Por Flávia Piovesan e Victoriana Leonora Corte Gonzaga*Artigo publicado originalmente na Revista dos Tribunais, volume 967/2016, edição Maio/2016, e disponível na Revista dos Tribunais Online Essencial. Leitores da ConJur têm 80% de desconto na assinatura da ferramenta — clique
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Nosso atual quadro constitucional é de reapropriação do sistema democrático, pautado na limitação ao poder, na supremacia do interesse público em face do interesse privado, bem como no compromisso democrático de reforçar o poder do povo e de sua participação ativa como titular do poder político.
Isto porque a Constituição de 1988, peça fundamental do processo de redemocratização do Brasil, abriu caminho para mudanças estruturais na sociedade: marcou o abandono de um regime autoritário e instituiu um Estado Democrático de Direito, consagrando direitos fundamentais e garantias aos indivíduos.
De fato, percebe-se a retomada de um compromisso com o regime democrático a partir da eleição dos fundamentos da República (artigo 1º da Constituição), dentre os quais destacam-se a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e a soberania popular.
Registra-se que o parágrafo do artigo 1º da Constituição declara que o povo é titular do poder, que o exerce por meio de representantes. Por ser o povo o detentor do poder, estão estipulados limites ao exercício desse poder e o direito do povo reavê-lo quando os interesses dos representantes se sobrepuserem aos interesses coletivos.
Por isso, a intenção da Constituição Cidadã é clara: trata-se de instituir como fundamento do Estado Brasileiro um conjunto de direitos e regras que dizem respeito à participação do povo na vida política do Estado e da sociedade. A Constituição nasce, portanto, como instrumento que limita o próprio poder, o arbítrio e o interesse individual, dentro de uma regulamentação democrática.
Basta atentar aos objetivos fundamentais da República Federativa Brasileira, em seu artigo 3o, dentre eles, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Ademais, a Constituição dispõe sobre a soberania popular (artigo 14), a qual será exercida, principalmente, pelo direito de sufrágio (direito de votar e ser votado), por meio de plebiscito, referendo, iniciativa popular de lei; também por meio da ação popular (artigo 5o, inciso LXXIII), e pelo direito de organizar-se e participar de partido político (artigo 17).
Trata-se, portanto, de uma carta robusta no que tange à garantia de direitos e preocupada em assegurar a participação popular, ou seja, tem como objetivo fundamental fomentar a ativa participação cidadã.
Obstáculo à concretização da principiologia constitucional
A prática da corrupção política, no entanto, abala estas conquistas democráticas constitucionais e afronta o desenvolvimento do Estado de Direito e da sociedade, por colocar interesses privados de indivíduos acima do interesse da coletividade.
De acordo com o relatório Corrupção: custos econômicos e propostas de combate, do Departamento de Competitividade e Tecnologia (DECOMTEC), da Fiesp, o custo médio da corrupção no Brasil é estimado entre 1,38% a 2,3% do PIB, isto é, de R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões de reais, conforme estimativas de 2008. Além do alto custo econômico da corrupção, há o custo social e o aumento da desigualdade que ela gera.
Ainda, o Brasil apresenta um índice elevado de corrupção percebida, dentre 175 países, ocupa a 69ª colocação no ranking de 2014, elaborado pela ONG Transparência Internacional.
A corrupção é o desvirtuamento da relação do administrador com a Administração Pública, na qual seu interesse privado se torna primordial em relação ao interesse público, em flagrante ofensa ao espírito republicano.
O que se observa com o aumento de investigações e persecuções envolvendo todas as esferas de poderes do Estado Brasileiro é que o fenômeno da corrupção é sistemático e endêmico no Brasil, expondo reiteradamente a Administração Pública a interesses que não os seus (interesse público), mas interesses “externos”.
O combate à corrupção se faz, deste modo, extremamente necessário para concretização dos direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal de 1988 e dos objetivos e fundamentos do Estado Democrático. O combate à corrupção é medida que converge com os objetivos de redução de desigualdades e de construção de justiça social, pois a corrupção afeta a confiança dos cidadãos no Estado, na medida em deslegitima as instituições e as enfraquece, além de gerar elevados custos sociais.
Falhas do sistema como ambiente propício à corrupção
A corrupção no Brasil não é uma prática de um só partido, de uma só região ou estado, de um tipo de político ou de certo funcionário público: a corrupção é um fenômeno social, político, econômico, que se desenvolve de inúmeros modos e se manifesta em diferentes formas de favorecimento.
Por ser um fenômeno tão difundido e constante no modo de operar a coisa pública é preciso avaliar em que medida o sistema político-eleitoral a propicia e a facilita. Nesse sentido, entendemos como fatores importantes, mas não exaustivos, que criam um ambiente de facilitação à corrupção no Brasil: (i) o alto custo das campanhas eleitorais; (ii) o modo de nomeação de cargos na Administração Pública; (iii) a homogeneidade e a sub-representação da política brasileira.
