, pois, de medida que objetiva conferir maiores garantias aos credores, estimulando o crédito e fortalecendo o mercado produtivo, inaplicável na situação em análise. REsp 1.101.375-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/6/2013.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE PARA A EXECUÇÃO DE HONORÁRIOS FIXADOS EM DECISÃO JUDICIAL.


A associação que se destine a representar os interesses dos advogados empregados de determinada entidade, havendo autorização estatutária, tem legitimidade para promover, em favor de seus associados, a execução de título judicial quanto à parcela da decisão relativa aos honorários de sucumbência. Observe-se, inicialmente, que o art. 21 da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB) dispõe que, nas causas em que for parte o empregador, ou pessoa por este representada, os honorários de sucumbência serão devidos aos advogados empregados. Destaque-se, ainda, que o artigo emprega o termo plural "advogados empregados", considerando que o empregador, normalmente, terá mais de um advogado empregado e que eles, ao longo do processo, terão oportunidade de atuar em conjunto ou isoladamente, de modo que o êxito, acaso obtido pelo empregador na demanda, será atribuído à equipe de advogados empregados. Por sua vez, o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB estabelece, no parágrafo único de seu art. 14, que os honorários de sucumbência dos advogados empregados constituem fundo comum, cuja destinação é decidida pelos profissionais integrantes do serviço jurídico da empresa ou por seus representantes. Assim, existindo uma associação regularmente criada para representar os interesses dos advogados empregados de determinada entidade, nada obsta que a entidade associativa, mediante autorização estatutária, possa executar os honorários sucumbenciais pertencentes aos "advogados empregados", seus associados. Essa possibilidade apenas facilita a formação, administração e rateio dos recursos do fundo único comum, destinado à divisão proporcional entre todos os associados. REsp 634.096-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 20/8/2013. Quinta Turma


DIREITO PROCESSUAL PENAL. DETERMINAÇÃO, EM LEI ESTADUAL, DE COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE PARA A AÇÃO PENAL DECORRENTE DA PRÁTICA DE CRIME CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE.


É nulo o processo, desde o recebimento da denúncia, na hipótese em que o réu, maior de 18 anos, acusado da prática do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), tenha sido, por esse fato, submetido a julgamento perante juízo da infância e da juventude, ainda que exista lei estadual que estabeleça a competência do referido juízo para processar e julgar ação penal decorrente da prática de crime que tenha como vítima criança ou adolescente. Com efeito, a atribuição conferida pela CF aos tribunais de justiça estaduais de disciplinar a organização judiciária não implica autorização para revogar, ampliar ou modificar disposições sobre competência previstas em lei federal. Nesse contexto, para que não haja afronta à CF e à legislação federal, deve-se considerar que a faculdade concedida aos estados e ao DF de criar varas da infância e da juventude (art. 145 do ECA) não se confunde com a possibilidade de ampliar o rol de hipóteses de competência estabelecido no art. 148 do mesmo diploma legal, que não contempla qualquer permissivo para julgamento de feitos criminais no âmbito do juízo da infância e juventude. RHC 34.742-RS, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 15/8/2013. Sexta Turma


DIREITO PENAL. DOLO NO DELITO DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA.


Para a caracterização do crime de apropriação indébita de contribuição previdenciária (art. 168-A do CP), não há necessidade de comprovação do dolo específico de se apropriar de valores destinados à previdência social. Precedentes citados: HC 116.032-RS, Quinta Turma, DJ 9/3/2009; e AgRg no REsp 770.207/RS, Sexta Turma, DJe 25/5/2009. AgRg no Ag 1.083.417-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 25/6/2013.



Fonte: STJ


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

ENTREVISTA COM O MINISTRO LUIS ROBERTO BARROSO

 


'Demandas do país não se resolvem no Judiciário'



"Espero que o Congresso Nacional, num curto prazo, livre o Supremo Tribunal Federal do foro por prerrogativa de função, salvo autoridades como o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes dos Poderes, os ministros do Supremo e o procurador-geral da República." A frase é do ministro Luis Roberto Barroso, o mais novo no Supremo Tribunal Federal, que logo ao chegar na corte já teve de julgar um dos processos mais volumosos da história da corte, a Ação Penal 470, com 37 réus. O ministro propõe a criação de uma vara em Brasília apenas para os que hoje têm foro no STF por conta da função, cabendo então ao Supremo apenas analisar os recursos, as questões jurídicas, e não o recebimento da denúncia.

Em entrevista ao jornal Valor Econômico, o ministro fez um balanço dos 25 anos da Constituição Federal que, segundo ele, trouxe estabilidade institucional, garantiu os direitos sociais e criou uma cultura de direitos fundamentais. Porém, Barroso diz que as instituições não foram capazes de prestar serviços de qualidade à população.

Ao falar sobre o Judiciário, Barroso afirma que há um equívoco em imaginar que as grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo Judiciário. “Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade”, diz.

A política de qualidade é, para Barroso, a solução para diversos problemas enfrentados no país, como para garantir os direitos previstos na Constituição, inclusive os que ainda não foram regulamentados, e também a guerra fiscal entre os estados. “Não se cura desespero com decreto. Nem decreto normativo, nem judicial. Os estados vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais política, mas política de qualidade”.

Mesmo afirmando que não é necessária uma nova Constituição para o país, apenas “uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma prótese acolá”, Barroso diz que o sistema eleitoral é um desastre que não pode ser resolvido pelo Judiciário.

Leia a entrevista concedida ao jornal Valor Econômico:

O Judiciário deve agir sempre que as exigências da Constituição de 1988 não estiverem sendo cumpridas por outros Poderes?
O Judiciário viveu sob a Constituição de 1988 uma vertiginosa ascensão institucional. Ele tem servido bem ao país, embora padeça da mesma incapacidade de outras instituições de atender a todas as demandas da sociedade. Porém, é um equívoco imaginar que as grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo Judiciário. O Judiciário é, e é curioso eu dizer isso, uma instância patológica. Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade.

Por que as instituições não conseguem atender às demandas da população 25 anos depois de a Constituição garanti-las no papel?
Sob a Constituição de 1988, o Brasil avançou muito em diversas áreas. A cidadania atingiu um novo patamar de consciência e exigência. Mas, embora tenhamos melhorado muito, as instituições não estão conseguindo atender às demandas por Justiça e por serviços na intensidade e na qualidade desejáveis. Somos um país que começou atrasado na história, um país em construção. O Brasil começa verdadeiramente em 1808, com a vinda da família real. Somos herdeiros de uma tradição autoritária, a tradição ibérica, de um país que foi o último a abolir o absolutismo e a separar a igreja do Estado. Portanto, somos colônia de um Império que havia ele próprio se atrasado na história, e apesar disso, em 200 anos, somos uma das dez principais economias do mundo.

