segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Lewandowski assina protocolo de cooperação entre CNJ e Centro de Estudos de Justiça das Américas






O presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Ricardo Lewandowski, e o secretário executivo do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA), Jaime Arellano Quintana, assinaram neste sábado (5), no Chile, memorando de entendimento para cooperação entre o CNJ e o CEJA, organismo do Sistema Interamericano sediado naquele país. O memorando pretende estabelecer um marco geral de cooperação entre os dois órgãos, visando ao desenvolvimento e cumprimento de seus respectivos programas de atividades.

O CEJA foi criado em 1999 pelas instituições do Sistema Interamericano, integrado por todos os países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). O órgão surgiu no contexto posterior às profundas reformas nos sistemas judiciais da maioria dos países do continente. A proposta é de dar novo impulso a essa modernização e apoiar os Estados da região em seus processos de reforma judicial, por meio de atividades de capacitação, estudos e investigações empíricas.

O memorando assinado entre o CNJ e o CEJA leva em conta o papel que a Constituição da República atribui ao CNJ, sobretudo no âmbito da administração do sistema judicial. A cooperação prevê a promoção conjunta de conferências, seminários, oficinas e encontros acadêmicos ou eventos sobre Justiça, democracia e temas afins que possibilitem espaços para debates e intercâmbio de experiências.

Comissão de Veneza

O ministro Lewandowski cumpriu agenda oficial no Chile para participar da Conferência “Proteção Constitucional de Grupos Vulneráveis: Um Diálogo Judicial”, aberta na sexta-feira (4) em Santiago, realizada pelo Tribunal Constitucional do Chile em conjunto com a Comissão de Veneza e o Conselho da Europa. Na tarde do primeiro dia da programação, o ministro participou de painel sobre a proteção de minorias e povos originários em nível nacional, falando sobre o Brasil e a jurisprudência do STF a respeito da matéria.

Neste sábado, ele participou, ainda, de reunião da Subcomissão para a América Latina da Comissão de Veneza. A reunião da subcomissão, em 2016, será realizada em Cartagena, Colômbia, com o tema "Execução de sentenças e resoluções de organismos internacionais de direitos humanos".

CF/EH
Fonte: STF

Justiça Gratuita: empresas também podem ter direito




A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que as pessoas jurídicas (empresas) podem ter direito à Justiça gratuita. O colegiado negou recurso em que a União contestava decisão que havia concedido a uma empresa gaúcha o benefício da assistência judiciária gratuita. Seguindo o voto do relator, ministro Herman Benjamin, a turma reafirmou o entendimento da Corte Especial de que, independentemente do fato de se tratar de pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos, a concessão do benefício está condicionada à demonstração da impossibilidade de a empresa arcar com os custos de um processo na Justiça.

O caso teve origem no Rio Grande do Sul e diz respeito a uma execução fiscal da dívida ativa relativa a créditos do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins). A empresa, que atua na área de consultoria empresarial, embargou a execução (contestando valores) e pediu ao juiz federal a concessão de assistência judiciária gratuita.

Balanço negativo

O juiz negou, pois entendeu que não haveria nos autos da execução “elementos capazes de comprovar a impossibilidade de a empresa arcar com as despesas processuais”. A empresa recorreu (por meio de agravo de instrumento – recurso cabível no caso de decisão interlocutória do juiz) ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

O benefício foi concedido em decisão unipessoal do desembargador e posteriormente confirmado pelo colegiado do TRF4. Para tanto, os desembargadores levaram em conta que a empresa é de pequeno porte, com apenas um funcionário. O balanço patrimonial da empresa teria encerrado negativo no ano anterior, no valor de R$ 93 mil.

Em novo recurso, dessa vez endereçado ao STJ, a União insistiu na tese de que o benefício da Justiça gratuita é apenas para pessoas físicas, e não pessoas jurídicas, menos ainda para aquelas com fins lucrativos. As alegações foram rejeitadas no julgamento da Segunda Turma. A decisão foi unânime.

Fonte: STJ

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Tempo gasto no percurso para o refeitório e na fila do almoço não gera hora extra





"O tempo gasto pelo trabalhador até o local em que ele vai se alimentar - seja no refeitório da empresa, num restaurante ou em sua própria casa -, assim como o de retorno, não é considerado como tempo à disposição do empregador. O mesmo se diga em relação ao tempo em que ele aguarda a refeição - seja na fila do refeitório ou à mesa de um luxuoso restaurante a la carte.". A decisão é da juíza Sandra Maria Generoso Thomaz Leidecker, titular da 2ª Vara do Trabalho de Formiga-MG, ao analisar a ação ajuizada por um trabalhador contra uma empresa do ramo da construção civil, rejeitando o pedido de horas extras pelo suposto desrespeito ao intervalo para refeição.

O reclamante reconheceu que tinha 60 minutos de intervalo, mas que parte desse tempo era destinado ao deslocamento até o refeitório e à espera na fila, o que, no entender dele, representa desrespeito ao intervalo intrajornada. Por isso, ele requereu o pagamento do período como hora extra. Mas, ao examinar o caso, a juíza constatou que não houve prova de que o trabalhador permanecia à disposição da empregadora enquanto esperava na fila do refeitório, recebendo ou executando ordens.

Além disso, uma testemunha ouvida declarou que, se quisesse, o empregado poderia fazer a refeição em outro local diferente do refeitório, "desde que fosse respeitado o intervalo de 60 minutos". Dessa forma, concluiu a julgadora que o período concedido para refeição e descanso era respeitado pela empregadora, que não exigia prestação de serviços dos empregados, estivessem eles no refeitório da empresa ou em local diverso.

