terça-feira, 1 de novembro de 2016

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 2)




Por Venceslau Tavares Costa Filho


Na primeira parte da coluna, começamos a analisar as premissas sobre as quais se funda a decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (no julgamento do Recurso Extraordinário 876.694-MG, sob o rito da repercussão geral) acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil vigente, que estabelece regime sucessório diverso para a união estável em relação ao casamento.

Nesta segunda parte, analisaremos as diversas situações nas quais se verifica um tratamento diferenciado da união estável em relação ao casamento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A assimetria de tratamento entre união estável e casamento não se limita ao regime da sucessão a causa de morte, instituído em razão do art. 1.790 do Código Civil brasileiro.

O texto original da Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar no § 3º do art. 226: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Note-se que o poder constituinte originário fez uso da expressão “é reconhecida a união estável”, o que parece indicar a pretensão de recepcionar e emprestar efeitos jurídicos a uma situação fática preexistente ao texto constitucional. Até o advento da legislação infraconstitucional que reconheceu efeitos jurídicos específicos a união estável (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996), esse instituto permaneceu em verdadeiro limbo jurídico.

O tratamento jurídico dispensado aos bens adquiridos durante a constância da união estável, por exemplo, em período anterior ao da vigência da Lei 9.278/1996, praticamente não discrepava da solução trazida pelo enunciado n. 380 da Súmula de jurisprudência dominante do STF; qual seja o de levar em consideração a proporção das contribuições dos conviventes na constituição do patrimônio.

O STJ, nesta linha, manifestou-se por afastar o direito à meação dos bens durante a vigência da Lei n. 8.971/1994, devendo-se levar em consideração a “participação dos companheiros na formação do patrimônio, devendo a partilha ser estabelecida com observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade” (EDcl no REsp 674.483/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 02/02/2012, DJe 27/02/2012).[1]

O advento da Lei 9.278/1996 introduz sensível modificação neste quadrante, ao presumir o esforço comum na aquisição dos bens durante a vigência da união estável. A Lei 9.278/1996 não suprimiu, portanto, a comprovação do esforço comum como pressuposto para a partilha dos bens adquiridos durante a união estável; apenas introduzindo presunção neste sentido.

Somente com o Código Civil de 2002 é que houve uma parcial e controvertida equiparação entre a união estável e o casamento civil no tocante ao regime de bens, nos termos do art. 1.725: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Observe-se, pois, que a aplicação das regras relativas ao regime da comunhão parcial na união estável somente ocorrerá "no que couber", e não em sua integralidade. Na prática, isto gera uma disparidade em relação à proteção jurídica deferida ao patrimônio dos conviventes da união estável em comparação com a tutela jurídica própria do patrimônio no casamento.

Exemplo disSo é o atual entendimento do STJ no sentido de considerar válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro. Nesse sentido, a corte considera inaplicável o enunciado 332 de sua Súmula de Jurisprudência dominante para a fiança prestada pelo convivente em união estável sem a outorga do seu companheiro, de modo que é “possível que os bens indivisíveis sejam levados à hasta pública por inteiro”, reservando-se ao companheiro do executado a metade do preço obtido (AgInt no AREsp 841.104/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/06/2016, DJe 27/06/2016).

Aparentemente, a exigência da outorga conjugal teria como pressuposto o “ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança” (REsp 1299866/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014).

Lógica semelhante também parece justificar a dispensa da outorga conjugal para a alienação de imóveis pertencentes aos conviventes em união estável. A imposição da outorga conjugal para a alienação de imóveis deve levar em consideração a proteção dos interesses de terceiros de boa-fé e a segurança do tráfico jurídico, de modo a exigir a publicidade da relação conjugal:

“No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união. (...). Contrariamente, não havendo o referido registro da relação na matrícula dos imóveis comuns, ou não se demonstrando a má-fé do adquirente, deve-se presumir a sua boa-fé, não sendo possível a invalidação do negócio que, à aparência, foi higidamente celebrado” (REsp 1.424.275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014, DJe 16/12/2014).

Além das diferenças no tocante as questões patrimoniais, some-se a isto uma curiosa especificidade quanto ao tratamento jurídico dispensado a união estável na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: a obrigatoriedade de prévia separação de fato por dois anos para a regular constituição de união estável.

A exclusividade quanto às relações afetivas e sexuais demandada para a caracterização da união estável exige que os companheiros não sejam impedidos de casar, ou que não sejam comprometidos com outras pessoas. Nesse sentido, manifestou-se o STJ: “Companheira é a mulher que vive, em união estável, com homem desimpedido para o casamento ou, pelo menos, separado judicialmente, ou de fato, há mais de dois anos, apresentando-se à sociedade como se com ele casada fosse” (REsp 532.549/RS, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 02/06/2005, DJ 20/06/2005, p. 269).

Sabe-se que a Emenda Constitucional 66/2010 eliminou a exigência de qualquer tipo de lapso temporal quanto à separação de fato para a concessão do divórcio.

Contudo, verifica-se ainda no âmbito do STJ manifestações pela comprovação de tempo mínimo de separação de fato para a regular constituição de união estável, mesmo após a Emenda Constitucional 66/2010: “A união estável pode ser constituída pelo convívio com pessoa separada de fato há mais de dois anos, porque não existiria impedimento para o casamento” (REsp 973.553/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 18/08/2011, DJe 08/09/2011).

Como se pode verificar, a eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil por si só não proporcionaria a plena equiparação entre o casamento civil e a união estável, porquanto o tratamento diferenciado alcance outros aspectos. Na semana que vem, na terceira e última parte deste trabalho, findaremos a nossa análise sobre as assimetrias entre a união estável e o casamento.



[1] No mesmo sentido, cf: “A presunção legal de esforço comum foi introduzida pela Lei 9.278/1996, de forma que a partilha dos bens adquiridos anteriormente à entrada em vigor do aludido diploma legal somente ocorre se houver esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente, conforme a legislação vigente à época da aquisição”. (AgInt no AREsp 604.725/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016)


Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2016, 8h00

Assimetria da sucessão em relação à união estável e casamento (parte 1)



Por Venceslau Tavares Costa Filho


No dia 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar o Recurso Extraordinário 876.694-MG, selecionado em virtude do expediente da Repercussão Geral, e que versa sobre a constitucionalidade da diversidade de regimes sucessórios para o casamento e para a união estável. O ministro Dias Toffoli, prudentemente, pediu vistas dos autos para aprofundar a reflexão sobre a relevante temática, após os votos do ministro-relator, Luis Roberto Barroso, e outros seis ministros integrantes daquela Corte Superior.

Aparentemente, já houve uma tomada de posição do Supremo Tribunal Federal, reputando inconstitucional a regra do artigo 1.790 do Código Civil. Apesar da conclusão pela isonomia jurídica entre as famílias formadas pelo casamento civil e a união estável parecer acertada, parece-me que as premissas sobre as quais ela se apoia são equivocadas. Equivoca-se, a meu ver, quando consagra para o casamento e a união estável uma espécie de regime jurídico que chamarei de “separados, mas iguais”. Ou seja, a união estável e o casamento continuarão a ser reputados como institutos jurídicos diversos, apesar de se atribuir idênticos efeitos quanto a sucessão a causa de morte.

Esta diferenciação, contudo, além de destoar da tradição jurídica luso-brasileira em matéria de Direito de Família, termina por estabelecer uma série de distinções potencialmente discriminatórias entre o casamento e a união estável. O Direito Civil brasileiro é legatário do Direito Romano vulgarizado, do Direito Canônico e do Direito Ibérico. Pode-se dizer que, na antiguidade ocidental, a família era geralmente constituída em razão de certos ritos religiosos ou pela simples convivência.

No Direito Romano, por exemplo, a mulher poderia passar a integrar a família do seu marido caso se submetesse a manus (o poder marital) em virtude da conventio in manum, por uma das seguintes modalidades de constituição familiar: “a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades, com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e perante o sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio, casamento privativo dos plebeus que implicava à venda simbólica da mulher ao marido, assemelhando-se, pela forma, à mancipatio; e c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que, automaticamente, fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar conjugal (trinoctii usurpatio)”.[1]

Isto denota que os romanos admitiam a constituição do vínculo do casamento pela convivência; sem a exigência de maiores formalidades. Ademais, consolidou-se certa tendência entre os estudiosos de Direito Romano (a partir das lições de Bonfante), no sentido defender que o casamento no Direito Romano (desde o período primitivo até Justiniano) exigia apenas dois requisitos: quais sejam a convivência e a intenção marital (affectio maritalis), de modo que o casamento romano reduzir-se-ia a uma “simples relação jurídica de mero fato, que perdura enquanto persistem as condições de fato – convivência e affectio maritalis — de sua existência”.[2]

Assim, era suficiente que um homem e uma mulher, por determinado tempo, convivessem como se fossem casados, independentemente de uma cerimônia civil ou religiosa, para se reputassem submetidos ao regime do casamento. As Ordenações Filipinas (Livro IV, Título XLVI), antiga legislação portuguesa que permaneceu vigendo no Brasil mesmo após a ruptura política em relação a antiga Metrópole, também reconheciam o casamento de fato como espécie de matrimônio apto a gerar efeitos jurídicos: “Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda; ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste para presumir Matrimonio entre elles, posto se se não provem as palavras de presente”.[3]

Os estados norte-americanos do Alabama e do Colorado permanecem reconhecendo o casamento de fato entre as espécies de casamento oficialmente reconhecidas: o Common Law Marriage.[4] Entretanto, após a consumação do Golpe Republicano em 1889, verificou-se a secularização do casamento no Brasil com o advento da Lei do Casamento Civil de 1890.[5] De modo que o direito civil brasileiro deixou de reconhecer o casamento pela convivência duradoura dos cônjuges (casamento de fato) e o casamento religioso, “que, hoje, por si só, sem o posterior registro civil, é considerado concubinato”.[6]

A redução das formas de casamento reconhecidas pelo estado no Brasil ao casamento civil parece refletir aquelas reduções próprias do positivismo, tão ao gosto daqueles que usurparam o poder no Brasil em 1889. A Constituição Brasileira de 1891, nesta toada, reconheceu o casamento civil como única forma de casamento válido. Em obediência ao mandamento constitucional, o Código Civil de 1916 reconheceu que a família legítima poderia ser formada apenas pela via do casamento civil. As Constituições Brasileiras de 1934 (artigo 144), de 1937 (artigo 124), de 1946 (artigo 163) e de 1967 (artigo 167, posteriormente renumerado para artigo 175 em virtude da Emenda Constitucional 1/1969) terminaram por cristalizar a regra segundo a qual a família legítima constitui-se apenas pelo casamento civil.