O STF não avançou no papel de outros Poderes ao tomar decisões antes do Congresso e do governo para garantir direitos?
O Judiciário é um grande guardião dos direitos fundamentais das minorias. E o STF desempenhou com muita felicidade esse papel nos últimos anos em relação a negros, homossexuais, mulheres, atuou no caso da anencefalia. Acho que prestou outros serviços que contribuíram para um avanço social em questões como a proibição do nepotismo, as pesquisas com células-tronco embrionárias. Com a Ação Penal 470, ajudou a enfrentar o tema da impunidade.

Qual a importância da ação penal do mensalão?
A AP 470 foi um marco na condenação de políticos e de poderosos em geral, como nunca se tinha visto.

Mas esse resultado não pode se dissolver, já que o julgamento foi estendido por embargos?
A cabala judaica tem uma passagem em que eles dizem "tudo passa". Portanto, passam as coisas boas e as ruins. A vida é cíclica. É assim a história dos povos e das instituições. É preciso lidar com serenidade tanto com a popularidade quanto com a impopularidade. Um juiz deve ouvir as ruas, entender o sentimento social, mas fazer o que é certo e justo. Já estive do lado da maioria. É uma delícia! E com a imprensa a favor, melhor ainda. No caso da união homoafetiva, eu tive imprensa a favor, assim como no das células-tronco embrionárias, no caso do nepotismo, da anencefalia. Na extradição de Cesare Battisti, tive imprensa contra. A gente não pode achar que o povo e a imprensa são bons quando estão a favor e ruins quando estão contra. Povo e imprensa são bons quando estão contra ou a favor. A gente deve cumprir o próprio destino e fazer o que considera certo.

Com a revisão do mensalão, o marco contra a impunidade não poderia se desfazer?
Não creio. Não sou bom de prognóstico. Em 1978, escrevi um artigo chamado "Socialismo e Liberdade" no jornal universitário que dizia: "O mundo caminha inexoravelmente para o socialismo". De lá para cá, caiu o muro de Berlim, desfez-se a União Soviética, abriram-se as economias da Europa Oriental e até a China pratica capitalismo selvagem. De modo que, diante do fiasco da minha incursão no mundo da vidência, agora me dedico à atividade mais segura de comentarista de videotape. Quando acontece, explico e geralmente não erro o resultado.

Quanto tempo deve demorar o julgamento?
Deve ser tão rápido quanto possível para o devido processo legal. O país precisa se livrar desse assunto. O STF precisa se ocupar de outras coisas. Espero que o Congresso, num curto prazo, livre o Supremo do foro por prerrogativa de função, salvo meia dúzia de autoridades.

Quem deveria ficar?
Eu teria que pensar com calma, mas pelo menos o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes dos Poderes, os ministros do STF e o procurador-geral da República.

Os parlamentares seriam julgados na 1ª instância?
A proposta que eu estava elaborando quando vim pra cá era a seguinte: criar, em Brasília, uma vara especializada que teria competência para as ações penais contra as autoridades que, hoje, têm foro por prerrogativa de função e para os crimes de improbidade. O juiz titular dessa vara deveria estar em condições de ser promovido ao Tribunal Regional Federal (TRF).

Seria um juiz apenas para deputados, senadores e ministros de Estado?
Seria um juiz titular para haver homogeneidade e possivelmente diversos juízes auxiliares. Esse juiz ficaria lá por um prazo determinado, como três anos. Ao fim, seria automaticamente promovido ao TRF. Com isso, teria autonomia. Mas só poderia ser promovido ao TRF, de modo a não fazer favor para vir para o STF. O titular dessa vara seria escolhido pelo Supremo e da decisão dele caberia recurso ordinário para o tribunal.

Mas assim todo mundo ia recorrer ao Supremo...
Mas o STF não seria responsável pela produção das provas, pelo recebimento da denúncia. Ele faria só o reexame de questões jurídicas.

Esse modelo existe em alguma parte do mundo?
O mundo, no geral, não pratica o foro por prerrogativa de função, mas eu acho que, no caso brasileiro, é bom porque a atividade pública e a exposição pública no Brasil deixam o agente público sujeito à perversidade, a interesses políticos contrariados, a ações penais levianas. Então, se você não concentra num juízo único, em Brasília, você passa a ter essas autoridades sujeitas a ações em qualquer parte do Brasil. Elas ficam desprotegidas.

Por que o senhor acha que as autoridades ficam expostas?
Há um problema de estágio civilizatório e outro de certa criminalização da política. O sistema eleitoral e o partidário no Brasil são indutores da criminalidade. Eu acho até que o povo saiu da rua rápido demais, antes que viesse um mínimo de reforma. Se o sistema eleitoral e o sistema partidário não mudarem, a criminalização da política vai continuar na ordem do dia.

Os constituintes de 1988 erraram na definição do sistema político?
O sistema político é um desastre, mas a Justiça Eleitoral no Brasil é modelo para o mundo. Esse sistema eleitoral em que o voto é proporcional e a lista é aberta tem um custo tão elevado que o financiamento eleitoral acaba se fincando como raiz de boa parte dos problemas nacionais, inclusive da corrupção.

O STF não poderia mudar isso julgando uma ação da OAB contra o financiamento privado de campanhas?
Há um processo que procura impedir pessoas jurídicas de fazerem doações de campanha. Ainda que alguém considere essa medida positiva, e não vou opinar, pois vou julgá-la, ela é insuficiente. O problema não é só como se financia; o problema é quanto custa. Custando o que custa, as pessoas vão procurar financiamento em outros lugares.

O Supremo poderia contribuir para a reforma política?
Acho que não. Infelizmente, essa não é uma questão que possa ser resolvida pelo Judiciário, pois essa não é uma questão técnica, de decisão política. A reforma política enfrenta um impasse: o Congresso Nacional, que é o lugar por excelência para conduzi-la, é composto de parlamentares, por atores que não são neutros em relação às soluções que venham a ser dadas. Todas as pessoas que estão lá serão diretamente afetadas por qualquer mudança. Na prática, não se consegue produzir consenso. Por isso é preciso encontrar uma alternativa. O plebiscito pode ser uma opção.

