quarta-feira, 20 de março de 2013

Existe "conluio" entre advogados e juízes, diz Barbosa

O presidente do Conselho Nacional de Justiça, Joaquim Barbosa, afirmou nesta terça-feira (19/3) que existe um conluio entre juízes e advogados. Durante julgamento no qual o CNJ determinou a aposentadoria compulsória de um julgador do Piauí acusado de beneficiar advogados, Barbosa disse que muitos juízes devem ser colocados para fora da carreira. "Há muitos (juízes) para colocar para fora. Esse conluio entre juízes e advogados é o que há de mais pernicioso. Nós sabemos que há decisões graciosas, condescendentes, absolutamente fora das regras", criticou Barbosa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo
O presidente do CNJ deu a declaração ao debater de forma amistosa sobre o caso do Piauí com o relator do processo, Tourinho Neto, que ficou vencido no julgamento. Tourinho Neto comentou: "Tem juiz que viaja para o exterior para festa de casamento de advogado e não acontece nada."
Em sua última sessão como conselheiro do CNJ, Tourinho Neto foi o único a votar contra a aposentadoria compulsória do juiz de Picos (PI) João Borges de Sousa Filho. Tourinho Neto afirmou que tem amizade com advogados, mas que isso nunca influenciou suas decisões. O conselheiro disse que existe juiz que instala câmera no gabinete para se precaver e posteriormente não ser acusado de beneficiar determinada parte de um processo. "Isso é terrível. Na próxima Loman (Lei Orgânica da Magistratura) vai estar que juiz não pode estar com advogado nem com Ministério Público", opinou.
Pouco depois, Tourinho comentou sobre a possibilidade de clientes escolherem advogados que são próximos a juízes. "O advogado é amigo do juiz, a parte contratada achando que vai receber benesse", disse. "E às vezes recebe um tratamentozinho privilegiado", rebateu Barbosa. Tourinho reagiu e afirmou: "Mas Vossa Excelência é dura como diabo."
Nos debates, Tourinho chegou a comentar a possibilidade de Joaquim Barbosa se candidatar à Presidência da República no próximo ano. "O juiz, na maioria dos casos, é um acovardado. Vossa Excelência foi endeusado. Quem sabe não será o próximo presidente da República?", brincou. O presidente do CNJ não respondeu.
Outra polêmicaRecentemente, Joaquim Barbosa envolveu-se em uma polêmica com associações representativas de juízes. O problema ocorreu após o presidente do STF ter concedido uma entrevista a jornalistas correspondentes estrangeiros na qual atribuiu a magistrados brasileiros mentalidade mais conservadora, pró impunidade.
Na ocasião, entidades representativas de magistrados reagiram. Em nota oficial, afirmaram que não admitem que sejam lançadas dúvidas genéricas sobre a lisura e a integridade dos julgadores brasileiros. "Causa perplexidade aos juízes brasileiros a forma preconceituosa, generalista, superficial e, sobretudo, desrespeitosa com que o ministro Joaquim Barbosa enxerga os membros do Poder Judiciário brasileiro", afirmaram as associações na nota.
Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2013

terça-feira, 19 de março de 2013

DIREITO DO CONSUMIDOR - O EMPRÉSTIMO DO CARRO AO FILHO POR SI SÓ NÃO CONSTITUI AGRAVAMENTO DO RISCO DO SEGURO


SÉRIE DECISÕES JUDICIAIS

 

TJMG - Embargos Infringentes Nº 1.0525.10.010536-6/002 - rel. Des. Sebastião Pereira de Souza – Dje 15/3/2013[i] – Área do Direito: Consumidor

 

AGRAVAMENTO DO RISCO. NÃO OCORRÊNCIA. EXCLUSÃO DA COBERTURA. INADMISSIBILIDADE. Não caracteriza intencional agravamento de risco a entrega de veículo a terceiro até então sóbrio, que após, já na posse do veículo, ingeriu bebida alcoólica e, em estado de embriaguez,  envolveu-se em acidente. Comprovado nos autos que o filho do segurado estava em perfeitas condições de dirigir quando recebeu o veículo, devida a indenização securitária, visto que o estado de embriaguez não pode ser imputado ao segurado. Embargos acolhidos.

 

 

Resenha

 

Trata-se de acórdão em embargos infringentes versando sobre a pretensão do consumidor ao recebimento de cobertura securitária contratada para o veículo de sua propriedade. Os autos dão conta de que o contratante/segurado emprestou o carro, objeto do seguro, ao filho, maior e devidamente habilitado, que, no retorno para casa, após ingerir bebida alcoólica, acabou colidindo com um muro de proteção de uma avenida, provocando inúmeros danos ao veículo, causando-lhe “perda total”. Com fundamento no artigo 768, do Código Civil e com base em cláusula limitativa de direito, prevista nas Condições Gerais do seguro, a seguradora negou pagamento do sinistro.

 

Em primeiro grau, os pedidos foram julgados parcialmente procedentes, para condenar a seguradora a efetuar o pagamento do seguro contratado. Inconformada, a seguradora apelou da decisão. Por ocasião do julgamento da apelação, o então relator do processo, Desembargador Wagner Wilson Ferreira, negava provimento ao recurso da seguradora, afirmando que o fato de emprestar o veículo ao filho por si só não agrava o risco do seguro, sobretudo porque, no momento do empréstimo, o filho ainda não havia ingerido bebida alcoólica.

O revisor, Desembargador José Marcos Rodrigues Vieira, abriu a divergência salientando que, no mínimo, a relação de pai e filho constituía um ato de preposição, sendo o pai responsável pelos atos do filho. Salientou, ainda, que o fato de o filho ter feito uso de bebida alcoólica somente após o empréstimo do veículo não afastava o agravamento do risco. Com este fundamento, dava provimento à apelação da seguradora. Seu voto foi seguido pelo vogal, desembargador Francisco Batista Abreu.

 

Considerando que o acórdão não foi unânime e que houve reforma do mérito da sentença, o contratante/segurado interpôs embargos infringentes, o qual, por maioria de votos foi provido para resgatar o voto vencido do Desembargador Wagner Wilson Ferreira e restabelecer os efeitos da sentença de primeiro grau.

 

O acórdão dos embargos infringentes está em perfeita consonância com o entendimento do c. STJ. Em que pese a divergência ter mantido seu posicionamento, a presunção de que o contratante/segurado tem por obrigação não permitir que o veículo segurado seja conduzido por pessoa em estado de embriaguez é válida e esgota-se, efetivamente, até a entrega do veículo a terceiro (REsp 995.861/SP ).

 

Se fizermos uma leitura mais atenta do artigo 768, do Código Civil, perceberemos que o legislador não teve outra intenção senão afastar a cobertura nos casos em que o segurado agrava intencionalmente o risco do seguro, o que não é o caso dos autos. O referido artigo dispõe que: “O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.

 

O condutor do veículo não era o segurado, mas seu filho. Também não existe prova de que ele havia ingerido bebida alcoólica antes de receber o carro de seu pai, logo, não há que falar que o segurado (pai) teve intenção de agravar o risco do seguro.

 

Neste sentido, o acórdão dos embargos infringentes não merece reparos, até porque, este é o entendimento já consolidado do c. Superior Tribunal de Justiça. Confira os seguintes julgados: AgRg no REsp 1196799/MG; EDcl no REsp 995.861/SP; REsp 578.290/PR; STJ; AgRg-REsp 1.149.460; RESP 1097758/MG.

 

Luiz Cláudio Borges

Mestrando e Direito Constitucional e Democracia, pela FDSM, Especialista em Direito Civil e Processo Civil, CPG-FADIVA. Professor da Unilavras e Unifenas. Advogado.

 

 


Não caracteriza intencional agravamento de risco a entrega de veículo a terceiro até então sóbrio, que após, já na posse do veículo, ingeriu bebida alcoólica e, em estado de embriaguez,  envolveu-se em acidente.

Comprovado nos autos que o filho do segurado estava em perfeitas condições de dirigir quando recebeu o veículo, devida a indenização securitária, visto que o estado de embriaguez não pode ser imputado ao segurado.

Embargos acolhidos.

 

Embargos Infringentes Nº. 1.525.10.010536-6/002 – Pouso Alegre – Embargante: Vitor Antônio Caetano

Embargado: Indiana Seguros S.A.

 

 

A C Ó R D Ã O

 

Vistos etc., acorda, em Turma, a 16ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos em  ACOLHER OS EMBRAGOS INFRINGENTES, VENCIDOS O 2º E 3º VOGAIS.