Em detrimento de uma tradição jurídica de quase 400 anos, o legislador republicano modificou arbitrariamente o tratamento dispensado ao casamento; malferindo a chamada noção estática do direito.[7] É interessante notar, por outro lado, o retrato desenhado quanto a união estável em certa parcela da civilística. A crítica feita por certos civilistas costuma ser no sentido de considerar que o Código Civil de 1916 tutelava apenas as famílias formadas a partir do casamento civil, enquanto relegava as famílias constituídas pela união estável à clandestinidade.

Trata-se, geralmente, de um discurso construído a partir do desprestígio do direito legislado nos códigos “em favor de uma retórica da potencialização da eficácia do texto constitucional”.[8] Contudo, a clausura infligida a união estável decorreu de regras contidas em textos constitucionais brasileiros, como já demonstramos acima. Nem sempre a regulação constitucional de certo instituto jurídico representa um avanço civilizatório, portanto. Na próxima coluna, trataremos das assimetrias jurídicas entre o casamento civil e a união estável.

Post scriptum: O mês de outubro marca a passagem do aniversário de 120 anos da Fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã em Recife, uma das mais tradicionais casas de educação do Brasil. Educação não é sinônimo de ensino, qual seja a mera transmissão de conhecimento. A educação passa pelo uso de palavras “mágicas” tais como “bom dia”, “desculpe” e “obrigado”; e o compartilhamento de certos valores. Por haver recebido tais ensinamentos, não tive dúvidas quanto a escolha do educandário dos meus filhos.

Há cerca de uma década, a reconhecida excelência acadêmica das Irmãs da Congregação das Damas da Instrução Cristã levou a criação da Faculdade Damas, que conta com um Curso de Direito recomendado pelo Conselho Federal da OAB e um mestrado acadêmico com corpo docente de nível internacional, a exemplo de Cláudio Brandão, João Maurício Adeodato, Margarida Cantarelli, Graziela Bacchi Hora, Kai Ambos, António Pedro Barbas Homem etc. Assim, deixo registrado o meu preito de gratidão por todas as lições que aprendi (e as que ainda hei de aprender) naquela Casa; e parabenizo pela passagem do aniversário de 120 anos de fundação do Colégio Damas da Instrução Cristã e pelos 10 anos de fundação da Faculdade Damas!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).



[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 94-95.
[2] ALVES, José Carlos Moreira. A natureza jurídica do casamento romano no direito clássico. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 07.
[3] Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[4] Ao contrário do que imagina o senso comum, o chamado “Common Law Marriage” não é reconhecido na Inglaterra. Cf: http://www.economist.com/news/international/21688381-many-cohabiting-couples-misunderstand-their-legal-status-common-law-marriage-myth Acesso em: 30 de setembro de 2016.
[5] Para os que desejarem obter mais dados sobre o contexto da Lei do Casamento Civil de 1890, pedimos vênia para indicar a leitura de artigo de nossa lavra sobre o projetista da mencionada lei: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Antônio Coelho Rodrigues: um súdito fiel? Ruptura e continuidade na transição da monarquia para a república no Brasil. Revista de Informação Legislativa, a. 51, n. 203 (jul./set. 2014). Coelho Rodrigues também foi objeto de uma série de colunas nossas: http://www.conjur.com.br/2016-fev-22/direito-civil-atual-critica-coelho-rodrigues-importante-ainda-hoje-dia
[6] AZEVEDO, Álvaro Villaça. União estável. Antiga forma de casamento de fato. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 90 (1995), p. 95-96.
[7] RIPERT, Georges. Les forces créatrices du droit. Paris: L.G.D.J., 1955, p. 01.
[8] CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: código civil versus constituição? In: SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011, p. 64-65.

Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de Direito Civil da UPE e da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016, 10h39

"Ninguém será bem sucedido na magistratura se pensar em remuneração"





30 de outubro de 2016, 9h35

Por Felipe Luchete e Thiago Crepaldi
Os irmãos Gilberto, Guilherme e Diniz Fernando Ferreira da Cruz, juízes em São Paulo, falam sobre a carreira.

A família Ferreira da Cruz é uma daquelas na qual o Direito parece estar no DNA. Com bases na cidade de Santos, litoral sul do estado de São Paulo, a família foi detentora de um recorde no Judiciário paulista: nas últimas cinco décadas, foi a única a possuir três irmãos na magistratura.

A marca só veio a ser igualada no último concurso realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (número 186), quando o novo juiz Luciano Siqueira de Pretto tomou posse, em 3 de outubro de 2016, para exercer a mesma função de seus irmãos, Pedro e Renato.

Na base de dados da Secretaria da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, é possível encontrar dezenas de casos de dois irmãos juízes, até de desembargadores, porém, pelo menos desde 1965, a família Ferreira da Cruz foi a única com três irmãos em plena atividade na magistratura.

A revista eletrônica Consultor Jurídico encontrou-se com os juízes Diniz Fernando, Gilberto e Guilherme Ferreira da Cruz para uma conversa sobre a carreira, o perfil dos candidatos à magistratura e os desafios que enfrentam.

Eles alertam: a carreira precisa de mais dedicação e vocação do que é possível enxergar através dos editais de concursos. “Juiz não trabalha por hora. Não é chegar ao fórum às 13 horas e ir embora às 18h. Não existe isso. Não tem sábado, não tem domingo, não tem noite, não tem feriado. Se precisar ficar trabalhando, tem que trabalhar”, diz Diniz Fernando.

Leia um breve perfil de cada um e, a seguir, a entrevista:

Diniz Fernando Ferreira da Cruz:
Mais velho dos três irmãos, Diniz Fernando nasceu em 1960 em Santa Cruz do Rio Pardo (SP). Quando tinha cinco anos, sua família decidiu se mudar para Santos, litoral de São Paulo, onde a família mora até hoje. Estudou na Faculdade Católica de Direito de Santos, formando-se em 1983. Foi da turma do desembargador federal Fábio Prieto, que já presidiu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS). Ingressou na magistratura estadual em 1988. Ao longo da carreira, passou por várias cidades. Foi juiz em Ourinhos, Santa Cruz do Rio Pardo, Piraju, Cerqueira César, Avaré, entre outras. Em Barretos, na terceira entrância, ficou 12 anos. Permaneceu em São José do Rio Preto por nove anos, até que, em 2014, pediu remoção e chegou a juiz de Direito substituto em segundo grau no tribunal, atuando na seção criminal desde então.

Gilberto Ferreira da Cruz:
Nascido em 1964, Gilberto Ferreira da Cruz tem 52 anos de idade e também teve toda a formação educacional e cultural em Santos, onde cursou a faculdade de Direito na Universidade Católica de Santos, que depois tornou-se a UniSantos. Colou grau em janeiro de 1987 e, logo em seguida, em setembro, foi aprovado no concurso para promotor de Justiça na cidade de São Paulo, mesmo concurso de Fernando Capez, Gianpaolo Smanio e Motauri Ciocchetti de Souza. Ficou no Ministério Público por dois anos, depois prestou novo concurso e, em 1989, tomou posse como juiz substituto em Santos, depois, titular de Guararapes e Andradina. Retornou a Santos como juiz titular da vara do júri e execuções criminais da comarca por muitos anos, e veio para a capital para a 1ª Vara Cível Central. Pediu remoção, por afinidade com a matéria criminal, para a 2ª Vara do Júri da capital, o segundo tribunal do júri da capital, em Santana, lá ficando por seis anos, até que, no ano passado pediu remoção para substituto de segundo grau, hoje atuando também na Seção Criminal.

Guilherme Ferreira da Cruz:
Caçula dos irmãos, é do ano de 1971. Fez a faculdade também na Católica de Direito de Santos, colando grau em janeiro de 1994. Durante a faculdade, por concurso, foi escrevente do tribunal de Justiça. Com 20 anos, foi escrevente chefe do tribunal de Justiça, o mais novo do estado. Em 1995, ingressou na magistratura. Foi juiz substituto de São José do Rio Preto, titular de Itaporanga, segunda entrância em Presidente Venceslau e terceira entrância em Santos, onde ficou durante oito anos, para, depois, assumir, em 2006, a 2ª Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente. De lá, seguiu para São Paulo, onde assumiu a 37ª Vara Cível Central. Em 2011, foi convocado para atuar em segunda instância, e trabalhou em algumas câmaras da seção de Direito Privado I, e na seção de Direito Privado II, por quatro anos. Nesse período, se removeu para a 45ª Vara Cível Central, a mais nova do Fórum João Mendes, onde hoje está operando o chamado Cartório do Futuro (UPJI).



