domingo, 24 de março de 2013

OS POUCOS CONHECIDOS E LEMBRADOS BROCARDOS JURÍDICOS


Os brocardos jurídicos, também chamados de  axiomas  ou de máximas jurídicas, constituem um pensamento sintetizado  em uma única sentença, que expressa uma conclusão reconhecida como verdade consolidada.

Os brocardos assemelham-se aos provérbios, estes traduzindo a sabedoria popular, aqueles as máximas colhidas na prática do Direito. O prestígio dos brocardos varia conforme o tempo e o lugar.
Alguns atravessaram séculos gozando bom conceito. Por exemplo“ad impossibilia nemo tenetur” (ninguém está obrigado ao impossível). Ele continua adequado a várias situações concretas, como uma ordem judicial que requisite o cumprimento de diligências que demandem profunda pesquisa, no prazo de 24 horas. Outros brocardos perderam sua utilidade por não serem reconhecidos como verdades consagradas. Por exemplo, “testis unus, testis nullus” (uma testemunha não faz prova). Na verdade, uma testemunha pode, com depoimento convincente, ser prova suficiente para a procedência de uma ação civil ou penal.
Miguel Reale ensina com clareza “que, se nem sempre traduzem princípios gerais ainda subsistentes, atuam como ideias diretoras, que o operador de Direito não pode a priori desprezar” (Lições Preliminares de Direito, Saraiva, p. 315).
É por isso que a Lei de Introdução ao Código Civil, no artigo 4º, dá ao juiz poderes para decidir quando a lei for omissa, com base nos princípios gerais do Direito.  E para R. Limongi França “não é forçada e nem constitui novidade, a aproximação entre a noção de brocardo jurídico e a de princípio geral de Direito” (Brocardos Jurídicos, RT, p. 20). Assim também conclui Orlando Gomes, ao afirmar que os brocardos jurídicos “representam uma condensação tradicional de princípios gerais” (Introdução à Ciência do Direito, Forense, p. 50).
Muitos brocardos, se citados com propriedade e adequação ao caso concreto,  podem influir no desfecho de uma ação. Vejamos alguns.
Surge discussão sobre o alcance de uma lei e sua aplicação ao conflito posto em juízo. O brocardo “ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit” (quando a lei quis, determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio). É dizer, se sobre determinado aspecto em discussão a lei foi omissa, é porque o legislador não desejou regular a matéria, logo continua em vigência a norma anterior.
É antiga a máxima de que “in eo quod plus est semper inest et minus” (quem pode o mais, pode o menos). Para ficar em um só exemplo, analise-se a atual discussão sobre poder ou não o Ministério Público promover investigações. Se o órgão pode o mais (propor a ação penal), a conclusão é a de que pode o menos (investigar o crime).
Alguns revelam-se de grande importância para impedir interpretações que cerceiem os direitos do cidadão. Por exemplo, há inúmeros casos de fraudes contra a Previdência Social para recebimento de pensão. Um dos mais comuns é o casamento de jovens com pacientes em estado terminal. O administrador não pode negar o benefício, porque “ubi Lex non distinguit nec nos distinguere devemus” (onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir). Neste caso, o que se tem a fazer é editar lei que impeça a obtenção do benefício previdenciário fraudulento.
O brocardo “odiosa restrigenda, favorabilia amplianda” (restrinja-se o odioso, amplie-se o favorável), pode ser aplicado no Direito Penal. Por exemplo,  na hipótese de aumento da pena na invasão de domicílio por um funcionário público (CP, artigo 150, § 2º). Se o ato  praticado não tem relação com a função pública, não se aplica a majorante.
Vejamos a interpretação que leva ao absurdo. No Brasil a população revolta-se contra o fato de motoristas alcoolizados escaparem da punição penal por se recusarem a submeter-se ao bafômetro. A justificativa é a de que não podem ser obrigados a produzir prova contra si mesmo.  Aqui seria adequado aplicar-se a máxima “commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat”  (prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade).
De grande valia no processo civil é o brocardo “nihil factum dabo tibi ius”  (dá-me os fatos que te darei o direito). Utilizando-o, o juiz pode fazer Justiça no caso que lhe é submetido, mesmo que a inicial não tenha sido bem fundamentada.
Uns, antigos e  consagrados, são de todos conhecidos (v.g., “in dúbio pro reu”). Alguns, mais recentes, são severamente criticados (v.g., “in claris cessat interpretatio”). Eventualmente, não escritos em latim, como o consagrado “pás de nulité sans grief”  (não há nulidade sem prejuízo). Outros, verdade absoluta no passado, são hoje flexibilizados (v..g., “res judicata pro veritate accipitur”,ou seja, “a coisa julgada considera-se como verdade”.
A jurisprudência registra vários precedentes em que as conclusões se basearam em brocardos jurídicos. Citam-se dois:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. OBSCURIDADE. SENTENÇA E ACÓRDÃO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA.
- Cabe ao juiz aplicar aos fatos trazidos a norma jurídica que entende apropriada, conforme princípios emanados dos brocardos jurídicos jura novit curia e da mihi factum, dabo tibi jus.
(TRF3, REOMS 4710/SP 2000.61.09.004710-3, Rel. Eva Regina, 26/04/2004)

Prestação de serviços educacionais. Contrato celebrado sob a égide do Código Civil de 1916. Aplica-se o prazo prescricional anuo do artigo 178, parágrafo 6º, inciso VII, do diploma civil anterior, não alterado pela Lei 9.870/99. Incidência do brocardo jurídicodormientibus non sucurrit jus. É de rigor a cobrança das mensalidades não abrangidas pela prescrição. Não formalizada a desistência por escrito, conforme cláusula expressa. Sucumbência recíproca. Recurso da autora parcialmente provido, para julgar parcialmente procedente a ação.
(TJSP, CR 941086008, Rel. Campos Petroni, 30/01/2009)
Assim são os brocardos jurídicos. Não alcançam o caráter científico dos princípios que, nas palavrasde Sérgio Sérvulo da Cunha, “estabelecem uma ponte entre o jusnaturalismo e o positivismo, permitindo a superação de ambos” (). Mas continuam influenciando a aplicação do Direito.
Quando invocados em latim, assumem um caráter solene e convincente, transmitem a força de conclusão transmitida por sabedoria milenar.
A propósito da força do latim, língua desconhecida das novas gerações, vem-me à lembrança passagem do meu primeiro ano da Faculdade de Direito. Havia um colega baixo, com uma avantajada cabeça  e feições que iam  além do que se tem como feio. Foi o bastante para que alguém, maldosamente,  lhe colocasse o apelido de “aberratio ictus”, ou seja, erro na execução, hipótese prevista no artigo 73 do Código Penal.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 24 de março de 2013

sábado, 23 de março de 2013

QUEM DEVE VELAR PELA GUARDA DA CONSTITUIÇÃO?


Há temas que persistem.  São duradouros, perenes.  Parece não se antever qualquer solução no horizonte, jamais.  Um desses temas diz respeito à relação existente entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, além do Executivo.  E, naturalmente, o clímax dessa discussão reside no controle de constitucionalidade.

