quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Por que, contra a lei, juíza acha que pode autorizar revista coletiva?




Por Lenio Luiz Streck


Os leitores entenderão as razões pelas quais a juíza — do título da coluna — acha que pode mais do que a lei. Ao trabalho. O jusfilósofo alemão Mathias Jestaedt, um destacado positivista, escreveu um texto que poderia ter sido escrito para o Brasil. Chama-se Verfassungsgericht Positivismus. Die Ohnmacht des verfassung gesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat.[1] (Positivismo do Tribunal Constitucional. A impotência do legislador constituinte ante a jurisdição constitucional do Estado). Na verdade, se substituirmos no texto a referência ao Bundesvesfassunsgericht por Supremo Tribunal Federal pouco mudaria, com a diferença de que ao menos o tribunal alemão usou (e usa) uma certa coerência na sua atuação realista, a começar pelo fato de que, já de início, disse a que veio, epitetando a Lei Fundamental de Ordem Concreta de Valores — objektive Wertordnung.

Pronto. Dei spoiler. É exatamente disso que fala o jurista alemão. Ele mostra — numa denúncia mais filosófica que aquela famosa de Ingeborg Maus (sobre o Tribunal Constitucional como superego da nação) — que o tribunal incorporou uma tese segundo a qual o Direito se forma apenas ex post, isto é, não há Direito anterior à decisão judicial. Nesse tipo de jurisprudencialismo, diz o professor, o juiz cria o Direito para o caso concreto sem estar vinculado a nada antes dele. Jestaedt diz ainda que esse atuar é uma forma de realismo jurídico.[2] Empirismo. Correta a crítica, que pode ser estendida ao trabalho do Supremo Tribunal Federal do Brasil e também ao que os tribunais fazem cotidianamente (o que é isto — a construção de enunciados?). O que Jestaedt [3] quer dizer é que o tribunal põe novo direito. Logo, constrói um fato social. Que vale. Daí o título do texto, autoexplicativo, denunciando a impotência do Estado diante da transformação do TC em legislador. Qual seria a diferença do que denuncia Jestaedt daquilo que fez o STF em ações como as ADCs 43 e 44 ou quando um ministro diz que a suprema corte é a vanguarda iluminista da nação? Ou quando um tribunal, contra o Código Civil, concede metade da herança para a amante? Ou quando os tribunais dizem que “aqui o CPC é só cumprido em parte”?

No Brasil não é só o tribunal constitucional (no caso, o STF) que “põe o direito”. Todo o “sistema judiciário” pratica esse realismo (ou essa espécie de realismo tupiniquim) tão bem denunciado por Jestaedt no que pertine ao tribunal constitucional alemão. Já não temos mais Direito legislado. Temos uma Ohnmacht (impotência) diante do Judiciário. Já não temos Constituição. O que temos é o que os juízes e tribunais pensam, de forma pessoal, subjetiva e solipsista, sobre o direito. Popper chama a isso de “racionalidade teológica”.

Listo, por amostragem, algumas atividades realistas-jurisprudencialistas [4]: 1) Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região diz que perdoa advogados por “defenderem seus clientes” — uma apreciação moral que mostra como a advocacia é vista por eles, os juízes (sem paráfrase de Calamandrei) — o resultado disso pode ser visto no voto em que nega habeas corpus; 2) O STF tolhe o direito de greve dos servidores públicos sem considerar a diferença entre greve legal e ilegal; 3) O STF fragiliza a presunção da inocência contra expresso texto de lei e da Constituição (e metade da comunidade jurídica acha “bom”); 4) O Judiciário, com a benção do STJ e STF, decide não cumprir o artigo 212 do CPP, sem fazer jurisdição constitucional; 5) Uma chacina de 111 presos feita pela polícia é "legítima defesa" para parte do Tribunal de Justiça de São Paulo (um voto está baseado não na lei, mas na consciência do julgador); 6) O TJ-SP autoriza o uso de balas de borracha contra manifestantes — a população virou inimiga do Estado?; 7) Em Brasília, um juiz da infância e juventude utiliza métodos de tortura para expulsar adolescentes de uma escola; e parcela importante dos juristas brasileiros — e dos leitores da ConJur — acha “legal” isso (até a revista Veja criticou o ato do juiz, mostrando que nem o Senado americano aprova o uso desses instrumentos); 8) “Medida excepcional” da Justiça autoriza a polícia a fazer buscas e apreensões coletivas em favela no Rio de Janeiro contra expresso texto legal e constitucional; 9) Um TRF decide uma representação contra um juiz invocando “jurisprudência de exceção” (empirismo jurídico na veia); 10) O CPC não é cumprido nem mesmo pelos tribunais superiores, que, para muitos juristas, deveriam logo ser ungidos à condição de tribunais de precedentes; 11) doutrinadores adeptos do realismo incentivam as práticas jurisprudencialistas, cindindo texto e norma e colocando o ato judicial como um ato de vontade (repristinando Kelsen) — eficiente combustível para a jurisprudencialização; 12) Em plena democracia e no ano da graça de 2016, pesquisa mostra que todos os tribunais estaduais (e alguns federais) continuam invertendo o ônus da prova em crimes como furto e tráfico de entorpecentes e ainda usam a verdade real; 13) uma juíza eleitoral da Bahia diz: não tenho provas, mas eu sei que foi ele... e cassa um prefeito — e o TRE baiano confirma a decisão; 14) a LC 64 permite que se use intuições e presunções para cassar mandatos populares; 15) corre solta, lépida e fagueira a tese de que existe o in dubio pro societate — não leram Oresteia, de Ésquilo (não é esquilo); 16) as grandes “ideias” das salas de aula que forma(ra)m um milhão de advogados são: “princípios são valores” e o juiz boca da lei morreu e agora-é-a-vez-do-juiz-dos- princípios (e dá-lhe princípios como um que recebi hoje por e-mail: princípio da primazia do acertamento — quem teria “bolado” isso?; 17) chegamos ao ponto de o STJ ter de dizer que desemprego não é motivo para decretar preventiva (tem juiz e tribunal dizendo o contrário). Paro por aqui. Por total desnecessidade. Cada um que faça a sua lista.