Por essas razões, a juíza indeferiu as horas extras pretendidas pelo trabalhador, assim como os seus reflexos. Não houve recurso ao TRT-MG.
Processo nº 0000274-38.2015.503.0160. Data de publicação da decisão: 30/07/2015
Fonte: TRT3

PPE amplia prazo da crise e traz mais dificuldades para as empresas






A Presidente Dilma sancionou no último dia 19 de novembro a Lei 13.189, que institui o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), uma reedição da Medida Provisória 680. Em linhas gerais, a lei repete a proposta inicial, mas recebeu na casa legislativa alguns retoques que sinalizam previsão de crise mais longa do que a anunciada inicialmente e, além disso, traz restrições para as empresas e desestimulam qualquer iniciativa para sua implantação.

O documento jurídico que vai tratar do assunto é o acordo coletivo de trabalho específico negociado no âmbito da empresa por meio do sindicato representativo da categoria da atividade econômica preponderante da empresa (artigo 5º). Chama atenção a forma de representação sem apego à categoria a que pertençam os trabalhadores, revelando que quando se trata de local de trabalho prevalecerá outra legitimidade representativa. Exemplificativamente, motoristas, telefonistas, secretárias serão todos representados pelo sindicato dos comerciários se a atividade empresarial for de comércio.

O prazo da crise, que na Medida Provisória 680, publicada em 6 de julho de 2015, era de 12 meses, com adesão até dezembro de 2015, passou a contemplar no artigo 2º, parágrafo 1º, prazo de até dezembro de 2016 e, além disso, se antes a previsão da crise era de 12 meses, prazo que definia a redução de salário e jornada, agora o prazo previsto é de 24 meses, com preferência para as empresas que observarem a cota de pessoas com deficiência (artigo 2º, parágrafo 2º).

Neste sentido, se na época da publicação da Medida Provisória 680 dizíamos que o tempo de crise era imprevisível e estava sendo tratada com prazo definido, agora parece que houve um choque de realidade para esclarecer e adequar com mais transparência que não sairemos da crise em tão pouco tempo. Seguindo a proposta da lei, se o prazo de adesão é até dezembro de 2016 e o prazo máximo é de dois anos, algumas empresas podem chegar até 2018 enfrentando redução de salário e de jornada.

A crítica que já fizemos quanto ao período de garantia de emprego da Medida Provisória e que funcionava como uma ameaça para as empresas, com a Lei 13.189, fica ainda mais grave. 

Retomemos o que tínhamos na Medida Provisória: nos termos do artigo 5º, as empresas estavam obrigadas a assegurar para os empregados atingidos garantia de emprego equivalente a 1/3 do período de redução de salário e de jornada: “As empresas que aderirem ao PPE ficam proibidas de dispensar arbitrariamente ou sem justa causa os empregados que tiverem sua jornada de trabalho temporariamente reduzida enquanto vigorar a adesão ao PPE e, após o seu término, durante o prazo equivalente a um terço do período de adesão”.

A redação atual trouxe a novidade de compromisso ainda maior, obrigando as empresas a uma avaliação mais elaborada da conveniência de aderir ao PPE. Assim o período escolhido para a adesão ao programa deverá ter a consistência de que a levará à saída da crise. Assim, o parágrafo 1º, do artigo 5º, estabelece que o acordo coletivo deverá conter dentre outros aspectos, que o período de garantia no emprego deve ser equivalente, no mínimo, ao período de redução de jornada acrescido de um terço. Estamos diante, portanto, de garantia mínima que amplia o prazo original da Medida Provisória.

De outro lado, no artigo 6º, a Lei nº 13.189 proíbe a empresa que aderir ao PPE de “dispensar arbitrariamente ou sem justa causa os empregados que tiverem sua jornada de trabalho temporariamente reduzida enquanto vigorar a adesão ao PPE e, após o seu término, durante o prazo equivalente a um terço do período de adesão”.

Há aparente conflito entre os dois dispositivos: de um lado, um que impõe condição à negociação o prazo mínimo de garantia de emprego equivalente ao período de redução acrescido de 1/3 e de outro lado, um dispositivo que de modo expresso proíbe a empresa de dispensar trabalhadores durante o período de adesão ao PPE mais um terço do período de adesão.

Ora, no primeiro aspecto é exigência mínima da negociação coletiva que a garantia de emprego poderia sugerir uma extensão além do período de redução de salário e jornada por igual tempo acrescido de um terço e, no segundo caso, do artigo 6º, fica assegurada a garantida de emprego pela lei enquanto houver adesão ao programa pela empresa que, ainda que se recupere ou não suporte as condições econômicas, não poderá dispensar trabalhadores enquanto vigorar o prazo de previsão de adesão mais um terço posterior.

São duas obrigações distintas às quais as empresas que fizerem a adesão deverão estar atentas: a condição legal para negociação coletiva válida dentro do modelo proposto e a garantia da lei. Claro está que em qualquer situação, a possibilidade de a empresa denunciar o PPE, de acordo com o disposto no artigo 7º, não a desobrigará da manutenção da garantia de emprego integral mais um terço. Trata-se de dúvida da forma de adoção da garantia de emprego trazida pelo texto.