Tomo por ponto de partida um comentário, que li, ao excelente texto publicado na coluna do Observatório Constitucional, desta ConJur, intitulado Entre a Dignidade e o Fundamentalismo da Jurisdição, de Rodrigo Kaufmann.  O autor do referido artigo, em resumo, critica a visão judicialista predominante na doutrina brasileira e opõe-se à fé com que muitos juristas têm se apegado ao discurso judicial e à razão jurídica, enaltecidos à condição transcendente de legitimação das decisões do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal.  Um dos comentaristas ao referido texto, por sua vez, discordou da crítica, partindo de um argumento jurídico-dogmático, para defender que “a palavra final da Constituição é do STF”, algo que me chamou, e muito, a atenção. 
É que tal compreensão é largamente compartilhada por muitos colegas, que, quase à unanimidade e automaticamente, quando a matéria em questão é interpretação da Constituição, são categóricos em reconhecer a supremacia do Supremo.  E sempre às custas de uma demasiada e excessiva ênfase à intepretação (quase que literal) do artigo 102, caput, da Constituição, caso do estimado comentarista. 
No entanto, não consigo identificar uma premissa lógico-normativa que valide esse raciocínio silogístico cuja proposição final é compreender o STF como a autoridade de proferir a última palavra sobre a Constituição.  Certo, alguns prontamente diriam e insistiriam: “E o artigo 102, caput, da Constituição?”.  Respondo desde logo e, a seguir, me justificarei melhor: o citado dispositivo constitucional atribui ao STF precipuamente a “guarda da Constituição”.  O advérbio “precipuamente” é crucial, pois condiciona a amplitude da ação que outorga a competência do Supremo, dentre outras, a do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Com isso, acho importante discutir um pouco sobre a noção de “guarda da Constituição”, sob dois pontos de vista. O primeiro, concernente à sua dimensão subjetiva, diz respeito à própria legitimidade ou competência de quem pode realizar a guarda da Constituição.  O segundo aspecto relaciona-se ao conteúdo da expressão “guarda da Constituição”. Com algumas considerações sobre o tópico, penso ser possível expor uma visão fundamentada normativamente que, por um lado, rejeite a ideia de que o Supremo Tribunal Federal seja o único ente legitimado ao exercício da jurisdição constitucional ou de interpretar a Constituição em última instância, tendo o monopólio da “última palavra”, em matéria constitucional e, de outro lado, argumentar que os demais poderes (Legislativo e Executivo) são igualmente legitimados a interpretarem a Constituição, o que nos remeterá a uma terceira questão a ser suscitada no final do presente artigo.
A expressão “guarda da Constituição” pressupõe a noção de supremacia constitucional, ou seja, de um dualismo hierárquico normativo entre lei ordinária e Constituição.  A supremacia constitucional exige que sejam estruturados mecanismos institucionais para preservar a superioridade jurídica da Constituição contra as ameaças a que está sujeita, sejam elas provenientes dos particulares, sejam elas perpetradas pelo poder público.  Qual instituição deve ser investida com esta atribuição de guarda é algo que somente a história política e constitucional de cada país responderá. 
O sistema de controle de constitucionalidade, instituído pela Carta de 1988, estabeleceu um riquíssimo e complexo mecanismo de salvaguarda constitucional, que não se confina ao Poder Judiciário.  Tanto o Poder Executivo, quanto o Poder Legislativo têm ativa e relevante participação nele.
O Presidente da República, por exemplo, pode exercer diretamente o controle de constitucionalidade através de, pelo menos, dois modos distintos, os quais estão previstos na própria Constituição.  O primeiro deles, denominado “veto jurídico”, realiza-se por meio da recusa da sanção aos projetos de lei, conforme previsão do artigo 66, parágrafo 1º, da Constituição, em face de sua contrariedade.  O segundo modo envolve a possibilidade de o chefe do Poder Executivo deixar de cumprir leis por manifesta incompatibilidade com a Constituição, cujo fundamento jurídico reside no disposto no artigo 2º, que estabelece a independência e a harmonia entre si dos três poderes da União, e no artigo 78, que impõe ao Presidente da República o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição[1]
O próprio Supremo Tribunal Federal, em precedente ainda não superado, proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 221 MC/DF (relator ministro Moreira Alves, julgada em 29 de março de 1990), admitiu excepcionalmente a competência de os Poderes Executivo e Legislativo, por seus respectivos chefes, recusarem-se a aplicar leis ou atos normativos com força de lei por considerarem-nos inconstitucionais.  Difícil, pois, sustentar o argumento de que cabe apenas ao STF interpretar a Constituição.
Já em relação ao Poder Legislativo, um leque ainda mais amplo de alternativas ao exercício do controle de constitucionalidade se abre.  Talvez, a mais rotineira de todas as formas seja aquela exercitada através da Comissão de Constituição e Justiça, em cuja competência se inclui a manifestação acerca da constitucionalidade ou não das propostas legislativas, em trâmite no Senado e na Câmara dos Deputados.  No entanto, podemos ainda enumerar a prerrogativa de rejeitar o veto presidencial (artigo 66, parágrafo 4º), a sustação de atos normativos do Poder Executivo (artigo 49, V); o juízo prévio sobre os pressupostos constitucionais para a válida edição de medidas provisórias (artigo 62), a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (artigo 52, X) e a simples revogação da lei tida por inconstitucional.
Isso nos permite concluir que o Poder Legislativo não só tem a competência para exercer o controle de constitucionalidade[2], como também é um poder cuja atividade inerente pressupõe a interpretação da Constituição. E, não raro, concentra seus atos no objetivo único de reverter uma interpretação constitucional, realizada pelo STF.  São exemplos, dessa prática, a Emenda Constitucional 29, que autorizou a cobrança do “IPTU progressivo”, a EC 39, que previu a contribuição de iluminação pública, e, mais recentemente, a EC 56, de 2008, que convalidou a criação de municípios, cujas leis tenham sido editadas até 31 de dezembro de 2006, promulgada em resposta às decisões do STF, na ADI 3.682/MT (relator ministro Gilmar Mendes, julgada em 09 de maio de 2007), nas ADIs 2.240/BA, 3.316, 3.489/SC, todas relatadas pelo ministro Eros Grau e julgadas em 9 de maio de 2007, e na ADI 3.689/PA, também relatada pelo ministro Eros Grau e julgada em 10 de maio de 2007. Se sua interpretação é a mais adequada ou não, é uma outra questão a ser examinada, caso a caso.
O certo é que as decisões do STF no exercício do controle de constitucionalidade, que constituem atos de interpretação constitucional, embora vinculantes para todos os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo, não o são para o Poder Legislativo.  E isso é expressamente estabelecido na própria Constituição, que, no artigo 102, parágrafo 2º, não incluiu o Poder Legislativo no rol dos destinatários vinculados pela decisão da Suprema Corte.  Ademais, ao julgar a Reclamação 2.617 AgR/MG (relator ministro Cezar Peluso, julgada em 23 de fevereiro de 2005)[3], o STF reconheceu que o Legislativo não está adstrito à decisão de inconstitucionalidade, sendo, por conseguinte, livre para editar lei com o mesmo teor daquela por ele declarada inconstitucional. 
Nesse contexto de confronto entre as interpretações judicial e legislativa, somos conduzidos à seguinte indagação: quem poderá, então, interpretar por último a Constituição?  A quem caberá dizer a “última palavra” em matéria de interpretação da Constituição?  Como conciliar a tradição do constitucionalismo com a da democracia? 
Para essa pergunta, no entanto, não há uma resposta predefinida.  Porém, a própria expressão normativa “guarda da Constituição” traz indícios de uma história constitucional, que pode ajudar-nos nesta breve reflexão. Não para traçar uma linha temporal contínua que revelasse o “verdadeiro” sentido da norma constitucional de hoje.  Isso seria inviável, até porque nem todas as Constituições brasileiras previram-na.  Mas, ao contrário, apenas para jogar luzes sobre uma outra forma de ler a cláusula da “guarda da Constituição”.
Com efeito, a primeira aparição dessa cláusula em nossa ordem jurídica data da Constituição do Império, de 1824, que, no artigo 15, IX, atribuiu à Assembleia Geral o dever de “velar na guarda da Constituição”.  Sobre ela, o saudoso mestre de direito constitucional da Faculdade de Direito do Recife, Otacílio Alecrim[4], observava que sua origem ligava-se ao constitucionalismo francês, que encontrou na pena de Sieyès o mais talentoso defensor de uma instituição voltada à proteção da Constituição contra as ameaças que se lhe dirigiam.  Só que, para Sieyès, esse órgão, por ele denominado Jurie Constitutionnaire, deteria natureza política, sendo estranho à estrutura do Judiciário, já que o pensamento francês pós-revolucionário — por hipótese alguma — aceitaria um sistema no qual os juízes (agentes do Estado) controlassem os atos dos legisladores (representantes do povo). 
A Constituição da República do Brasil, de 1891, a primeira a consagrar entre nós o controle judicial de constitucionalidade, promoveu diversas rupturas com a Carta Imperial, mas, nesse ponto específico, manteve parcialmente a disposição, revelando certo continuísmo.  No artigo 35, 1º, previu incumbir ao Congresso, “mas não privativamente”, “velar na guarda Constituição”.  As demais Constituições (1934, 1937, 1946 e 1967/69), entretanto, não consignaram em seus respectivos textos enunciado similar, que foi resgatado na Constituição de 1988.
Uma conclusão é possível extrair, pois: a “guarda da Constituição” não se vincula necessariamente à ideia de um controle judicial das leis, tampouco ao controle judicial privativo ou exclusivo de uma Corte.  Ela é fruto de uma decisão política, que há muitos séculos caracteriza a teoria do poder, que se debate em torno da definição sobre quem deveria possuir a prerrogativa de dar a “última palavra” em matéria de interpretação do direito ou da Constituição: o rei, o imperador, o presidente, o legislador, o juiz[5]?  E, por décadas, a riqueza de nossa história constitucional o revela, essa prerrogativa não esteve com os juízes ou a Suprema Corte.  Antes, sempre dependeu de posições e ideologias políticas, que foram se cristalizando nas Constituições.
Como e por que se passou a compartilhar com o STF e os juízes tal prerrogativa é algo que merece um exame à parte, não sendo possível adentrar neste assunto agora.  Mas, o fato é que, para o bem ou para o mal, é esse o estágio em que nos encontramos.  Destarte, o controle de constitucionalidade é uma prática institucional, que pressupõe a supremacia constitucional, mas não necessariamente uma corte ou tribunal, hierarquicamente superior aos demais órgãos e Poderes, para exercitá-lo.  A Constituição, de 1988, afirma-o expressamente, conforme visto, ao criar um riquíssimo sistema de controle e calibrações recíprocas entre os Poderes.  Supremacia constitucional não se confunde com supremacia judicial[6].
E, assim, encaminho-me à finalização do texto, voltando à terceira questão acima aludida: sendo todos os poderes legitimados à intepretação da Constituição e lembrando o silêncio dela nesse ponto específico, a quem pertenceria o direito de proferir a “última palavra” em matéria constitucional?
A meu ver, nenhum dos três poderes seria o dono da prerrogativa de dizer a “última palavra” sobre o que a Constituição verdadeiramente significa (se é que ela poderia ter sentido único, verdadeiro e indiscutível?), ainda que a autocompreensão do STF e a prática judicial brasileira tendam a contrariar esta opinião[7].  A defesa de um STF como “dono”, “senhor” ou “monopolizador” da interpretação constitucional não encontra amparo na Constituição, equivale a defender uma competência privativa da Corte, que é inexistente, e forja uma noção de supremacia judicial que não se ajusta ao nosso sistema constitucional democrático.
Em vez de procurar respostas definitivas à sempre e inevitável relação de tensão entre os Poderes, em meio a uma interminável disputa pela titularidade exclusiva da interpretação constitucional, penso ser mais produtivo entrever-se no exercício da jurisdição constitucional, consoante modernamente se têm acenado, um instrumento de estabelecimento de diálogo institucional, no qual a autoridade de definir o sentido da Constituição reside numa relação dinâmica, circular e reflexiva, não fixando domicílio em nenhum órgão ou instituição. 
Por mais insuficiente que possa aparentar, entendo que essa não é uma opinião ingênua e, além do mais, tem o condão de respeitar os limites da concretização da Constituição e compreender sua complexidade inerente, ao levar em consideração que ela funde estruturalmente as relações entre Direito e Política[8], Judiciário e Legislativo/Executivo. 
Destarte, a legitimidade da interpretação constitucional, em “última instância”, resolve-se curiosamente fora do texto da Constituição, resvalando para o contexto político das relações concretamente travadas entre os atores políticos de cada um dos três poderes[9].  Somente diante do caso concreto, das circunstâncias e das especificidades envolvidas, conseguiremos identificar qual é a interpretação constitucional que deve prevalecer na comunidade política.  
Não há como sustentar-se aprioristicamente que a interpretação da Constituição pelo STF será sempre a melhor, a mais racional e a mais adequada e a do Legislativo, sempre a pior.  Ambas as instituições são representadas por homens, que são falíveis e corruptíveis, conforme reconheceu axiomaticamente Montesquieu: “é uma experiência eterna que todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar limites”[10].
Portanto, a categórica afirmação de que o Supremo Tribunal Federal é que teria o poder de dar a “última palavra” sobre o que significa a Constituição ou que seria a instituição a quem caberia “zelar na guarda da Constituição”, para mim, não encontra fundamento nem dentro, nem fora, nem antes, nem depois da nossa Constituição de 1988.