DES. SEBASTIÃO PEREIRA DE SOUZA

Relator.


 

Des. Sebastião Pereira de Souza (RELATOR)

V O T O

Conheço do recurso, pois presentes os pressupostos de admissibilidade.

Colhe-se dos autos que o embargante emprestou seu veículo, segurado pela embargada, ao seu filho que, após estar na posse do automóvel, ingeriu bebida alcoólica e, sob efeito de álcool, envolveu-se em acidente no dia 17/05/2009, fato que ensejou a recusa da cobertura securitária.

 

Pretende o embargante resgatar o voto minoritário do Relator, Des. Wagner Wilson, que decidiu pela manutenção da sentença, considerando que “não restou demonstrado o agravamento do risco apto a afastar a cobertura sucuritária”, pois no momento em que o embargante entregou o veículo para seu filho, este estava sóbrio.

 

Cediço que o estado de embriaguez constitui agravamento do risco capaz de afastar a obrigação da seguradora em indenizar os prejuízos resultantes do sinistro, conforme prescreve o art. 768 do Código Civil, in verbis: 'O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato'.

 

Ocorre que, no caso dos autos, o condutor do veículo não era o segurado, mas seu filho, o qual estava sóbrio no momento em que recebeu de seu pai o automóvel, conforme comprova o depoimento testemunhal de f. 117, que revelou que três horas antes do acidente o rapaz, já de posse do veículo segurado, ainda não havia ingerido bebida alcoólica.

 

Logo, não houve um agravamento intencional do risco por parte do segurado.

 

O STJ firmou entendimento de que a presunção de que o contratante-segurado tem por obrigação não permitir que o veículo segurado seja conduzido por pessoa em estado de embriaguez é válida e esgota-se, efetivamente, até a entrega do veículo a terceiro:


“CIVIL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. SEGURO. EMBRIAGUEZ DE TERCEIRO CONDUTOR. FATO NÃO IMPUTÁVEL À CONDUTA DO SEGURADO. EXCLUSÃO DA COBERTURA. IMPOSSIBILIDADE.- A culpa exclusiva de terceiro na ocorrência de acidente de trânsito, por dirigir embriagado não é causa de perda do direito ao seguro, por não configurar agravamento do risco provocado pelo segurado. Precedentes.- Agravo não provido”.(AgRg no REsp 1196799/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 10/08/2012)

 

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA.CONTRATO DE SEGURO DE VEÍCULO. EMBRIAGUEZ DE TERCEIRO CONDUTOR (PREPOSTO). FATO NÃO IMPUTÁVEL À CONDUTA DO SEGURADO. EXCLUSÃO DA COBERTURA. IMPOSSIBILIDADE. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.1. A perda do direito à indenização deve ter como causa a conduta direta do segurado que importe num agravamento, por culpa ou dolo, do risco objeto do contrato. A presunção de que o contratante-segurado tem por obrigação não permitir que o veículo segurado seja conduzido por pessoa em estado de embriaguez é válida e esgota-se, efetivamente, até a entrega do veículo a terceiro.Precedentes.2. Da leitura das razões expendidas na petição de agravo regimental, não se extrai argumentação relevante apta a afastar os fundamentos do julgado ora recorrido. Destarte, nada havendo a retificar ou acrescentar na decisão agravada, deve esta ser mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos.3. Agravo regimental desprovido”.(EDcl no REsp 995.861/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 18/08/2009, DJe 31/08/2009)

 

Assim, restando comprovado que no momento em que o segurado entregou o veículo ao seu filho este estava em perfeitas condições de conduzir o veículo, tem-se por indevida a negativa de cobertura securitária.

 

CONCLUSÃO

 

Com estes fundamentos, pedindo vênia aos ilustres colegas prolatores do voto majoritário, acolho os embargos infringentes, para resgatar o voto minoritário do Des. Wagner Wilson. Em conseqüência, nego provimento ao primeiro recurso de apelação interposto pela ora embargada, mantendo a r. sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais da ação de cobrança de indenização securitária ajuizada pelo embargante.

 

Custas recursais, pela embargada.

 

É como voto.

 

 

Des. Otávio de Abreu Portes (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).

Des. Wagner Wilson Ferreira

V O T O

De acordo com o relator, mantendo meu voto da maneira como exarado quando do julgamento do recurso de apelação.

 

Des. José Marcos Rodrigues Vieira

V O T O

Mantenho o posicionamento por mim esposado quando do julgamento da Apelação, pois a responsabilidade do segurado assumida na apólice de seguro não se interrompeu no momento em que transferiu o veículo para o seu filho. Aliás, estabeleceu-se aí uma nítida relação de preposição, conforme melhor explicitado no voto que proferi em sede de Apelação.

 

Assim, peço vênia ao Relator para dele divergir e rejeitar os embargos infringentes.

 

Des. Francisco Batista de Abreu

V O T O

<Nada a ser mudado no acórdão ora embargado, data venia.

Rejeito os embargos.

Custas pelo Embargante. >


 



[i] O acórdão encontra-se disponível no sitio do TJMG.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Copa de 2014: negar a aplicação dos microssistemas protetivos dos vulneráveis para garantir interesses da FIFA é ofender a soberania nacional