O principal problema é o custo das eleições?
Baratear o sistema eleitoral deve ser prioridade de qualquer reforma política. Além dela, devemos ter mais dois objetivos: acabar com a pulverização partidária e facilitar a governabilidade. Para baratear as eleições, há algumas ideias, como voto distrital, voto distrital misto, lista pré-ordenada, também chamada de lista fechada.

Como acabar com a pulverização de partidos?
Há várias ideias: cláusula de barreira, proibição de coligação em eleições proporcionais. Em relação às cláusulas de barreira, acho que o STF carrega uma culpa. O que aconteceu foi que alguns partidos, sobretudo os tradicionais de esquerda, iam ser tolhidos pela cláusula de barreira. Acho que houve certa percepção de que seria uma injustiça histórica jogar no lixo esses partidos. Mas teria sido melhor abrir uma exceção para eles que abrir a porta geral.

A Constituição trouxe algo de bom no plano político?
Vinte e cinco anos de estabilidade institucional. Pode parecer banal para as novas gerações, mas o Brasil sempre foi o país do golpe, do contragolpe e da quartelada, desde o início da República. Tivemos revolução de 1930, de 1932, em São Paulo, intentona comunista de 1935, golpe do Estado Novo de 1937, deposição do Getúlio Vargas em 1945, o suicídio, em 1954, que abortou o golpe que estava em curso. Depois, em 1956 e 1957, duas rebeliões contra o Juscelino Kubitscheck, a renúncia do Jânio Quadros, em 1961, o veto dos ministros militares à posse do João Goulart, o golpe de 1964, o ato institucional 5, em 1968, o golpe dentro do golpe em 1969, quando assumiu a junta militar. Foi mais de uma dezena de golpes a partir de 1930. Então, nós conseguimos em 25 anos superar todos os ciclos do atraso, no tocante ao respeito à legalidade constitucional. E isso em períodos que tiveram momentos dramáticos, como a destituição de um presidente da República, em 1992, escândalos como o dos anões do orçamento, inflação altíssima, uma ação penal como a 470.

A Constituição trouxe estabilidade, mas foi modificada mais de 70 vezes por emendas.
A Constituição de 1988, por força de seu complexo processo de elaboração, resultou excessivamente abrangente e detalhista. Ela trata de matérias que na maior parte do mundo são relegadas à política ou à legislação ordinária, e com grande grau de detalhamento. Então, qualquer governo para implementar o seu programa, precisa promover um conjunto de emendas constitucionais, previdenciárias, tributárias, econômicas. A política ordinária no Brasil acaba sendo feita por emendas à Constituição. Mas ela trouxe outras coisas boas.

Por exemplo…
O país avançou muito em termos de proteção ao consumidor e consciência ambiental. Quando eu era jovem, as elites pensavam num país só para si e para seus filhos. Hoje, já há a percepção de que um país é para todos, ou não há salvação. É verdade que a classe dominante só descobriu isso quando a violência ameaçava devorá-la e precisava viver em condomínios fechados e shoppings centers protegidos por guardas armados. Foi com atraso. Mas o Brasil passou a ter políticas públicas para os pobres. Não é o suficiente. Nunca tivemos política consistente e ampla para financiamento de habitação popular. O país é favelizado de Norte a Sul porque as pessoas precisam de lugar para morar e nunca houve um compromisso verdadeiramente extenso com a habitação no país. Mais importante: houve a criação de uma cultura de direitos fundamentais.

Mas muitos direitos garantidos na Constituição, como saúde e educação, ainda não são uma realidade para boa parte da população.
As ideias levam um tempo desde que vencem o plano ideológico ou filosófico até quando se concretizam na vida real. Em matéria de educação, caminhamos na direção da universalização do ensino médio. A qualidade ainda é muito ruim, mas demos o primeiro passo. Acho que a universidade é mais devedora que credora da sociedade brasileira. É cara e presta um serviço deficiente ao país. Na saúde, o Brasil tem o mais ambicioso programa de inclusão social do mundo, o SUS. E ele enfrenta todas as dificuldades, do tamanho da sua ambição, que é oferecer saúde gratuita e universal para toda a população. O sistema de saúde tem muitas deficiências, mas ele não é uma ficção. Quando eu era jovem ele era uma ficção. Tivemos muitas vitórias. Não andamos na velocidade desejada, mas andamos na direção certa. E o rumo certo na vida é mais importante do que a velocidade.

O Judiciário não deveria intervir mais vezes para cobrar a eficiência desses serviços?
Em muitas áreas, como a saúde, os problemas são levados ao Judiciário quando deveriam ter sido discutidos antes, na elaboração do orçamento. Nos países democráticos é na elaboração do orçamento que se discute quanto vai para educação, saúde, transporte e publicidade institucional. No Brasil, esse debate não existe. O orçamento é tratado como uma questão burocrática, uma caixa preta. Depois, se pede ao Judiciário uma realocação de verbas.

E o STF deveria atuar para efetivar os direitos da Constituição que, 25 anos depois, ainda não foram regulamentados?
Isso correu com a greve do serviço público. Mas houve outra questão interessante. Há três anos, o STF decidiu que iria regulamentar os casos de indenização do empregado demitido sem justa causa. E o que aconteceu? As classes empresariais que sempre trabalharam pela não regulamentação correram para o Congresso e rapidamente obtiveram a regulamentação, porque sabiam que do STF viria algo mais protetivo ao empregado do que poderiam obter no Congresso. Isso me fez dizer que o STF se encontra à esquerda do Congresso, à esquerda do processo politico majoritário, ao menos na percepção das classes empresariais.

O STF deveria baixar uma súmula para que os Estados parem com a guerra fiscal?
Não se cura desespero com decreto. Nem decreto normativo nem judicial. Os Estados vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais política, mas política de qualidade.

O Brasil precisa de uma nova Constituição?
Em nenhuma hipótese. A Constituição de 1988 tem uma valia substantiva e outra simbólica. Ela é o símbolo da superação de um Estado autoritário, intolerante e violento por um democrático de direito. Portanto, com uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma prótese acolá, eu gostaria de comemorar daqui a 25 anos os 50 anos da Constituição.
 
Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2013

ENTREVISTA COM JOSÉ AFONSO DA SILVA

 


"Todo conservador quer uma Constituição enxuta"

Por Leonardo Léllis

Um dos maiores juristas do Brasil." Essa é a definição mais comum de se encontrar em menções a José Afonso da Silva. Seja qual for a filiação teórica, operadores do Direito reverenciam a obra do jurista mineiro de 88 anos, nascido em Pompéu. Não por acaso. Formulador de influente parte da doutrina sobre Direito Constitucional no país, ele testemunhou e atuou no processo que culminou com a promulgação da Constituição em 1988, que comemora um quarto de século.