Há, entretanto, novidades como a inserção de comissão paritária, sem fazer referência a participação sindical, para fiscalização do cumprimento do acordo coletivo, bem como acordo coletivo múltiplo de trabalho, por meio de sindicato representativo da categoria econômica preponderante e que poderia contemplar várias empresas.

A indefinição da situação econômica do país, aliada à instabilidade política talvez criem dificuldade para que as empresas sejam motivadas ao programa que, repetindo o que dissemos anteriormente, traz meios de negociações dispensáveis porque a legislação trabalhista já contemplava formas de flexibilização para momentos críticos e caberia às negociações coletivas a adequação de acordo com as necessidades da empresa e dos trabalhadores.



Paulo Sergio João é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.



Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2015, 8h01

Cabe à Justiça comum julgar contrato de trabalho que não é celetista




Como não se trata de um contrato de trabalho de regime celetista, é a Justiça comum que deve processar e julgar ação movida por um de portaria que trabalhou para o estado da Paraíba durante 40 anos, por meio de contrato de trabalho temporário, sem aprovação em concurso público. A decisão, do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, se deu no Conflito de Competência 7.931, suscitado pelo juízo comum diante do Tribunal Superior do Trabalho. Assim, o caso irá para o juiz de Direito da 2ª Vara da comarca de Princesa Isabel (PB).

A ação foi ajuizada na Justiça do Trabalho pedindo o ressarcimento de verbas trabalhistas. O trabalhador, que prestou serviços de 1979 a 2009, alega não ter situação salarial regulamentada e que deixou de receber diversas verbas indenizatórias pela falta do recolhimento do FGTS, um terço de férias e 13º salário, entre outras.

Após o trânsito em julgado, o estado da Paraíba ajuizou ação rescisória, e o Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região anulou a sentença, por reconhecer que a competência seria da Justiça comum estadual. Essa decisão foi mantida pelo TST em recurso ordinário.

Ao decidir pela competência da Justiça comum, o ministro Dias Toffoli assinalou que o STF, no julgamento da ADI 3.395, deferiu medida cautelar para suspender interpretações do inciso I do artigo 114 da Constituição Federal que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, o julgamento de feitos em que a relação seja de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.

“Não há contrato de trabalho firmado entre as partes sob o regime celetista”, esclareceu. “O estado da Paraíba, em sua defesa, afirmou expressamente que a contratação temporária se deu por meio de relação jurídica administrativa, e que a contratação havia sido em caráter temporário.”

A decisão cita diversos precedentes nos quais, em situação semelhante, o STF tem afastado a competência da Justiça do Trabalho. “Não compete à Justiça do Trabalho processar e julgar causas fundadas em relação de trabalho com a administração, inclusive as decorrentes de contrato temporário, ainda que a contratação seja irregular em face da ausência de prévio concurso público ou da eventual prorrogação indevida do vínculo”, concluiu. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

CC 7.931



Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2015, 11h44

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A Constituição não é o que STF diz que ela é ou quer que ela seja




* Texto produzido pelos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP.

No último dia 25 de novembro, o país acordou com a notícia de que o Supremo Tribunal Federal, através de sua 2ª Turma, decretara a prisão do senador Delcídio do Amaral. Sem dúvida, é um fato emblemático. Muitos aplaudiram a decisão da Corte, que foi vista como um importante gesto de combate à impunidade em relação aos delitos cometidos por importantes atores da classe política. Alguns ministros vocalizaram o que há muito tempo está na garganta de muitos brasileiros. O ministro Celso de Mello foi enfático ao afirmar: “É preciso esmagar e destruir com todo o peso da lei esses agentes criminosos que atentaram contra as leis penais da República e contra os sentimentos de moralidade e de decência do povo brasileiro”. Por sua vez, a ministra Cármen Lúcia bradou: “Quero avisar que o crime não vencerá a Justiça. A decepção não pode vencer a vontade de acertar no espaço público. Não se confunde imunidade com impunidade. A Constituição não permite a impunidade a quem quer que seja”.

Ainda no mesmo dia, por uma esmagadora maioria, o Senado confirmou a prisão, mantendo a decisão do STF. A respeito desse singular episódio de nossa história político-constitucional, convém destacar alguns aspectos que nos parecem relevantes. Antes de tudo, é preciso deixar claro que os crimes imputados ao senador Delcídio do Amaral são gravíssimos e devem ser apurados. Uma vez comprovada ocorrência desses crimes e sua culpa, assegurando-lhe o devido processo legal, o senador deve ser responsabilizado conforme nossa legislação. Nem mais, nem menos.

É de amplo conhecimento que a Constituição estabelece um conjunto de regras que compõem o chamado “Estatuto dos Congressistas”. Dentre elas, encontram-se a inviolabilidade, as imunidades e a prerrogativa de foro, tidas como garantias institucionais para assegurar independência do membro do Congresso Nacional no exercício do mandato parlamentar. Historicamente, tais prerrogativas visam resguardar os representantes eleitos de perseguições, investidas ou retaliações, especialmente perpetradas pelo Governo, as quais pudessem comprometer a adequada realização das atribuições inerentes ao cargo eletivo. Nesse sentido, a Emenda Constitucional 35/2001 criou a imunidade formal quanto à prisão, pela qual “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.” (artigo 53, §2º, CF).