http://jus.com.br/revista/texto/20147
Publicado em 10/2011

É com estupefação que tenho acompanhado - e creio que também outros tantos - as notícias dando conta da intenção da FIFA - Fédération Internationale de Football Association, no sentido de que o governo federal suspenda, durante a Copa de 2014, a aplicação do caso Código de Defesa do Consumidor, bem como reveja a concessão de meia-entrada nos estádios, garantida aos estudantes por leis estaduais, e aos idosos pelo Estatuto do Idoso, verdadeiros microssistemas garantidores de direitos de coletividades consideradas desfavorecidas em nosso país.
Vozes contrárias ao acolhimento das reivindicações daquela entidade pelo governo federal já estão aparecendo, a começar pelo IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o qual direcionou uma carta à Presidência da República, manifestando seu descontentamento e dispensando críticas em relação à possível revisão do PL 2330/11, denominado Lei Geral da Copa, que tememos seja levada a cabo pelo Legislativo e Executivo.
Em outras palavras, requer a FIFA a supressão de direitos fundamentais garantidos àqueles segmentos da sociedade, juridicamente considerados fática, econômica, jurídica e socialmente desfavorecidos, bem como seja permitida a comercialização de bebidas alcoólicas nos estádios, tudo na contramão das diretrizes e princípios que informam a garantia do equilíbrio social visado com a prevenção, precaução e repressão de condutas consideradas, pelo direito, como danosas à sociedade.
Atender aos interesses da FIFA, perdoem-me pela expressão, será o mesmo que cuspir na cara dos juristas, legisladores, segmentos sociais, enfim, de todos que trabalharam durante anos, se debruçando com afinco na confecção desses estatutos garantidores de direitos; será cuspir no Judiciário, que, após a CF/88 deixou de ficar de joelhos e, paulatinamente, vem aplicando as disposições desses diplomas legais protetivos, garantindo a fiel observância dos preceito constitucionais. Pior ainda, será o mesmo que cuspir nos milhares de consumidores, idosos, estudantes, isto é, sujeitos cujos direitos são tutelados por leis específicas porquanto sua condição social reclama aquelas tutelas.
Nossa Constituição Federal traz, no art. 170, e incisos, os princípios informadores da ordem econômica, sendo que a defesa do consumidor é um daqueles princípios a serem observados para que o exercício da atividade econômica transcorra em respeito aos demais interesses multicitados no texto constitucional. Além disso, a CF/88, em seu Título II, Capítulo I, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), consignando, posteriormente, no art. 48 do ADCT que "o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor."
Cumprindo a determinação constitucional, cento e oitenta dias após sua publicação o codex consumerista (Lei nº 8.078 /90) entrou em vigor dispondo logo em seu art. 1º que se trata de norma de ordem pública e interesse social. Ao proclamar que suas normas são de ordem pública e interesse social, o CDC está a dizer que aquelas são cogentes e inderrogáveis pela vontade das partes, bem como é um microssistema com função social que, nos dizeres de LEONARDO DE MEDEIROS GARCIA, "não só procuram assegurar uma série de novos direitos aos consumidores, mas também possuem a função de transformar a sociedade de modo a se comportar de maneira equilibrada e harmônica nas relações jurídicas." (In Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. rev. amp. e atual. Niterói: Impetus, 2011)
Numa análise perfunctória, não é difícil verificar que a própria Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei. Daí dizer-se que o CDC possui vocação constitucional. Ademais, como magistralmente pontuado por SÉRGIO CAVALIERI FILHO, o CDC é verdadeira "sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação de consumo" (In Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998). Sobre a harmonia nessas relações, o CDC também é enfático ao dispor em seu art. 4º que a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo somente será alcançada caso sejam compatibilizados com a proteção do consumidor, e sempre, registre-se, observada a boa-fé objetiva.
Assim, revela-se verdadeiro absurdo a permissão contida no art. 33 do PL nº 2330/11, que assim dispõe:
Art. 33.  Os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de Ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos locais dos Eventos serão definidos pela FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade:
I - de modificar datas, horários ou locais dos Eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do Ingresso ou o direito de comparecer ao Evento remarcado;
II - da venda de Ingresso de forma avulsa ou conjuntamente com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e
III - de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do Ingresso após a confirmação de que o pedido de Ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do Ingresso, independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso.
Ora, o dispositivo em questão afronta veementemente o disposto no art. 49 do CDC, que garante a este o prazo de reflexão de 7 dias para a desistência do contrato quando a contratação ou o fornecimento do produto ou do serviço ocorrer fora do estabelecimento comercial. Como se sabe, hodiernamente inúmeras vendas, como ocorre com a venda de ingressos para eventos, inclusive, são feitas pela internet, sendo que, provavelmente milhares de torcedores irão adquirir seus ingressos dessa forma.
A aquisição de ingressos é, indubitavelmente, um contrato. Então o consumidor, caso exercite o seu direito de reflexão, poderá ser sancionado pelo exercício regular de um direito?! Era só o que faltava! Ficará ao livre arbítrio da FIFA definir os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, praticar venda casada no fornecimento de ingressos e estabelecer cláusula penal, "independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso"? Isso é "escarrar" na cara do consumidor, data maxima venia!
Permitir que a FIFA imponha ao Brasil as regras que melhor lhe atendam é, mais do que afrontar as disposições constitucionais e do microssistema consumerista, afrontar os seguintes fundamentos da República Federativa do Brasil: a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, II e II, da CF). Quando o consumidor exerce seus direitos, está exercendo sua cidadania. Atender às reivindicações da nominada entidade é permitir que um ente não soberano intervenha na nossa soberania. Quando nossa bandeira tremula ostentando a frase "Ordem e Progresso", nessa ordem está compreendida a ordem jurídica. A independência nacional da República Federativa do Brasil é princípio reitor de suas relações internacionais (art. 4º, I, da CF). Se a ordem jurídica é um dos instrumentos a garantir essa independência em relação a Estados estrangeiros, o que se dirá em relação a uma mera entidade que regula o futebol!? Todos esses estatutos garantidores de direitos, em última análise, foram forjados de modo a assegurar a dignidade da pessoa humana. Normas jurídicas servem para isso. As leis servem ao homem, e não o contrário.