ConJur – O que levou os senhores para o Direito e, depois, para a magistratura?
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Meu pai era entusiasta pela carreira da magistratura, sempre nos incentivou desde criança. Nas épocas oportunas, cada um fez vestibular e faculdade, direcionou os estudos para o concurso e abriu mão de muita coisa, até que realmente cada um de nós foi aprovado.

Guilherme Ferreira da Cruz – O lado da família do meu pai, Diniz Ferreira da Cruz, é todo voltado para o Direito. Ele e dois irmãos são formados no Largo São Francisco (Universidade de São Paulo). Isso fez com que, desde criança, nós convivêssemos com muitos juízes e desembargadores que frequentavam nossa casa, em razão de amizade longínqua com nosso pai. Um primo dele inclusive foi desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo, Dirceu Ferreira da Cruz.

Gilberto Ferreira da Cruz – Vejam, nosso pai não exerceu uma ingerência direta, não é isso.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Era um incentivo.

Gilberto Ferreira da Cruz – Nosso pai era um homem que não pertencia ao tempo dele. Sempre tinha uma visão adiante. Foi poeta, literato, presidente da Academia Santista de Letras e publicou mais de uma dúzia de livros – tanto na área do Direito como poesias e crônicas. Ele contribuiu com seu exemplo de intelectualidade, pelo berço da ética e, junto com esses valores, pelas amizades sempre profícuas. Portanto, nós crescemos num ambiente em que não se falava de dinheiro nem de buscar atalhos para os caminhos da vida.

No momento em que as oportunidades de vestibular foram se aproximando, escolhemos o Direito pela vocação natural, talvez pela admiração espontânea, nunca imposta, e por conta da nossa facilidade com os livros.Quando nosso pai faleceu, a biblioteca dele foi suficiente para fazer outras quatro: uma para cada irmão e ainda permanece uma na casa da minha mãe.

ConJur – E como escolher qual carreira seguir?
Gilberto Ferreira da Cruz – Eu antes prestei concurso para o Ministério Público. Entre as carreiras jurídicas, existem aquelas que encantam os jovens num primeiro momento pelo glamour dos cargos. Depois é a vocação que define. As duas que chamam mais atenção durante a faculdade é a de juiz e a de promotor, mas depois aparece a turma interessada em ser delegado, defensor público etc.

ConJur – Hoje o concurso para a Defensoria Pública é muito concorrido.
Gilberto Ferreira da Cruz – Muito concorrido, uma carreira espetacular, que lida com as liberdades públicas, não é? Talvez, justamente o que estamos vivendo hoje dentro de um Estado Democrático de Direito, de transparência, de apuração de responsabilidade, de garantia dos direitos efetivos na Constituição desperte essa vocação para a Defensoria Pública. Isso é tudo um momento histórico. Na nossa época, as carreiras mais faladas eram as de juiz, de promotor, de procurador do estado, de delegado e a de advogado liberal. Não existia ainda a Defensoria Pública.

ConJur – Muitos bacharéis se tornaram juízes logo que concluíram a faculdade, com vinte e poucos anos. Os senhores avaliam que existe alguma idade certa, uma experiência de vida necessária para poder seguir essa carreira?
Guilherme Ferreira da Cruz – No passado, havia um limite de 25 anos que caiu ao longo do tempo, foi reduzido para 23. Depois essa idade mínima desapareceu durante um curto período, a tornar possível o ingresso na carreira com 22 anos. Com a reforma do Judiciário advinda da Emenda Constitucional 45/2004, criou-se um pré-requisito: além de se formar, mais três anos de experiência profissional (atividade jurídica). Talvez essa mudança tenha ocorrido porque o momento histórico reconheceu que não era mais adequado o ingresso na magistratura imediatamente após a conclusão do curso de Direito.

Gilberto Ferreira da Cruz –Não podemos desprestigiar os jovens, porque cabelos brancos não trazem cultura a ninguém. A cultura e o caráter são forjados pela família e desde a pré-escola. Existem muitos jovens com 23, 24 anos, que têm grande valor, grande maturidade, e o concurso existe justamente para peneirar, garimpar esses expoentes dentre uma multidão que se inscreve. Graças a Deus o Brasil é um país jovem, porque os jovens mudam, e a vida é movimento. Eu ainda sou favorável ao velho sistema.

Guilherme Ferreira da Cruz – Eu também.

Gilberto Ferreira da Cruz – Idade mínima de 23 anos, com dois anos de experiência jurídica, mesmo antes de formado. Por exemplo, quem era escrevente de cartório durante a faculdade, depois de concluído o curso e de atingir 23 anos, já tinha os requisitos preenchidos: formado, idade mínima e a experiência. Não se esquecendo que durante o concurso o tribunal faz uma aprofundada avaliação psicológica e psiquiátrica do candidato.

ConJur – E muitos ficam nessa avaliação...
Gilberto Ferreira da Cruz – Muitos ficam. Então, a questão de idade é relativa. A gente tem que pensar em capacidade e em equilíbrio.

Guilherme Ferreira da Cruz – A experiência de vida nem sempre está ligada à idade. Essa visão é um erro, do meu ponto de vista. Concordo com o meu irmão Gilberto que o melhor seria o sistema anterior, porque o atual poda muitos jovens que já estão maturados para a carreira, mas – agora – não podem fazer a prova. Eu vivenciei e sofri muito com isso. Por ter entrado muito novo, com 24 anos, constantemente era “colocado em situações” para ver como me saía.

Gilberto Ferreira da Cruz – Tornei-me promotor de Justiça com o doutor Gianpaolo Smanio, hoje procurador geral de Justiça de São Paulo, quando nós tínhamos entre 22 e 23 anos de idade. O resultado está aí: ele foi eleito para comandar o Ministério Público por ter demonstrado durante todos esses anos equilíbrio e ser sempre um exemplo, um professor, um grande amigo, um grande homem, pai de família.

Guilherme Ferreira da Cruz – Mas, se hoje é de outra forma, então que os jovens aproveitem esse necessário período de três anos para melhor se prepararem, porque a prova é árdua, a concorrência é forte e a cada ano o número de inscritos aumenta. Então, quem quer ir para esse ramo tem de estar preparado para os ônus, não é só almejar os bônus – se é que existem.

E os ônus aqui são significativos. Nós estamos falando de uma opção e de perseverança para ficar sentado numa cadeira estudando de 10 a 16 horas por dia. Quem se predispõe a fazer qualquer tipo de concurso tem que primeiro colocar o pé no chão e saber: 1) nada vai cair no seu colo; 2) o tempo vai passar de qualquer jeito, você é que escolhe onde e como vai estar depois que o tempo passar; e 3) se você tiver força de vontade, disciplina e acreditar em si, ainda que com pouco tempo disponível para o estudo, você vai alcançar o seu objetivo.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – É porque o concurso, além de ser muito difícil, depende exclusivamente do candidato. É um concurso muito sério, voltado ao intelectual de cada um e o candidato que se dedicar, que estudar, independentemente de ser ou não de família de juristas, de conviver no meio jurídico, se for bem na prova, vai ser aprovado.

Guilherme Ferreira da Cruz – Depende exclusivamente do indivíduo.Em alguns concursos o número de vagas disponibilizado não é preenchido. Não interessa se há 15 mil, 20 mil candidatos para 50 vagas, por exemplo. Ao final, se apenas 45 são aprovados significa que cinco vagas não serão ocupadas por falta de competência dos candidatos.

ConJur – Às vezes, as pessoas focam em um concurso pela remuneração. No caso da magistratura, os senhores consideram que é preciso ter vocação?
Gilberto Ferreira da Cruz – Pela experiência, a magistratura e o Ministério Público estão entre as carreiras jurídicas que dependem de pura vocação para que possam ser exercidas com independência, com coragem, com espírito de mudar um pouco o mundo, porque são as carreiras que estão diretamente interligadas ao exercício do poder de decisão. O Ministério Público tem o poder da ação penal, da investigação no inquérito civil, na ação civil pública. É o advogado da sociedade naquelas questões que estão diretamente interligadas com o exercício do poder da soberania do Estado; ele tem poder de ação inclusive contra os próprios agentes do Estado. É uma carreira que exige muito foco, muito equilíbrio para o seu exercício. A magistratura é poder do Estado e julga, exerce jurisdição. Essas duas carreiras devem ser motivadas por pura vocação, não é emprego.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Nós não trabalhamos por hora.

Gilberto Ferreira da Cruz – Não somos uma categoria, mas um braço do Poder estatal. Ninguém será bem-sucedido na magistratura e no Ministério Público se pensa apenas em emprego e em remuneração. Tenho muitos colegas que optaram na época certa pela iniciativa privada e hoje são executivos da área jurídica, de multinacionais, que ganham três vezes o que recebe um magistrado. Então, no aspecto financeiro, a magistratura sempre está bem abaixo do patamar de um diretor jurídico de qualquer multinacional. Na magistratura nós temos que pensar no compromisso social com aqueles que dependem de nós, que esperam a nossa atuação eficaz, que é a sociedade. Derrubar processos, solucionar lides, apresentar as estatísticas, a qualidade do serviço, boas sentenças, boas decisões, é só responsabilidade.