[1] Essa forma de controle de constitucionalidade enseja certa polêmica na doutrina.  Por todos, vide: MENDES, Gilmar Ferreira. O poder executivo e o poder legislativo no controle de constitucionalidade.Revista de Informação Legislativa: a. 34, n. 134, abr./jun., 1997, p. 11-40.  O professor Gilmar Mendes, no entanto, diante da Constituição de 1988, adota posição mais restritiva à atuação do Poder Executivo.
[2] Uma outra discussão, que não cabe ser enfrentada aqui, é se o Poder Legislativo tem efetivamente exercido as suas competências, relacionadas à jurisdição constitucional, ocupando o espaço normativo que lhe foi constitucionalmente reservado.  A considerar a atribuição prevista no art. 52, X, da Constituição, que confere ao Senado Federal o poder de calibrar as decisões definitivas de inconstitucionalidade do STF, a impressão deixada é que o Parlamento tem atuado bem aquém das expectativas normativas e sociais, o que, em parte, explica o maior protagonismo do STF e das teorias justificadoras de sua supremacia.  Em rápida pesquisa ao site do Senado Federal, por exemplo, verifiquei que, em 2012, o Senado editou 71 resoluções.  Desse total, apenas cinco, as Resoluções n.os 1 a 5, todas de 15 de fevereiro de 2012, foram editadas no exercício da função previstas no art. 52, X, da Constituição.  Houve anos em que o número foi bem superior, a exemplo de 2005, quando editou mais de quarenta resoluções para suspender atos normativos declarados inconstitucionais.  Fosse sua prática institucional consistente com o comando constitucional, instituído desde a Constituição de 1934, para contrabalancear a repercussão jurídico-política da decisão do STF, talvez, hoje, não figurasse na pauta do Congresso Nacional instituir mecanismos para conter o assim denominado “ativismo judicial” do Supremo (v.g.: PEC n.º 03/2011).
[3] A seguir, transcrevo em parte o teor da ementa da Rcl n.º 2.617 AgR/MG: “A eficácia geral e o efeito vinculante de decisão, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em ação direta de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, só atingem os demais órgãos do Poder Judiciário e todos os do Poder Executivo, não alcançando o legislador, que pode editar nova lei com idêntico conteúdo normativo, sem ofender a autoridade daquela decisão”.
[4] Cf. ALECRIM, Otacílio. Idéias e instituições no império: influências francesas. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 166 e ss.
[5] Cf. STOLLEIS, Michael. “Condere leges et interpretari”. Potere legislativo e formazione dello stato agli albori dell’età moderna. In: Stato e ragioni di stato nella prima età moderna. Trad. Serenella Iovino e Christiane Schultz. Bologna: Il Mulino, 1998, p. 134-164.
[6] Sobre a distinção conceitual, ver: CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Entre supremacia constitucional e supremacia judicial: novos desafios do controle de constitucionalidade no Brasil. In:Constitucionalismo: os desafios no terceiro milênio (Coord. Walber Moura Agra et ali). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 385-413.
[7] Foi, aliás, sobre esse delicado tema que concentrei minhas pesquisas do Mestrado, tentando mostrar que os conceitos de supremacia judicial e supremacia constitucional são bem distintos, pois o primeiro se fundamenta normativamente na Constituição, enquanto o segundo decorre de um desvio de compreensão das funções do Judiciário.  Sobre o tema, vide: CONTINENTINO, Marcelo Casseb.Revisitando os fundamentos do controle de constitucionalidade: uma crítica à prática judicial brasileiraPorto Alegre: Sérgio Fabris, 2008, em especial Capítulo IV.
[8] Cf. LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: Il Futuro della Costituzione (A cura di Gustavo Zagrebelsky, Pier Paolo Portinaro e Jörg Luther).Torino: Einaudi, 1996, p. 83-128.
[9] Para mim, um dos autores que melhor trabalha essa perspectiva é Keith Whittington; veja-se, a propósito: WHITTINGTON, Keith. Political foundations of judicial supremacy (the presidency, the supreme court, and constitutional leadership in US history). Princeton: Princeton University, 2007, p. 28-81.
[10] Cf. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 303. 
Marcelo Casseb Continentino é procurador do estado de Pernambuco, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.
Revista Consultor Jurídico, 23 de março de 2013