No que toca aos idosos, a garantia de meia-entrada também é inspirada no texto constitucional, figurando no Capítulo V da Lei nº 10.741/03, sob a rubrica "Da Educação, Cultura, Esporte e Lazer" preceituando no art. 23 que "A participação dos idosos em atividades culturais e de lazer será proporcionada mediante descontos de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem como o acesso preferencial aos respectivos locais." Como se vê, o preceptivo é imperativo ao dizer que a participação dos idosos SERÁ PROPORCIONADA. Portanto, não é mero conselho ou orientação; é norma imperativa (grifei).
Em relação à meia-entrada garantida aos estudantes, tal decorre da necessidade de se assegurar a essa coletividade o seu pleno desenvolvimento e preparo para o exercício da cidadania, consoante dispõe o caput do art. 205 da CF/88, não sendo demais lembrar que o dispositivo em comento se encontra no capítulo que trata da educação, da cultura e do desporto. Assim, deve ser garantida a meia-entrada em eventos esportivos.
Não obstante as leis estaduais que garantem a meia-entrada aos estudantes, a MP 2208/01 assegura esse benefício a menores de dezoito anos que apresentem documento de identidade expedido pelos órgãos públicos competentes (art. 2º), bem como ao estudante que comprove essa qualidade através da "exibição de documento de identificação estudantil expedido pelos correspondentes estabelecimentos de ensino ou pela associação ou agremiação estudantil a que pertença, inclusive pelos que já sejam utilizados, vedada a exclusividade de qualquer deles" (art. 1º).
Não custa lembrar que a MP 2208/01 teve como objetivos principais: a) regulamentar a comprovação da situação de estudante; b) afastar o monopólio da UNE e da UBES, no que diz respeito à emissão de carteirinhas cujo uso permite que o estudante goze de seus direitos.
Há quem diga que a MP em referência perdeu sua validade por decurso de tempo, o que não é verdade, pois, para os desavisados, a EC 32/01 atribuiu lapso temporal indeterminado para as MPs que lhe são anteriores. Dessa forma, as MPs anteriores à emenda constitucional em tela somente perderão sua eficácia se forem revogadas, o que não é o caso.
Outro ponto de relevância inafastável diz respeito à venda de bebidas alcoólicas nos estádios. A proibição nesse sentido deriva do art. 13-A, II, da Lei nº 10.671/03, conhecida como Estatuto do Torcedor, sendo também uma norma de ordem pública e interesse social, na medida em que guarda íntima relação com o CDC. Permitir, mesmo que em caráter transitório, que a venda e consumo de bebidas seja liberada nos estádios durante a Copa de 2014, é arriscar demasiadamente a segurança pública, pois é sabido que o consumo exagerado de bebidas é responsável por todo o tipo de desordem social, culminando, não raro, na prática de crimes.
Será que isso vale a pena? Será viável afastar conquistas sociais hoje estampadas em legislações fortes, com vocação constitucional, em nome de interesses particulares? O legado que essa Copa do Mundo deixará será positivo? Alguém sabe?
O que se sabe é que a estrutura construída para a Copa de 2014 não é barata. Já tem saído bastante cara, não só para o bolso do contribuinte, mas, em situações piores, para toda uma coletividade que sofre com todo o tipo de revés, como a falta de hospitais, escolas, alimentação de qualidade, desemprego, moradia, segurança, desamparo, enfim, não por acaso os direitos sociais arrolados no art. 6º da Carta Fundamental.
Posso agravar mais?
Pois bem, some-se a isso o fato inarredável de que o brasileiro, aquele que "não desiste nunca", e em diversas ocasiões "vende" o almoço pra comprar o jantar, para ir a um jogo de futebol às vezes também vende o jantar pra comprar o ingresso ao estádio. Esse torcedor, como a experiência já demonstrou em diversas oportunidades, não raro se envolve em brigas nos estádios, e às vezes mata torcedores adversários, às vezes sob a influência de álcool, mas, acima de tudo, em razão da pobreza cultural de que é infeliz portador. Esse torcedor é capaz de matar porque sua existência é marcada pela violência institucional perpetrada pelo Estado, que não lhe garante os direitos mais básicos para viver dignamente, mas lhe garante pão e circo. Afinal, é o que importa! Façamos o indivíduo esquecer sua condição indigna garantindo-lhe o acesso aos jogos de futebol, mesmo com os ingressos mais baratos chegando a custar quase 10% do salário mínimo, e maximizemos os lucros na Copa do Mundo. E por quê não? Afinal, será bom para a economia! Vamos acrescentar um ingrediente a mais nas bebidas que serão vendidas nos estádios, caso o governo federal concorde com as imposições mercantilistas da FIFA: vamos acrescentar uma dose de ódio que torcerá as vísceras do torcedor (perdão pelo trocadilho) quando este tiver seus direitos constitucionais desrespeitados durante a Copa de 2014.
Não é demais repetir que o desenvolvimento econômico, cujas balizas se encontram no Capítulo I, do Título VII, da Constituição Federal, deve observar a garantia de outros direitos também previstos constitucionalmente, e que se encontram em posição topográfica em relação à ordem econômica, estatuídos no rol de direitos fundamentais individuais e coletivos, sob pena de até mesmo configurar ofensa aos princípios reitores da Administração Pública, expressos na CF/88 ou mesmo aqueles reconhecidos como tal.
Ceder aos humores da FIFA é contrabando legislativo travestido de prosperidade econômica e suposta projeção no cenário mundial, o que redundará em altos custos sociais, decorrentes da violação de direitos fundamentais.
Se a nossa Carta Política não admite nem mesmo a deliberação de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais, a teor do disposto no art. 60º § 4º, IV, da Constituição Federal – o que, em tese, objetivaria consolidar uma situação duradoura no tempo e de caráter geral - o que se pode dizer de um projeto de lei com caráter flagrantemente unilateral, que visa a atender interesses exclusivos de uma entidade futebolística? É flagrantemente inconstitucional, e deverá, de lege ferenda, ser vetado, no que contrariar os preceitos constitucionais.
Contrariar o CDC, o Estatuto do Idoso e as garantias estudantis é, reflexamente, contrariar a Constituição. Caso essa situação se concretize, caberá ao Ministério Público e demais legitimados pela promoção de ações coletivas promover as intervenções pertinentes, sem poupar armas, de modo a assegurar a integridade leis que garantem direitos e proteção a seus destinatários.
Só faltava o nosso país deixar de ser colônia de Portugal e virar colônia da FIFA!
Esperamos, sinceramente, que nossa presidenta, que foi ativista, foi presa e torturada por lutar por liberdade e pelos direitos mais caros do ser humano, enfim, que combateu a ditadura militar, não ceda à ditadura da FIFA.