Guilherme Ferreira da Cruz – Esse é um ponto importantíssimo, porque quem está preocupado só em ter um emprego, supondo que existe isso ou aquilo agregado à condição de juiz, de promotor, como vencimentos/salário, não deve fazer o concurso. Meu conselho é que não faça. Se fizer e for aprovado, vai ser um infeliz frustrado. Primeiro, porque não vai conseguir o que ele estava querendo, as altas remunerações. Se conseguir, terá optado pelo caminho mais fácil, ilícito. E, segundo, tem muito serviço!

ConJur – Tem gente que pode ver uma boa oportunidade de não ter chefe nem horário...
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Juiz não trabalha por hora, repito. Não é chegar ao fórum às 13 horas e ir embora às 18h. Não existe isso. Não tem sábado, não tem domingo, não tem noite, não tem feriado. Se precisar ficar trabalhando, tem que trabalhar. A Corregedoria Geral de Justiça exige muito do juiz, tanto na esfera administrativa como na jurisdicional. Independentemente da existência desse órgão, o volume de serviço existente em todas as varas, pelo menos aqui no estado de São Paulo, é humanamente invencível. Então, não se pode em nenhum momento só pensar em chegar ao fórum às 13h e ir embora às 18h para colocar um tênis no pé, sair fazendo academia e pronto, acabou o dia. Não, não deve existir isso. É possível até fazer isso, mas não como regra. No entanto, se essa for a regra, acredito que a pessoa vai sofrer uma consequência séria em pouco tempo, porque não vai dar conta do serviço e vai ser cobrado.

Guilherme Ferreira da Cruz – E sem pensar no mal que estará causando à população, porque por trás dos números astronômicos do Tribunal de Justiça de São Paulo existem milhares de pessoas envolvidas nos processos que aguardam solução. O juiz sem vocação trata o ser humano como estatística, como papel – ou como bytes, agora com o processo eletrônico. Por isso que a vocação é fundamental, porque o juiz tem que estar preocupado em dar a cada um o que é seu. Aqueles que vão até o Judiciário esperam que o juiz seja imparcial, justo e que goste do que ele está fazendo, porque só assim nós vamos investigar a fundo o problema para distribuir a justiça em cada um dos casos.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Nesse excesso de trabalho, nessa preocupação com cada caso, com cada vida que está ali no processo, o juiz perde a sua própria vida familiar, vida social, em dedicação ao trabalho.

ConJur – E é difícil conseguir criar uma família com essa história itinerante?
Gilberto Ferreira da Cruz – Isso faz parte do pacote. Quem quer ser militar, sabe que tem que ir para a guerra, sabe que pode morar em fronteira. Quer ser juiz, qual é o pacote? Início da carreira no interior, longe dos amigos, longe da sua família, longe dos seus laços... Lá você é sozinho, é autoridade, não sabe quem é amigo. Não sabe, quando é convidado para um jantar, se o menu é você ou se você é a sobremesa. O juiz está sempre só nas suas decisões e tem que tomar muita cautela com quem se relaciona. Por isso quem não tem vocação não aguenta.

ConJur – E o trabalho do juiz também é de gestor, não é?
Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Dependendo do lugar, ele é diretor do fórum, lida com administração de verba, contratos, viaturas, compra de material, correições extrajudiciais, visita o cartório, as delegacias, presídio, pelo menos uma vez por ano.

Guilherme Ferreira da Cruz – Manutenção do prédio...

Gilberto Ferreira da Cruz – O juiz não pode se colocar isolado em sua sala, atrás da sua mesa, somente sobre os seus processos. Precisa se preocupar com a sua pauta, o seu cartório, o comportamento dos seus funcionários...

ConJur – Como o juiz aprende isso? Na prática?
Gilberto Ferreira da Cruz – Existe um regramento interno do tribunal chamado “Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça”, com todas as obrigações administrativas dos juízes. Quando você passa no concurso, você ganha um de presente e boa sorte! Afinal de contas, estamos falando de magistrados que passaram no concurso, que têm todo o potencial para resolver qualquer questão, inclusive as suas obrigações funcionais, de saber todas elas e cumpri-las com muita eficiência.

Diniz Fernando Ferreira da Cruz – Aí só vai aprender na prática.

Guilherme Ferreira da Cruz – Hoje em dia, nós temos a Escola Paulista da Magistratura. Depois que o candidato é aprovado no concurso, fica um período em São Paulo participando de cursos de iniciação funcional e também trabalhando nas varas ao lado de colegas mais experientes.

ConJur – Sobre a rotina de trabalho, os senhores consideram que há hoje muita diferença entre o primeiro e o segundo graus?
Guilherme Ferreira da Cruz – Apesar dos esforços empreendidos, o Judiciário precisa ser melhor equipado, com recursos materiais e humanos. Não adianta só cobrar, não teremos uma Justiça de primeiro mundo com um instrumental desatualizado, isto não existe. É preciso que se incremente o primeiro grau, sim, e o segundo, também. O juiz tem que ter condições de trabalho, porque se ele não tiver, não terá como vencer a demanda. Nosso Tribunal de Justiça de São Paulo é talvez o maior do mundo, então tem que ser tratado como tal.

ConJur – O processo eletrônico tem ajudado a tornar esse trabalho mais célere?
Guilherme Ferreira da Cruz – O processo eletrônico anda mais rápido, mas não é a solução para todos os problemas. É preciso que realmente todas as ferramentas estejam disponíveis e todo mundo saiba operar e retirar do programa aquilo que ele tem de melhor; e, o principal, é preciso que o programa funcione.

Gilberto Ferreira da Cruz – Seja o processo eletrônico, seja o físico, ou o que for, a questão é a seguinte: nós não estamos aqui falando em fábrica de produção. O magistrado deve ser visto como o cérebro que vai orquestrar toda essa máquina em busca de decisões justas. Então, não adianta nada apenas ter processo digital.

ConJur – Diante de toda essa rotina de atividades, dá para ser justo e célere ao mesmo tempo?
Guilherme Ferreira da Cruz – O segredo é a vocação, porque todas essas dificuldades você enfrenta com gosto.

ConJur – O juiz em início de carreira sabe onde vai terminar?

Gilberto Ferreira da Cruz – No início da carreira, o juiz assume uma comarca pequena e faz o que nós chamamos “clínica geral”.

Guilherme Ferreira da Cruz – Na época do Diniz, fazia até trabalhista.

Gilberto Ferreira da Cruz – É com o avanço da carreira que o juiz escolhe o caminho. O magistrado interessado em chegar rapidamente ao último degrau da carreira não escolhe as vagas que surgem. Outros querem seguir determinada matéria ou ir para uma cidade/região específica, então ficam esperando vaga.

Guilherme Ferreira da Cruz – É preciso lembrar que o juiz tem uma garantia constitucional que se chama inamovibilidade. Isso significa que o juiz só sai do lugar onde está se quiser. Se ele desejar sair, seja numa movimentação horizontal da carreira – que é a remoção – ou vertical – promoção – ele vai examinar as opções.

ConJur – Todo juiz atua na Execução Criminal?
Guilherme Ferreira da Cruz – Não necessariamente, mas é muito comum no início da carreira, inclusive com visitas às unidades prisionais.

Gilberto Ferreira da Cruz – Lá naquela cadeia pública da cidade dele, ele vai ter que decidir sobre a vida dos presos.

Gilberto Ferreira da Cruz – O Guilherme foi titular da Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente.

Guilherme Ferreira da Cruz – Em 2006, com aquela onda de atentados de dentro para fora dos presídios, o Tribunal de Justiça instalou algumas varas de execuções criminais no estado com o objetivo de dar mais agilidade a esses processos. Assumi em julho de 2006 a região de Presidente Prudente.

ConJur – Não é uma tarefa que gera medo?
Guilherme Ferreira da Cruz – Medo depende de cada um. Agora, se o concursando tem medo de ser juiz, que não preste o concurso. Eu insisto, juiz não é uma figura apenas para receber o seu holerite.

ConJur – E como os senhores vêm o chamado ativismo judicial?
Gilberto Ferreira da Cruz – Bem, eu sempre fui isento, imparcial, cumpri as normas da minha função. Não posso responder por terceiros.

Guilherme Ferreira da Cruz – O juiz não pode ser um omisso. Os problemas que as partes trazem ao Judiciário exigem uma solução e não é porque o juiz decidiu A ou B que ele pode ser qualificado ou desqualificado como ativista. Ele simplesmente está decidindo aquele problema que foi levado à sua jurisdição, mais nada.

Gilberto Ferreira da Cruz – Acredito que todos os juízes, até aqueles que são chamados de ativistas na esfera criminal, proferem as suas decisões e sentenças com base na interpretação do sistema legal em vigor. Hoje se ataca muito o juiz Sergio Moro. Com bravura e independência, ele está aplicando a Legislação Penal dentro da sua ótica. Se houver algum erro de Direito nesse exercício jurisdicional, as instâncias superiores estão aí para corrigir, por via de recurso. Quem é ativista? Quem desagrada grupos? E a que grupos eu devo agradar então?



Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.

Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 30 de outubro de 2016, 9h35

Verba de plano de demissão voluntária não está sujeita à incidência de IR





As verbas vindas de plano de demissão voluntária não estão sujeitas à incidência de Imposto de Renda. Trata-se de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reafirmada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que negou recurso da Fazenda Nacional e determinou a devolução do Imposto de Renda Retido na Fonte em decorrência da rescisão de contrato de trabalho de um metalúrgico, resultante de plano de demissão voluntária (PDV).