Escrevendo a coluna, lembrei da prisão do Garotinho e a divulgação — absolutamente ilegal (mais um caso de realismo tupiniquim) das escutas entre advogado e cliente. Quem decretou a prisão e autorizou as escutas e as divulgou não é filho de chocadeira. Estudou em algum lugar. Resultado: isso que está aí. O lema hoje é: Os fins justificam os meios. Decido... e só depois justifico (o que nem é fundamento). Minha pergunta: porque não decretam logo a dispensa da defesa? Matem os advogados.

O juiz que decretou a prisão de Garotinho usou a Bíblia como fundamento. Bom, fora a Bíblia, não havia mesmo fundamento. Só um milagre para justificar a prisão. E só um banho de descarrego epistêmico para salvar esse tipo de decisão e esse tipo de procedimento, que, aliás, quase matou Garotinho, não fosse a corajosa decisão da ministra Luciana Lóssio. Eis a solução: proponho “banhos de descarregos epistêmicos”. Nos anos 90, quem foi meu aluno lembra das “sessões” que eu fazia para retirar “os encosto” (sem esse) que travavam a vida dos pobres estudantes por intermédio da velha cultura prê-à-porter de então, hoje darwinianamente rediviva como “direito simplificado, facilitado, mastigado, resumido, resumidinho”, etc. Sai que esse corpo não te pertence...

O caso Garotinho é empirismo jurídico. Juiz põe o direito (como bem lhe aprouver). Põe fato (social). Ilegitimamente. Mas vale. Quem o segurará? E mesmo que o corrijam (quando sair esta coluna, já podem tê-lo feito), o estrago já está feito. Ao mesmo tempo, quantas prisões preventivas são/foram decretadas nesse imenso Brasil mediante argumentos absolutamente pessoais, subjetivistas, morais, políticos, etc? Tudo serve de fundamento: menos o direito. Que já não existe.

Tenho dito todos os dias que direito não é moral. Não é política. Em qualquer situação. Sou um ortodoxo. Direito não pode ser corrigido por argumentos morais. Pergunto: o que aconteceu? Onde foi que erramos? Já não temos Direito. Temos interpretações. Meras interpretações. Puro relativismo. Só há narrativas sobre o direito. Vivemos um não-cognitivismo ético. Ceticismos. A narrativa do poder. De quem decide. Direito foi substituído por juízos morais e políticos. Logo, o Direito já não é o que foi produzido pelo legislador. Ele é o que os juízos morais e políticos dizem que ele é. Daí o jurisprudencialismo (realista). Há um “novo” direito. A propósito: Já notaram como os livros de Direito não comentam as leis e, sim, somente o que os tribunais dizem sobre as leis? Não se deram conta? O professor pensa que está no common law e discute, em vez de leis, aquilo que os tribunais disseram. Verifiquem. A jurisprudencialização venceu. É a prova de que o que Jestaedt disse sobre o tribunal constitucional alemão se aplica por aqui, claro, com as diferenças de culturas. E do nível do pudor. E da responsabilidade dos juízes do tribunal constitucional. Por aqui, qualquer coisa é motivo: até a Bíblia. E a opinião pessoal. Como disse o desembargador de TJ-SP: penso que os policiais que mataram 111 devem ser absolvidos... baseado em minha consciência. Bingo. Eis o Brasil.

Temos hoje uma Constituição e suas garantias — odiada pela metade dos juristas (canibais, porque devoram o seu próprio objeto de trabalho) — substituída por um direito posto pelo Judiciário. É o que Dworkin dizia sobre o poder discricionário: é Direito feito de forma retroativa. Direito intersticial. Que, na democracia, é absolutamente danoso.

Post scriptum 1: Incrível (ou crível) a violação do sigilo profissional do conselheiro federal Jonas Cavalheiro, do Rio de Janeiro. O juiz, além de grampear conversa entre advogado e cliente, faz vazar estas informações de forma ilegal. E sai no Fantástico. Virou moda no Brasil. Não existe mais a lei 9.296. Só existe aquilo que o Judiciário disse que a referida lei é. Jestaedt tem razão. Que espetáculo, não? E a comunidade jurídica se queda silente. Incrível como o Brasil se transformou em um país de pequenos-reacionários (não explicarei o que isso significa — alguns saberão). Que donas de casa, jornalistas e jornaleiros se pronunciem como torcedores, é até aceitável. Mas em um país de um milhão de advogados, o fato de termos deixado que se instalasse uma juristocracia é algo que desafia amplos estudos. O que farão esses advogados se o Direito já não é Direito e, sim, um “novo” Direito feito “realisticamente”, graças à troca de fonte social? Vão dirigir táxis? Trabalhar de balconista? Ao que vejo, esses estudos denunciando todo esse estado d’arte não serão feitos por nossos programas de pós-graduação, hoje mais preocupados em discutir teoria normativa da política no âmbito do direito do que, efetivamente, teoria do direito. Ficamos bons em discutir livre apreciação da prova e livre convencimento. O livro mais vendido de processo civil de edição de 2016 diz que o juiz apreciará livremente a prova, sem qualquer elemento que vincule o seu convencimento a priori, porque vige no Brasil, segundo os autores, o sistema da livre valoração motivada. Ou seja, no fundo eles poderiam ter dito: “o CPC não vale nada”. O que vale é o que é dito na decisão judicial. Bingo.