sexta-feira, 22 de março de 2013

ENUNCIADOS APROVADOS NA 1ª JORNADA DE DIREITO COMERCIAL


ENUNCIADOS APROVADOS NA
1ª JORNADA DE DIREITO COMERCIAL

Coordenador-Geral: Ministro Ruy Rosado

Comissões de Trabalho:
Empresa e Estabelecimento (Enunciados de n. 1 a 8)
Coordenação Científica: Professor Alfredo de Assis Gonçalves Neto

Direito Societário (Enunciados de n. 9 a 19)
Coordenação Científica: Professora Ana Frazão

Obrigações Empresariais, Contratos e Títulos de Crédito (Enunciados de n. 20 a 41)
Coordenação Científica: Professor Fábio Ulhoa Coelho

Crise da Empresa: Falência e Recuperação (Enunciados de n. 42 a 57)
Coordenação Científica: Professor Paulo Penalva Santos

1. Decisão judicial que considera ser o nome empresarial violador do direito de marca não implica a anulação do respectivo registro no órgão próprio nem lhe retira os efeitos, preservado o direito de o empresário alterá-lo.

2. A vedação de registro de marca que reproduza ou imite elemento característico ou diferenciador de nome empresarial de terceiros, suscetível de causar confusão ou associação (art. 124, V, da Lei n. 9.279/1996), deve ser interpretada restritivamente e em consonância com o art. 1.166 do Código Civil.

3. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade  unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária.

4. Uma vez subscrito e efetivamente integralizado, o capital da empresa individual de responsabilidade limitada não sofrerá nenhuma influência decorrente de ulteriores alterações no salário mínimo.

5. Quanto às obrigações decorrentes de sua atividade, o empresário individual tipificado no art. 966 do Código Civil responderá primeiramente com os bens vinculados à exploração de sua atividade econômica, nos termos do art. 1.024 do Código Civil.

6. O empresário individual regularmente inscrito é o destinatário da norma do art. 978 do Código Civil, que permite alienar ou gravar de ônus real o imóvel incorporado à empresa, desde que exista, se for o caso, prévio registro de autorização conjugal no Cartório de Imóveis, devendo tais requisitos constar do instrumento de alienação ou de instituição do ônus real, com a consequente averbação do ato à margem de sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.

7. O nome de domínio integra o estabelecimento empresarial como bem incorpóreo para todos os fins de direito.

8. A sub-rogação do adquirente nos contratos de exploração atinentes ao estabelecimento adquirido, desde que não possuam caráter pessoal, é a regra geral, incluindo o contrato de locação.

9. Quando aplicado às relações jurídicas empresariais, o art. 50 do Código Civil não pode ser interpretado analogamente ao art. 28, § 5º, do CDC ou ao art. 2º, § 2º, da CLT.

10. Nas sociedades simples, os sócios podem limitar suas responsabilidades entre si, à proporção da participação no capital social, ressalvadas as disposições específicas.

11. A regra do art. 1.015, parágrafo único, do Código Civil deve ser aplicada à luz da teoria da aparência e do primado da boa-fé objetiva, de modo a prestigiar a segurança do tráfego negocial. As sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé.

12. A regra contida no art. 1.055, § 1º, do Código Civil deve ser aplicada na hipótese de inexatidão da avaliação de bens conferidos ao capital social; a responsabilidade nela prevista não afasta a desconsideração da personalidade jurídica quando presentes seus requisitos legais.

13. A decisão que decretar a dissolução parcial da sociedade deverá indicar a data de desligamento do sócio e o critério de apuração de haveres.

14. É vedado aos administradores de sociedades anônimas votarem para aprovação/rejeição de suas próprias contas, mesmo que o façam por interposta pessoa.

15. O vocábulo “transação”, mencionado no art. 183 § 1º, d, da Lei das S.A., deve ser lido como sinônimo de “negócio jurídico”, e não no sentido técnico que é definido pelo Capítulo XIX do Título VI do Livro I da Parte Especial do Código Civil brasileiro.

16. O adquirente de cotas ou ações adere ao contrato social ou estatuto no que se refere à cláusula compromissória (cláusula de arbitragem) nele existente; assim, estará vinculado à previsão da opção da jurisdição arbitral, independentemente de assinatura e/ou manifestação específica a esse respeito.

17. Na sociedade limitada com dois sócios, o sócio titular de mais da metade do capital social pode excluir extrajudicialmente o sócio minoritário desde que atendidas as exigências materiais e procedimentais previstas no art. 1.085, caput e parágrafo único, do CC.

 18. O capital social da sociedade limitada poderá ser integralizado, no todo ou em parte, com quotas ou ações de outra sociedade, cabendo aos sócios a escolha do critério de avaliação das respectivas participações societárias, diante da responsabilidade solidária pela exata estimação dos bens conferidos ao capital social, nos termos do art. 1.055, § 1º, do Código Civil.

19. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor às relações entre sócios/acionistas ou entre eles e a sociedade.

20. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos contratos celebrados entre empresários em que um dos contratantes tenha por objetivo suprir-se de insumos para sua atividade de produção, comércio ou prestação de serviços.

21. Nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais.

22. Não se presume solidariedade passiva (art. 265 do Código Civil) pelo simples fato de duas ou mais pessoas jurídicas integrarem o mesmo grupo econômico.

23. Em contratos empresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual.

24. Os contratos empresariais coligados, concretamente formados por unidade de interesses econômicos, permitem a arguição da exceção de contrato não cumprido, salvo quando a obrigação inadimplida for de escassa importância.

25. A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, deve-se presumir a sofisticação dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles acordada.

26. O contrato empresarial cumpre sua função social quando não acarreta prejuízo a direitos ou interesses, difusos ou coletivos, de titularidade de sujeitos não participantes da relação negocial.

27. Não se presume violação à boa-fé objetiva se o empresário, durante as negociações do contrato empresarial, preservar segredo de empresa ou administrar a prestação de informações reservadas, confidenciais ou estratégicas, com o objetivo de não colocar em risco a competitividade de sua atividade.

28. Em razão do profissionalismo com que os empresários devem exercer sua atividade, os contratos empresariais não podem ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência.

29. Aplicam-se aos negócios jurídicos entre empresários a função social do contrato e a boa-fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil), em conformidade com as especificidades dos contratos empresariais.

30. Nos contratos de shopping center, a cláusula de fiscalização das contas do lojista é justificada desde que as medidas fiscalizatórias não causem embaraços à atividade do lojista.

31. O contrato de distribuição previsto no art. 710 do Código Civil é uma modalidade de agência em que o agente atua como mediador ou mandatário do proponente e faz jus à remuneração devida por este, correspondente aos negócios concluídos em sua zona. No contrato de distribuição autêntico, o distribuidor comercializa diretamente o produto recebido do fabricante ou fornecedor, e seu lucro resulta das vendas que faz por sua conta e risco.

32. Nos contratos de prestação de serviços nos quais as partes contratantes são empresários e a função econômica do contrato está relacionada com a exploração de atividade empresarial, as partes podem pactuar prazo superior a quatro anos, dadas as especificidades da natureza do serviço a ser prestado, sem constituir violação do disposto no art. 598 do Código Civil.

33. Nos contratos de prestação de serviços nos quais as partes contratantes são empresários e a função econômica do contrato está relacionada com a exploração de atividade empresarial, é lícito às partes contratantes pactuarem, para a hipótese de denúncia imotivada do contrato, multas superiores àquelas previstas no art. 603 do Código Civil.

34. Com exceção da garantia contida no artigo 618 do Código Civil, os demais artigos referentes, em especial, ao contrato de empreitada (arts. 610 a 626) aplicar-se-ão somente de forma subsidiária às condições contratuais acordadas pelas partes de contratos complexos de engenharia e construção, tais como EPC, EPC-M e Aliança.

35. Não haverá revisão ou resolução dos contratos de derivativos por imprevisibilidade e onerosidade excessiva (arts. 317 e 478 a 480 do Código Civil).

36. O pagamento da comissão, no contrato de corretagem celebrado entre empresários, pode ser condicionado à celebração do negócio previsto no contrato ou à mediação útil ao cliente, conforme os entendimentos prévios entre as partes. Na ausência de ajuste ou previsão contratual, o cabimento da comissão deve ser analisado no caso concreto, à luz da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento sem causa, sendo devida se o negócio não vier a se concretizar por fato atribuível exclusivamente a uma das partes.

37. Aos contratos de transporte aéreo internacional celebrados por empresários aplicam-se as disposições da Convenção de Montreal e a regra da indenização tarifada nela prevista (art. 22 do Decreto n. 5.910/2006).

38. É devida devolução simples, e não em dobro, do valor residual garantido (VRG) em  caso de reintegração de posse do bem objeto de arrendamento mercantil celebrado entre empresários.

39. Não se aplica a vedação do art. 897, parágrafo único, do Código Civil, aos títulos de crédito regulados por lei especial, nos termos do seu art. 903, sendo, portanto, admitido o aval parcial nos títulos de crédito regulados em lei especial.

40. O prazo prescricional de 6 (seis) meses para o exercício da pretensão à execução do cheque pelo respectivo portador é contado do encerramento do prazo de apresentação, tenha ou não sido apresentado ao sacado dentro do referido prazo. No caso de cheque pós-datado apresentado antes da data de emissão ao sacado ou da data pactuada com o emitente, o termo inicial é contado da data da primeira apresentação.

41. A cédula de crédito bancário é título de crédito dotado de força executiva, mesmo quando representativa de dívida oriunda de contrato de abertura de crédito bancário emconta-corrente, não sendo a ela aplicável a orientação da Súmula 233 do STJ.

42. O prazo de suspensão previsto no art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/2005 pode excepcionalmente ser prorrogado, se o retardamento do feito não puder ser imputado ao devedor.

43. A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da Lei n. 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor.

44. A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial de legalidade.

45. O magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito.

46. Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação
aprovado pelos credores.

47. Nas alienações realizadas nos termos do art. 60 da Lei n. 11.101/2005, não há sucessão do adquirente nas dívidas do devedor, inclusive nas de natureza tributária, trabalhista e decorrentes de acidentes de trabalho.

48. A apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e administradores feita independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, prevista no art. 82 da Lei n. 11.101/2005, não se refere aos casos de desconsideração da personalidade jurídica.

49. Os deveres impostos pela Lei n. 11.101/2005 ao falido, sociedade limitada, recaem apenas sobre os administradores, não sendo cabível nenhuma restrição à pessoa dos sócios não administradores.

50. A extensão dos efeitos da quebra a outras pessoas jurídicas e físicas confere legitimidade à massa falida para figurar nos polos ativo e passivo das ações nas quais figurem aqueles atingidos pela falência.

51. O saldo do crédito não coberto pelo valor do bem e/ou da garantia dos contratos previstos no § 3º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005 é crédito quirografário, sujeito à recuperação judicial.

52. A decisão que defere o processamento da recuperação judicial desafia agravo de instrumento.

53. A assembleia geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação judicial é una, podendo ser realizada em uma ou mais sessões, das quais participarão ou serão considerados presentes apenas os credores que firmaram a lista de presença encerrada na sessão em que instalada a assembleia geral.

54. O deferimento do processamento da recuperação judicial não enseja o cancelamento da negativação do nome do devedor nos órgãos de proteção ao crédito e nos tabelionatos de protestos.

55. O parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial é um direito do contribuinte, e não uma faculdade da Fazenda Pública, e, enquanto não for editada lei específica, não é cabível a aplicação do disposto no art. 57 da Lei n. 11.101/2005 e no art.191-A do CTN.

56. A Fazenda Pública não possui legitimidade ou interesse de agir para requerer a falência do devedor empresário.

57. O plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam interesses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado.