A União apelou ao TRF-3 argumentando não se tratar de rescisão voluntária, pois não houve adesão ao PDV, mas sim demissão do autor sem justa causa por decisão arbitrária da empregadora.

Sustentava ainda que o metalúrgico havia preferido não ingressar com ação própria para ser reintegrado à empregadora, optando pela conversão da reintegração em pecúnia. Nesse caso, trataria de remuneração com efetivo acréscimo patrimonial, passível de tributação pelo Imposto de Renda, na forma do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN).

“A jurisprudência reiterada da Corte Superior, no sentido de que o ressarcimento pela despedida sem justa causa de empregado, legalmente contemplado com estabilidade provisória, configura, independentemente de PDV, indenização e não remuneração, não havendo que se cogitar, pois, de violação ao artigo 43 do CTN”, disse o desembargador federal Nelton dos Santos, relator do caso.

O autor era funcionário com estabilidade motivada por acidente de trabalho junto a uma metalúrgica, tendo aderido ao acordo coletivo de trabalho feito entre a empresa e o sindicato da categoria para seu desligamento.

“Considerando a natureza da verba rescisória, à luz da prova produzida nos autos e da jurisprudência consolidada, deve ser excluído da incidência do imposto de renda, uma vez que decorre da estabilidade acidentária e não de liberalidade do empregador, configurando assim nítido caráter indenizatório”, conclui.

Por fim, a 3ª Turma manteve a condenação da União ao pagamento das diferenças apuradas, sendo que a restituição dos valores retidos com correção deverá ser corrigida monetariamente. Além disso, deve arcar com o pagamento de honorários advocatícios no percentual de 10% sobre o valor dado à causa. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-3.

Apelação 0000830-71.2015.4.03.6126/SP


Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2016, 15h17

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Trancada ação penal contra advogados que deram parecer favorável a contratação sem licitação




Em decisão unânime, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trancou ação penal movida contra dois advogados que produziram parecer técnico pela possibilidade da contratação direta – isto é, sem licitação – de uma empresa de consultoria pelo município de Rezende (RJ).

Os advogados são procuradores do município e redigiram o parecer a pedido da administração. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) denunciou ambos, juntamente com outros quatro réus, pela conduta dolosa de não exigir licitação fora das hipóteses admitidas legalmente – crime previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93.

Para o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do recurso da defesa, o MPRJ não caracterizou a conduta dolosa dos advogados, de modo que a denúncia apresentada contra eles não deve prosseguir.

Não vincula

“O Ministério Público estadual imputou-lhes a conduta delitiva alicerçado exclusivamente no desempenho da função pública por eles exercida – elaboração de parecer acerca da possibilidade de não realização de processo licitatório –, sem demonstrar a vontade de provocar lesão ao erário, tampouco a ocorrência de prejuízo”, argumentou o ministro.

Para Schietti, a função técnica exercida pelos advogados, servidores do município, por si só, não é suficiente para revelar dolo na conduta, já que o parecer é uma opinião profissional que pode ou não ser acatada pela administração, sem ter caráter vinculativo.

Os ministros acolheram os argumentos da defesa dos advogados, segundo os quais eles não poderiam ser responsabilizados apenas pelo exercício regular da advocacia, conforme previsto no artigo 133 da Constituição Federal. A defesa lembrou que o texto constitucional afirma que o advogado é inviolável por seus atos e manifestações durante o exercício da profissão.

Dolo específico

O ministro Rogerio Schietti comentou que a liberdade constitucional conferida ao advogado não é absoluta, pois encontra limites na lei.

O que deve ser analisado, na visão do magistrado, é se a conduta delituosa atribuída aos réus foi devidamente especificada. No caso em discussão, a imputação foi feita de forma genérica, sem demonstrar qualquer tipo de dolo na conduta profissional.

O relator destacou que o STJ já decidiu que o crime previsto no artigo 89 da Lei de Licitações exige, para ser tipificado, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e a caracterização do prejuízo sofrido pela administração. Leia o voto do relator.

Destaques de hoje
Condomínio não pode utilizar medidas não pecuniárias para punir devedor
Ministro considera definitiva condenação de prefeito eleito de Gravataí (RS)
Trancada ação contra advogados que deram parecer favorável a contratação sem licitação
Espaço Cultural lança livro sobre improbidade administrativa


Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): RHC 46102
 
Fonte: STJ

NJ Especial: O Trabalhador informal e as regras que garantem saúde e segurança no trabalho