No processo penal, a maior parte dos juristas críticos (nem falo dos demais) se deram conta há apenas cinco ou seis anos daquilo que este escriba já denunciara há mais de vinte anos: a de que o problema da falta de democracia no Judiciário e MP decorre-do-protagonismo. E a raiz não é dogmática. Não é “processual”. É, sim, filosófica. É o sujeito da modernidade (ainda há livros que dizem que sentença vem de sentire). Mas, lamentavelmente, parece que nossos juristas acham que isso é não tem nada a ver com a dogmática jurídica. A primeira vez que encontrei Warat foi em uma aula em 1983 (parcela enorme desse um milhão de advogados não havia nascido ou era bebê de colo). Ele atacava a dogmática jurídica formalista de então. Dogmática formalista... Pois sim. Mas, dizia Warat, pitando um cigarro sem tragar: necesitamos de la dogmática. Pero... la dogmática sigue al segundo piso del edificio kelseniano; por lo cual los jueces deciden como quieren; así, la dogmática destruirá cualquier derecho existente y válido. Y por qué? Porque la dogmática, por la falta de una transición democrática [especialmente na américa latina], es como un escorpión que engancha un paseo en la espalda de un sapo; en el cruce del río, lo mata. Un gran escorpión realista. Grande Warat. Se ele visse a “dogmática da valoração ou dogmática realista” de hoje, que é posta como oposição à velha dogmática formalista, aí, sim, teria tido um ataque de “nervios”.

De todo modo, parece que tudo está virando discurso de eficiência e de exceção. Fins justificam os meios. Novas vanguardas se formam. “Novo” Direito instersticial. Com isso, a doutrina perde importância. Afinal, o Direito é que o Judiciário diz que é. Consequentemente, na medida em que o que os advogados dizem já não tem importância, assim como aquilo que a doutrina — aquela que não se dobra ou fica fazendo glosas jurisprudenciais — diz também não tem serventia, somente há uma coisa a fazer. Dick, o açougueiro da peça Henrique VI, tinha a sugestão: kill all the lawyers. Matem todos os advogados. Eles atrapalham. E Jack Cade responde: Pretendo fazer isso e mais...

Post scriptum 2: Daqui há 201 anos, arqueólogos rasparão o palimpsesto da Constituição. Isso acima tinha de ser dito. Um Estado Constitucional só tem sentido se o texto constitucional que o institui estiver minimamente preservado. Se deixarmos que o texto seja substituído por outro produzido (posto) pelo Judiciário, então teremos que ficar torcendo para que o substituto seja melhor que o originário. Mas, quem garante? O Brasil já demonstrou que a substituição não tem sido boa. Daqui há 201 anos, quando a Constituição brasileira tiver a idade que a Constituição americana tem hoje (229 anos), os arqueólogos estarão tirando camadas e camadas de poluição semântica do texto constitucional. Como em um palimpsesto, irão raspar, raspar (pararão para ler interpretações que nada tem a ver com a própria CF), rasparão mais e mais, até que, finalmente, chegam ao texto. Ficarão pasmos e dirão: “— agora sabemos porque, no conto machadiano a Sereníssima República, a palavra Nebraska se transformou em Caneca.”

Por isso, proponho que voltemos a estudar... Direito. E respeitemos... o Direito. E que nos acostumemos a dizer que onde está escrito “presunção”... leiamos... ”presunção”. E não odiemos sinonímias. Elas são desejáveis na democracia. Norma é diferente de texto. Viva. Sabemos disso. Mas, por favor, norma (atribuição de sentido) não é texto novo. Mas não é, mesmo. E, finalmente, não tenhamos vergonha de estudar Direito. Sejamos ortodoxos. Salvemos o Direito. Se que ele ainda existe.


1 In: Nomos und Ethos. Hommage an Josef Isensee zum 65. Geburtstag von seinen Schülern. Mit Frontispiz (Schriften zum Öffentlichen Recht; SÖR 886) Gebundene Ausgabe – 2002, Dincker & Humblott, Berlin, 2002, pp. 183-228.


2 A crítica de Jestaedt denuncia o ponto central das mazelas de um atuar realista de um Tribunal. Não vou discutir, aqui, a apreciação dele acerca do jurisprudencialismo (que não se confunde com o que fala Castanheira Neves) como uma forma de positivismo (a partir do que diz Jestaedt, decisões como as do Min. Barroso – ADCs 43-44 e tantas outras - não seriam propriamente “pós-positivistas”). Mas essa é uma longuíssima discussão e não há condições de fazê-la neste curto espaço. Veja-se que um positivista como Michel Tropper chega a dizer que Kelsen, no plano da decisão (ato de vontade), equipara-se ao realismo. O que importa é que, quando o STF decide, por exemplo, sem considerar o mínimo de constrangimento que o texto constitucional gera (ou deveria gerar) no intérprete, o que está fazendo senão uma forma de realismo jurídico? São exemplificativos os casos pelos quais para o Supremo Tribunal não há direito ex ante a sua própria decisão (essa é, aliás, a crítica que Jestaedt faz ao TC alemão). Essa circunstância se repete em todo o sistema jurídico brasileiro. Pelo que se vê por aqui, não há norma jurídica antes da decisão do caso concreto. No entanto, nos Estados Unidos ou na Escandinávia, o realismo jurídico – com todos os seus problemas – sabia do impacto das decisões judiciais e os problemas de um Judiciário que decide sem limites. Por isso Holmes advertia sobre o dever de moderação dos magistrados, sob pena de aumentar a instabilidade social, como bem lembram Eugenio Fachini Neto e Ana Paula Tremarin Wedy, no texto Sociological jurisprudence e o realismo jurídico: a filosofia jurídico norte-americana na primeira metade do século XX. Revista da Ajuris, v. 43, n. 160, 2016. p. 100). No Brasil, contrariamente, sentimos na pele essa herança empirista. O nosso realismo não tem precedentes (se me entendem a ironia!).


3 Apenas uma objeção. Ainda que correta a crítica de Jestaedt ao modelo jurisprudencialista que ele considera uma forma de positivismo, o professor alemão atribui esse tipo de atividade jurídica à hermenêutica e à doutrina de Friedrich Müller. Jestaedt acerta na acusação ao jurisprudencialismo, mas erra na atribuição da culpa.