(i) O elevado custo das campanhas eleitorais acarreta uma busca desenfreada por recursos e fontes de financiamento. Com base neste modelo, surgem esquemas estruturados de repasse de verbas de empresas privadas para partidos e políticos, que, na sequência, muitas das vezes atrelam este repasse ao favorecimento dessas empresas em licitações, financiamento público, etc.
Visando mudar esta dinâmica, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional
[1] a doação de empresas a partidos e campanhas políticas, na medida em que viola o regime democrático e à cidadania (esta inerente às pessoas físicas).
Neste sentido, há que se buscar alternativas de campanhas que exijam menos aporte de recursos financeiros e mais aprimoramento do candidato e qualidade de propostas -- uma vez que as contribuições de pessoas jurídicas encarecem e inflacionam os custos das campanhas. A participação excessiva do poder econômico no processo político-eleitoral desequilibra a competição eleitoral, ofendendo os princípios fundamentais democrático e da igualdade política.
(ii) O modo pelo qual se dá a investidura para os cargos da administração pública, em um modelo de gestão política como a do Estado Brasileiro de governos multipartidários, também cria espaço para que a corrupção crie suas raízes.
A Constituição Federal de 1988 traz, no inciso V do artigo 37, a nomeação como uma exceção à regra que exige a realização de concurso público, ou de provas e títulos, para fins de investidura em cargos públicos.
Nesse sentido, há uma estrutura
[2] na qual o representante é eleito, inserido no contexto da Administração Pública e passa a nomear pessoas de sua confiança para atuarem em funções relevantes e em cargos de comissão. Não pensar nessas nomeações é não dar a atenção necessária a uma função importante do representante, que traz uma série de consequências: o representante eleito aparelha a máquina estatal de diversos modos, ou seja, com pessoas capacitadas ou não para os cargos, sejam pessoas vinculadas ao seu partido ou à sua base aliada, ou mesmo nomeia pessoas sem vínculo algum.
A priori, o ato discricionário de nomeação não significa necessariamente que este esteja eivado de irregularidades e trará malefícios para a Administração Pública, com negociações e barganhas políticas. No entanto, aponta que é uma porta de facilitação e poderá vir a criar vínculos de lealdade, e, portanto, é preciso avaliar o alto número de cargos nomeados e a falta de critérios objetivos de nomeação como possíveis fatores de facilitação da corrupção.
(iii) A homogeneidade da política brasileira e o processo de sub-representação, no sistema político eleitoral, de grupos que são maioria da população e a consequente exclusão dessa maioria da população das decisões políticas trazem impactos inegáveis.
A Constituição de 1988 objetivou romper com a falta de participação popular, cuja atuação havia sido enfraquecida na ditadura militar e, por isso, endossa o valor do pluralismo político (artigo 1o, inciso V); afirma o direito de organização e participação em partidos políticos; introduz a iniciativa popular de lei (artigo 14, inciso III); além de munir os cidadãos e seus substitutos processuais de instrumentos como a ação popular (artigo 5o, inciso LXXIII), ação de impugnação de mandato eleitoral (artigo 14, §§ 10 e 11º) e ação civil pública (artigo 129, inciso III), por exemplo.
No entanto, ao contrário de citados dispositivos, o que se vê na prática é a reduzida participação popular
[3], marcada pela sub-representação política de grupos que são maioria da população – como mulheres e negros e pardos. Somado a esta sub-representatividade está a de grupos “minoritários” como população indígena e população jovem.
Ademais, existe um alto número de parlamentares pertencentes a famílias de políticos (os chamados “clãs políticos”), propiciando a perpetuação de famílias no poder, um status quo de muitos anos, o qual é difícil de quebrar.
Nesse sentido, é preciso questionar de que modo esses fatores não propiciam um cenário favorável para a corrupção. Isso porque, se a corrupção é marcada pela ruptura da supremacia do interesse coletivo sobre o privado, há que se questionar de que modo a política homogênea brasileira não propicia a lógica da prevalência do interesse privado.
Em outras palavras, ao fortalecer, ou ao menos manter intactas, as barreiras ao ingresso de grupos sub-representados, o Parlamento permite que se perpetuem no poder indivíduos que representam os interesses de poucos, em detrimento dos interesses de muitos. Dessa forma, alimenta-se a lógica do desvirtuamento do interesse coletivo em favor de interesses privados. Como consequência, mais uma vez são privilegiados interesses privados, cujos representantes se perpetuam como hegemônicos no campo da tomada de decisões.
Os fatores acima enumerados são apenas exemplos de falhas do sistema político-eleitoral brasileiro, que permite profundas distorções ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, e se apresenta como ambiente propício à proliferação do fenômeno da corrupção, que, reitera-se, é sistêmica e generalizada.