A única exceção a tal regra diz respeito à prisão decorrente de decisão condenatória transitada em julgado. Afora esta situação, a Constituição veda, taxativamente, qualquer modalidade de prisão, a não ser aquela proveniente de flagrante de crime inafiançável. Exige-se, portanto, a presença de dois requisitos: flagrância e crime inafiançável. Isso não significa que um parlamentar não venha a responder criminalmente durante seu mandato. Aliás, muitos dos congressistas eleitos para o exercício do presente mandato encontram-se atualmente na posição de réus em ações penais. Não podem, contudo, em decorrência das imunidades, sofrer prisões processuais, respondendo ao processo judicial em liberdade. Logo, aplicar a regra da imunidade formal quanto à prisão não é sinônimo de impunidade, pois ela não representa qualquer obstáculo ao andamento da ação penal e, caso o parlamentar venha a ser condenado, deverá cumprir a pena estabelecida. Apenas não podem ser presos preventivamente e tampouco temporariamente.

Por essa razão, a decisão do STF causou estranheza a boa parte dos professores de Direito Constitucional e de Ciências Criminais, acostumados a ensinar aos seus alunos que deputados e senadores apenas podem ser presos em flagrante delito de crime inafiançável. Diante de perguntas dos alunos, esses docentes estavam habituados a explicar que a regra visava impedir que prisões processuais pudessem ser usadas para desestabilizar ou impedir a representação e que era um custo que a democracia assumia. Não há, na Constituição, qualquer espaço para prisões cautelares de parlamentares. O texto é enfático na restrição e não deixa margem para interpretações extensivas. Ao contrário, a Constituição determina que a imunidade subsiste, inclusive, durante uma situação excepcional como o Estado de Sítio (artigo 53, § 8º, CF), o que demonstra ser temerária qualquer relativização da garantia constitucional em época de normalidade institucional.

É evidente que a imunidade, na dimensão em que foi constitucionalizada, pode ser usada de forma distorcida, assim como outras garantias também podem. A crítica, no entanto, em relação às imunidades, precisa resultar em propostas de alteração do texto constitucional e em pressão política para que o texto seja revisto. E isto já ocorreu em relação à outra modalidade de imunidade parlamentar. De fato, inicialmente, a Constituição previa que o STF apenas poderia iniciar ação penal contra parlamentar no curso do mandato mediante licença prévia da Casa Legislativa. Na prática, porém, essa prerrogativa levou a um sem número de episódios, muitas vezes impulsionados por razões corporativistas, em que o Parlamento simplesmente silenciava diante do pedido feito pela Corte para iniciar alguma ação penal. O tribunal ficava de mãos atadas, pois nada podia fazer sem a autorização do Parlamento. A distorção da imunidade parlamentar, à época, não serviu de justificativa para o STF ignorar o preceito constitucional ainda vigente. Ao contrário, a crítica severa ao instituto fez com que a exigência de licença prévia fosse posteriormente revogada pela EC 35/2001, que deu nova redação ao artigo 53, § 3º. Portanto, se a imunidade formal quanto à prisão, outrora justificada para proteger a liberdade de locomoção do parlamentar contra prisões arbitrárias, perdeu sua razão de existir em um ambiente de estabilidade democrática, nada impede que seja modificada pelo processo de reforma constitucional. Porém, até que isso ocorra, a regra não pode ser ignorada, não devendo ser decretada prisão preventiva contra congressista. Cuida-se, tão-somente, de respeito à legalidade constitucional.

Outrossim, poder-se-ia pensar fazer uso do conhecido método da ponderação para afastar a aplicação do artigo 53, §2º , da CF, em nome de algum princípio constitucional. Todavia, a ponderação, quando adequadamente utilizada, pressupõe um conflito entre princípios, o que não é o caso, pois o preceito constitucional que proíbe a prisão preventiva de parlamentar é uma norma-regra, submetida não a sopesamentos e sim à logica do tudo ou nada. É dizer, ou estão presentes os requisitos constitucionais que autorizam a prisão, e esta pode ser decretada, ou não estão presentes, e, neste caso, não são legítimos giros hermenêuticos para promover interpretações extravagantes. Curiosamente, a corte possui precedentes que reconhecem a aplicação da citada imunidade mesmo para obstar prisões civis por descumprimento de pagamento de pensões alimentícias, situação que sequer guarda relação com a atividade pública de parlamentar. E, não obstante, a regra é aplicada também a esses casos, pois apenas pode haver prisão em caso de flagrante de crime inafiançável. Portanto, o que se deve evitar aqui é a utilização equivocada do método da ponderação para criar uma falsa justificação buscando afastar a aplicação de comando constitucional vigente. Infelizmente, muitos têm sido os casos em que a ponderação é empregada como válvula de escape para que o juiz decida com base em preferências pessoais, configurando um decisionismo que deve ser combatido com veemência.

Na presente situação, um crime afiançável — no caso, o de organização criminosa (artigo 2°, § 1° da Lei 12.850/2013) — foi, com a decisão, transformado em inafiançável com uma errônea e indevida aplicação de dispositivos processuais penais e sob o argumento de que “o tom absolutista de proibição da prisão cautelar [...] não se coaduna com o modo de ser do próprio sistema constitucional. Se não são absolutos sequer os direitos fundamentais, não faz sentido que seja absoluta a prerrogativa parlamentar de imunidade à prisão cautelar”. Os delitos caracterizados como inafiançáveis são apenas aqueles dispostos na Constituição e no Código de Processo Penal: racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos e crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. O senador Delcídio do Amaral foi preso pelo delito de organização criminosa, afiançável, portanto, já que fora do rol antes mencionado. O artigo 324, que serviu de alicerce à decisão do STF, apenas informa que, no caso de delitos afiançáveis, a fiança não será concedida quando cabível a prisão preventiva — por óbvio!