4 José Bolzan de Morais chama a esse fenômeno de A Jurisprudencialização da Constiuição. A Construção Jurisdicional do Estado Democrático de Direito – II (In: José Luis Bolzan de Morais; Lenio Luiz Streck. (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Livraria do Advogado, 2009, v. 1, p. 41-52).


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2016, 8h00

Gestante aprendiz tem reconhecido o direito à estabilidade provisória


A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o direito de uma aprendiz da Scopus Tecnologia Ltda. à estabilidade provisória da gestante, aplicando a jurisprudência do TST especificada na atual redação do item III da Súmula 244. Segundo a relatora do processo, ministra Dora Maria da Costa, a estabilidade provisória prevista no artigo 10, inciso II, alínea "b", do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias constitui direito constitucional assegurado à empregada gestante e tem por maior finalidade a garantia do estado gravídico e de preservação da vida, "independentemente do regime e da modalidade contratual".

A jovem engravidou durante o período de dois anos do contrato, e seu filho nasceu cerca de um mês antes do encerramento da relação com a empresa. O juízo de primeira instância e o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) consideraram que não se aplicava ao caso a garantia de emprego à gestante do ADCT. Para o TRT, na época do término do (em 14/3/2013), o entendimento prevalecente naquele tribunal era o de que a empregada gestante não tem direito à garantia provisória de emprego no caso de contrato por prazo determinado.

No recurso ao TST, a aprendiz, que tinha 18 anos quando nasceu seu filho, sustentou que o benefício busca assegurar condições mínimas ao nascituro, e que o TST reconhece o direito mesmo nas contratações por prazo determinado.

Ao examinar o caso, a ministra Dora Maria da Costa explicou que, de acordo com o entendimento atual do TST, a gestante faz jus à estabilidade provisória mesmo se o início da gravidez se der na vigência de contrato por prazo certo ou de experiência. "Assim, considerando que o contrato de aprendizagem é modalidade por prazo determinado, a ele também se aplica a estabilidade da gestante, nos termos do item III da Súmula 244", concluiu.

Saiba mais

Algumas informações auxiliam a entender a questão analisada no processo. Uma delas é que o contrato de aprendizagem propicia ao empregado formação técnico-profissional metódica, compatível com o desenvolvimento físico, moral e psicológico daquele que está inserido em um programa de aprendizagem (conforme previsto pelo artigo 428 da CLT) e é equiparado a qualquer outro contrato a termo.



Por sua vez, a garantia de emprego à gestante prevista no ADCT autoriza a reintegração se ela ocorrer durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade.

(Lourdes Tavares/CF)

Processo: RR-523-16.2015.5.02.0063

O TST possui oito Turmas julgadoras, cada uma composta por três ministros, com a atribuição de analisar recursos de revista, agravos, agravos de instrumento, agravos regimentais e recursos ordinários em ação cautelar. Das decisões das Turmas, a parte ainda pode, em alguns casos, recorrer à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1).

Fonte: TST

Novo Informativo de Jurisprudência destaca direito de vizinhança e direito do consumidor







O Superior Tribunal de Justiça (STJ) divulgou a edição 591 do Informativo de Jurisprudência. A nova publicação inclui julgamento da Terceira Turma sobre construção em terreno alheio de aqueduto para passagem de águas. A relatora foi a ministra Nancy Andrighi.

Na ocasião, o colegiado estabeleceu que o proprietário de imóvel tem direito de construir aqueduto no terreno do seu vizinho, independentemente do consentimento deste, para receber águas provenientes de outro imóvel, desde que não existam outros meios de passagem de águas para a sua propriedade e haja o pagamento de prévia indenização ao vizinho prejudicado.

Nova relação

Também foi destaque julgamento da Segunda Turma, de relatoria do ministro Herman Benjamin, que determinou que instituição de ensino superior não pode recusar a matrícula de aluno aprovado em vestibular em razão de inadimplência em curso diverso anteriormente frequentado por ele na mesma instituição.

Para os ministros, que acompanharam o voto do relator, o caso abrange uma nova relação jurídica, disciplinada pelo Código de Defesa do Consumidor, e não apenas renovação de matrícula na mesma instituição, caso em que o artigo 5º da Lei 9.870/99 já disciplina o direito do estabelecimento de ensino de não renovar a matrícula do aluno.

Além disso, a turma entendeu que a dívida anterior continua exigível pela instituição de ensino, que pode cobrar pelos meios legais cabíveis.

Conheça o Informativo

O Informativo de Jurisprudência divulga periodicamente notas sobre teses de especial relevância firmadas nos julgamentos do STJ, selecionadas pela repercussão no meio jurídico e pela novidade no âmbito do tribunal.

Para visualizar as novas edições, acesse Jurisprudência > Informativo de Jurisprudência, a partir do menu no alto da página inicial. A pesquisa de informativos anteriores pode ser feita pelo número da edição ou por ramo do direito.
Destaques de hoje

IR: isenção em ganho de capital na venda de imóvel vale para quitar segundo bem
Prazo para ação de regresso de seguro marítimo conta da data de pagamento da indenização
Impenhorabilidade de bens necessários ao trabalho se aplica a empresários individuais, pequenas e microempresas
Para Quarta Turma, multa por descumprimento deve ser compatível com obrigação principal
Fonte: STJ

Turma declara nulidade de demissão em massa sem prévia negociação coletiva


No julgamento realizado pela 1ª Turma do TRT mineiro, os julgadores manifestaram entendimento no sentido de que é obrigatória a intervenção do sindicato da categoria profissional na negociação da dispensa coletiva. A Turma julgadora acompanhou o voto da juíza convocada Ângela Castilho Rogêdo Ribeiro, relatora do recurso de uma trabalhadora. Em sua ação, a autora relatou que jamais houve qualquer negociação coletiva para a dispensa em massa de todos os empregados que prestavam serviços para a ré, uma rede de supermercados que atua no município de Passos-MG.