Decisão da JT mineira garante indenizações por danos morais e materiais a viúva de trabalhador autônomo, morto em decorrência de acidente sofrido quando fazia instalação de equipamento na empresa contratante, que foi responsabilizada por não observar normas que garantem saúde e segurança no trabalho.
O Brasil tem hoje 11 milhões de desempregados e as demissões trazem cada vez mais trabalhadores para a informalidade, deixando-os mais vulneráveis a uma recessão que pode ser a pior em 25 anos. Desde 2015, 1,5 milhão de pessoas que perderam seus empregos com carteira assinada começaram a trabalhar como autônomos, alguns vivendo de bicos, enquanto procuram uma nova oportunidade. O trabalho por conta própria, na maioria dos casos com rendimento inferior a R$ 1.300,00 por mês, já representa 19,5% de todas as ocupações nas principais cidades do Brasil, maior nível em oito anos, segundo dados colhidos em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Diante da crise atual, é fato que muitos profissionais foram empurrados para a informalidade, a qual se espera que seja temporária. Porém, por outro lado, o trabalho informal também pode ser a porta de entrada para muitos que querem empreender e inovar.
Ser um trabalhador autônomo, como tudo, traz vantagens e desvantagens. Quem não gosta de ser o próprio patrão, de não se submeter às ordens de outra pessoa, podendo gerenciar o seu trabalho e a forma de executá-lo e, ainda, de poder ajustar o horário de trabalho à forma que melhor lhe convier. Assim é a vida do trabalhador autônomo. Mas, claro, existe o outro lado. O autônomo tem de arcar com as despesas do seu trabalho e com os riscos de seu empreendimento. E, por não trabalhar com vínculo de emprego, não tem os direitos trabalhistas assegurados aos empregados pela CLT, como: férias, 13º salário, FGTS, repousos semanais remunerados, adicional noturno, horas extras, intervalo intrajornada no mínimo legal, e por aí vai...
Mas, e quanto às normas de segurança no trabalho? Elas se aplicam também ao trabalhador autônomo. Imagine, por exemplo, que um prestador de serviços, verdadeiramente autônomo, seja contratado por uma empresa para executar certo serviço e, quando em atividade, sofre um típico acidente de trabalho. Suponhamos ainda que essa empresa não se preocupou em adotar as medidas necessárias para que o profissional contratado realizasse seu trabalho com segurança e, em razão disso, o acidente deixou o prestador de serviços gravemente ferido. Nessa situação, surge a seguinte pergunta: A empresa contratante poderá ser responsabilizada pelos prejuízos morais e materiais que o acidente trouxe ao trabalhador, já ele trabalhava com autonomia e sem vínculo de emprego?
Manifestando sua preocupação com a questão do trabalho informal, o juiz Valmir Inácio Vieira, titular da Vara do Trabalho de Itaúna, adota a tese segundo a qual a saúde e segurança no trabalho são direitos básicos do trabalhador que devem ser protegidos e respeitados, independentemente da existência do vínculo empregatício entre ele e a empresa para a qual presta seus serviços. Assim, a empresa tem responsabilidade civil diante do acidente de trabalho sofrido por um trabalhador autônomo. Essa também é a tese que predomina no TRT-MG.
Essa NJ especial faz uma abordagem sobre o assunto, muito bem retratado na sentença do juiz Valmir Inácio Vieira, que trata do caso de um trabalhador autônomo falecido em decorrência de acidente de trabalho que sofreu quando prestava serviços para uma determinada empresa. Em sua decisão, o magistrado traz importantes esclarecimentos sobre a aplicação das normas de segurança ao trabalhador autônomo, abordando com minúcia e clareza as regras de segurança que devem ser observadas nessa modalidade especial de prestação de serviços, especificamente, nos serviços de reparos em máquinas e equipamentos, dado o perigo que envolve esse tipo de atividade. O juiz termina por reconhecer a responsabilidade e a culpa da empresa no acidente que vitimou o trabalhador autônomo. O julgador discorre ainda sobre a obrigatoriedade das empresas em observar as normas de segurança do trabalho, mesmo que o serviço que ela contratou seja realizado por profissional autônomo, sem vínculo de emprego.
Mas o leitor deve atentar para o fato de que a matéria é polêmica e as posições não são unânimes. Embora em menor número, há decisões no sentido de que, diante da autonomia desses profissionais na forma de execução dos serviços, eles mesmos são responsáveis pela aplicação das regras de segurança, não podendo transferir essa obrigação à empresa tomadora dos serviços. Mais adiante, na parte de jurisprudência, veremos como as Turmas do TRT mineiro têm encarado a questão.
Empresa que contrata autônomo deve adotar medidas para que o serviço seja executado com segurança"O mínimo existencial do trabalhador autônomo/informal, no tocante à saúde e à segurança no trabalho, deve ser obrigatoriamente observado por ocasião da prestação de serviços no interior da empresa tomadora e, por corresponder a direito ligado ao superprincípio da dignidade humana, exige também da contratante cuidados na sua observância, independentemente de cláusula contratual, expressa ou tácita, dispondo o contrário. O Poder Judiciário pode entender pela não prevalência de cláusula que estabeleça ser exclusivamente do trabalhador autônomo/informal a gestão de riscos ocupacionais". (Trecho da sentença do juiz Valmir Inácio Vieira, processo nº 0011685-18.2014.5.03.0062 - Publicação: 08/08/2015).
Entendendo o casoA reclamante era viúva de um trabalhador autônomo que, como encarregado de manutenção, fazia reparos nas máquinas de produção da empresa ré, sempre que elas apresentavam defeitos. Em intervalos médios de três meses, o marido era solicitado para prestar seus serviços na empresa, onde permanecia por cerca de 15 dias. Até que um dia, quando estava na empresa reparando o motor de uma máquina de pré-moldados, ele sofreu um gravíssimo acidente: o motor despencou e o atingiu, ferindo-o gravemente. Chegou a ser hospitalizado, mas não resistiu aos ferimentos e morreu.
Esse o trágico cenário encontrado pelo juiz Valmir Inácio Vieira, em sua atuação na Vara do Trabalho de Itaúna-MG, ao analisar a ação ajuizada pela viúva do trabalhador autônomo contra a empresa que contratou os serviços do marido. Alegando a culpa da empresa no acidente, a reclamante pretendia que ela fosse condenada a lhe pagar indenização por danos materiais (sob a forma de pensão mensal, até a data em que o marido falecido completaria 75 anos de idade, a ser paga de uma só vez), além de indenização por prejuízos morais. E, em sua análise, o juiz deu razão à reclamante e deferiu os pedidos.
Os dois lados da históriaVersão da reclamante - A esposa do trabalhador afirmou que, antes da morte do marido, foi necessário que se amputasse um dos seus pés, o que aumentou, em muito, o sofrimento de toda a família, que já não era pouco. Disse ainda que a empresa teve culpa no acidente que tirou a vida do trabalhador, tendo em vista que ele não usava qualquer equipamento de segurança quando se acidentou, fato que revela a negligência da empresa no cumprimento das normas de segurança do trabalho. Acrescentou que teve sua vida transformada com o acidente, pois tinha uma família tranquila e completa e, depois da morte do marido, passou a viver em constante estado de pânico e depressão, sendo obrigada a se sustentar com os parcos rendimentos de pensionista e a depender de favores de parentes e amigos, o que lhe traz enormes constrangimentos, totalmente ignorados pela empresa, a verdadeira culpada pelo infortúnio.
Versão da empresa - Ao se defender, a ré contou sua versão: a relação com o marido da reclamante era apenas comercial, já que ele nunca foi seu empregado, mas apenas lhe prestou serviços em algumas oportunidades. Na época do acidente, a empresa estava mudando um maquinário de local (unidade hidráulica de bombeamento de concreto) e, para seu transporte e fixação, contratou uma empresa especializada (Ita Montagens). O marido da reclamante foi contratado apenas para fazer regulagem e implantação da máquina, o que deveria ser feito apenas depois da fixação do equipamento pela Ita Montagens. Mas, quando o reservatório da unidade já estava sendo parafusado, o trabalhador pediu que aguardassem, dizendo que precisava terminar um procedimento. Foi aí que o prestador de serviço se desequilibrou e se apoiou, por reflexo, numa das mangueiras do reservatório, quando este acabou caindo sobre ele - e isso só ocorreu porque o próprio trabalhador solicitou que o reservatório não fosse fixado. Ele foi removido consciente pelo serviço de emergência e permaneceu no hospital João XXIII, em Belo Horizonte, por 24 dias, vindo a falecer, de acordo com a própria família, em consequência de uma infecção generalizada.
A empresa sustentou ainda que o trabalhador estava usando capacete, mas, pelo peso do reservatório, isso não impediu que ele se machucasse gravemente, inclusive na cabeça. Para a defesa, o acidente ocorreu por culpa exclusiva do trabalhador, que solicitou que o reservatório não fosse fixado e iniciou seu trabalho de instalação das mangueiras antes do combinado, assumindo pessoalmente um risco desnecessário.
Por fim, argumentou que não teve qualquer culpa no acidente, pois contratou o marido da reclamante, justamente, pela sua vasta experiência nesse tipo de trabalho e também porque, por ser autônomo, ele assumiu a responsabilidade e os riscos de entregar o serviço pronto, sem necessidade de ingerência ou coordenação da empresa. Finalizou dizendo que, por todas essas razões, o caso deve ser resolvido de acordo com as regras do Código Civil sobre o prestador de serviços autônomos, que lhe atribuem a responsabilidade sobre os riscos do seu trabalho, devendo entregá-lo realizado à contratante, de quem não se pode exigir as mesmas obrigações do empregador, inclusive a de fornecer e cobrar o uso de EPIs.
Enfim, a reclamada afirmou que marido da reclamante atuava como patrão de si mesmo, sem submissão aos poderes de comando da contratante, razão pela qual não havia como a empresa exigir que ele usasse EPIs. Além de tudo, para a responsabilização da ré seria necessária prova clara de seu dolo ou culpa no acidente, o que não existiu, já que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima. E disse mais: era obrigação do próprio trabalhador autônomo se precaver e se equipar no intuito de evitar qualquer acidente e, portanto, não se pode exigir qualquer indenização da empresa.
Entendimento do julgador: regras de segurança no trabalho também se aplicam ao trabalhador autônomoApós examinar as provas, o magistrado notou algo que lhe chamou atenção: a empresa tem a prática de fornecer EPIs a todas as pessoas que entram em seu estabelecimento (capacete, óculos de segurança e botina), inclusive aos prestadores de serviços autônomos - como era, de fato, o caso do marido da reclamante. Segundo o juiz, o procedimento da empresa não traduz excesso de cuidado, mas está de acordo com o artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, segundo o qual: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Além disso, o artigo 2º da Lei 8.080/1990 dispõe que: "A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". E, nos termos do parágrafo 2º dessa norma, "O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade".
Com base nessas regras, o julgador concluiu que a saúde é um direito de todos e, dessa forma, também alcança os trabalhadores autônomos, existindo, nas palavras dele, um "inexorável entrelaçamento entre o direito à saúde e o direito à saúde no trabalho". Tanto é assim que o parágrafo 1º. do art. 19 da Lei 8.2.13/91 é claro ao dispor que: "A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador", ressaltou.
Em sua sentença, o juiz mencionou as seguintes normas previstas no Código de Saúde do Estado de Minas Gerais (Lei Estadual n. 13.317, de 24.09.1999):
"Art. 57. Para os efeitos desta lei, entende-se como saúde do trabalhador o conjunto de atividades destinadas à promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde do trabalhador submetido a riscos e agravos advindos das condições de trabalho.
Art. 58. Considera-se trabalhador aquele que exerça atividade produtiva ou de prestação de serviços no setor formal ou informal da economia".
E, para o magistrado, todas essas normas legais mostram a intenção do legislador em "resguardar o mínimo existencial dos trabalhadores" - de todos eles, inclusive dos informais e autônomos - no que diz respeito à saúde e segurança no trabalho, o que fica ainda mais evidente pela obrigatoriedade da adoção de medidas preventivas de acidentes do trabalho, que guarda estreita ligação com a ética nas relações de trabalho e também com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Para reforçar seu entendimento, citando doutrina da área de ética e segurança no trabalho, o magistrado explicou que, no campo do direito, existe um dever básico, que é o de reconhecer a intangibilidade da vida humana, do qual decorre outros três: I - o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; II - consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; III - respeito pelas condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária (in artigo intitulado "Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana", Revista dos Tribunais, ano 91, volume 797, março de 2002. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 19).
Na sentença, também foram destacados os ensinamentos de Roldão Alves de Moura, segundo o qual a saúde é direito tutelado independentemente de vínculo empregatício (Ética no meio ambiente do trabalho. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 43). No mesmo sentido, ressaltou-se o pensamento de Lenir Santos: "Assim, o indivíduo em sua atividade de trabalho tem o direito de não ser submetido a riscos, pouco importando se a atividade é executada no mercado formal ou informal, com ou sem carteira de trabalho, em ambiente urbano ou rural etc." (in artigo intitulado "Saúde do Trabalhador e o Sistema Único de Saúde: Conflito de Competência. União, Estados e Municípios. Interface Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde e Ministério da Previdência Social". Revista de Direito do Trabalho. Volume 99, São Paulo: RT. 2000, p. 123).
Nesse contexto, o julgador não teve dúvidas sobre a obrigatoriedade de se observar a aplicação da Norma Regulamentadora n. 12 a todas as situações de trabalho que envolvam, no interior da empresa, as máquinas e os equipamentos, qualquer que seja a atividade econômica (conforme o item 12.1 da NR). E essa norma deve ser observada por todos, justamente diante da obrigação de se respeitar o mínimo existencial dos trabalhadores, incluindo os autônomos, como o era o marido da reclamante, frisou.