Em suma, o senador foi preso em flagrante pela prática de um delito afiançável, violando frontalmente a regra proibitória constitucional.

É compreensível que, a partir de todo um clamor social e de uma sensação de descontentamento da opinião pública diante de sucessivos escândalos de corrupção, faz crescer, em certa medida, a ânsia pela punição exemplar daqueles que ocupam importantes cargos na vida política do país e que protagonizam a instrumentalização das instituições para fins privados. A crença no caráter exemplar da reação punitiva, aliada ao problema de perpetuação de um Estado patrimonialista, nos leva a aceitar um discurso legitimador de decisões como a que foi tomada pelo STF. Todavia, a punição, a qualquer custo, e passando por cima das leis e da própria Constituição, antes de ser o remédio para o problema, pode se transformar em perigoso veneno em desfavor das liberdades públicas. A missão institucional do STF, o que vale para o Poder Judiciário em geral, não é atuar como uma espécie de “justiceiro”. Ser o “guardião da Constituição” pressupõe um compromisso em defendê-la, seja em seus elementos virtuosos , seja em tantos outros que merecem aperfeiçoamentos. Porém, sob o pretexto de “fazer justiça”, o Poder Judiciário não pode ir de encontro precisamente àquilo que lhe compete defender e seguir intransigentemente: a Constituição.

E nesse caso, a manipulação política de preceitos fundamentais não é admissível no Estado de Direito. A lógica é a mesma para o que se busca denominar de punição exemplar em casos de corrupção, assim como para os mais comuns clientes desse sistema — negros e negras, pobres e periféricos. O fato é que essa punição moralizadora assumida pelo sistema punitivo acaba por eleger bodes expiatórios, independente da ideologia político-partidária que a inspire. Esta cautela busca afastar o estigma da seletividade do Sistema de Justiça Criminal, revitalizando-o em sua perspectiva retributiva, seja para a definição do punitivismo comum, aquele que recai sobre os mais vulneráveis, seja para os próprios atores das agências de poder criminalizante.

Por isso, a indignação não pode ser seletiva. Ainda nesse mês de novembro, o STF relativizou a garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio, autorizando a invasão em residências sem ordem judicial, para posterior validação judicial (RE 603.616). Nesse caso, a maleabilidade constitucional recaiu sobre o pedido de um cidadão pobre, acusado de tráfico de entorpecentes.

A decisão causou também espécie em criminólogos e defensores de direitos humanos, que vêm denunciando as chamadas ‘entradas forçadas’ ou ‘franqueadas’ por parte das forças de segurança nas casas de moradores e moradoras das periferias brasileiras. Naqueles bairros, certo “estado de exceção permanente” parece se perpetuar no métier da segurança pública e o que o STF fez foi, tão-somente, reforçar e autorizar essas práticas.

Ante o cenário de perpetuação de um Estado de Polícia, o direito positivo é uma barreira de contenção possível, inobstante frágil, dado o certo de grau de indeterminação semântica que possui. Porém, ele não é totalmente indeterminado. A Constituição não pode ser vista pelo intérprete, sobretudo pelo STF, como um repertório de palavras vazias aguardando construções de sentido arbitrariamente formuladas. O direito legislado, incluindo o próprio texto constitucional, não é um cheque em branco dado ao juiz constitucional. Em uma Democracia Constitucional, a Constituição não é o que STF diz que ela é ou quer que ela seja. Do contrário, somos forçados a reconhecer que não dispomos de parâmetros minimamente objetivos e racionais para identificar o direito democraticamente produzido, pois tudo é reduzido ao que juiz pensa sobre o direito.

Além disso, e, desta feita, seguindo o que determina a CF, o STF comunicou sua decisão ao Senado dentro do prazo de vinte e quatro horas. Quando a CF afirma que cabe ao Senado resolver sobre a prisão, isso significa que ele possui autonomia para deliberar sobre manutenção ou não da prisão. Trata-se de uma avaliação acentuadamente política, como não seria diferente, em se tratando de uma Casa Legislativa. De forma curiosa, alguns Senadores, na sessão em que se resolvia sobre a prisão, defenderam que não poderiam ir de encontro à decisão do STF. Ora, é razoável que, por razões as mais diversas, o Senado optasse por manter a prisão, alinhando-se à decisão da corte. Porém, afirmar que deve seguir a decisão do STF é renunciar à própria função de contrapeso que a Constituição lhe atribuiu, o que represente uma diminuição institucional da casa.

Também causa estranheza quando uma corte da envergadura do STF se utiliza de expedientes retóricos para transmitir lições à sociedade. O uso de frases impactantes, com conteúdos de elevado apelo moral e ético, busca apenas criar uma imagem perante o senso comum de que o tribunal se encontra num patamar moral superior às demais instituições e que pode, lá do alto, apontar, implacavelmente, os desvios dos outros. Essas fundamentações maximalistas poucos acrescentam à consistência e legitimidade de seus acórdãos, até porque não integram sua ratio decidendi.

Melhor seria que o STF reafirmasse seu papel de defensor da ordem constitucional, decidindo com base na constituição, e não apesar dela. E para qualquer cidadão que dele demande, seja o senador da República, na prerrogativa constitucional da imunidade parlamentar; da seja o pobre periférico, na garantia da inviolabilidade de domicílio. Já terá feito muito. E terá dado sua real e significativa contribuição para a nossa democracia.