A trabalhadora narrou que a ré encerrou suas atividades na cidade, resultando na dispensa em massa de centenas de empregados, o que foi amplamente divulgado nos noticiários locais. Afirmou que jamais houve qualquer negociação coletiva. Por essa razão, entre outros pedidos, postulou a declaração da nulidade da dispensa e a continuidade do contrato até que haja negociação coletiva, com o pagamento dos salários vencidos e os que estão por vencer, férias com 1/3, 13º salários e depósitos de FGTS, tudo como se o contrato ainda estivesse em vigor, além de indenização por danos morais.

Ao julgar o recurso contra a sentença que negou esses pedidos, a juíza convocada deu razão à trabalhadora. Seguindo pacífica jurisprudência do TST, a relatora acentuou que é obrigatória a intervenção do sindicato representante da categoria profissional na negociação da dispensa coletiva. "No caso dos autos, sendo incontroversa a dispensa em massa perpetrada pela ré, sem prévia negociação coletiva, haja vista a ausência de impugnação específica (art. 344/NCPC), a nulidade da dispensa é medida que se impõe", completou, citando várias decisões do TST.

Dando provimento parcial ao recurso, a julgadora declarou a nulidade da dispensa, determinando a reintegração da empregada aos quadros da ré, com o pagamento dos salários desde a dispensa, em 31.12.2015, até a efetiva reintegração, computando-se o período para fins de aquisição de férias, 13º salário e depósito de FGTS. Pela decisão, o contrato seguiu inalterado, como se não tivesse ocorrido o encerramento contratual.

A relatora modificou a sentença também com relação ao pedido de indenização por danos morais em virtude da dispensa coletiva. Para ela, nesse caso, é cabível a reparação: "Ressalte-se que essa Julgadora adota a teoria do dano moral presumido, que exige apenas a comprovação do fato que ensejou as consequências daí decorrentes. Assim, havendo a prova do ato ou omissão ilícita, resta configurado o dano que lhe advém naturalmente", avaliou. Assim, uma vez comprovada a conduta ilícita da ré, consistente na dispensa coletiva sem prévia negociação coletiva, está caracterizada a lesão aos direitos da personalidade da trabalhadora, gerando direito ao recebimento da indenização por danos morais.

Em suma, atenta à realidade e às circunstâncias do caso, a julgadora deu provimento parcial ao recurso da trabalhadora para condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de 5 mil reais, quantia que, no entender da relatora, mostra-se condizente com a reparação necessária à vítima, bem como para exercer o necessário efeito pedagógico em relação ao ofensor.
PJe: Processo nº 0010084-79.2016.5.03.0070 (RO). Acórdão em: 29/08/2016

Para acessar a decisão, digite o número do processo em:

https://pje.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/ConsultaProcessual.seam



Fonte: TRT3

Catadora de material reciclável não consegue vínculo de emprego com cooperativa








Alegando que trabalhou por quase três anos como empregada de uma cooperativa de reciclagem para catadores de material reciclável, na função de "triadeira", sem assinatura da CTPS e sem receber os direitos trabalhistas, uma reclamante procurou a Justiça do Trabalho, pedindo o reconhecimento do vínculo de emprego com a cooperativa, com o pagamento dos direitos trabalhistas decorrentes. Conforme afirmou, embora tenha prestado serviços na qualidade de associada da cooperativa, sempre trabalhou com a presença dos requisitos da relação de emprego.

O caso foi julgado na 37ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, pela juíza Ana Maria Espí Cavalcanti que, entretanto, não acolheu os pedidos. Para a julgadora, as provas revelaram que a trabalhadora desenvolvida suas atividades em prol da cooperativa sem a presença da subordinação jurídica e dos demais pressupostos do art. 3º da CLT. Assim, concluiu pela inexistência do vínculo de emprego e julgou improcedentes todos os pedidos.

A cooperativa afirmou que a reclamante era sua associada e que fazia o serviço de "selecionar", também conhecido como "triar", que, conforme explicou, é uma das ações realizadas pelos catadores de material reciclável que atuam no sistema de autogestão em cooperativas. Alegou ainda que entre a cooperativa e os associados, incluindo a reclamante, não existe a subordinação jurídica presente na relação entre empregado e empregador.

Em sua análise, a juíza ressaltou que a subordinação jurídica é aferida com base num critério objetivo, traduzindo-se no poder do empregador de conduzir o modo de execução dos serviços. E, a partir das provas produzidas, ela constatou que a reclamante, de fato, trabalhava sem a subordinação jurídica essencial à relação de emprego.

A julgadora verificou que a ré é uma cooperativa de reciclagem de catadores de material reciclável regularmente constituída, conforme demonstrou seu Estatuto Social e seu registro na JUCEMG. Ela notou também que a cooperativa funcionava em imóvel público (galpão), cujo uso lhe foi autorizado pelo Decreto Municipal 14.554, de 31 de agosto de 2011, que, em seu artigo 2º, dispõe: "O imóvel objeto da Permissão de Uso destina-se exclusivamente ao uso dos CATAUNIDOS, cuja finalidade é receber, transportar, classificar, padronizar, beneficiar, armazenar, industrializar e comercializar os materiais recicláveis, de qualquer origem, de seus cooperados, condizente com as operações da cooperativa". Tais finalidades, de acordo com a magistrada, coincidem com o objeto da cooperativa estabelecido o estatuto social, finalidades essas que eram, de fato, cumpridas pela cooperativa, conforme demonstrado pela prova pericial.

A prova revelou ainda que a reclamante era cadastrada como cooperada da ré desde o ano de 20/11/2012 e tinha por atribuição principal fazer a triagem dos materiais que chegavam no galpão, separando aqueles passíveis de reciclagem daqueles que não o eram. Ou seja, "a reclamante, de fato, realizava atividades típicas dos associados", concluiu a juíza.