SUBSTITUTIVO DO NOVO CPC PREJUDICA ADVOGADO


Nesta quinta-feira (21/3), foi apresentado um substitutivo ao projeto de novo Código de Processo Civil, assinado pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Segundo especialistas, o documento mantém os mesmos problemas do substitutivo anterior, do deputado Sérgio Barradas (PT-BA), e traz alterações que pouco afetam as falhas do documento original.
Uma das poucas alterações substanciais é a questão dos honorários de sucumbência em ações contra a Fazenda Pública. O projeto escrito por Paulo Teixeira, segundo o próprio texto, acolheu o “consenso formado entre o Poder Público Federal e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil”. Isso quer dizer que o artigo 85 do projeto estabelece critérios fixos para o cálculo dos honorários de sucumbência.
Os parágrafos 3º e 4º do artigo dão patamares mínimos e máximos para o cálculo das verbas sucumbenciais em que a Fazenda é ré. Para causas de até 200 salários mínimos, por exemplo, os honorários devem ficar entre 10% e 20% do valor da causa. Nas causas que discutem valor acima de mil salários mínimos, os honorários de sucumbência devem ficar entre 1% e 3% do total discutido.
Em outras palavras, o substitutivo tirou parte do poder discricionário do juiz, mas reduziu o potencial de ganho dos advogados. A avaliação é do processualista Paulo Henrique dos Santos Lucon, vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e professor de Processo Civil da USP.
Lucon faz parte da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de reforma do CPC enviado ao Senado. Ele avalia que o artigo “beneficiou a Fazenda em detrimento dos advogados”.
Projeto autoritário
Mas o principal problema do projeto, segundo o professor Antônio Cláudio da Costa Machado, também processualista da USP, é que o projeto de reforma deu poderes demais aos juízes, sob o pretexto de tentar resolver a morosidade do Judiciário. Ele avalia que o intuito do projeto é dar celeridade aos processos tentando acabar com o que se convencionou chamar de excesso de recursos.

Só que para o professor Costa Machado o texto é “muito autoritário”. Traço principal disso é a determinação de que as sentenças deverão ser executadas imediatamente, antes do trânsito em julgado. E isso aliado à regra que tira das apelações o efeito suspensivo. Ou seja: o recurso continuará chegando aos tribunais, mas a decisão já estará produzindo seus efeitos.
“É muito autoritarismo. O projeto passa a impressão de que o problema da Justiça é a quantidade de recursos, quando todo mundo sabe que é a infraestrutura. Em São Paulo um recurso demora até cinco anos para ser julgado. De cada dez sentenças, cinco são reformadas. O método está errado, o espírito está errado”, avalia Machado.

Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 21 de março de 2013

AS FONTES DE DIREITO E OS RÓTULOS DE ÁGUA MINERAL


Um case antigo e sua novação
A coluna desta semana aborda um tema que há muito venho trabalhando em meus escritos: a cegueira seletiva de nossa práxis jurídica quanto ao tratamento dado aos crimes contra o patrimônio em relação àqueles tipos penais que atingem interesses metaindividuais, como a sonegação fiscal, a apropriação indébita previdenciária e o descaminho (para falar só destes).

Saiu no blog de um renomado magistrado a sentença de uma juíza (leia aqui) na qual ela extingue a punibilidade dos fatos atribuídos a um acusado que subtraiu uma determinada quantia em dinheiro e em cheque e que depois, espontaneamente, restituiu os valores.
Alegrou-me muitíssimo ver o que só posso conceber como um fruto da boa semente que há tempos plantamos, primeiramente, na 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul e depois na 5a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS (e aqui homenageio os que compunham esse front: Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Luis Gonzaga Moura da Silva, depois a Genaceia Alberton). Fazíamos esse debate antes mesmo da lei que instituiu o famoso Refis! Buscando em meus arquivos, verifiquei que minha primeira publicação abordando a questão data de 1990, portanto, há 23 anos, como veremos na sequência. Sou antigo nisso, pois não?
Uma das grandes alegrias que a academia proporciona — especialmente em tempos de câmbio paradigmático — é a possibilidade de intervir positivamente na construção (e na desconstrução) das estruturas fundantes da vida jurídica e política da República. Especialmente quando se trabalha numa perspectiva crítica como venho defendendo ao longo dos anos. Não me canso de lembrar que a boa nova constitucional pegou despreparada a comunidade jurídica em Terrae Brasilis. Tal qual naMarcondo, de Garcia Marquez, onde aos habitantes faltava palavra para nomear um novo mundo que se desvelava após o longo sono, também aqui o despertar para a democracia e para o Estado Democrático de Direito emudecia, obrigando-nos quase a ter que apontar o dedo quando queríamos indicar o desconhecido.
Compreender a importância de uma nova teoria para um novo paradigma é passo fundamental para que este se estabeleça e crie raízes. Do contrário, assistir-se-á o ancien régime perdurar travestido de uma nova roupagem. Romper com a tradição inautêntica (no sentido gadameriano), é, pois, o primeiro passo. Consolidar a autêntica, um segundo igualmente necessário. Por óbvio isso não se dá sem dor ou luta. Muitas vezes se grita sozinho ou acompanhado de outros poucos que se dispõem ao bom combate. Ter por fruto a consolidação disso é bastante alentador.
Fundamentos e resultados
De se destacar, contudo, que embora concorde com a conclusão (da aludida sentença) de que deve ser reconhecida a extinção da punibilidade, entendo que a referida decisão merece reparos nos fundamentos utilizados. Ah, alguém dirá: estou sendo muito exigente e, quiçá, chato. Não é nada disso. Não é nenhum diletantismo de minha parte. O raciocínio é de princípio e não circunstancial. Embora tenhamos chegado ao mesmo destino, os caminhos foram divergentes  e nessa viagem importa muito o trajeto. Há alguns atalhos que não podem ser admitidos, sob pena de se comprometer a integridade e a coerência do Direito, pois abrem frestas para que, em outros casos, resultados contrários ao Estado de Direito sejam buscados, sob as mesmas circunstâncias. E, pior, alcançados. Como diz o ditado popular, mesmo um relógio parado acerta as horas duas vezes por dia... Todo argumento circunstancial tem suas razões fincadas no utilitarismo e, como tal, instrumentaliza-se. E o que isso quer dizer? Que, como todo instrumento, pode ser usado para construir ou destruir... É aí que reside o perigo. E este foi o motivo pelo qual desenvolvi a Crítica Hermenêutica do Direito. Em todo caso, vamos, primeiramente, aos pontos de contato.

De há muito venho denunciando o fenômeno da baixa constitucionalidade. Desde as primeiras edições do Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, nos idos dos anos 1990. E especificamente acerca da seletividade penal e das disparidades de tratamento entre os delitos individuais (em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa) e os metaindividuais (sonegação fiscal, apropriação indébita previdenciária, crimes contra o sistema financeiro e por aí vai), ainda no longínquo ano de 1990 publiquei um texto[1] em que abordei o paradoxo criado entre a minorante do artigo 16 do Código Penal[2] e a Súmula 554 do STF[3] um flagrante caso de ferimento do princípio constitucional da isonomia. A Constituição estava ainda quentinha.
Com o advento da lei 9.249/95, ainda no ano de 1996, emiti parecer que foi integralmente transcrito no voto do relator de uma apelação criminal em que opinei pela extinção da punibilidade da prática de um furto, fundamentado no princípio constitucional da isonomia, apontando que deveria a patuleia receber o mesmo benefício dado ao sonegador fiscal pelo artigo 34 da lei 9.249/95 (leia aqui).[4]Vejam: no caso, nem houve a devolução espontânea. Já dizia eu, então, que isso era irrelevante (o artigo e o acórdão explicam as razões disso).
Não estamos a lidar com nenhuma “descoberta da pólvora”! Essa foi descoberta juntamente com Amilton Bueno de Carvalho, o Alfredo Foerster (que transcreveu integralmente meu parecer acima citado em seu voto) e o Clademir Missaggia (o juiz do caso, à época, que, faço justiça, no primeiro grau foi o primeiro no Brasil a aplicar a minha tese). Poucos sabem das dificuldades de sermos pioneiros em teses como essa em meados da década de 90 do século passado, agora abordada na referida sentença. Eram duros tempos (para quem tem dúvida, basta ver como “a dogmática penal avançou” — estou sendo irônico, é claro!). Fica aqui o registro para que não esqueçamos que a filtragem hermenêutico-constitucional é algo que advém de uma construção que já tem um bom tempo.
No mesmo instante em que aplaudimos e nos filiamos à denúncia da seletividade do sistema penal, fica em nós a convicção de que teses assim como a que eu e o Amilton Bueno de Carvalho desenvolvemos há quase vinte anos — por nostalgia, remeto o link para um instante em que debatíamos a tese em um Congresso do Instituto de Direito — ainda causem surpresas ou pareça algo inovador (veja foto). E, o pior: a sentença referida “esqueceu” de mim e do Amilton (e do Forster e do Clademir). De todo modo, parece que a dogmática jurídica tem dificuldade em realizar a Constituição. Depois disso desses primeiros casos, exarei inúmeros pareceres em muitos acórdãos, um deles citando meu nome na ementa do julgado, que assim dispõe:
ESTELIONATO. ÔNUS DA PROVA.
No estelionato, mesmo que básico, o pagamento do dano, antes do oferecimento da denúncia, inibe a ação penal. O órgão acusador deve tomar todas as providências possíveis para espancar as dúvidas que explodam no debate judicial, pena de não vingar condenação (Magistério de Afrânio Silva Jardim).