Portanto, entendemos que a decisão da corte é frágil, porque destoa da literalidade do texto constitucional, ignora toda a construção doutrinária em torno da imunidade formal e surpreende a própria narrativa de seus precedentes. Aceitar, de forma tranquila, que decisões como essa sejam isentas de crítica é tornar a Academia caudatária dos pronunciamentos judiciais. E pior: é reconhecer o fracasso do projeto político de Estado Democrático de Direito, pois a hegemonia política dos monarcas e presidentes teria sido devidamente substituída pela elegante hegemonia dos Tribunais. E isso é um supremo equívoco.

* Este texto foi produzido pelos seguintes professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC/CNPQ) e do Grupo Asa Branca de Criminologia (CNPQ): Adriana Rocha Coutinho; Carolina Salazar; Érica Babini Machado; Fernanda Fonseca Rosenblatt; Flávia Santiago Lima; Glauco Salomão Leite; Gustavo Ferreira Santos; Helena Rocha Castro; João Paulo Allain Teixeira; José Mário Wanderley Gomes Neto; Luiz Henrique Diniz Araújo; Marcelo Casseb Continentino; Marcelo Labanca Corrêa de Araújo; Marília Montenegro P. de Mello e Stéfano Toscano.


Revista Consultor Jurídico, 3 de dezembro de 2015, 6h43

O nome que o STF dá é o nome que fica? Eis o busílis do caso Delcídio!







Abstract: O caso Delcídio suscita vários questionamentos. A coluna de hoje busca discutir este caso de forma não ortodoxa, não dogmática, com a intenção de refletir. Mais sobre o futuro do que sobre o “agora”.

Calvo Gonzalez e eu discutimos dias destes, em seminário em Málaga, sobre como os primeiros gregos “disseram o mundo”. Na aurora da civilização, houve um dia em que alguém tinha de nominar. Platão, pela boca de Sócrates, escreveu o primeiro livro de filosofia da linguagem, o Crátilo. O capítulo mais bonito: Da justeza dos nomes. Por que uma coisa tem o nome x e não y? Não vou contar a história, até porque em meus livros falo disso amiúde.

Sigo. No início, o homem era a medida de todas as coisas. Aliás, Protágoras foi quem disse essa frase: o homem é a medida de todas as coisas. Claro. Seu corpo “media tudo”. Interessante é que, até hoje, usamos as primeiras formas de nomear: pé da árvore, pé direito dos prédios, medimos a altura em pés, palmos, polegadas; falamos do ventre da montanha, da garganta da serra; do olho do furacão, do céu da boca, da pele da fruta, do corpo de baile etc.. Para dizer “instante”, o primeiro grego disse “num piscar de olhos” (em alemão é Augenblick, para se ter uma ideia do valor da semântica). E assim por diante.

Protágoras... Quase poderia dizer que protagonismo vem de Protágoras (mas vem de Protos + agonistes; principal lutador). Por que estou falando (d)isso? Para lembrar as circunstâncias e contingências pelas quais passa o Supremo Tribunal Federal. Sim. Por vezes, o STF está como o primeiro grego: tem de nomear. Assume o papel de protos agonistes. Só que, quando nomina, repercute. Para retomar os gregos: o STF, para o bem e para o mal, funciona (às vezes e em raríssimas exceções) como o nomoteta. E quem era onomoteta? Era o “dador de nomes”. Na verdade, era o “grande legislador”, como se vê na obra Crátilo. Não é por nada que, em alemão, legislador se chame Gesetzgeber, que quer dizer, literalmente, o que dá as leis (logo, legislador). Bingo.

Assim, o “nome” (a decisão) que o STF dá repercute. Protago...niza. Ele acaba sendo mesmo uma espécie de Protágoras, porque, excepcionalmente — diante de uma contingência — diz o direito “pela primeira vez”. Por causa disso, por vezes, ele, o STF, acaba sendo a “medida de todas as coisas”, quer dizer, “do direito”. Por isso, suas nominações (sim, quem decide “dá nome àquele caso”) têm — sempre — efeitos colaterais. Por vezes, indesejados. Os casos têm filhotes. São reproduzidos. E, em algumas ocasiões, a origem se esfumaça. O “nome” dado adquire vida própria. E perde o DNA.

Dois episódios sobre “nominação”
Dois episódios merecem ser colocados no contexto de nominação protagonizado pela Suprema Corte. Como diria o Pequeno Príncipe, se tivesse uma causa no STF, “a Suprema Corte é responsável pelas causas que cativa”, quer dizer, que nomina.

O primeiro episódio é o da ADI 3.943, pela qual o STF disse que a Defensoria pode patrocinar ações civis públicas. OK. Decisões do STF valem. São definitivas. Só que o “nome dado” pelo STF, nesse caso, ficou ambíguo, porque não disse, com todas as letras necessárias, quem seriam os destinatários desta nova forma de atuação. Quaisquer pessoas, ou apenas aquelas que a Constituição (que nomina as coisas antes do STF) indicou, os tais carentes de recursos (artigo 5º, LXXIV)? Resultado: uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (EREsp 1.192.577) — interpretando o “nome” dado pelo STF à coisa “carentes de recursos” — permite a existência de um outro nome para os “carentes” (lá, no STJ, falou-se em vulnerabilidade existencial); já no Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça estadual disse que a Defensoria podia patrocinar a causa de uma Delegada de Polícia, porque decidiu que a expressão necessitados, empregada pela Constituição (artigo 134), abrangeria os hipossuficientes organizacionais. Não bastasse, mais recentemente, a Defensoria Pública do RS postulou em Juízo que a Uber fosse autorizada a trabalhar no Brasil. Sim, a UBER, esse giganteorganizacional, para usar a linguagem cara à Defensoria, com o novo nome que se dá ao que é “carente de recursos”, poderá se beneficiar desse protagonismo. Uber vale bilhões. Pagou os melhores pareceres dos maiores juristas (a ConJur publicou os pareceres, por certo não dados pro bono). Qual será o novo nome a ser dado à expressão “carente de recursos”?