Ao lado de representantes de diferentes áreas do conhecimento e setores da sociedade, José Afonso da Silva fez parte do time de notáveis na Comissão Afonso Arinos que, entre 1985 e 1986, elaborou o anteprojeto de Constituição. O texto acabou não sendo enviado pelo presidente Sarney à Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1987, mas o trabalho não foi em vão e acabou sendo aproveitado conforme relata. "Ele não tinha como ser ignorado", relembra. Seu trabalho prosseguiu na assembleia, dessa vez como assessor do então senador pelo PMDB Mário Covas. Principal teórico e formulador dos Direitos Sociais garantidos pela Constituição, José Afonso da Silva pode ser considerado um constituinte de fato.

Tal qual no texto constitucional, não se separa a dimensão política da interpretação teórica que o professor aposentado da Universidade de São Paulo faz do processo Constituinte e de como ele se desdobrou. "O atual sistema eleitoral prejudica a governabilidade", avalia, além de apontar os defeitos do sistema judiciário que perduraram com a Constituição. Apesar dos novos direitos que foram garantidos, o "Poder Judiciário ficou praticamente intacto", diz.

Crítico do conservadorismo, reconhece o caráter progressista que o texto final da Constituição assumiu e está atento às tentativas de se reduzir os direitos sociais que marcam a Constituição. Entretanto, o jurista não se aflige com a falta de regulamentação dos vários dispositivos constitucionais — "não existe democracia acabada" — nem acha que a Carta perdeu sua essência — "os direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É aí que está a vantagem".

José Afonso da Silva trabalhou em roça de milho, feijão e arroz, foi padeiro, garimpeiro de cristal e alfaiate. Em 1947, mudou-se aos 22 anos para São Paulo, onde concluiu o curso Madureza, uma espécie de supletivo à época. Aos 32, formou-se na Faculdade de Direito da USP, onde foi professor livre-docente em Direito do Estado, Direito Financeiro e Processo Civil. Também foi livre-docente em Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais. No poder público, foi procurador do estado de São Paulo, chefe de gabinete da Secretaria da Justiça do estado, secretário de negócios jurídicos da capital e secretário da Segurança Pública.

Hoje aposentado, já não advoga ou dá parecer. Se dedica a manter sua obra atualizada, da qual se destacam Curso de Direito Constitucional Positivo, que está em sua 36ª edição, e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, esta na 8ª edição. Foi em seu escritório, em São Paulo, que José Afonso da Silva recebeu a reportagem da ConJur para dois encontros nos dias 2 e 3 de outubro — no dia 1º, havia sido homenageado pela Ordem dos Advogados do Brasil por sua participação na elaboração do texto constitucional. Na conversa, o jurista relembrou momentos marcantes da Comissão Afonso Arinos e da Constituinte, avaliou o Judiciário brasileiro e fez um balanço desses 25 anos.

Leia os principais trechos da entrevista:

ConJur — O senhor participou da Comissão Afonso Arinos, que elaborou um projeto de Constituição e acabou não sendo enviado pelo então presidente Sarney à Assembleia Constituinte. O que aconteceu?
José Afonso da Silva — Ele não mandou o projeto da Afonso Arinos para a Constituinte porque era parlamentarista e socialmente avançado. Deu a desculpa de que não quis interferir, mas foi por isso que ele não mandou.

ConJur — Houve frustração pelo fato de o texto não ter sido enviado ou se sabia que aquele texto não tinha como ser ignorado?
José Afonso da Silva — Não tinha como ser ignorado, ele foi muito debatido. Ali não eram só juristas. Tinha muita gente de outras áreas do conhecimento. Como o presidente José Sarney não mandou o projeto à Assembleia, mas mandou publicar no Diário Oficial, os constituintes pegaram aquilo e começaram a tirar partes e apresentar. Então houve uma influência muito grande em praticamente tudo.

ConJur — Qual foi sua importância?
José Afonso da Silva — Se não houvesse a comissão Afonso Arinos talvez não teria havido a Constituinte. Foi só naquele momento que se discutiu Constituição e Constituinte, com muita repercussão na imprensa. A comissão Afonso Arinos acabou servindo de modelo para a estrutura da Constituinte.

ConJur — Pode citar exemplos dessa influência?
José Afonso da Silva — Um tema muito debatido atualmente é o da união estável. Surgiu na Afonso Arinos por proposta de um padre que participava da comissão. Nós estávamos procurando um meio de amparar a mulher que vivia amasiada há muitos anos com alguém e quando esse alguém morresse ela acabava ficando desamparada. A união estável surgiu exatamente por isso: para amparar a mulher que vivia nessa situação não casada, mas vivendo em uma família de fato. Nós estávamos debatendo aí o padre falou ‘por que a gente não põe união estável?’. Ele se chamava Fernando Ávila, era da corrente progressista da igreja. O controle do capital estrangeiro, por exemplo, nasceu na comissão por proposta do Barbosa Lima Sobrinho. Isso foi introduzido na Constituição, mas depois veio a Emenda 6, de agosto de 1995, e tirou. O Habeas Data foi proposto por mim e também foi para a Constituição.

ConJur — E teve alguma coisa que não foi aproveitada?
José Afonso da Silva — A Constituição da Comissão Afonso Arinos era parlamentarista e isso não foi aproveitado. A proposta prosseguiu até um certo ponto na Constituinte e depois caiu com a pressão do Sarney, oferecendo vantagens, e de outros presidencialistas. Você tinha também um sistema eleitoral misto, aproximadamente um tipo alemão, e não foi aproveitado. Se adotou na Constituição um sistema puramente proporcional. Em geral, a organização dos direitos fundamentais no anteprojeto da comissão Afonso Arinos era melhor, mas a Constituição ampliou.

ConJur — Como eram os trabalhos na Constituinte? Havia diálogo entre as comissões?
José Afonso da Silva — Não tinha muito porque conversar. Cada uma tocava o seu problema e a conversa seria feita na comissão de sistematização. Aí é que surgiu um problema mais delicado. Enquanto havia as subcomissões e as comissões, todos os constituintes estavam trabalhando. Quando foi para a comissão de sistematização havia um limite de membros. Ela não comportava todo mundo e a maioria dos constituintes ficou sem ter o que fazer. Não votavam, não discutiam e aquilo ficou reduzido a pouco mais de 100 membros. Então começou a haver reuniões paralelas. Foi também a partir disso que surgiu o Centrão. Os constituintes ficaram um pouco sem ter o que fazer, então começaram a se reunir, a reclamar e formaram grupos paralelos e daí acabaram... no Centrão.