Princípio da boa-fé objetiva é consagrado pelo STJ em todas as áreas do direito


Um dos princípios fundamentais do direito privado é o da boa-fé objetiva, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais. No entanto, a boa-fé não se esgota nesse campo do direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.
"Reconhecer a boa-fé não é tarefa fácil", resume o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Humberto Martins. "Para concluir se o sujeito estava ou não de boa-fé, torna-se necessário analisar se o seu comportamento foi leal, ético, ou se havia justificativa amparada no direito", completa o magistrado.
Mesmo antes de constar expressamente na legislação brasileira, o princípio da boa-fé objetiva já vinha sendo utilizado amplamente pela jurisprudência, inclusive do STJ, para solução de casos em diversos ramos do direito.
A partir do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema de direito privado brasileiro como um dos princípios fundamentais das relações de consumo e como cláusula geral para controle das cláusulas abusivas.
No Código Civil de 2002 (CC/02), o princípio da boa-fé está expressamente contemplado. O ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da Terceira Turma, explica que "a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade".
Ele alerta que não se deve confundi-la com a boa-fé subjetiva, que é o estado de consciência ou a crença do sujeito de estar agindo em conformidade com as normas do ordenamento jurídico.
Contradição
Ao julgar um recurso especial no ano passado (REsp 1.192.678), a Terceira Turma decidiu que a assinatura irregular escaneada em uma nota promissória, aposta pelo próprio emitente, constitui "vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa". O emitente sustentava que, para a validade do título, a assinatura deveria ser de próprio punho, conforme o que determina a legislação.
Por maioria, a Turma, seguindo o voto do ministro Sanseverino, aplicou o entendimento segundo o qual "a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé". É o chamado venire contra factum proprium (exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior do exercente).
No caso, o próprio devedor confessou ter lançado a assinatura viciada na nota promissória. Por isso, a Turma também invocou a fórmula tu quoque, de modo a impedir que o emitente tivesse êxito mesmo agindo contra a lei e invocando-a depois em seu benefício (aquele que infringiu uma regra de conduta não pode postular que se recrimine em outrem o mesmo comportamento).
Seguro de vida
O STJ já tem jurisprudência firmada no sentido de que a seguradora não pode extinguir unilateralmente contrato renovado por vários anos. Num dos casos julgados na Terceira Turma em 2011 (REsp 1.105.483), os ministros entenderam que a iniciativa ofende o princípio da boa-fé. A empresa havia proposto à consumidora, que tinha o seguro de vida havia mais de 30 anos, termos mais onerosos para a nova apólice.
Em seu voto, o ministro Massami Uyeda, hoje aposentado, concluiu que a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do contrato, não renovando o ajuste anterior nas mesmas bases, ofendia os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que devem orientar a interpretação dos contratos que regulam as relações de consumo.
O julgamento foi ao encontro de precedente da Segunda Seção (REsp 1.073.595), relatado pela ministra Nancy Andrighi, em que os ministros definiram que, se o consumidor contratou ainda jovem o seguro de vida oferecido pela seguradora e o vínculo vem se renovando ano a ano, o segurado tem o direito de se manter dentro dos parâmetros estabelecidos, sob o risco de violação ao princípio da boa-fé objetiva.
Neste caso, a Seção estabeleceu que os aumentos necessários para o reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e gradual, mediante um cronograma, do qual o segurado tem de ser cientificado previamente.
Suicídio
Em 2011, a Segunda Seção também definiu que, em caso de suicídio cometido durante os dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, período de carência, a seguradora só estará isenta do pagamento se comprovar que o ato foi premeditado (Ag 1.244.022).
De acordo com a tese vencedora, apresentada pelo ministro Luis Felipe Salomão, o novo Código Civil presume em regra a boa-fé, de forma que a má-fé é que deve sempre ser comprovada, ônus que cabe à seguradora. No caso analisado, o contrato de seguro de vida foi firmado menos de dois anos antes do suicídio do segurado, mas não ficou provado que ele assinara o contrato já com a intenção de se matar e deixar a indenização para os beneficiários.
Plano de saúde
Em outubro do ano passado, a Terceira Turma apontou ofensa ao princípio da boa-fé objetiva quando o plano de saúde reajusta mensalidades em razão da morte do cônjuge titular. No caso, a viúva era pessoa de 77 anos e estava vinculada à seguradora como dependente do marido fazia mais de 25 anos (AREsp 109.387).
A seguradora apresentou novo contrato, sob novas condições e novo preço, considerado exorbitante pela idosa. A sentença, que foi restabelecida pelo STJ, considerou "evidente" que o comportamento da seguradora feriu o CDC e o postulado da boa-fé objetiva, "que impõe aos contratantes, desde o aperfeiçoamento do ajuste até sua execução, um comportamento de lealdade recíproca, de modo a que cada um deles contribua efetivamente para o atendimento das legítimas expectativas do outro, sem causar lesão ou impingir desvantagem excessiva".
Em precedente (Ag 1.378.703), a Terceira Turma já havia se posicionado no mesmo sentido. Na ocasião, a ministra Nancy Andrighi afirmou que, se uma pessoa contribui para um seguro-saúde por longo tempo, durante toda a sua juventude, colaborando sempre para o equilíbrio da carteira, não é razoável, do ponto de vista jurídico, social e moral, que em idade avançada ela seja tratada como novo consumidor. "Tal postura é flagrantemente violadora do princípio da boa-fé objetiva, em seu sentido de proteção à confiança", afirmou.
Defeito de fabricação
No ano passado, a Quarta Turma definiu que, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável (no caso, máquinas agrícolas) com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar defeito de adequação (artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor), evidencia quebra da boa-fé objetiva que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum (REsp 984.106).
"Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma
legítima e razoável, fosse mais longo", concluiu o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso.
Bem de família em garantia
Contraria a boa-fé das relações negociais o livre oferecimento de imóvel, bem de família, como garantia hipotecária. Esta é a jurisprudência do STJ. Num dos precedentes, analisado em 2010, a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, entendeu que o ato equivalia à entrega de uma garantia que o devedor, desde o início, sabe ser inexequível, esvaziando-a por completo (REsp 1.141.732).
Por isso, a Terceira Turma decidiu que o imóvel deve ser descaracterizado como bem de família e deve ser sujeitado à penhora para satisfação da dívida afiançada. No caso, um casal figurava como fiador em contrato de compra e venda de uma papelaria adquirida pelo filho. Os pais garantiram a dívida com a hipoteca do único imóvel que possuíam e que lhes servia de residência.
Comportamento sinuoso
O princípio da boa-fé objetiva já foi aplicado diversas vezes no STJ no âmbito processual penal. Ao julgar um habeas corpus (HC 143.414) em dezembro passado, a Sexta Turma não reconheceu a ocorrência de nulidade decorrente da utilização de prova emprestada num caso de condenação por tráfico de drogas. Isso porque a própria defesa do réu concordou com o seu aproveitamento em momento anterior.
A relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, lembrou que a relação processual é pautada pelo princípio da boa-fé objetiva e invocou a proibição de comportamentos contraditórios. "Tendo em vista o primado em foco, por meio do qual à ordem jurídica repugna a ideia de comportamentos contraditórios, tendo em vista a anuência fornecida pela defesa técnica, seria inadequado, num plano mesmo de eticidade processual, a declaração da nulidade", concluiu a ministra.
Em outro caso (HC 206.706), seguindo voto do ministro Og Fernandes, a Sexta Turma reconheceu haver comportamento contraditório do réu que solicitou com insistência um encontro com o juiz e, após ser atendido, fora das dependências do foro, alegou suspeição do magistrado em razão dessa reunião.
Mitigar o prejuízo
Outro subprincípio da boa-fé objetiva foi invocado pela Sexta Turma para negar um habeas corpus (HC 137.549) - o chamado dever de mitigar a perda (duty to mitigate the loss). No caso, o réu foi condenado a prestar serviços à comunidade, mas não compareceu ao juízo para dar início ao cumprimento, porque não foi intimado em razão de o endereço informado no boletim de ocorrência estar incorreto.
O juízo de execuções ainda tentou a intimação em endereço constante na Receita Federal e na Justiça Eleitoral, sem sucesso. Por isso, a pena foi convertida em privativa de liberdade. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, ao analisar a questão, invocou a boa-fé objetiva. Para ela, a defensoria pública deveria ter informado ao juízo de primeiro grau o endereço correto do condenado.
"A bem do dever anexo de colaboração, que deve empolgar a lealdade entre as partes no processo, cumpriria ao paciente e sua defesa informar ao juízo o endereço, para que a execução pudesse ter o andamento regular, não se perdendo em inúteis diligências para a sua localização", afirmou a magistrada.
Boa-fé da administração
O princípio da boa-fé permeia a Constituição e está expresso em várias leis regedoras das atividades administrativas, como a Lei de Licitação, Concessões e Permissões de Serviço Público e a do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos.
A doutora em direito administrativo Raquel Urbano de Carvalho alerta que, se é certo que se exige boa-fé do cidadão ao se relacionar com a administração, não há dúvida da sua indispensabilidade no tocante ao comportamento do administrador público.
E quando impõe obrigações a terceiros, "é fundamental que a administração aja com boa-fé, pondere os diferentes interesses e considere a realidade a que se destina sua atuação". Para a doutrinadora, é direito subjetivo público de qualquer cidadão um mínimo de segurança no tocante à confiabilidade ético-social das ações dos agentes estatais.
Desistência de ações
A julgar mandado de segurança impetrado por um policial federal (MS 13.948), a Terceira Seção decidiu que a conduta da administração atacada no processo ofendeu os princípios da confiança e da boa-fé objetiva. No caso, o ministro da Justiça exigiu a desistência de todas as ações antes de analisar os pedidos de apostilamento do policial e, posteriormente, indeferiu a pretensão ao fundamento de inexistência de provimento judicial que amparasse a nomeação.
Conforme destacou o ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a atitude impôs prejuízo irrecuperável ao servidor: "Apesar da incerteza quanto ao resultado dos requerimentos, o pedido de desistência acarretou a extinção dos processos, com resolução do mérito, inclusive da demanda que lhe garantia a nomeação ao cargo, ceifando qualquer possibilidade de o impetrante ter um julgamento favorável, pois a apelação não havia, ainda, sido julgada."
Em seu voto, o ministro ainda destacou doutrina que invoca como justificativa à proteção da boa-fé na esfera pública a impossibilidade de o estado violar a confiança que a própria presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra factum proprium.
Verbas a título precário
A Lei 8.112/90 prevê a reposição ao erário do pagamento feito indevidamente ao servidor público. O STJ tem decidido neste sentido, inclusive, quando os valores são pagos aos servidores em decorrência de decisão judicial de característica precária ou não definitiva (REsp 1.263.480).
No julgamento do AREsp 144.877, a Segunda Turma determinou que um servidor público que recebeu valores indevidos, por conta de decisão judicial posteriormente cassada, devolvesse o dinheiro à Fazenda Pública.
Essa regra, contudo, tem sido interpretada pela jurisprudência com alguns temperamentos, principalmente em decorrência de princípios como a boa-fé. Sua aplicação, por vezes, tem impedido que valores que foram pagos indevidamente sejam devolvidos. É o caso, por exemplo, do recebimento de verbas de boa-fé, por servidores públicos, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da administração.
"Objetivamente, a fruição do que foi recebido indevidamente está acobertada pela boa-fé, que, por sua vez, é consequência da legítima confiança de que os valores integravam o patrimônio do beneficiário", esclareceu o ministro Humberto Martins, no mesmo julgamento.
REsp 1192678, REsp 1105483, REsp 1073595, Ag 1244022, AREsp 109387, Ag 1378703, REsp 984106, REsp 1141732, HC 143414, HC 206706, HC 137549, MS 13948, REsp 1263480 e AREsp 144877.