Lição de Lênio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (BRASIL. TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 25 de Setembro de 1997). (íntegra aqui)
Bingo! A patente, por assim dizer, está registrada de há muito! Seu aspecto é, fundamentalmente, simbólico. Ou seja, serve muito mais para mostrar as possibilidades do novo e denunciar as idiossincrasias do sistema. Observe-se: em artigo de 1996,[5] eu abordava a problemática relacionada as possibilidades de aplicação do artigo 34 da Lei 9.249/95 aos delitos contra o patrimônio nas hipóteses em que houver ausência de prejuízo à vítima e que não tenha, a evidência, havido violência contra a mesma.
No referido texto já enfrentava, de início, o tópico relacionado com a concepção de bem jurídico e as “antinomias” do ordenamento jurídico, a partir da análise e discussão do artigo 16, do Código Penal, de 1984, a Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal — de edição anterior ao artigo 16 —, bem como da Lei n. 9.249 de 26 de dezembro de 1995, que permite àquele que sonegar impostos ou contribuições sociais escapar da punição, com o simples pagamento do valor sonegado antes do recebimento da denúncia. Mais do que isso, sempre sustentei que: ou se aplica o favor legis também para quem furta ou se declara a inconstitucionalidade.
A sentença da juíza — que ora comento, muito mais por ter omitido a origem da tese —, além de não ser inovadora, como já destacado, contém erros que precisam ser apontados. Há uma baixa compreensão do significado do que seja princípio da isonomia dentro de um paradigma de Estado Democrático de Direito.
Diz ela, em uma passagem, que “o princípio da isonomia é um princípio geral de todo o ordenamento jurídico, que tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores do direito. Segundo ele, todos são iguais perante a lei, não se admitindo privilégios e distinções em situações que se assemelham.”
Não. O princípio da isonomia não é um princípio geral. É importante anotar, neste particular, a confusão que se faz entre o conceito de princípio jurídico, o de ordenamento e suas consequências para o caso. E desde já aproveitando o ensejo para sugerir a leitura da obra de Rafael Tomaz de Oliveira, que magistralmente aborda o tema em uma dissertação sob minha orientação e que se tornou referência no Brasil sobre o tema.[6] Façamos essa análise por partes:
a) em primeiro lugar, a utilização da ideia de isonomia como um princípio geral remete-nos para o caso dos velhos princípios gerais do direito que, no Direito brasileiro, assumem a condição de determinação legislativa, sendo expressamente estabelecido como critérios de solução para as “lacunas” do ordenamento no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ao lado da analogia — também utilizada no esforço hermenêutico da julgadora — e dos costumes. Isso é um sintoma! Na verdade, o senso comum teórico dos juristas trata do problema como se estivéssemos, ainda, sob a égide da metodologia novecentista que operava com um sistema em que os princípios gerais eram chamados para atuar nos casos em que o modelo de regras não fosse suficiente para resolver os problemas da realidade.[7] Não deixa de ser sugestivo o fato de que este tipo de estratégia legislativa tenha sido utilizada, pela primeira vez, nos códigos dos oitocentos. Tais códigos tinham uma feição nitidamente privativista. Mas, o mais emblemático é que esses velhos axiomas — que foram chamados no século XIX de Princípios Gerais do Direito — continuam a ser aplicados em pleno Constitucionalismo Contemporâneo, como se houvesse apenas uma mera continuidade entre a nova Constituição e o ancién regime jurídico. Portanto, é preciso ter presente, desde já, que no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo os princípios assumem uma dimensão normativa de base.
b) A associação da ideia de princípio geral com o conceito de ordenamento jurídico, por outro lado, oferece uma ótima amostra do anacronismo que acomete o direito brasileiro. Com efeito, o conceito de ordenamento jurídico foi inaugurado por Kelsen e, depois, difundido nos países de línguas latinas por Norberto Bobbio, a partir de seu clássico Teoria do Ordenamento Jurídico — de confessadas inspirações kelsenianas —, cuja publicação remonta ao final da década de 50 e ao início da década de 60. Para Bobbio, a teoria do ordenamento representava uma integração da teoria da norma jurídica, cuja premissa elementar pode ser traduzida na seguinte passagem: “as normas jurídicas nunca existem sozinhas, mas sempre num contexto de normas que tem relações específicas entre si”.[8] Certamente, no início da segunda metade do século XX, a ideia de ordenamento representava uma grande novidade, principalmente nos termos trabalhados pelo jusfilósofo italiano.
O ponto determinante para a questão que aqui se ventila é que o ordenamento jurídico é uma construção teórica específica. Não é um conceito que surge, por assim dizer, “naturalmente”, na experiência jurídica. No mais, quando emprega o princípio da isonomia, ao mesmo tempo, como um princípio geral e um princípio do ordenamento, cria uma estranha simbiose: enquanto princípio geral seria a isonomia um axioma de justiça, apto a preencher os vácuos deixados pelo sistema codificado; enquanto princípio do “ordenamento” funcionaria a isonomia como uma instância epistemológica de legitimação do conhecimento jurídico. Em verdade e contexto, por exemplo, demonstro a inadequação da “continuidade” entre princípios gerais e princípios constitucionais. Só isso já dá uma tese.
No caso, está correto dizer que a isonomia impõe uma decisão igualitária no que tange ao tratamento repressivo que se dá ao furto e aos crimes tributários. Todavia, há que se ter em mente que isso se dá em face de a isonomia se apresentar como um princípio constitucional que apresenta como um fator que resolve, “pragmaticamente” o caso apresentado. A invocação da isonomia como um “princípio geral do ordenamento” enfraquece o argumento na medida em que traria para o julgador uma espécie de abertura interpretativa quando, na verdade, o que ocorre é um fechamento: a interpretação constitucionalmente adequada do caso impõe que o tratamento dos casos se dê de forma igualitária.
Vê-se, também, que a sentença em várias passagens diz estar aplicando “analogia in bona partem”. Que podemos dizer sobre a propalada figura da analogia em tempos pós-virada linguística e sob o paradigma da Crítica Hermenêutica do Direito? Demandar o artigo 3º do Código de Processo Penal também me preocupa profundamente (para usar a analogia, esta deveria estar acompanhada de interpretação conforme ou nulidade parcial sem redução de texto).[9] Isto porque a analogia remete a uma escolha. Isto é, ao juiz para garimpar o fundamento por meio de um processo que fica ao seu alvedrio, à sua vontade (vontade essa que é “do poder”, lembrando sempre o último princípio epocal da modernidade, a Wille zur Macht — pelo qual se institucionalizou o decisionismo judicial). Trata-se de uma postura positivista atrelada, ainda, ao positivismo exegético ou legalista, como costuma chamá-lo Castanheira Neves. Assim, conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito (axiomas do século XIX) devem ser encarados também nessa perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso, que representaria as hipóteses — extremamente excepcionais — de inadequação dos casos às hipóteses legislativas. Dispositivos como o do artigo 3º do CPP funcionariam como uma espécie de fechamento autopoiético do sistema jurídico, mas, na verdade, permitem discricionariedades e decisionismos, em frontal incompatibilidade com uma leitura hermenêutica do sistema jurídico, superadora do esquema sujeito-objeto (filosofia da consciência). Nesse ponto, na medida em que não há uma referência à normatividade constitucional, a analogia — feita nestes moldes — é tecnicamente inconstitucional.
Com efeito, na era dos princípios, do constitucionalismo e do Estado Democrático de Direito, não é mais possível falar em “omissão da lei” que pode ser “preenchida” a partir da analogia [e também dos costumes (quais, por sinal?) e dos princípios gerais do Direito].
Numa palavra final
Fazer teoria crítica no Brasil é uma tarefa extremamente difícil. Mormente nos anos 1980 e 1990. Isso deveria ser lembrado e reconhecido em decisões contemporâneas que, por vezes, esquecem o que se passou (e como se hoje vivêssemos o nirvana!). E, fundamentalmente, elaborar decisões críticas ou propagar a crítica do direito (penal ou processual) requer coerência e integridade. Por exemplo, se alguém gosta da tese que inventei lá nos anos 1990 e apliquei já em 1996 sobre a isonomia entre a Lei da Sonegação e os crimes patrimoniais sem violência, deveria também aplicar a inconstitucionalidade da reincidência (também sufragada por Amilton e outros — embora a tese esteja sob repercussão geral ainda não julgada, não há efeito vinculante e, portanto, não há óbice de ser aplicada), a pena abaixo do mínimo (há súmula do STJ, mas que não há efeito vinculante), a rejeição dos princípios-que-não-são-princípios como os da “confiança no juiz da causa”, enfim, outras teses que foram sendo construídas e reconstruídas por mim nestes anos todos. Veja-se que, por exemplo, a 5ª Câmara Criminal do TJ-RS ficou sozinha anulando ações penais nas quais, antes da lei de 2004, não havia sido assegurada a presença de advogado no interrogatório (à época, solitariamente, a 5ª Câmara e eu sustentávamos "solo", sem nem mesmo o apoio, na maioria das vezes, dos próprios advogados, que nem se davam conta do problema). E, hoje, entre tantas teses garantistas que devem ser professadas, a pergunta que faço é: quem está aplicando o artigo 212 do CPP que explicita o sistema acusatório no processo Penal? Não seria o artigo 212 uma regra de procedimento que assegura direitos fundamentais (leia aqui)? Insisto: quem está, efetivamente, aplicando o artigo 212 do CPP?  