ConJur — Como se deu isso?
José Afonso da Silva — Quando estava na comissão de sistematização, os mais conservadores perceberam que, se mantivessem as coisas andando como estavam, não teriam condições de implementar suas ideias e daí geraram o Centrão. O próprio PMDB, que era liderado pelo Mário Covas, se dividiu. Boa parte passou a não atender a liderança e se uniu às lideranças do Centrão. Os outros partidos de esquerda se uniram ao Covas.

ConJur — Ficou tudo fragmentado.
José Afonso da Silva — Nenhum deles tinha condições de obter maioria. Mesmo o Centrão não conseguia reunir sua maioria para aprovar as coisas como eles desejavam, aí se começou a fazer negociação. Quando não chegavam a um consenso, a proposta ia para o voto do plenário e ganhava quem tivesse maioria naquela oportunidade.

ConJur — Qual o efeito disso tudo no texto final?
José Afonso da Silva — Foi um fenômeno curioso porque a maioria conservadora acabou produzindo uma Constituição razoavelmente progressista. Isso se deve à atuação do senador Mário Covas, que era o líder do PMDB, que tinha maioria absoluta da Assembleia Constituinte. Em cada subcomissão, ele apresentou relatores ou presidentes que tivessem uma orientação mais progressista e montou um xadrez de tal ordem que, apesar de a maioria da Assembleia ser conservadora, conseguiu decisões mais progressistas.

ConJur — O senhor se recorda de algum ponto que foi para o voto e acabou vencendo a pauta mais conservadora?
José Afonso da Silva — A reforma agrária foi um deles. Houve algumas concessões, mas os conservadores acabaram introduzindo elementos que asseguravam mais os interesses deles. Por incrível que pareça, o Estatuto da Terra era mais avançado do que o que ficou na Constituição.

ConJur — O senhor se candidatou a deputado constituinte, mas não se elegeu. O que motivou o senhor a se candidatar?
José Afonso da Silva — Eu vinha trabalhando com Direito Constitucional, especialmente em uma visão voltada para os direitos fundamentais. Senti-me na obrigação de tentar participar. É claro que eu não tinha condições de ser eleito, porque eu não tinha dinheiro. Um grande empresário me ofereceu dinheiro e eu recusei. Ele disse: ‘Você não fica devendo nada’. ‘Não, eu fico. Se você me der o dinheiro, um dia eu estou lá, você vai precisar de alguma coisa e eu vou ter problemas. Então para quê?’. Até costumo dizer que eu tive praticamente a mesma votação do Mário Covas, só que a dele foi multiplicada por mil. Mário Covas teve 7,5 milhões e eu tive 7,5 mil.

ConJur — O senhor acabou participando como assessor do Mário Covas. Conseguiu dar as mesmas contribuições que o senhor pretendia como deputado?
José Afonso da Silva — Como deputado, eu teria muito mais possibilidade de contribuir. Como assessor eu não podia me intrometer nas coisas, ficava mais dependente de indagações. Muitas vezes eu senti não ser parlamentar para interferir nas discussões e votações de temas que me pareciam com encaminhamento adequado.

ConJur — O senhor se ressente de algum ponto que tenha entrado na Constituição, mas não da forma que o senhor gostaria?
José Afonso da Silva — Em geral não, porque a parte que mais me interessava era a parte dos direitos fundamentais e essa foi bem implementada. Eu tinha uma visão diferente da organização do poder. Eu propunha um Poder Executivo menos personalista, que eu chamava de Poder Executivo de gabinete. Isso não passou, era difícil de passar. Entre ter um presidencialismo hegemônico — como nós temos, chamado hoje presidencialismo de coalizão — eu preferia o parlamentarismo na forma que estava sendo previsto na comissão Afonso Arinos — e chegou até a comissão de sistematização, na Constituinte.

ConJur — Como era sua proposta?
José Afonso da Silva — Haveria o presidente da República e também um conselho de ministros com competência própria. Embora os ministros fossem de confiança do presidente, o conselho seria independente para o exercício de sua competência. Isso quebraria um pouco a hegemonia personalista do presidencialismo.

ConJur — E qual é o problema desse presidencialismo de coalizão?
José Afonso da Silva — O sistema partidário do Brasil é muito fragmentado e indisciplinado. Na maior parte das vezes, o presidente tem que fazer negociações individuais e muitas concessões, que levam à corrupção. No Brasil, ou na América Latina em geral, tem que se fazer coalizão porque o partido do presidente nunca é capaz de fazer a maioria e as negociações muitas vezes não são institucionais.

ConJur — E a Constituição legitima isso?
José Afonso da Silva — Como ela permite a criação de muitos partidos, de certo modo ela facilita muito. É por isso que está se buscando uma reforma partidária que tente reorganizar isso. O sistema favorece a mediocridade, a formação de políticos não muito comprometidos com o interesse público. Eles não votam uma reforma política que coíba essas práticas porque será cortar na própria carne.

ConJur — Concorda com quem diz que a Constituição ficou sendo híbrida por adotar o presidencialismo em cima de um texto parlamentarista?
José Afonso da Silva — Não. Só a medida provisória, que seria um instituto mais adequado para o sistema parlamentarista, mas de resto não tem nada de híbrido. Pode-se até achar que a estrutura de poder ficou mal organizada talvez porque, na última hora, sob pressão do Sarney, puseram as normas do presidencialismo no lugar onde estavam normas do parlamentarismo.

ConJur — E ela deixaria o país ingovernável como ele chegou a afirmar?
José Afonso da Silva — A gente está vendo que não prejudicou nada. O que prejudica a governabilidade é exatamente o atual sistema eleitoral de representação proporcional e a fragmentação partidária. A multiplicidade de partidos é que gera a necessidade de coligações de vários partidos para formar a base governista. Essa indisciplina partidária que faz com que cada um faça o que quer sem muito compromisso com a orientação partidária... Isso é que realmente complica a governabilidade.

ConJur — A Constituição carrega traumas do período militar?
José Afonso da Silva — Em alguns aspectos carrega, embora menos do que a Constituição de 1946, em grande parte aprovada contra a ditadura do Getúlio Vargas. Por isso a doutrina fala que ela nasceu de costas para o futuro porque estava preocupada com o passado. A Constituição de 1988 se voltou mais para o futuro. Mas há um dispositivo (artigo 5º, inciso XLIV), por exemplo, que considera crime inafiançável a ação de grupos armados contra a ordem constitucional. Há também a norma sobre a cassação do mandato, exatamente para não ocorrer como no regime militar, em que o presidente ou outro poder cassava o parlamentar. Agora só a Casa respectiva pode cassar o mandato. Esse talvez seja o tema mais diretamente contrário ao que aconteceu na ditadura.