As circunstâncias de a reclamante ter começado a trabalhar no galpão antes de ser cadastrada como cooperada e de fazer café para os colegas e manter limpo o ambiente de trabalho (como revelado pelas testemunhas) não foram suficientes para alterar o entendimento da julgadora sobre a inexistência do vínculo de emprego. Isso porque, conforme frisou a magistrada, as atividades da reclamante sempre foram as mesmas e a realização daquelas tarefas não desnatura o seu trabalho na condição de associada.

"O cooperativismo tem como princípios a união para a busca de objetivos comuns, a ideia de emancipação, iniciativa própria, eliminação do lucro, mudança social. Portanto, numa cooperativa, destacam-se os valores sociais que devem ser preservados, tais como a ajuda mútua, a solidariedade, a democracia, a participação e igualdade, que sem dúvida, representam importantes passos na conquista da cidadania e inclusão social, sobretudo de categorias de trabalhadores colocados à margem dos direitos trabalhistas, como na hipótese", registrou a julgadora, na sentença. Além do mais, na visão dela, a ausência de subordinação ficou evidente, já que as testemunhas informaram que a presidente da Cooperativa raramente comparecia no galpão e que os associados não precisavam justificar suas faltas.

Quanto ao fato de a reclamante ter recebido, durante vários meses, o valor fixo de R$ 700,00, a magistrada considerou explicado no depoimento de um cooperado fundador. Ele disse que era estabelecido um valor mínimo mensal de retirada, independentemente da produção, no montante de R$ 700,00: "se a produção fosse insuficiente pegavam emprestado, pegavam adiantamento de carga, por exemplo, para quitar o valor mínimo estabelecido." Para a juíza, essa situação talvez explique a dificuldade financeira vivida pela cooperativa quando a reclamante se desligou, "mas não configura pagamento de salário", arrematou. A reclamante apresentou recurso ordinário, mas a sentença foi mantida pela 4ª Turma do TRT/MG. ( 0001924-29.2014.5.03.0137 RO )


Fonte: TRT3

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Terceira Turma nega danos morais por defeito em cor de azulejos




Os ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram afastar a condenação de uma empresa por danos morais em razão de defeito de cor em azulejos. Por unanimidade, eles entenderam que a mera existência de vício em produto não é fator capaz de gerar, automaticamente, indenização dessa natureza.

Ao afastar a penalidade imposta à loja pela comercialização dos azulejos que apresentaram mudança na coloração após a instalação, a turma afirmou que a condenação por danos morais precisa ser embasada na existência de ofensa concreta à dignidade da pessoa.

A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, recordou que juristas defendem que a indenização por danos morais não pode ser banalizada. Ela destacou que essa espécie da reparação ainda é nova na jurisprudência nacional, e que é preciso haver critérios razoáveis para estabelecer uma condenação dessa natureza.

Vulgarização

“Nessa tendência de vulgarização e banalização da reparação por danos morais, cumpre aos julgadores resgatar a dignidade desse instituto, que, conforme nos ensina Cahali, foi penosamente consagrado no direito pátrio. Esse resgate passa, necessariamente, por uma melhor definição de seus contornos e parcimônia na sua aplicação, para invocá-lo apenas em casos que reclamem a atuação jurisdicional para o reparo de grave lesão à dignidade da pessoa humana”, disse a relatora.

Os ministros entenderam que situações como a do processo em julgamento são normais na vida cotidiana, e não devem servir de justificativa para a condenação “abstrata” por danos morais. A relatora destacou que tais situações são incapazes de afetar o âmago da dignidade humana, já que não é qualquer situação de incômodo que é capaz de configurar prejuízo moral.

“Em outra perspectiva, a dificuldade de se provar a dor oculta transforma as partes em atores de um espetáculo para demonstrar a dor que não se sente ou, diga-se ainda, para apresentar aquela dor que, além de não se sentir, é incapaz de configurar dano moral”, acrescentou a ministra.

Dano psíquico

Após iniciar a reforma de um imóvel, uma consumidora sentiu-se prejudicada pelo defeito apresentado nos azulejos instalados, que apresentaram mudança de coloração. Irresignada, ela ajuizou ação para cobrar danos materiais e morais da loja que revendeu o produto defeituoso.

Alegou que o defeito nos azulejos causou atraso na reforma, gerando ofensa à sua personalidade e “danos de natureza psíquica”. O pedido foi acolhido em primeira e segunda instância.

A decisão do STJ afasta a condenação por danos morais, mas mantém a condenação por danos materiais, já que ficou comprovada a falha no produto. Leia o acórdão.

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Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1426710
Fonte: STJ
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O fim negativo do contrato de consumo e os efeitos do inadimplemento