Combate à corrupção
Primeiramente, há que se reconhecer a corrupção como uma questão política de alta complexidade, prioridade e de extrema importância à própria consolidação democrática. Isso porque, multifacetado, o fenômeno da corrupção encontra meios de se estabelecer e criar raízes profundas.
Há que se enfrentar o desafio de lançar pilares de combate à corrupção, sob a perspectiva internacional, constitucional e infraconstitucional.
O combate à corrupção, deve se pautar
[4] no fortalecimento de medidas de prevenção e de repressão; cooperação internacional; recuperação e restituição dos bens e valores; e esforços conjuntos dos Poderes e instituições para implementação de medidas de combate à corrupção. Estas medidas podem ser abordadas em dois pilares principais: prevenção e repressão.
(i) Por atuação preventiva entende-se aquelas que buscam impedir e dissuadir o comportamento tido como corrupto, como a prestação de contas (accountability) e o controle e monitoramento dos atos da Administração Pública.
Observe-se que a cooperação internacional e os esforços para a implementação das normativas nacional e internacional são englobadas na prevenção -- por permitirem maior efetividade às medidas preventivas pautadas na fiscalização e monitoramento quando em cooperação com organismos internacionais e outros Países.
Em âmbito internacional e constitucional, há normativa que prevê – ao menos em tese - mecanismos de participação da sociedade no controle da coisa pública
[5]. Conforme a Constituição Federal, a Administração deve ser submetida à fiscalização de toda ordem: contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.
Ressalte-se que medidas preventivas estão em constante construção e podem surgir a partir de diversas fontes, o que se mostra especialmente relevante para o fortalecimento da democracia. Nesse sentido, algumas iniciativas merecem menção, como a vedação ao nepotismo, principalmente por meio da Resolução 7 de 2005 do Conselho Nacional de Justiça, que baniu as práticas de nepotismo do Poder Judiciário. E a chamada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar 135 de 2010) que inclui novas hipóteses de inelegibilidade, visando proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
O que esses exemplos mostram é que existe, ainda que de maneira incipiente, a vontade política de determinados atores da sociedade brasileira no sentido de construir um sistema de prevenção à corrupção.
(ii) A atuação repressiva de combate à corrupção, por sua vez, encontra guarida nas responsabilizações: civil e administrativa, política e penal. As medidas repressivas abrangem, também, a recuperação dos valores, ilicitamente apropriados da Administração.
Nota-se que as medidas de responsabilização, além de contribuir para reduzir a percepção de impunidade e ineficiência estatal, devem ser acompanhadas de reparação, sendo cabível a responsabilização de pessoas físicas, quanto de pessoas jurídicas.
A responsabilização encontra guarida em alguns mecanismos legislativos, em âmbito constitucional e infraconstitucional. E o que se vê é que a legislação vem buscando se aprimorar, com a edição de leis
[6] que buscam mecanismos mais eficientes.
Estratégias preventivas e repressivas são, portanto, essenciais ao eficaz enfrentamento da corrupção, como fenômeno complexo e multifacetado. O combate à corrupção surge como imperativo ético-jurídico-político ao resgate da força normativa da Constituição, de sua racionalidade, de sua principiologia e de seus valores estruturantes. Surge como condição, requisito e pressuposto à supremacia do interesse público, à observância do espírito republicano, ao respeito ao direitos e garantias e à própria prevalência da dignidade humana. Enfrentar a corrupção requer o amadurecimento democrático e a necessária mudança da cultura política do Brasil, na luta por maior transparência, ética, accountability, controle público e fortalecimento institucional, no marco de um Estado Democrático de Direito.
[1] STF; ADI 4650/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 17/09/2015.
[2] Aprofundamos referida análise no artigo original.
[3] Os dados referente a participação política e “clãs políticos” estão elencados na versão original do artigo.
[4] Reformas estruturais são necessárias, a literatura especializada aponta reformas institucionais, abrangendo reforma política, do sistema judiciário e reforma administrativa. Ainda, aponta reformas econômicas, as quais se concentram em reforma fiscal e do sistema tributário. No entanto, o objetivo do artigo é propor medidas de prevenção e repressão que podem ser extraídas do nosso ordenamento jurídico vigente.
[5] As medidas foram melhor explicitadas na versão original do artigo, na presente versão apenas foram ventiladas.
[6] Referidas leis foram tratadas na versão original do artigo.
*Artigo publicado originalmente na Revista dos Tribunais, volume 967/2016, edição Maio/2016, e disponível na Revista dos Tribunais Online Essencial. Leitores da ConJur têm 80% de desconto na assinatura da ferramenta — clique
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Flávia Piovesan é procuradora do estado de São Paulo e professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; e 2015); e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg - 2009-2014).
Victoriana Leonora Corte Gonzaga é advogada e professora assistente no curso de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2016, 7h33