ConJur — Diante dessa perspectiva de agora, com as instituições mais consolidadas, o senhor acha que a Constituição fez certo?
José Afonso da Silva — Eu acho que fez pelo seguinte: o mandato é popular. Ou se dá essa possibilidade ao povo através do recall — o que é complicado em um país tão grande como o Brasil — ou se dá o poder de cassar à Casa a que pertence o congressista.

ConJur — Mesmo com a condenação?
José Afonso da Silva — Mesmo com a condenação. Isso se fundamenta na autonomia dos poderes. No caso do parlamentar, se outro poder cassa seu mandato há uma interferência. A casa respectiva tem que cumprir seu dever porque a condenação seria apenas pressuposto para a instauração do processo na Câmara.

ConJur — É um preço que a gente tem que pagar...
José Afonso da Silva — Pela democracia. Veja bem: nós sabemos que as instituições parlamentares no Brasil são muito ruins hoje. Eu não costumo generalizar, porque ainda há muita gente boa lá dentro. Mas é ruim porque essa foi uma das coisas ruins que herdamos do regime militar. A ditadura liquidou com as lideranças no país. A renovação disso é muito longa e muito difícil. Por isso ainda estamos vivendo este resquício doloroso.

ConJur — O texto constitucional absorveu aspectos do Direito alemão, da Constituição americana ou portuguesa. Tem algum aspecto genuinamente brasileiro?
José Afonso da Silva — Teve influência de vários países. A Medida Provisória é de influência italiana. A inconstitucionalidade por omissão veio da Constituição portuguesa. Da Alemanha tem a organização do poder, especialmente da distribuição do Poder Legislativo, competências comuns e complementares entre União, estados e municípios. Na formação dos direitos fundamentais há influência das convenções internacionais e declarações sobre direitos humanos. No restante é mais problema nosso. Houve avanços imensos nos direitos sociais. As lutas por saúde, educação e transporte de qualidade se devem à nossa Constituição. Há também o sistema de seguridade social que não se encontra em outros países. Há alguma coisa em Portugal e na Espanha, mas aqui foi desenvolvida amplamente. O fortalecimento do Ministério Público e a autonomia do Poder Judiciário são coisas nossas. Isso tudo forjado pela Constituinte e em boa parte também na Comissão Afonso Arinos.

ConJur — Fala-se muito da vontade do legislador, principalmente em temas polêmicos — como foi o da união estável homossexual recentemente, por exemplo. É possível definir essa vontade?
José Afonso da Silva — Esse é um tipo de interpretação absolutamente inadequada. Todo jurista sabe que a intenção do legislador não tem nenhum valor, até porque não se sabe como é que se apura essa intenção. O parlamento não tem vontade. Esse é um tipo de interpretação muito querido pelos conservadores. Nos EUA, toda vez que a Suprema Corte dá uma decisão mais progressista, surge um movimento dizendo “não é isso que os founding fathers queriam”. Então você também pode dizer: 'bom, mas essa intenção dele é a intenção sua, você é que está querendo vencer'. Essa é uma posição subjetiva. No Brasil, nenhum jurista aceita este tipo de interpretação. Quando se volta para um texto constitucional, essa interpretação se insere em um contexto formal e que vai adquirir sentido em face também dos demais dispositivos e da realidade histórica.

ConJur — O senhor concorda com a afirmação de que a nossa Constituição é muito prolixa?
José Afonso da Silva — Ela nasceu de uma negociação muito difícil. Cada um queria por alguma coisa do seu interesse. Não se pode decidir de antemão se a Constituição vai ser enxuta ou não. O processo histórico é que vai decidir o que ela vai acolher. Em uma Constituição que teve uma participação popular muito grande, é muito razoável que ela tenha acolhido muitas dessas reivindicações. Certamente existem muitas regras que poderiam ser reguladas pela legislação ordinária, mas foram inseridas na Constituição porque ela lhes garante certa estabilidade.

ConJur — Então o senhor não vê isso como um defeito?
José Afonso da Silva — Todo conservador fala isso. Eles querem que saiam de lá os direitos sociais, não querem que saia o direito de propriedade. Querem que saiam o direito à saúde, o direito do índio, o direito ao meio ambiente... Sim, se você tirar tudo isso ela fica muito enxuta. Mas aí o povo fica absolutamente desamparado. Todo conservador quer uma Constituição enxuta que garanta apenas seu direito, o direito da elite.

ConJur — Ainda é possível afirmar que existe a Constituição de 88? Ela perdeu muito de sua essência?
José Afonso da Silva — No essencial, não, porque o núcleo fundamental da Constituição são os direitos fundamentais. Esses não foram atingidos.

ConJur — Qual é o alicerce que a mantém assim?
José Afonso da Silva — Logo no início, os direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É aí que está a vantagem. Há muitas emendas, às vezes muito tolas, para mudar apenas um sinônimo ou as disposições transitórias. Mas não há emendas que atinjam o núcleo importante da Constituição.

ConJur — A Constituição reconheceu e garantiu novos direitos. Isso saturou a Justiça?
José Afonso da Silva — Com certeza. O acesso à Justiça foi melhorado, criaram-se as defensorias públicas. O povo descobriu que tem direitos e a Justiça para satisfazê-los. Mas um dos problemas da Constituição foi este: o Poder Judiciário ficou praticamente intacto. Não se alterou quase nada. Foram criados o Superior Tribunal de Justiça, cinco tribunais federais e nada mais. Ficou tal como estava. Não se mexeu na base.

ConJur — O que o senhor propunha?
José Afonso da Silva — Na própria minuta que eu apresentei na Afonso Arinos, tinha proposto uma descentralização. O Tribunal de Justiça ficaria um tribunal de cúpula cuidando de coisas muito gerais, os tribunais de segundo grau ficariam nas regiões do estado e cuidariam apenas dos problemas daquela região. O processo não tinha que vir para a capital, por exemplo. No âmbito federal eu propunha a criação de um Tribunal Superior Administrativo para cuidar das causas do poder público, o que aliviaria o Supremo e os tribunais superiores. Isso eu também discuti na reforma do Judiciário.