domingo, 17 de março de 2013

Atualidade e futuro da administração do Poder Judiciário


A administração da Justiça foi, por séculos, tema desprezado no Brasil. Isto nos levou a um estado de crise, agravado pela explosão de processos após a Constituição de 1988. Nos anos 2000 as coisas começaram a mudar, a partir de congressos realizados pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília. O último deles foi em 2005. 

Hoje há uma consciência geral e todos se empenham no aprimoramento dos serviços judiciários. O CNJ dá uma importante contribuição, instituindo programas como o Conciliar é Legal e promovendo pesquisas como a  Justiça em Números. Os tribunais internalizam boas práticas. A Escola Superior da Magistratura da Ajuris (RS) criou um  Centro de Pesquisa “Judiciário, Justiça e Sociedade”.  Em Mato Grosso, o TJ, o TRT, a Justiça Federal e outros órgãos do Judiciário ou a ele ligados criaram um grupo de estudos, destinado a aperfeiçoar o sistema judicial. No dia 11 de abril próximo promoverão debates sobre “Administração da Justiça na contemporaneidade”, em Cuiabá.
O TRF da 4ª Região tem longa tradição na área. Vários presidentes da Corte Regional, a partir de Gilson Dipp, hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça, em 1995, preocuparam-se em dar-lhe mais efetividade. Somaram-se as ações nas gestões de Ellen Northfleet, Fábio Rosa e Teori Zavaski, todos empenhados, cada um no seu estilo. 
Para ficar apenas em um exemplo, em 2004 facultou-se a 50 servidores do Tribunal e a outros 50 das Seções Judiciárias que compõem a região (RS, SC e PR), participar de curso de especialização em administração da Justiça, ministrado com a UFRGS e a PUC-PR. As 360 horas/aula e as monografias ao final do curso deram aos participantes uma visão profissional da matéria, abandonando-se a prática das inovações pontuais e isoladas.
Tudo isto somado ao longo dos anos, pequenas e grandes iniciativas, resultou em um diferencial que foi dando ao TRF-4 um destaque não só entre os outros TRFs, mas entre todos os 91 tribunais do Brasil. Não por acaso ele acabou sendo pioneiro em diversas áreas, como o processo eletrônico, a instalação de Juizados Especiais Avançados ou a sustentação oral por vídeo-conferência.
Sob o título de Atualidade e futuro da administração da Justiça e em parceria com o TRF-4, o Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus) promoveu um congresso para discutir o tema. O evento aconteceu nos dias 11 e 12 de março na sede do tribunal, em Porto Alegre.
O Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus) é uma ONG dedicada a estudos de administração da Justiça (www.ibrajus.org.br). Nos seus seis anos de existência já promoveu vários eventos, editou livros, promoveu concursos, pesquisas, criou uma revista eletrônica, único local onde se acham dezenas de artigos sobre o tema, e entrevistou muitos magistrados, professores, servidores, não apenas do Brasil como nos Estados Unidos, Itália, Alemanha, Argentina, África do Sul, Inglaterra.
As duas entidades, unindo forças entre o Poder Público e a sociedade organizada,  enfrentaram o desafio de realizar um congresso de alto nível, ao qual, modestamente, deram o nome de “Seminário Atualidade e futuro da administração da Justiça”.
O congresso não foi direcionado à Justiça Federal. Os convites, temas e participantes eram do interesse de todo o Poder Judiciário. Para dar-se apenas um exemplo, a abertura contou com a presença honrosa dos desembargadores Presidentes do TJ-RS (Marcelo Bandeira Pereira), TRT-4 (Maria Helena Mallmann ) e João Vanderlan R. Vieira (TJ Militar do RS).
Aspecto a merecer destaque foi o envolvimento dos servidores. Pela primeira vez na história do Judiciário brasileiro os servidores participaram da elaboração do programa, fizeram palestras e presidiram painéis. O motivo é simples. São eles que, na linha de frente, sentem as necessidades da administração dos órgãos judiciários. Nada mais natural do que exteriorizarem suas dificuldades e proporem soluções. No entanto, por séculos, permaneceram silentes. Esta foi a oportunidade de darem sua contribuição.
As palestras enfrentaram os temas do momento. A começar pelo Ministro Teori Zavaski, do STF, que falou sobre as ferramentas colocadas pelo CPC à disposição dos atores. Sidnei Beneti, do STJ, com a experiência de quem presidiu a União Internacional de Magistrados, deu sugestões sobre práticas inovadoras. Jeffrey Apperson, do National  Center for State Courts (EUA), ex-presidente do IACA, relatou as mais modernas experiências de Tribunais ao redor do mundo e Marcelo de Jesus, presidente da ONG argentina FORES, falou sobre a mediação naquele país.
Mas os palestrantes não se resumiram a “pop stars’ do Judiciário. Jovens juízes, servidores, professores, advogados, discutiram aspectos de nossa realidade judiciária. O processo eletrônico foi analisado pelo Conselheiro Sílvio Rocha, do CNJ, e pelo juiz federal  Sérgio Tejada Garcia. O papel do juiz de Direito nas pequenas comarcas foi abordado pela juíza capixaba Marlúcia Moulin. A criatividade pelo juiz do Trabalho Marlos Melek, do TRT/PR. A preservação do patrimônio histórico e cultural do Judiciário, pelas diferentes óticas do promotor Marcos Souza Miranda (MG), do professor Gunter Axt  e da juíza federal Andréia Castro Dias (RS).
Mesa redonda com servidores do Judiciário Federal e Trabalhista, tecnologia e desenvolvimento sustentável, conciliação, teletrabalho, investigação de crimes cibernéticos, correição virtual, processo eletrônico e saúde dos servidores,  gestão de pessoas, estratégia de comunicação do Judiciário, tudo foi passado a limpo em palestras claras e objetivas. Para terminar, a presidente do TRF4, Marga Tassler, repassou toda a história da missão de julgar e o juiz federal Friedmann Wendpap abordou o futuro da organização judiciária.
Horários cumpridos com rigor. Instalações adequadas. Organização digna de elogios. Mais de 400 inscritos, oriundos de todas as regiões do Brasil. Desembargadores, juízes, servidores, dos Tribunais de Justiça do Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, TRTs, Conselho da Justiça Federal e outros tantos, participaram ativamente dos debates. O TRF da 3ª. Região (SP) compareceu com 10 servidores, demonstração inequívoca do interesse do seu presidente.
Os resultados da avaliação não surpreenderam. De 161 entrevistados sobre a escolha dos temas, 68 responderam muito e 78 totalmente adequados aos objetivos do seminário. Sobre ter sido proveitosa a participação, 158 responderam, sendo que 1 respondeu nada, 11 parcialmente, 61 muito proveitosa e 85 totalmente.
O que se tem a fazer agora é seguir esta experiência de sucesso. Não apenas realizando outro congresso no próximo ano, mas tornando-o ainda melhor. E que este não seja o único evento sobre o tema. Outros órgãos, Tribunais, Conselhos, Universidades, podem promover iniciativas semelhantes, eventualmente com foco específico.
Sim, nós podemos.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2013

"Padrão de provas do Cade é inconsistente"


A defesa efetiva da concorrência é algo recente no país. Apesar de o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) existir desde 1962, foi a partir de 1994, com a Lei 8.884, que de fato começou a existir uma diretriz mais clara sobre a questão. O atraso, porém, permitiu ao Cade tirar proveito de pontos já pacificados nas economias maduras. A análise é do professor pesquisador Caio Mário Neto, do Centro de Estudos de Direito Econômico (Cedes) e professor Direito Econômico da Fundação Getulio Vargas.

No recente estudo Restrições verticais na defesa da concorrência, ele e o professor de Direito Concorrencial e Econômico da Universidade de Tiburg (Holanda) Damien Geradin analisaram como determinados tipos de contratos são avaliados pelas autoridades de defesa da concorrência no Brasil e na União Europeia. O assunto envolve as relações entre empresas que estão na mesma cadeia produtiva, mas não no mesmo nível. É o caso de uma empresa e seu distribuidor, de um produtor e o distribuidor, ou de um fornecedor de insumo e o produtor.
No caso do Brasil, foram avaliadas cerca de 150 casos que envolviam três tipos de condutas: acordos de exclusividade, descontos condicionados e venda casada. Segundo Caio Neto, a pesquisa constatou uma oscilação grande em relação ao padrão de provas utilizado para determinar se uma determinada prática é considera lesiva ou não para concorrência.
“Em alguns casos, apesar de não haver uma prova concreta do fechamento de mercado, o fato de a lei usar uma linguagem aberta, que fala dos efeitos potenciais da prática no mercado, o Cade diz que não consegue medir nenhum efeito real, considera que os efeitos potenciais são suficientes para definir a ilicitude e condena a prática” afirma.
Apesar da falta de critérios claros, ele diz que o discurso do Cade é correto e está alinhado com o que ocorre na Europa e nos EUA. Para ele, a chave para a análise dessas práticas é entendê-las como naturalmente ambíguas. “O que se procura entender é qual o efeito final sobre o consumidor. Ele está sendo prejudicado por uma restrição na competição ou ele está sendo beneficiado por aquele arranjo contratual?”. Essa é a grande pergunta que as autoridades responsáveis pela concorrência devem fazer, diz Caio Neto.
Leia a entrevista:
ConJur — O que é esse estudo do qual o senhor participou?
Caio Mario Neto — É um dos primeiros estudos que o Cedes desenvolveu para analisar restrições verticais no cotidiano. São contratos ou relações entre empresas que estão em uma mesma cadeia produtiva, mas não no mesmo nível da cadeia. É o caso de uma empresa e seu distribuidor, de um produtor e o distribuidor ou de um fornecedor de insumo e o produtor.

ConJur — Quem fazia parte da equipe?
Caio Mario — Eram três professores: Mário Schapiro, da escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, Paulo Furquim, da escola de economia da Fundação Getulio Vargas, e Nuno Garoupa, da escola de Ilinois, nos Estados Unidos. Eles desenharam o projeto e escolheram pesquisadores para tocá-lo adiante. Fui escolhido e convidado junto com o professor Daniel Gerardian, que dá aula nos dois lados do Atlântico, em Michigan, nos Estados Unidos, e em na Bélgica. Ficamos mais de um ano no trabalho.

ConJur — Qual era o objetivo?
Caio Mario — Tentar entender como, no Brasil e na Europa, essas práticas estão sendo analisadas por autoridades concorrenciais e como poderia ser aperfeiçoado ao longo do tempo.

ConJur — Quantos casos vocês analisaram?
Caio Mario — Cerca de 150. Foi um trabalho mais qualitativo do que quantitativo. Procuramos responder à pergunta: Qual é hoje o estado da teoria econômica sobre esse tipo de prática?

ConJur — Que práticas vocês analisaram?
Caio Mario — Elegemos as principais, que são três: contrato de exclusividades, que é uma prática bastante recorrente, clássica, em termo de analise. Descontos condicionados, quando uma empresa, por exemplo, exige que um revendedor compre um determinado percentual da sua demanda para que ele tenha determinado desconto. No limite, isso pode ser equivalente a exclusividade. E venda casada, que é basicamente atrelar a venda de um produto a outro.

ConJur — O que dizem os economistas sobre essas práticas?
Caio Mario — Há um razoável consenso na teoria econômica que essas práticas têm um efeito ambíguo sobre a concorrência e sobre o mercado. Elas podem ser em algumas situações negativas, prejudicar a concorrência, e em outras situações podem ser positivas e gerar eficiências.

ConJur — Como perceber isso?
Caio Mario — Em determinados casos, um contrato de exclusividade pode impedir um concorrente de acessar distribuidores, por exemplo. Eu sou produtor de um bem x, mas não tem nenhum distribuidor disponível para distribuir meu produto, porque todos os produtores ou um produtor muito grande tem contrato de exclusividade com os distribuidores, não fica nenhum distribuidor aberto. É o que a gente chama de fechamento de mercado. Isso seria um problema.