Eis, portanto, o problema das repercussões dos “nomes dados”. A cada nomeação/nominação que o STF faz (e nem é necessário discutir o mérito), o sistema reage. Como foi na aurora da civilização, uma ADI é, hoje, a aurora epistêmica do sentido da lei. O STF funciona como o Sinngeber (o dador de sentidos, isto é, o atribuidor de sentidos). Por isso é que ele deve dar o nome bem simples e claro ao que seja “carente de recursos”. Deve dizer se carentes de recurso é carentes de recursos, carente organizacional, carente existencial, carentes de afetos... Para o bem e para o mal. Antes que a Vale do Rio Doce seja beneficiada por alguma ação da Defensoria... Afinal, por trás da Vale existem milhões de hipossuficientes... Como no caso da Uber, que transportará... hipossuficientes e hipersuficientes. Ou Übersuficientes, se me permitem a ironia (Über, em alemão, é acima, sobre, super). Eis o problema.

Claro, a Defensoria não admite patrocinar a causa da Uber (ver aqui), mas, sim, a dos “motoristas particulares” e dos “consumidores do serviço”, estes “grupos em situação de vulnerabilidade”. Mas, sejamos francos: os interesses desta gente são, ou não, confluentes com os da própria Uber? E a Uber já não está devidamente assistido, em Juízo e fora dele? Qual é o argumento original, inovador, que a Defensoria trouxe para o debate processual a respeito dessa questão (que ocupa a ordem do dia em Porto Alegre)? E o pior — e isso deve ser dito — é que este clima de anything goesestá sendo de algum modo, permitido/provocado pelo próprio STF. Por quê? Por causa da nominação. Como falei acima, a Suprema Corte deve dar o nome certo à coisa. Entendem o que quero dizer? Como dizia Stephen Georg, que nada seja onde falta a palavra (Kein Ding sei wo das Wort gebricht).

O segundo episódio é o da prisão do senador Delcídio do Amaral. Como é a primeira vez que um senador é preso, tem-se, evidentemente em face das particularíssimas circunstâncias do caso — uma vez que todos os “demais gregos” tinham até então, um determinado sentido de flagrante e inafiançabilidade — a aurora do sentido do que seja “flagrante” e “crime inafiançável”. O STF esteve diante de uma situação inusitada, como quando alguém diz “não tenho palavras para dizer tal coisa...”. E fê-lo.

Ocorre que, na medida em que não podemos sair por aí trocando o nome das coisas, essa “nominação” do STF tem/terá repercussões imensuráveis. Veja-se: não preciso traçar uma linha de elogio ou crítica à decisão. Não é a intenção desta reflexão. Ademais, prefiro não me precipitar, uma vez que o próprio STF terá em breves dias uma rediscussão da matéria, quando chegar para seu exame a denúncia (peça ovo criminal) contra Delcídio e os demais. Provavelmente o PGR denunciará Delcídio também por organização criminosa (outra questão — o que é isto — a organização criminosa? Qual é o “nome” dessa coisa?).

Por isso, o que mais deve nos preocupar não é fato em si, isto é, se a Suprema Corte acertou ou errou ao dar o sentido do alcance da expressão “flagrante”, estendendo-o até caber no conceito de crime permanente, ou se crimes inafiançáveis não são apenas o racismo, o tráfico, a tortura, o terrorismo, a ação armada contra o Estado e os crimes hediondos. Não. O que mais deve preocupar a comunidade greco-forense (permito-me a alegoria) é o dia seguinte: já que o STF deu o nome a essas coisas novas(afinal, nunca um senador fora preso), teremos que passar a chamá-las agora por esse nome (faço, de novo, uma alegoria com a filosofia).[1] Não esqueçamos, como dizia Saussure — lembro de minhas aulas de semiologia nos anos 80 do mestre Warat —, que a atribuição de sentido possui quatro caracterizações: 1) o sentido é, primeiramente, convencional (como o primeiro grego fez); 2) surge, então, a imutabilidade (nome dado, nome “ficado”); 3) exsurge a mutabilidade (passa o tempo, mudam os fatos... e os sentidos podem ser alterados); 4) por último, a linearidade (um sentido não ocupa o mesmo “espaço” do outro). Eis, pois, o busílis da questão do caso Delcídio: quais serão as repercussões dos sentidos atribuídos pelo Supremo Tribunal?