"Não se trata, portanto, de liberalidade da ré o fato de a mesma dedicar cuidados preventivos aos trabalhadores que adentrem em suas dependências e, em decorrência desse acesso, estarão sujeitos aos perigos ali existentes. Tratam-se, semelhantes cuidados, nada mais do que dar cumprimento aos preceitos do ordenamento jurídico nacional que impõem o respeito ao mínimo existencial dos trabalhadores no tocante à saúde e à segurança no trabalho", destacou o magistrado. Por fim, ele acrescentou que, como gestora dos itens de segurança, a empresa tinha o poder e mesmo a legitimidade para exigir que os trabalhadores que entravam em seu estabelecimento, inclusive os prestadores de serviços autônomos, usassem os equipamentos de segurança e observassem as regras básicas de segurança no trabalho.
Os fatos - As normas aplicáveis ao caso específicoEm seu exame, o magistrado constatou que o acidente que tirou a vida do trabalhador autônomo ocorreu quando a empresa estava alterando a localização, ou seja, estava reinstalando o seguinte equipamento: bomba de concreto e o reservatório de óleo respectivo. E, conforme ressaltou, nesses casos, de instalação (ou reinstalação) de máquinas e equipamentos, a qual implica riscos ocupacionais de grande magnitude, a NR-12 (que, à época da decisão, ainda não havia sofrido as alterações publicadas em maio deste ano) é bastante minuciosa quanto às medidas que devem ser tomadas para evitar acidentes do trabalho, entre elas:
- As máquinas devem estar estabilizadas, de forma que não se desloquem intempestivamente por vibrações, choques ou outras forças externas (item 12.11);
- A instalação deve observar os requisitos do fabricante ou projeto elaborado por profissional habilitado (item 12.11.1); - Devem ser elaborados procedimentos de trabalho e segurança específicos, padronizados, com descrição detalhada de cada tarefa, passo a passo, a partir da análise de risco (12.130); - Os serviços devem ser planejados e realizados conforme os procedimentos de trabalho e segurança, sob supervisão e anuência expressa de profissional habilitado ou qualificado (12.132) e, ainda, precedidos de ordens de serviço específicas- O projeto deve levar em conta a segurança intrínseca da máquina ou equipamento, por meio das referências técnicas indicadas na NR-12, que devem ser observadas para garantir a saúde e a integridade física dos trabalhadores (item 12.133). Em sendo assim, segundo o magistrado, antes que o trabalhador iniciasse os reparos no reservatório, o equipamento deveria estar estabilizado para que não se deslocasse acidentalmente, o que não foi feito, tanto que o reservatório, de fato, caiu e atingiu o trabalhador. Além disso, conforme ressaltado pelo juiz, já que o próprio fabricante do maquinário não providenciou os requisitos necessários para a reinstalação, a empresa deveria ter buscado um projeto elaborado por profissional legalmente habilitado para a realização do serviço, o que também não cuidou de fazer, descumprindo a NR-12. "Constituía incumbência da ré, em observância à NR-12, ter providenciado o projeto de execução do serviço elaborado por profissional autorizado, em especial para a fixação do reservatório de óleo para os devidos ajustes. E essa medida preventiva obrigatória a ré não cumpriu", destacou o julgador. E mais. O perito do juízo informou que o serviço não foi precedido de projeto técnico de mudança do layout da unidade hidráulica.
Todos esses fatos, na visão do magistrado, são suficientes para configurar a culpa da empresa no acidente, já que ela permitiu que um trabalhador atuasse em seu complexo industrial sem estar resguardado com toda a segurança possível e previsível. Em outras palavras, a empresa se omitiu quanto à observância das normas de segurança do trabalho.
Isso porque, conforme registrado na sentença, para o tipo de serviço que seria realizado pelo trabalhador, a NR-12 exige projeto elaborado por profissional legalmente habilitado, considerado como tal alguém que tenha registro no conselho de classe, com formação específica, e que possa assumir essa responsabilidade técnica e emitir uma "Anotação de Responsabilidade Técnica". Dessa forma, não é suficiente a simples supervisão de profissional reconhecido na área, com experiência comprovada e capacitação, como, segundo afirmou a empresa, era o caso do marido da reclamante.
Essas constatações, na visão do magistrado, afastam a alegação da empresa sobre a culpa exclusiva da vítima na ocorrência do acidente. "Diante da ausência de observância às medidas preventivas mínimas que constariam em projeto elaborado por profissional legalmente habilitado, as alegações da empresa sobre a culpa do trabalhador não passam de simples conjectura", frisou o magistrado. Ele também registrou que empresa não comprovou a existência do ajuste prévio no sentido de que o trabalhador apenas faria a instalação das mangueiras após a fixação do reservatório. Além do mais, não houve notícia sobre qual a orientação a empresa Ita Montagens teria a respeito. Dessa forma, para o juiz, as alegações da empresa de que o trabalhador teve culpa exclusiva no acidente, por não ter esperado um técnico experiente e seguido as regras de segurança, não passam, igualmente, de simples conjectura. "Portanto, não há como concluir que a empresa realmente observou todos os procedimentos de prevenção e segurança, como havia afirmado na sua defesa", ressaltou o juiz.
Mas, o magistrado foi além. Na visão dele, ainda que se entendesse que todas as medidas de segurança para a execução do serviço, no momento do acidente, estivessem sob a batuta do trabalhador, dada a sua condição de autônomo, mesmo assim estaria presente a negligência da empresa no ocorrido. É que, para a segurança naquele tipo de atividade, seria necessário adotar medidas preventivas mínimas, em especial uma prévia e séria análise de riscos, como determina a NR-12 (observância a normas da ABNT, inclusive), com a adoção de uma metodologia correta. E, ao contratar o serviço com o trabalhador autônomo, a empresa não exigiu dele o compromisso de seguir todos os parâmetros mínimos de segurança estabelecidos na NR-12, além de ter falhado na sua obrigação de fiscalizar a prestação de serviços para garantir, pelo menos, nas palavras do magistrado, "o mínimo observável, o mínimo existencial do trabalhador autônomo".
Para finalizar, o juiz sentenciante registrou que, caso existisse cláusula contratual, expressa ou tácita, no contrato de prestação de serviços entre a empresa e o trabalhador, estabelecendo que ele assumiria prestar os serviços sem observar as medidas mínimas de prevenção a acidente do trabalho previstas na NR-12, estaríamos diante de uma clara cláusula infringente ao princípio da função social do contrato (art. 421 do Código Civil) e que, portanto, não poderia prevalecer. Isso porque a própria Constituição Federal condiciona a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade à sua função social (artigos 1º, III, 170, III, 182, § 2º, e 186). "E, de acordo com a Constituição, o Código Civil enaltece a função social do contrato, pela sua repercussão coletiva, impondo às partes contratantes a observância dos princípios da probidade e da boa-fé no exercício da autonomia, aspectos esses que têm alta relevância nas relações que envolvem trabalhadores autônomos", explicou o magistrado. "Ao Poder Judiciário incumbiria fazer prevalecer de modo diferente essa cláusula, com a aplicação dos artigos 187 ou 157, ambos do Código Civil, diante da caracterização de abuso de direito ou de lesão", arrematou.
Por tudo isso, a conclusão do magistrado foi a de que os parâmetros mínimos de segurança estabelecidos na NR-12 não estavam sendo observados por ocasião da prestação de serviços do trabalhador acidentado, sendo a ré omissa nesse ponto, daí sua culpa no acidente do trabalho que tirou a vida do marido da reclamante.
As indenizações Danos materiais - O julgador entendeu que, no caso, estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil por danos (materiais e morais) decorrentes de acidente do trabalho, ou seja, o ato ilícito, consubstanciado no erro de conduta da empresa (omissão quanto ao respeito às regras mínimas de segurança do trabalho - NR-12), a ofensa a um bem jurídico ou dano (a morte do trabalhador e os prejuízos morais e materiais que isso trouxe à vida da reclamante) e a relação de causalidade entre a conduta ilícita e o dano causado.
E, segundo o juiz, os prejuízos que o acidente causou à vida da reclamante, como esposa do trabalhador falecido, são evidentes, o que confere a ela o direito às indenizações pleiteadas. "O prejuízo financeiro decorreu da perda da ajuda financeira que o marido da reclamante dava à família", destacou o juiz. Mas, ele acrescentou que, de qualquer forma, conforme ensina Sebastião Geraldo de Oliveira, "...na pensão decorrente de ato ilícito, não se questiona sobre a necessidade ou não de alimentos por parte dos dependentes do morto porque o objetivo é reparar o prejuízo da perda da renda familiar. Ainda que os prejudicados tenham posses suficientes para manter o padrão de vida anterior ao óbito, o ressarcimento é devido como reparação do dano causado. O fato gerador da pensão é o ato ilícito ... e não a necessidade de prover alimentos" (in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doenças Ocupacionais, São Paulo: Ltr, 2006, p. 213).
Quanto ao nexo causal entre a conduta culposa da ré e os danos decorrentes do acidente, o julgador considerou ter sido claramente demonstrado pela prova documental, colocando uma pá de cal sobre as alegações da empresa de que uma suposta negligência do hospital pode ter ocasionado a morte do trabalhador, e não o ferimento em si. Isso porque o laudo de necropsia como da certidão de óbito registraram como "causa mortis" do trabalhador o "choque hipovolêmico" decorrente do trauma de face, crânio e tórax causados pelo acidente. Além disso, o Hospital João XXIII, onde o trabalhador permaneceu internado e veio a falecer, apresentou relatório médico contendo o histórico do paciente na unidade hospitalar, revelando que a infecção e posterior "sepse", são decorrentes das complicações e do manejo do paciente devido à condição em que ele se encontrava por causa do trauma.
"De qualquer forma, o dever de indenizar não exige nexo de causalidade exclusivo, sendo que a presença de um só elemento de responsabilidade do réu a causar dano é suficiente ao reconhecimento do nexo causal e do dever de indenizar. No caso, a atitude omissa da ré atuou, à evidência, como concausa para o acidente do trabalho verificado, gerador dos danos à reclamante", destacou o juiz sentenciante.
Ele concluiu que o dano material seria suficientemente remunerado com o pagamento de indenização, em cota única, de acordo com o art. 950, parágrafo único, do CPC, no valor de R$ 21.600,00 (R$ 400,00 mensais, correspondente a 2/3 da média dos valores que, razoavelmente, eram auferidos mensalmente pelo marido da reclamante, levando em conta o que ele recebia da ré e, também, das outras empresas para as quais prestava serviços). Esse valor foi multiplicado por 9 anos, conforme atual expectativa de vida que teria o trabalhador, segundo tabela do IBGE (108 meses), tudo dividido por dois, o que, para o juiz, se justifica porque o pagamento em cota única descapitaliza a empresa e, por outro lado, possibilita à reclamante efetuar aplicações financeiras que lhe trazem ganhos mensais correspondentes à pensão mensal.
Danos morais - Quanto à indenização por danos morais, o magistrado frisou que o sofrimento psicológico da reclamante, decorrente da perda de um ente querido (esposo) oriunda do acidente do trabalho, não pode ser colocado em dúvida, sendo evidentes os reflexos altamente negativos para o seu bem-estar e paz interior. "No caso, o dano moral corresponde a essa lesão a interesses não patrimoniais da autora, sendo que embora se saiba que o sentimento do homem seja algo intangível, a despeito de não ser palpável, é tutelado pelo Direito (no art. 5º., V e X, da Constituição Federal, estão protegidos os valores da intimidade)", destacou, na decisão.
Foi lembrado ainda que a necessidade da reparação nasce com o evento danoso e dispensa a comprovação do prejuízo, que deriva do próprio infortúnio. E, ressaltando que a indenização não pode servir de pretexto para o empobrecimento de um e enriquecimento de outro, mas que deve ser fixada da forma mais severa possível, atendendo às finalidades punitiva, preventiva e compensatória, o magistrado fixou em R$60.000,00 a indenização por danos morais a ser paga pela empresa à reclamante.
O Recurso - A empresa recorreu da decisão, que ficou integralmente mantida pela Terceira Turma do TRT de Minas, inclusive quanto ao valor das indenizações. O relator do recurso, desembargador Luis Felipe Lopes Boson, fez questão de ressaltar que a perícia técnica realizada no processo detectou falhas no sistema de segurança da ré, no que tange à construção da plataforma, já que esta não possui sistema de proteção contra queda, conforme determina a NR-8.3.6.
Ainda segundo pontuou o relator, "não há como prevalecer a tese defensiva de culpa exclusiva da vítima, tampouco de culpa concorrente, tendo em vista que as testemunhas apenas ouviram dizer que o reclamante teria pedido para que o reservatório não fosse parafusado".
Assim, o julgador entendeu configurada a culpa da empresa pelo acidente, uma vez que este ocorreu pelos riscos existentes no local, conforme conclusão pericial, e pelo risco criado pela não fixação do reservatório. Com isso, o relator afastou a tese, levantada pela ré, de que a sua condenação estaria fundada na responsabilidade objetiva, já que ficou demonstrada a culpa da empresa, decorrente da não observação das normas relativas à saúde e segurança no trabalho, as quais se estendem, sim, aos trabalhadores autônomos.
Ele considerou irrelevante que familiares trabalhador falecido tenham informado que a morte decorreu de infecção generalizada: "Essa infecção, evidentemente, foi mera decorrência da causa principal, informada na certidão de óbito, conforme necropsia realizada pelo Instituto Médico Legal", pontuou.
Por fim, corroborando o entendimento da sentença, o acórdão cita lição de Sebastião Geraldo de Oliveira, que vale registrar:
O dever de redução dos riscos no local de trabalho previsto no art. 7º, XXII, da Constituição da República, não se restringe ao trabalhador empregado, mas beneficia a todos os trabalhadores urbanos e rurais. Aliás, nesse sentido há previsão expressa do art. 8.2 da Convenção 167 da OIT: 'Quando empregadores ou trabalhadores autônomos realizarem atividades simultaneamente em uma mesma obra terão a obrigação de cooperarem na aplicação das medidas prescritas em matéria de segurança e saúde que a legislação nacional determinar.'"
[...] para os acidentes ocorridos com os trabalhadores autônomos ou eventuais, em princípio, não cabe atribuir culpa ao contratante pelos riscos inerentes aos serviços contratados, salvo se ficar caracterizada a sua culpa por ter criado, por ação ou omissão, um risco adicional que gerou o acidente (ou risco alheio aos serviços contratados)". (Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 7ª ed. - São Paulo: LTr, 2013, p. 445 e 446-verso).
0011685-18.2014.5.03.0062 - Sentença em: 28/08/2015 - Acórdão em: 11/11/2015