ConJur — E quando ocorre ganho de eficiência?
Caio Mario — Em distribuição exclusiva regional, como bebidas, por exemplo. Faz sentido ter o mesmo produtor de bebidas com múltiplos distribuidores, ou seja, múltiplos caminhões passando na frente do mesmo bar com a mesma marca de bebida? É melhor o distribuidor passar na frente nos bares uma vez a cada dois dias, ou o que for mais adequado. Por isso dizemos que há um efeito ambíguo sobre o mercado porque ele pode afetar positivamente, como nesse caso de distribuição exclusiva, ou negativamente, como no caso do fechamento de mercado.

ConJur — Que análise o estudo faz do Brasil e da Europa?
Caio Mario — As histórias são um pouquinho diferentes, apesar de culminarem em pontos muito parecidos. Na Europa, há mais tradição em defesa da concorrência. Nas décadas de 70 e 80, predominava a visão de quase ilegalidade de algumas dessas restrições. Em geral, as cortes diziam que essas práticas eram negativas para competição, e coibiam. Isso era incongruente com a teoria econômica, que diz que essa práticas podem ser positivas em vários casos.

ConJur — E hoje?
Caio Mario — Nos últimos 15 anos a Europa deu uma guinada e passou a refletir sobre essas práticas dentro dessa chave de ambiguidade e tentando estabelecer determinados critérios para separar o joio do trigo e identificar quando essas práticas são negativas e positivas. Se você tem muitos produtores e muitos distribuidores disponíveis, o fato de se ter um contrato de exclusividade entre um produtor e um distribuidor não limita a capacidade de outros produtores acharem outros distribuidores no mercado. Em geral isso vai ser positivo porque não está restringindo a competição. O grande problema é quando temos um grande produtor e ele faz um contrato de exclusividade com muitos distribuidores. A Europa começou a fazer isso principalmente a partir de 2008.

ConJur — Como reconhecer quando é positivo e quando não é?
Caio Mario — A primeira pergunta é: há ou não há fechamento de mercado? É preciso estabelecer a extensão da prática e o quanto ela impede que competidores igualmente eficientes possam de alguma forma participar daquele mercado. Se não há fechamento do mercado, para por aí, porque a competição continua. Se há fechamento de mercado, há outras perguntas no caminho, como: As eficiências suficientes que estão sendo geradas contrabalançam o efeito negativo? O que se procura entender é qual o efeito final sobre o consumidor. Ele está sendo prejudicado por uma restrição na competição ou ele está sendo beneficiado por aquele arranjo contratual? Essa é a grande pergunta por trás de toda estrutura de análise da União Europeia.

ConJur — Poderia dar um exemplo?
Caio Mario — Imagine uma siderúrgica com contrato de exclusividade com diversas mineradoras, que com isso dificulta a compra de minério por outra siderúrgica. Esse é o tipo de discussão que se tem e é dessa forma que a Europa estruturou o debate, que está em linha com a teoria econômica predominante na academia.

ConJur — Há algo parecido no Brasil?
Caio Mario — Analisamos mais de 70 casos de contratos de exclusividade de distribuição de cigarro.

ConJur — E venda casada?
Caio Mario — Não teve nenhum caso emblemático de condenação, porque em geral o consumidor tem alternativa de comprar o produto separado.

ConJur — Houve discussão sobre desconto condicionado?
Caio Mario — Houve discussão em relação à compra de software com desconto, casos na indústria de bebidas, em que implicava o ponto de venda. Quando o empresário comprava uma parcela grande da sua demanda de uma determinada empresa, ganhava certos prêmios por aqueles produtos. Esse foi o caso do Tô Contigo, que envolvia a Ambev.

ConJur — Quando começou a discussão sobre defesa da concorrência no Brasil?
Caio Mario — A defesa da concorrência começou a ser feita de fato a partir de 1994, com a lei 8.884. Apesar de o Cade funcionar desde 1962, e as regras de defesa da concorrência serem anteriores a 62, há um período muito grande sem livre competição efetiva. Tivemos uma economia muito amarrada e regulada, com preços definidos em geral pelo Estado. Com isso, o Cade teve um papel menos relevante na economia brasileira. A defesa da concorrência não é central na economia brasileira até meados da década de 90, quando começou uma série de reformas. Há benefícios em chegar atrasado, porque certas discussões que eram nebulosas na década de 70 já estavam consolidadas na década de 90. E esse é o caso das restrições verticais.

ConJur — E como o Cade passou a trabalhar?
Caio Mario — O Cade contrabalança aspectos positivos e negativos, e tenta chegar a uma conclusão sobre elas. Nisso o discurso do Cade é muito consistente e está alinhado com o que está acontecendo na Europa e nos Estados Unidos.

ConJur — Como é a metodologia do Cade?
Caio Mario — Há uma certa inconsistência no standard de prova. Em alguns casos, apesar de não haver uma prova concreta do fechamento de mercado, o fato de a lei usar uma linguagem aberta, que fala dos efeitos potenciais da prática no mercado, o Cade diz que não consegue medir nenhum efeito real no mercado atual, e considera que os efeitos potenciais são suficientes para definir a ilicitude, e condena a prática.

ConJur — Na Europa e nos Estados Unidos essas definições sobre fechamento de mercado são mais claras?
Caio Mario — Nos Estados Unidos, a preocupação começa com índices entre 30% e 40%. Apesar de ainda haver 60% dos pontos de venda ainda abertos, por exemplo, a depender das circunstâncias do mercad e da dispersão geográfica, pode haver um problema.

ConJur — O Cade não faz esse tipo de medição?
Caio Mario — Há casos em que isso é feito em grande grau de detalhe, e casos em que isso não acontece. Ou casos em que é feita uma medida, mas como está se falando sempre em efeito potencial, se torna pouco relevante. Varia muito. Há caso que o Cade mediu e chegou à conclusão de que x% do mercado estava fechado, e aquilo foi muito importante. E caso em que chegou à conclusão de que 15% estava fechado, que era pouco, mas mesmo assim, como o efeito potencial seria relevante, o Cade condenou. Há casos que ele nem mediu, há um pouco de tudo.

ConJur — Pode dar exemplos?
Caio Mario — Um caso de contrato de exclusividade no mercado de leite envolvia a Itambé. Depois de uma investigação preliminar, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) entendeu que não tinha indícios de que havia um efeito negativo no mercado e mandou para o Cade. Depois de 4 anos, o Cade falou que, apesar de não ter indícios de que houve um efeito negativo, não poderia descartar completamente o potencial efeito negativo e mandou abrir o processo administrativo, que é uma acusação formal contra a empresa. Se depois de quatro anos, não houve demonstração de um efeito real no mercado, é difícil imaginar como continuar analisando o efeito potencial. Nesse caso, o Cade abaixou muito o standard de provas para manter a investigação.

ConJur — Algum outro caso?
Caio Mario — Houve uma decisão muito divida do conselho que envolvia a CRT, a antiga concessionária de telefonia fixa no Rio Grande do Sul, e um contrato de exclusividade para venda de telefones celulares no varejo. Depois de uma longa investigação, o Cade identificou índices de fechamento de mercado relativamente abrangentes. Em alguns municípios, o fechamento de mercado era relevante, porque a suposição era que o consumidor não ia para outra cidade comprar um celular. Apesar disso, como havia evidência nos autos de que as outras empresas tinham crescido durante o período de investigação, tinham conseguido se desenvolver, a maioria dos conselheiros entendeu que não havia problema.

ConJur — O que é possível concluir desses dois casos?
Caio Mario — É muito difícil conciliar o caso Itambé, em que depois de quatro anos sem efeito negativo no mercado, o Cade continou a investigação para ver se tinha um efeito potencial, e um caso como o da CRT, que, apesar de existirem índices de fechamento de mercado relevantes, como não houve efeitos negativos sobre os concorrente, não houve a condenação. É esse tipo de exemplo que procuramos analisar qualitativamente. Há uma grande consistência do discurso da análise, que está alinhada com os parâmetros mundiais, mas certa inconsistência no padrão de prova utilizado nos casos.

ConJur — Como fazer esse tipo de detalhamento?
Caio Mario — Em exclusividade a gente fala que a primeira coisa a ser feita é exatamente a análise de fechamento com base nesse índice. Depois temos que entender diversos potenciais efeitos positivos de práticas de exclusividade. Estamos procurando identificar as diversas justificativas possíveis para aquilo, que justificativas tem que ser avaliadas, e como elas poderiam ser avaliadas de forma a entender se o fechamento de mercado ele pode ser contrabalanceado pelas eficiências ou não.