ConJur — Ao mesmo tempo que a Constituição ganhou novos dispositivos por meio de emendas, outros sequer foram regulamentados. O legislador soube lidar com esse texto constitucional?
José Afonso da Silva — Olha, interessante. Todo mundo me faz essa pergunta. O que não percebem é que o que era fundamental foi regulamentado. Temos o Estatuto do Idoso, da infância e do adolescente, normas sobre previdência... Algumas regras até já existiam, então não precisa criar outras. O que não foi regulamentado se resolveu com iniciativa popular, em outros casos o Supremo decidiu. No caso da lei para regulamentar as greves de servidor público, por exemplo, entraram com mandado de injunção para mostrar que havia uma omissão. O Supremo mandou aplicar a lei geral. Quando a falta de regulamentação cria problema para algum grupo, a Constituição deu instrumentos para solucionar, como a iniciativa popular, o mandado de injunção.

ConJur — Então o senhor não sente nenhum tipo de aflição?
José Afonso da Silva — Eu não sou daqueles que acham que a Constituição deve se aplicar toda e acabada. Não existe democracia acabada. Democracia é um processo histórico, que se vai realizando com o correr do tempo. Não se tem direitos fundamentais acabados. Nunca se acaba de cumprir os direitos sociais ou qualquer direito fundamental, até porque estão sempre aparecendo novos direitos.

ConJur — O senhor pode explicar a classificação dos direitos sociais como normas programáticas? Como isso influenciou a implementação desses direitos?
José Afonso da Silva — A norma programática não é mera intenção, mera crença. Ela tem eficácia. Na concepção que eu sustentei, ela indica os fins do Estado para buscar realizar o bem comum da população. Essa Constituição mudou muito isso. Era uma concepção de uma Constituição que não tinha um tratamento de direitos sociais como a atual, que indica os dispositivos para realizá-los. Se está previsto que o poder público tem de criar essas condições não é mero programa. Eu falo isso porque os conservadores têm uma concepção de chamar de programáticas todas as normas incômodas, que são as que produzem alguma coisa em favor do pobre. Por isso eu tenho usado muito pouco, ou quase não uso mais, a expressão “normas programáticas”. Hoje prefere-se falar em normas dirigentes ou normas de direitos de realização progressiva.

ConJur — Então o conceito de norma programática foi entendido de forma errada?
José Afonso da Silva — Essa era a concepção. Todo mundo falava em norma programática como algo que não tinha eficácia, a não ser que viesse uma lei para aplicá-la. Se não viesse não teria efeito, eficácia, não valeria nada. Tratar o direito social como mera ficção é uma forma de desqualificá-lo. Quando eu escrevi, era a Constituição de 1967 que estava em vigor e ainda se falava em norma programática. Naquela ocasião eu repelia a concepção de que elas não eram direitos, que eram meras intenções ou coisa que o valha. Repeli para dizer que elas eram regras, embora de eficácia limitada, mas importantes para a interpretação das demais normas da Constituição e porque indicavam o fim que o Estado deveria alcançar.

ConJur — O senhor acha que há algum tipo de subversão do uso da Ação Civil Pública para garantir direitos de particulares?
José Afonso da Silva — Muitas vezes o Ministério Público usa a Ação Civil Pública indevidamente, mas se ele a usa em benefício do direito social, isso é bom. Há situações em que a Justiça determina ao Poder Público que interne determinada pessoa ou forneça determinado remédio. Mas isso é bom. Eu sei que há determinadas correntes que acham que isso não devia ocorrer, mas aquele que está reivindicando precisa desse amparo. Eu acho que tudo que se faz em favor da realização dos direitos fundamentais é bom.

ConJur — A Constituição harmoniza as questões sociais com as de mercado?
José Afonso da Silva — A Constituição estabeleceu uma ordem com normas para favorecer uma economia consonante com os direitos sociais. Mas medidas e emendas posteriores retiraram tudo isso. Ficamos com uma ordem econômica tipicamente capitalista e, portanto, em dissonância com os direitos sociais.

ConJur — Em questão tributária, o senhor acha que o pacto federativo precisa ser revisto?
José Afonso da Silva — Isso é um problema histórico. Não tem muito o que mudar. O sistema tributário poderia ser mais bem distribuído. Tem que se distribuir mais os encargos, descentralizá-los. O que se pode fazer é descentralizar a prestação de serviços, com maior participação dos estados e municípios na receita da União. A legislação ordinária pode resolver isso. A crítica que em geral se faz ao sistema tributário se prende ao percentual da carga fiscal em relação ao PIB: 36%, 38% etc. Nunca aborda a questão da justiça fiscal. O sistema é injusto, sobrecarrega mais os trabalhadores e a classe média do que os ricos, sobretudo porque fundado nos tributos indiretos.

ConJur — O senhor acha que a sociedade está pronta para outras formas de participação direta?
José Afonso da Silva — Pronta ela sempre esteve, só que nunca deram esse poder para ela. Muitas das leis importantes, como a Lei da Ficha Limpa, têm sido elaboradas por iniciativa popular. Um outro exemplo é da lei para aumentar o percentual de financiamento à saúde, em tramitação no Congresso. É de iniciativa popular. Os mecanismos existem. Tem só que pôr em prática. Quem não gosta muito disso são os parlamentares. A iniciativa popular é importante, o referendo também, mais do que o plebiscito.

ConJur — Por quê?
José Afonso da Silva — Plebiscito sempre foi um instituto muito usado pelos governos autoritários para se manter no poder, para obter vantagens. Mas como ele está sob o controle do Congresso Nacional, pode ser usado. A Constituinte pôs na vontade do Congresso o poder de convocar plebiscito. Foi tirado o arbítrio do Executivo, para evitar sua utilização indevida.

ConJur — Por que o Supremo não se tornou uma corte exclusivamente constitucional?
José Afonso da Silva — Primeiro porque uma corte constitucional não pode ser composta de membros vitalícios. Na Constituinte se tentou fazer com mandato, mas não se conseguiu. Houve pressão do Supremo. Ele atuou no sentido de manter praticamente como estava. Ele é um tribunal que ainda tem que julgar a inconstitucionalidade pelo critério difuso. Isso não é próprio de uma corte constitucional, que também não tem de julgar processo criminal.

ConJur — Sua ideia de se criar um tribunal para dividir competência com o Supremo se traduziu com a criação do STJ. Hoje ambos estão sobrecarregados. Sabem separar uma questão federal de uma constitucional?
José Afonso — Em geral sabem. Ao defenderem seus clientes, os advogados usam de tudo quanto é meio para levar o processo lá para cima. É também um problema processual, cujas questões precisam ser mais bem disciplinadas. O Poder Público, por exemplo, recorre muito. Por isso eu proponho um tribunal administrativo.