Se pensarmos, por exemplo, que a jurisprudência deve ter estabilidade, coerência e integridade, talvez o grande problema do STF seja o “de que modo ele tratará os próximos casos”. Não parece que o caso Delcídio possa ser entendido como o estabelecimento provisório de um Estado de Exceção Hermenêutico, algo que o jornalista-filósofo da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman, chamou de “Decisão forçada” (leia aqui). Como referi, prefiro ser mais cauteloso e aguardar os próximos acontecimentos. A matéria ainda passará por mais discussões, com as complexidades de coisas como a Súmula 606, que impede HC contra decisão colegiada do STF (mas isso é assunto para outro dia, uma vez que existe o HC 127.483/PR – Rel. Min. Dias Toffoli, em que houve empate e o paciente foi beneficiado). O próprio PGR está com um “pepino” nas mãos, porque terá que oferecer denúncia e justificar tudo o que pediu antes (sem considerar que, cá para nós, o PGR deveria explicar por que razão a mais alta autoridade do MP faz um pedidocontra legem, que, fosse o STF interpretá-lo de forma mais ortodoxa, não o teria conhecido; afinal, se não existe prisão processual de parlamentar, como requerer a sua preventiva? Sim, exatamente com esse nome?).

O quero dizer é que, assim como o homem era a medida de todas as coisas na aurora da civilização, também o STF acaba assumindo o papel de ser a medida do direito (veja-se: não estou me rendendo, nem de longe, ao aforisma de que “o direito é o que o judiciário diz que é”; quero dizer que, institucionalmente, o STF tem o poder de dizer por último – e em alguns casos, por primeiro, o sentido — dar o nome — do direito). Obviamente, esta situação se torna cada vez mais rara diante do aumento da complexidade do sistema jurídico com o passar do tempo.

Então qual é ponto central? O busílis é que nos resta saber qual é a régua (régua = medida, lembrando de Protágoras) que o STF usará nas causas que vem por aí tratando de prisão em flagrante e sua respectiva extensão a partir do critério da permanência da atividade criminosa. Nome dado, nome que fica? Do mesmo modo, terá que definir qual a medida que usará para definir a prisão preventiva em casos de inafiançabilidade. Claro: reconheço que os gregos tinham uma vantagem. É que depois de Protágoras, vieram Platão, Aristóteles e, no medievo, Agostinho, Aquino, Ockham para só depois chegarmos à filosofia da consciência. No caso do Supremo, é tudo com ele mesmo. Ele é que decide em última ratio a matéria para o qual a Constituição lhe atribui a primeira e a última palavra (eis o paradoxo), podendo errar ou acertar, ou um pouco das duas coisas simultaneamente. O Supremo é, ao mesmo tempo, Protágoras, a antiguidade, a modernidade, a viragem linguística. Eis a especificidade do direito: a fala, o discurso, a decisão jurídica institui; estabelece; fixa. Vincula. O STF terá que dizer qual é a força normativa da Constituição. Os limites semânticos importam? Não tenho dúvida de que sim, eis que até de positivista exegético sou “acusado”. O STF é que tem a responsabilidade política do ônus argumentativo. Ou seja: é como se perguntassem para Protágoras porque nominou a distância em braças, pés e passos. A diferença é que Protágoras não tinha que dar explicações.

Numa palavra reflexiva.
Quando se lida com o Direito, lida-se com conceitos interpretativos. Digo isso para deixar claro que o que quero discutir não é com quantos centavos se faz um necessitado (ou carente) e nem bem qual o conceito de flagrante ou deinafiançáveis, atribuído de forma convencional. Quero, isto sim, debaterconteúdo. O argumento jurídico é sempre um argumento substantivo.

Qual o estatuto, por assim dizer, das chamadas imunidades parlamentares? Muito genericamente, poderíamos dizer que as tais imunidades são prerrogativas de que o mandato parlamentar seja exercido de forma livre de coação. É uma garantia da independência da atuação do parlamentar. A ideia é, por um lado, garantir a livre expressão de opinião, palavras e votos; e, por outro, proteger o congressista contra restrições arbitrárias à privação de sua liberdade. Com alguma licença, para me fazer entender: o que não se quer é proibir o político de fazer... política. Sim: política e não outras coisas. Aliás, foi graças aos nossos maus antecedentes que incluímos imunidades no texto constitucional. Trata-se de proteger a democracia.

Com isso em mente, e deixando de lado o debate sobre se inafiançáveisseriam apenas aqueles crimes referidos no próprio texto constitucional, temos que discutir o “nome” dado à prisão em flagrante nesse caso e suas repercussões para o futuro. Qual é a relação entre flagrante e permanência? Mas, mais do que o “nome” dado à flagrância, temos que discutir se o STF fez uma interpretação relativizando a imunidade ou se fez uma interpretação devidamente justificada pelas circunstâncias.

Por óbvio, não estou sugerindo uma interpretação teleológica da Constituição. Todos sabem que não sou consequencialista. Não estou dizendo que o texto pode ser subvertido quando “um valor mais alto se alevanta” (sic). Não é isso. Mas uma coisa parece certa: em alguns casos muito excepcionais, se inaugura, institucionalmente, uma nova cadeia interpretativa (eis a característica da “mutabilidade” que parece ter ocorrido com a nominação de que falei). Mas, atenção: daí exsurge um ônus, representado pelo fato de que os nossos olhos não devem apenas voltar-se para o agora, mas sobretudo, para os próximos capítulos que se estão a suceder. Um nome que é dado é um nome que fica? Para todos os “greco-brasileiros”? Esse é o busilis.


[1] Só para registrar: adoro discutir Protágoras; adoro discutir também Ockham (que de certo modo faz algo parecido ao dizer que só existem coisas particulares). Mas, é claro, como hermeneuta, sou adepto do giro linguístico-ontologico, em que os sentidos se dão em um a priori compartilhado.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 3 de dezembro de 2015, 8h00

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