ConJur — Algum caso famoso na Europa?
Caio Mario — O da Intel. Ela vendia chips com desconto condicionado para os fabricantes de computador, e foi condenada por isso em mais de 1 bilhão de euros. Entenderam que o desconto condicionado era quase uma prática de exclusividade por parte da Intel, porque eles estavam prejudicando os demai produtores de chips, como a AMD. A grande questão é como medir quando esses descontos se tornam anticompetitivos.

ConJur — Em termo numéricos, como fica?
Caio Mario — Um fabricante compra 50% dos seus chips da Intel, por exemplo. Isso é uma parcela do mercado que em princípio a Intel já vai ter. A grande discussão surge quando a Intel diz que para ter o desconto é preciso comprar pelo menos 75% ou 80% da demanda. Ou seja, sobre esses 25% ou 30% acima dos 50% e sobre os 50% originais é que a empresa compraria sem desconto nenhum da Intel. Na prática, a Intel está usando os seus 50% cativos para alavancar sua posição para os outros 30%.

ConJur — O que fazer num caso como esse?
Caio Mario — Temos que ver qual o preço efetivo cobrado nos outros 30% para avaliar se está acima ou abaixo do custo do chip. Suponha que o desconto sobre os 80% é R$ 100. O fato é que de qualquer forma a empresa compraria da Intel 50%. Então pega-se o preço dos outros 30% e abate os R$ 100. Suponha que esses outros 30% custaram R$ 300. Na verdade eles custaram R$ 200. Se esse valor estiver abaixo do custo da Intel, ou seja, abaixo do que seria o custo de um concorrente igualmente eficiente, tem algo errado. Ela está impedindo que alguém igualmente eficiente a ela, que fabrica um chip, por exemplo por R$ 220, consiga vendê-lo.

ConJur — Há critérios mais simples?
Caio Mario — Há “análise de predação”. No fundo é uma comparação do preço efetivo com o custo médio variado da empresa, que é o que as empresas concorrentes já conhecem. Procuramos abrir um leque de opções para análise dos descontos.

ConJur — E em venda casada?
Caio Mario — Nesse caso, o primeiro ponto a analisar é se existem dois produtos separados. Se for um produto integrado, isso não um problema. Hoje ninguém questionaria ser venda casada o seu computador com o HD, mas na origem o HD era externo ao computador. Um caso interessante foi o da Microsoft, na década de 90, quando ela foi acusada de fazer venda casada entre o Windows e o Internet Explorer.

ConJur — O que ela argumentou?
Caio Mario — A Microsoft dizia que os dois produtos tinham de ser integrados, porque o sistema operacional seria um grande browser no futuro. Para a empresa, se houvesse condenação por isso, estariam impedindo uma inovação importante.

ConJur — Qual foi o resultado final?
Caio Mario — A Microsoft prevaleceu e fechou acordo com o departamento de Justiça nos Estados Unidos. Houve algumas restrições ao comportamento dela, mas nenhuma condenação e nenhum impedimento efetivo. E de fato os outros browsers, como o Mozilla, Chrome, Firefox e Safari, ganharam mercado.

ConJur — Essa discussão também ocorre em outros setores?
Caio Mario — Na década de 80, nos EUA, discutiu-se se serviço de anestesia era segregado no serviço hospitalar e de cirurgia. Ali se estabeleceu um teste ou uma forma de olhar para isso. Se há uma demanda especifica e direta dos usuários por um segundo produto, ele seria um produto separado. E naquele caso, o serviço de anestesiologia era separado.

Conjur — Mas por que você faria uma cirurgia em um hospital e contrataria o serviço de um outro lugar para fazer a anestesia?
Caio Mario — Você contrata outro médico basicamente. É possível contratar um médico, que não o do hospital, para fazer a anestesia? No fundo é essa a discussão. O hospital diz que não, porque está vendendo um pacote.

ConJur — Mas aí não entra a questão da eficiência? Porque é muito melhor você ser tratado de maneira conjunta.
Caio Mario — Totalmente.

ConJur — E o segundo passo?
Caio Mario — Uma segunda discussão é se há ou não poder de mercado nos produtos. Porque se não houver, é irrelevante. Mas se uma empresa fosse detentora de 80% dos xampus do mercado e decidisse vender o produto casado com vidro de condicionador, poderia haver um problema. De outro lado, o que é mais próximo da realidade, uma empresa que tem só 5% do mercado de xampus e resolve vendê-lo junto com condicionador, problema dela. Se o consumidor não quiser comprar o produto, compra dos outros.

ConJur — O que mais é preciso analisar?
Caio Mario — Uma terceira etapa é ver se há uma coerção na compra do segundo produto, se o consumidor está sendo forçado a comprá-lo. Porque se o fabricante estiver oferecendo um pacote, mas o consumidor ainda tiver a alternativa de comprar separado o pacote, não tem coerção.

ConJur — Quais as suas perspectivas em relação estudo?
Caio Mario — O que o Cade tem feito é propor uma resolução e colocar em consulta pública. Daí vem comentários e sugestões de todos os tipos. O que a gente procurou foi dar um pontapé inicial em uma discussão que está só começando no Brasil.

ConJur — E em termos de Legislação?
Caio Mario — A Lei da Concorrência traz uma lista exemplificativa que vai depender dos efeitos reais daquela prática, e venda casada é um desses exemplos. E ela é prevista também no Código de defesa do Consumidor como uma possível prática abusiva do fornecedor. Mas o interessante é que, apesar da redação ser quase idênticas, os micro sistemas são muito diferentes. É possível imaginar casos em que o consumidor seja lesado por uma venda conjunta de dois produtos ainda que não necessariamente aquilo seja um problema de defesa da concorrência.

ConJur — Quando isso ocorreria, por exemplo?
Caio Mario — Suponha que o consumidor foi a uma farmácia, e de todos os produtos, eram vendidos conjuntamente xampus e condicionadores. Isso não significa que a competição no mercado não existe, não significa que não tenha diversas opções de xampu sem condicionador no mercado, mas ele pode em algum momento se sentir lesado porque naquela relação o que vale é a hipossuficiência do consumidor. Ainda que a competição de forma geral no mercado funcione, naquela relação do consumidor com a farmácia ele pode ter tido alguma lesão.

ConJur — Como o Judiciário tem enfrentado isso?
Caio Mario — Em venda casada, há uma certa confusão, mas nossa analise foi focada nas autoridades de defesa concorrente, ou seja, essa pesquisa foi Cade e Comissão Europeia.

ConJur — E pela sua experiência?
Caio Mario — No Judiciário, tem prevalecido a visão do consumidor. Como o objetivo das duas leis são muito diferentes, é possível ter decisões diferentes com base em cada uma das leis sobre a discussão de venda casada.

Conjur — Deveria haver alguma mudança na legislação, na lei da concorrência?
Caio Mario — Não. No resto do mundo, olhando para restrições verticais, a legislação é necessariamente ambígua. Eu acho que a autoridade tem que ter alguma liberdade para definir esses parâmetro, mesmo porque eles vão sendo aperfeiçoados ao longo do tempo. É mais uma questão de aperfeiçoar a metodologia da analise das autoridades.

Conjur — Que balanço o senhor faz da nova Lei da Concorrência, que criou o que foi chamado de SuperCade, e como o senhor avalia a instituição?
Caio Mario — Está sendo uma transição positiva. A lei resolve a questão de você ter três guichês diferente, SDE, Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda), e Cade de forma positiva.

Conjur — Como o Cade analisava cada caso?
Caio Mario — Antigamente todos os casos, inclusive os mais simples, passavam pelo Conselho. A Seae dava uma opinião, ia para o SDE dar uma opinião e daí ia para o Cade julgar. Mesmo quando o caso era muito simples, análise demora 30 ou 35 dias. Agora superintendência dá a ultima palavra e isso torna mais rápido. Também estão fazendo uma triagem rápida do que é simples ou não é simples.

Conjur — E agora?
Caio Mario — Se for simples, vai ser tratado de forma sumária. Em média, o caso é analisado em 17 ou 18 dias, o que é muito bom, para qualquer comparação internacional. Por outro lado, a gente ainda não viu o Cade lidando com casos muito complexos. O prazo total que a lei dá é 330 dias.
Elton Bezerra é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2013

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