ConJur — O senhor acha que tem excesso de instâncias recursais?
José Afonso — Eu acho que há muito recurso, não instâncias recursais. Muitos recursos poderiam ser eliminados.

ConJur — E a prerrogativa de foro?
José Afonso — Isso já é da tradição do país. Eu não acho que haja prejuízo. Mas poderia ser no STJ em vez de ser no Supremo, que não tem que ficar julgando crime.

ConJur — O direito de defesa perdeu espaço ou está ameaçado?
José Afonso — Eu acho que não é um problema preocupante.Talvez haja um pouco de interferência com o direito de defesa o instituto da delação premiada. Isso pode ter complicações porque é um acordo do Ministério Público homologado pelo juiz sem participação da defesa.

ConJur — Imaginava que o Supremo teria esse protagonismo? Acha que ele está muito exposto?
José Afonso da Silva — Esse é o único tribunal no mundo que fica realmente exposto. Tem até uma televisão que fica focalizando tudo. Isso tem a vantagem da transparência, mas os ministros ficam querendo se mostrar, nessa coisa de vaidade... É um caminho sem volta. Ninguém supunha que fosse haver uma televisão no Supremo, mas como a Câmara e o Senado têm... Nas casas legislativas é até justificável, porque são representantes do povo.

ConJur — Como o senhor avalia a composição atual do Supremo?
José Afonso da Silva — Não vou fazer apreciação individual de ministro. Acho que toda vida o Supremo teve ministros excelentes e ministros ruins. No geral está bem. Você tem ministros que não deveriam estar lá, como sempre teve. Quem sabe melhora.

ConJur — O Supremo julga mais por princípios ou por política?
José Afonso da Silva — O Supremo Tribunal Federal, como todo tribunal constitucional, tem uma dimensão política. Isso é inequívoco. A Constituição também tem um conteúdo político muito grande. Por isso, o tribunal não pode ser puramente técnico. Do contrário, ele não entende a Constituição.

ConJur — O senhor vê ativismo judicial?
José Afonso da Silva — Nem toda criatividade via interpretação é ativismo judicial. A partir de regras muito gerais, se constrói um instituto. Você tem ativismo judicial distorcido, desde que se faça coisa que não está prevista na Constituição. Quando um ministro, por exemplo, dá uma medida liminar para não se seguir a tramitação de um veto, isso é um abuso, porque não cabe ao Judiciário interferir na tramitação de vetos, por exemplo.

ConJur — Se a solução encontrada pelo julgador está amparada na Constituição, não pode ser considerada ativismo?
José Afonso da Silva — Se está amparada na Constituição, não. Por exemplo: chamaram de ativismo aquela decisão do TSE, que foi mantida pelo Supremo, a respeito da fidelidade partidária. Decidiu-se que os votos pertencem ao partido e não ao parlamentar e, portanto, se ele sai do partido, perde o mandato. De fato, a interpretação foi razoável, porque no sistema de representação proporcional, os votos são realmente do partido.

ConJur — O que senhor acha das súmulas vinculantes e da repercussão geral?
José Afonso da Silva —

A súmula vinculante tem um problema delicado: ela cria uma forma de precedente que impede a interpretação dos juízes de primeira instância. Os juízes que estão mais próximos dos fatos é que contribuem para a evolução da jurisprudência e do Direito. A Súmula Vinculante tolhe isso. Por isso que eu digo que é preciso fazer mudanças como, por exemplo, a criação de outros tribunais para neles serem redistribuídas atribuição do Supremo, para que ele não fique arranjando empecilhos para o processo não chegar lá. O mesmo vale para a Repercussão Geral.

ConJur — A Ordem dos Advogados do Brasil tem a mesma relevância política de 25 anos atrás?
José Afonso da Silva — Durante o regime autoritário ela atuou com uma visão democrática. Hoje ela tem a mesma visão. Só que hoje estamos em uma democracia e não precisa ter aquele confronto. Por isso a OAB não precisa desempenhar o mesmo papel daquela época. Hoje ela atua em outros campos, como nas ações diretas de inconstitucionalidade, por exemplo. Já depois da Constituição ela teve um papel fundamental no impeachment do Collor. Toda vez que aparece um problema dessa natureza, ela atua. Sua importância continua sendo a mesma de sempre.

ConJur — Como o senhor avalia o Ministério Público?
José Afonso da Silva — O Ministério Público recebeu pela Constituição de 1988 uma institucionalização muito importante. Ele tem se servido disso e às vezes com certo abuso. Por exemplo: ele não tem poderes de investigação criminal, mas ele exerce esse poder. Mas o papel do Ministério Público hoje é de alta importância para a defesa de direitos importantes, como os direitos difusos, do meio ambiente. Se não fosse a atuação do Ministério Público, essa defesa seria muito menos desenvolvida.

ConJur — A Defensoria Pública poderia estar mais consolidada?
José Afonso da Silva — A Defensoria Pública não é nova. Já havia duas ou três antes da Constituição. Mas foi com a Constituição que ela realmente se estabeleceu. Como toda instituição, ela tem de se organizar, criar suas bases. Acho até que ela está querendo assumir coisas que não devia, como a defesa de direitos difusos, por exemplo. Ela foi criada para a defesa dos direitos dos necessitados.

ConJur — O senhor é um dos juristas mais citados no Supremo. O que acha disso?
José Afonso da Silva — Eu poderia lhe responder com aquele dito “falem de mim, ainda que falem mal”, mas não é o que eu penso [risos]. Eu me sinto muito honrado com a utilização do meu nome como jurista. É claro que nem todos concordam comigo, o que é normal, assim como eu não concordo com todos. O direito é uma ciência interpretativa e essa interpretação depende de muitos fatores subjetivos e objetivos. É muito normal que alguém discorde. Meu filho [Virgílio Afonso da Silva, livre-docente em Direito Constitucional na USP] discorda de mim, mas eu não tenho que achar ruim por isso. A ciência jurídica se faz exatamente nessa dialética dos contrários.

ConJur — O senhor se incomoda quando desvirtuam sua tese?
José Afonso da Silva — Isso não é muito frequente, mas acontece. Eu não tenho o que fazer ou ficar debatendo com as pessoas. Se eu tiver a oportunidade de escrever alguma coisa, eu digo: “olha, o senhor utilizou indevidamente do meu ponto de vista”. Isso eu já fiz em algumas oportunidades.


Leonardo Léllis é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2013

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