Todo contrato celebrado destina-se ao cumprimento. Na célebre afirmação doutrinária, as obrigações tendem ao adimplemento. É o fim a que devem servir. Ocorre que nem sempre tudo ocorre como esperado, e não raras vezes o contrato celebrado não chega ao adimplemento. Nessas situações, se pode falar do fim negativo do contrato (ao contrário do seu fim positivo, que seria o cumprimento). Esta expressão “fim negativo”, embora não seja de melhor técnica, é bastante didática, ao indicar as situações em que não ocorre a prestação ajustada pelos contratantes, seja em razão de inadimplemento imputável ao devedor, ou outras situações previstas na legislação.
Nos contratos de consumo, há inúmeras situações em que o contrato deixa de ser cumprido pelas partes, dando causa à sua extinção, mediante exercício do direito de resolução pelo credor quando ocorre, propriamente, o inadimplemento, ou, ainda, em razão de situações que a própria lei define um direito à resilição unilateral (caso do direito de arrependimento, previsto no artigo 49 do CDC), ou subordine seus efeitos a condição suspensiva (caso da venda a contento ou sujeita a prova, prevista nos artigos 509 e 510 do Código Civil). É muito comum, nesses casos, ocorrer a incidência comum de institutos próprios do Direito do Consumidor e outros do Direito Civil, exigindo redobrada atenção quanto aos limites de sua aplicação em acordo com a o caráter de ordem pública das normas protetivas do CDC[1], e o respeito à autonomia privada dos contratantes.
No caso de inadimplemento contratual, o CDC basicamente limita seus efeitos quando o inadimplente for o consumidor. Seu artigo 52, parágrafo 1°, expressamente limita as multas de mora, definindo que não poderão ser superiores a 2% do valor da prestação. Da mesma forma, o artigo 53 do CDC não permite as chamadas cláusulas de decaimento, como são conhecidas aquelas que estabelecem a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
Em ambos os casos, orientou-se o CDC, segundo uma tendência também percebida nas relações civis, de limitar e controlar seus efeitos, de modo que não deem causa a um enriquecimento excessivo do credor[2]. Naturalmente que o fez com maior intensidade no caso da multa moratória (ou cláusula penal moratória), cujo limite, na legislação civil, é definido até o valor da prestação principal (artigo 412 do Código Civil), impondo ademais, ao juiz, o dever de sua redução quando reputada excessiva (artigo 413 do Código Civil). Não é desconhecida, nesse particular, que a estrita limitação da cláusula penal, embora encontre plena justificativa nos contratos civis e de consumo, observa críticas em relação aos contratos empresariais. Sobretudo em vista das funções que lhe são normalmente reconhecidas, como de estímulo ao cumprimento da obrigação e de pré-estimação dos danos[3].
Ocorre que, ao lado desses institutos, a criatividade negocial — porque não dizer, a partir de uma inteligente estratégia jurídica de certos fornecedores — vem dando uso a outros figuras típicas do Direito Privado, para definirem efeitos distintos no caso do contrato de consumo não chegar a seu fim positivo, o adimplemento.
A primeira delas diz respeito às arras, instituto de tradição milenar e amplamente utilizada em certos contratos civis, especialmente nas promessas de compra e venda de imóveis. Como se sabe, a cláusula penal e as arras são institutos que tem semelhanças quanto a certas funções que desempenham, mas com substanciais diferenças em relação à sua estrutura. As arras consistem na entrega, a um dos contraentes, de determinada coisa (normalmente, certa quantia em dinheiro), no momento de celebração de contrato ou pré-contrato, visando demonstrar a existência do acordo (daí denominar-se também sinal), antecipar ou garantir seu cumprimento, ou ainda, assegurar possibilidade de arrependimento. Quando se tomam as arras em sua função de garantia ou reforço do acordo, conforme se apresentavam no Direito Romano[4], percebe-se pontos de contato com a cláusula penal. O princípio é simples: se quem deixou de realizar a prestação foi quem prestou as arras, irá perdê-las em favor do outro contratante. Porém, se quem deixou de cumprir foi quem recebeu as arras, deverá devolvê-las, acrescidas do seu equivalente (as arras confirmatórias, do artigo 418 do Código Civil). Como regra, as arras não excluem a possibilidade daquele que sofre com o inadimplemento exigir indenização suplementar, se provar que os danos sofridos são superiores ao valor prestado. A não ser que seja convencionada expressamente a possibilidade de arrependimento (artigo 420 do Código Civil), hipótese em que as arras se consideram com natureza indenizatória, afastando-se indenização suplementar (as arras penitenciais). É promessa de prestação condicionada ao inadimplemento[5]. Uma vez prevista na obrigação, terá seus efeitos subordinados à condição do inadimplemento do devedor.
A utilização das arras nos contratos de consumo se dá com frequência em relação aos contratos de promessa de compra e venda de bens imóveis, em que o consumidor promete adquirir da incorporadora seu imóvel residencial. Ocorre que, mesmo nesses casos, a jurisprudência, ao reconhecer a possibilidade de que seja convencionada, também controla seus efeitos, especialmente para evitar a perda, pelo consumidor, de parte substancial do que já tenha pago até a resolução do contrato. Há, nesse caso, um controle de proporcionalidade pelo Poder Judiciário, em especial para assegurar o cumprimento do artigo 53 do CDC, que proíbe as cláusulas que imponham a perda total das prestações pagas[6].
Mais recentemente, viu-se que as arras passaram a ser utilizadas também na aquisição de bens móveis de maior valor, em especial automóveis recém-lançados, cuja encomenda pelo consumidor condiciona-se ao pagamento de arras. A princípio, não há regra que impeça a prática, desde que se trate de compra e venda presencial, na concessionária, por exemplo, e sempre considerando a proporcionalidade assegurada pelo artigo 53 do CDC. Em sentido contrário, não pode ter lugar as arras ou retenção de pagamento a qualquer título, quando se trate de contratos sobre os quais incidam o artigo 49 do CDC. Para compras feitas fora do estabelecimento comercial, inclusive aquelas feitas pela internet, assegura-se o direito de arrependimento do consumidor no prazo de sete dias, para os quais não deve ser admitida limitação de qualquer espécie.
Outra situação que merece atenção é o chamado abono de pontualidade. Embora não diga respeito ao fim negativo propriamente dito, uma vez que, em regra, tem lugar em contratos de duração, enfrenta séria discussão sobre sua conformidade ou não com as normas do CDC.
Pode ocorrer de, por livre convenção das partes, e visando assegurar a diligência do devedor na realização da prestação devida no tempo ajustado, que se convencione espécie de desconto ou abono, como estímulo ao cumprimento. É convenção que resulta do exercício da autonomia privada. Nesse sentido, o valor da prestação principal será reduzido se o devedor atenda a determinada condição que, normalmente, é seu pagamento até determinada data estipulada na obrigação. Nesse sentido é de reconhecer, conforme o interesse das partes, que as fórmulas de incentivo à pontualidade tanto podem conformar o desconto para o adimplemento pontual, quanto definir valores distintos da contraprestação como forma de estimular certo tempo de cumprimento. Quem pretende receber pontualmente pode, da mesma forma, comprometer-se a contraprestar com acréscimo, no caso do atendimento dessa condição.
Controversa é a possibilidade de utilização do abono de pontualidade como espécie de cláusula penal oculta ou disfarçada. O argumento, nesse caso, é que o desconto oferecido para pagamento na data ajustada a rigor disfarçaria eventual cláusula penal superior ao limite legal no caso de pagamento após o vencimento, como efeito da purga da mora. Nos contratos de consumo, o limite legal de 2% do valor da prestação principal, no caso de cláusula penal moratória, é impositivo. Assim, por exemplo, suponha-se uma obrigação de cumprimento diferido, na qual a parcela periódica a ser adimplida é de R$ 100, com vencimento no dia 30 de cada mês. Todavia, para quem pague antes, ou até o vencimento, se estipula abono de 10%. Logo, quem faz o pagamento até o dia 30 deverá prestar, na verdade, R$ 90. Já o devedor que cumpra um dia depois não fará jus ao abono, pagando os R$ 100, mais os efeitos da mora. A diferença de valor da prestação para o devedor em mora, superará 10%, o que — segundo esse raciocínio — violaria a lei. O STJ ao decidir questão semelhante entendeu pela licitude do abono de pontualidade como espécie de sanção premial, incentivando o comportamento diligente do devedor[7].
De fato, não há razão em sustentar-se a proibição do abono de pontualidade. E aqui nem se precisa argumentar em excesso. Não há proibição, porque não há lei que o faça, prevalecendo, no plano obrigacional, o predomínio da autonomia privada. O que se pode cogitar é que, em certas situações, a convenção do abono de pontualidade com o propósito de burlar limite legal impositivo ao valor da cláusula penal, possa configurar fraude à lei, dando causa a sua nulidade (artigo 166, VI). Daí porque outra solução indicada pela jurisprudência é a restrição de cumulação, para o inadimplemente, dos efeitos próprios do inadimplemento e da cláusula penal moratória[8], ou ainda sua incidência sobre o valor com desconto[9].
Por fim, mencionem-se as cláusulas de limitação ou exclusão de responsabilidade. Como regra, são expressamente proibidas nos contratos de consumo, em acordo com o que estabelece o artigo 25 do CDC, ao estabelecer: “É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores”. No artigo 51, I, do CDC, todavia, admite-se a possibilidade da convenção de cláusula limitativa de indenização, quando se trate de consumidor pessoa jurídica, em situações justificáveis. A determinação do que sejam essas situações justificáveis, confia-se à concretização judicial. Alguns critérios úteis, todavia, serão a identificação, em concreto, do poder de barganha da pessoa jurídica consumidora, a possibilidade que teve de vistoriar, antes, os produtos adquiridos, não reclamando vícios aparentes; ou a vantagem que tenha obtido em razão do contrato, nas condições específicas em que foi celebrado[10].
De tudo se vê que a criatividade negocial, útil ao desenvolvimento do mercado, em relação aos contratos de consumo deve respeitar o necessário equilíbrio entre o exercício da autonomia privada dos contratantes e o balizamento definido pelas normas de ordem pública estabelecidas no CDC.