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Fonte: TRT3

Empresa terá que indenizar ex-empregado por impedi-lo de manter plano de saúde após a extinção do contrato




Alegando que, por culpa única e exclusiva da ex-empregadora, não conseguiu permanecer com o plano de saúde após a extinção do contrato de trabalho, o que deixou a sua família desamparada, um trabalhador procurou a JT pleiteando o restabelecimento do seu plano de saúde, além de uma indenização por danos morais e materiais. O caso foi analisado na Vara do Trabalho de Juiz de Fora pela juíza Maria Raquel Ferraz Zagari Valentim, que reconheceu os pedidos do trabalhador. É que ficou constatado que a empresa não formalizou a rescisão do contrato de trabalho e ainda deixou de emitir o TRCT, documento exigido pela operadora do plano para manter a condição de beneficiário do reclamante. E, de acordo com a magistrada, com esse comportamento, a empresa criou obstáculo injusto para que o reclamante conservasse o plano de saúde.

A julgadora ressaltou que a Lei 9.656/98, que regula a manutenção do plano de saúde de origem corporativa após a extinção do contrato de trabalho, assegura ao empregado dispensado sem justa causa, como no caso do reclamante, o direito de manter sua condição de beneficiário, nas mesmas condições existentes durante o contrato de trabalho, desde que ele assuma integralmente o custo do benefício. A mesma lei dispõe que esse período de manutenção do plano de saúde é extensivo a todos os dependentes do ex-empregado e deve corresponder a 1/3 do tempo em que ele permaneceu como beneficiário no período do contrato de trabalho (com um mínimo assegurado de 6 meses e um máximo de 24 meses). E mais: o cancelamento poderá ocorrer apenas se houver admissão em novo emprego. Assim, o reclamante tinha sim direito de manter o benefício, nos limites estabelecidos na lei, mas não foi o que aconteceu.

O trabalhador reconheceu que, ao dispensá-lo, a empresa lhe explicou o que deveria fazer para manter o plano de saúde: tinha que ligar para o RH da empresa e ela mesma faria o pedido para a Unimed (a operadora do plano de saúde). Ele cumpriu com sua parte e, depois disso, enviou um e-mail à operadora do plano, manifestando sua vontade de manter o benefício. Mas, a resposta da Unimed revela que lhe foram feitas outras exigências burocráticas: ele deveria também enviar a cópia do termo de rescisão do contrato de trabalho (TRCT), "sem ele não seria possível fazer a extensão do plano", além de outros documentos. Ocorre que, quase seis meses após a dispensa e até a data do ajuizamento da ação, a rescisão do contrato de trabalho do reclamante ainda não havia sido homologada pela autoridade competente e, para piorar, a empresa não havia emitido o TRCT. Nesse quadro, a magistrada concluiu que a ex-empregadora, de forma injusta, impediu o reclamante de exercer seu direito de manter o plano de saúde.

Na sentença, a juíza lamentou que algumas empresas do mesmo ramo de atividade da ré (vendas a varejo), após ter caído a tese de que a rescisão contratual seria um ato complexo, envolvendo não só o pagamento das verbas rescisórias, mas também a homologação e a entrega de documentos (como o TRCT), passaram a ignorar o prazo legal de 10 dias realizar esse importante ato, deixando para fazê-lo apenas em Juízo. "Não é de se surpreender, portanto, que o autor não tenha tido acesso ao TRCT que a própria ré exigiu como condição para sua permanência no plano de saúde", destacou a magistrada.

Por essas razões, a empresa foi condenada a reativar o plano de saúde do trabalhador, nas mesmas condições anteriores à extinção do contrato, exceto quanto à onerosidade, a qual passou a ser obrigação do reclamante. Também ficou estabelecida uma multa diária de R$1.000,00, caso a empresa não cumprisse com a obrigação de fazer, até o limite de R$100.000,00.

Danos morais e materiais - Na visão da magistrada, o cancelamento irregular e súbito do plano de saúde, por culpa da empresa, trouxe prejuízos morais e materiais ao reclamante, que devem ser reparados pela ex-empregadora, nos termos dos artigos 186 e 927 do Código Civil. "A conduta ilícita culposa da empresa ficou evidente e os danos gerados ao trabalhador ultrapassaram os limites do mero aborrecimento, por envolver o delicado aspecto da proteção à sua saúde e de sua família, causando-lhe angústia e abalo moral, violando seus direitos da personalidade", registrou, na sentença, condenando a ré a pagar ao trabalhador indenização por danos morais no valor de R$10.000,00 e, ainda, por danos materiais, no valor de R$240,00, gastos pelo reclamante com exames médicos enquanto sustado o plano de saúde.

A empresa recorreu da sentença, mas a Turma Recursal de Juiz de Fora manteve as condenações, apenas reduzindo a indenização por danos morais para R$5.000,00. ( 0000334-62.2015.5.03.0143 ED )



Fonte: TRT3

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...