Uma outra dificuldade para se falar em garantismo no Brasil — que deve ser bem compreendido como instrumento de limitação do poder estatal — está ligada a peculiaridade de o sistema criar adaptações darwinianas para problemas que são derivados de excessos praticados por algum órgão do Estado. Veja-se o caso dos embargos — sejam eles declaratórios ou infringentes — que são, de algum modo, uma maneira do sistema responder a decisões arbitrárias proferidas pelo judiciário (afinal, um sentença omissa, obscura ou contraditória pode ser considerada arbitrária, pois não? Uma vez que mal fundamentada...). No caso dos embargos infringentes — principalmente naquele caso em que a previsão, legislativa ou regimental, tem por característica possibilitar ao réu de processo penal uma espécie de novo julgamento — o que se tem é a "desconfiança" quanto à legitimidade daquele acórdão exarado da autoridade estatal. E, por vezes, com toda a razão, mormente quando a decisão guerreada viola direitos fundamentais do acusado. Nestes casos, não há como se negar o direito à revisão dos equívocos, pela simples razão de que se está diante de violação de regras atinentes ao devido processo legal e à questão da definição acerca do conceito de prova. Isso funciona como qualquer questão de inconstitucionalidade, ou seja, é, por assim dizer, “uma questão de ordem pública”, com uma dose de substancialidade que supera o aspecto procedimental (relembro, aqui, o debate que faço com as posturas procedimentalistas em Jurisdição Constitucional e Hermenêutica). Nesse sentido, minha discussão antiga acerca do papel dos predadores internos e externos do Direito, em que os embargos acabam sendo, vistos em sentido lato, lamentavelmente um mal necessário. E, de fato, o são. Ruim com eles, o caos sem eles. Por que isso é assim? A crítica do Direito vem se debruçando sobre isso.
Todavia, é necessário ter claro que essas correções sistêmicas não atingem aquilo que é o âmago do problema que e justamente o agigantamento de poder que recai sobre o Judiciário. Algo que, por sua vez, deve-se ao próprio parlamento que aprovou as mais diversas reformas — processuais e constitucionais — que conferiram ao Judiciário instrumentos de poder, nunca dantes observados em outras ordens jurídicas democráticas. Súmulas vinculantes, súmulas impeditivas de recursos, repercussão geral, enfim, tudo se encaixa em torno de uma mesma volta redonda (para homenagear Faoro). E o sistema, certamente, responde. Se de forma adequada ou não é uma outra história...
Enfim, a coluna teve esse duplo efeito: elogiar a decisão da ilustre juíza e incentivá-la no sentido de que continue nessa trilha garantidora e aumente o rol desse tipo de tese e, ao mesmo tempo, chamar a atenção para o, digamos assim, DNA da história institucional da tese adotada.
Por isso, em um país como o nosso, fazer teoria crítica pode merecer críticas... mas o mínimo que ser quer é que sejam preservadas as fontes. Como nos rótulos de água mineral! 

[1] STRECK, Lenio Luiz. O artigo 16 do Código Penal e Súmula 554 - A Injustiça de uma Antinomia não resolvida. Revista de Direito do Ministério Público, Rio Grande do Sul, v. 26, 1990.
[2] “Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”
[3] “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.”
[4] STRECK, Lenio Luiz. A filtragem hermenêutico constitucional do direito penal: um acórdão garantista. Revista Doutrina, Rio de Janeiro, v. 9, p. 390-402, 1998.
[5] STRECK, Lenio Luiz. A nova lei do imposto de renda e a proteção das elites: questão de ‘coerência’. Revista Doutrina – Instituto de Direito, n. 1, p. 484 a 496, 1996.
[6] OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[7] Cf. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Sariva, 2011, p. 173. Para uma crítica à indeterminação do conceito de princípio no âmbito do pensamento jurídico Cf. Tomaz de Oliveira, Rafael. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008,passim.
[8] Cf. Norberto Bobbio. Teoria geral do direito, ob. cit., p. 173.
[9]  Art. 3º.  A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 21 de março de 2013

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