[1] Bruno Miragem. Curso de Direito do Consumidor, 6ª ed. São Paulo, 2016, p. 68.
[2] Bruno Miragem. Direito Civil: Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2017, no prelo; Karl Larenz, Derecho de obligaciones, t. I. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 371; Denis Mazeaud, La notion de clause pénale. Paris: LGDJ, 1992; Isabel Espín Alba, La cláusula penal. 1997, Madrid: Marcial Pons, p. 95 e ss.
[3] Bruno Miragem. Direito Civil: Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, cit.
[4] Max Kaser; Rolf Knütel, Römisches privatrecht. 20 aufl. München: C.H.Beck, 2014, p. 241-242; Biondo Biondi, Istituzioni di diritto romano. 4ª ed. Milano: Giuffrè, 1972, p. 448-449; Reinhard Zimmermann, The law of obligations. The roman foundation of the civilian tradition. New York: Oxford University Press, 1996, p. 230 e ss.
[5] Francisco Cavalcante Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, t. XXVI. São Paulo: RT, 2012, p. 145.
[6] Assim o REsp 355.818/MG, rel. min. Aldir Passarinho Júnior, 4ª Turma, j. 22/4/2003, DJ 25/8/2003; REsp 1056704/MA, rel. min. Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 28/4/2009, DJe 4/8/2009; AgRg no REsp 1.222.139/MA, rel. min. Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 1/3/2011, DJe 15/3/2011. Sobre a impossibilidade de retenção quando tenha sido o vendedor quem deu causa ao descumprimento: AgRg no REsp 997.956/SC, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 26/6/2012, DJe 2/8/2012.
[7] STJ, REsp 1.424.814/SP, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 4/10/2016, DJe 10/10/2016.
[8] TJ-SP, ApCiv 10256919020148260007, rel. Ruy Coppola, 32ª Câmara de Direito Privado, j. 17/9/2015, DJ 18/9/2015; TJ-SP, ApCiv 00051775920118260001, rel. Vianna Cotrim, 26ª Câmara de Direito Privado, j. 18/12/2013, DJ 18/12/2013; TJ-SC, ApCiv 20120291749, 5ª Câmara de Direito Civil, rel. Henry Petry Junior, j.12/9/2012. Na doutrina, alinha-se com esse entendimento, Carlos Roberto Gonçalves, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 2. Teoria geral das obrigações. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 425.
[9] REsp 832.293/PR, rel. min. Raul Araújo, 4ª Turma, j. 20/8/2015, DJe 28/10/2015.
[10] Bruno Miragem. Direito Civil: Direito das Obrigações, cit.

 é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2016, 8h05

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

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