É com grande satisfação que se volta a falar para os leitores dessa respeitável coluna Direito Civil Atual, mantida pela Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo.
Como prometido na
coluna anterior, retorna-se para tratar das novas regras sobre a atribuição legal do Ministério Público para fiscalização ou velamento das fundações, introduzidas pela Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, por meio da alteração dos artigos 66, parágrafo 1º, e 69, III, do Código Civil.
Há, assim, duas alterações a serem analisadas: a) a do parágrafo 1º do artigo 66, que retira do Ministério Público Federal a atribuição para fiscalizar as fundações sediadas no Distrito Federal e Territórios, conferindo-a ao Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios; e b) a do inciso III do artigo 67, por meio do qual se fixa um prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para que Ministério Público aprecie uma alteração estatutária que lhe seja submetida.
Como se sabe, no Brasil, é de grande relevância a missão conferida ao Ministério Público consistente na atividade de velamento das fundações, incidido sobre todos os momentos de sua existência, inclusive sobre aquele que antecede a sua própria criação [
[1]]. A principal razão de ser dessa proteção está na sua própria natureza, ou seja, a fundação é, em essência, uma dotação patrimonial realizada em benefício de uma determinada coletividade ou da própria sociedade [
[2]]. As fundações, todas elas, porque manipulam patrimônio destinado ao serviço de terceiros, sujeitam-se ao controle estatal para a proteção dos interesses e direitos dos beneficiários [
[3]].
Ocorre que a estrutura do Ministério Público brasileiro, assim como a do Poder Judiciário, é federativa. Com efeito, de acordo com o artigo 128, da Constituição Federal de 1988, há o Ministério Público da União e dos Estados. Entre aqueles primeiros, há o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Tanto esses últimos, quanto o Ministério Público Estadual, detêm potencial atribuição de velamento das fundações. Consequentemente, tal atribuição deve ser repartida, em consonância com o modelo constitucional vigente.
Na vigência da primeira codificação brasileira, caso a fundação estivesse situada em apenas um Estado ou no Distrito Federal, ela seria velada pelo órgão do Ministério Público local, ou seja, pelo Promotor de Justiça, Curador de Fundações (caput e parágrafo 1º do artigo 26, do Código civil de 1916). Contudo, caso a fundação estendesse a sua atividade a mais de um Estado ou ao Distrito Federal, ou, se situada no Distrito Federal, ampliasse a sua atuação para outros Estados da Federação, caberia a cada um dos respectivos Ministérios Públicos esse encargo ( parágrafo2º do citado artigo 26). Havia, assim, uma repartição legitima das atribuições [
[4]].
O Código Civil de 2002, todavia, por meio do parágrafo 1º do artigo 66, alterou a sistemática do código anterior, ao conferir a atribuição da fiscalização das fundações instituídas no Distrito Federal e Territórios ao Ministério Público Federal. Obviamente que se tratou de um grande equívoco do legislador de 2002. Isso porque o mencionado dispositivo, ignorando que a estrutura do nosso Ministério Público é federativa, afastava o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios de suas atribuições constitucionalmente legítimas.
Diante dessa questão, parte da doutrina se posicionou no sentido em que as atribuições do Ministério Público não poderiam ser criadas por meio de uma lei ordinária (no caso, o Código Civil), mas somente através de uma lei complementar, com base no parágrafo 5º do artigo 128 do Texto Constitucional. Outros, todavia, defendiam a tese da interpretação harmônica entre os conteúdos do Código Civil e da Lompu, segundo a qual a expressão “Ministério Público Federal” deveria ser compreendida como “Ministério Público da União”. Nesse contexto, editou-se o Enunciado 10 da Jornada de Direito Civil, com o entendimento de que, “em razão do princípio da especialidade, o artigo 66, parágrafo 1º, deve ser interpretado em sintonia com os arts. 70 e 178 da Lei Complementar nº. 75/93”.
Essa questão também mereceu a análise do STF, ao julgar a ADI nº. 2.794-8, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), cuja relatoria coube ao ministro Sepúlveda Pertence. Consoante entendimento firmado pela Augusta Corte, a atribuição fiscalizatória das fundações sediadas no Distrito Federal fica a cargo do Ministério Público do Distrito Federal.
Nos termos do voto do relator, embora tenha sido afastada a tese da inconstitucionalidade formal – sob o argumento de que o artigo 128, parágrafo 5º, da Constituição Federal não assegura uma reserva absoluta à lei complementar para conferir atribuição ao Ministério Público –, acabou por ser declarada a inconstitucionalidade material o parágrafo 1º do artigo 66 do Código Civil de 2002, ao fundamento de que é do próprio sistema da Constituição que se infere a identidade substancial entre a esfera de atribuições do Ministério Público do Distrito Federal e aquelas confiadas ao MP dos estados, as quais, à semelhança do que acontece com o Poder Judiciário, apuram-se por exclusão das atribuições que expressamente correspondem ao Ministério Público Federal, ao do Trabalho e ao Militar.
Enfim, embora o conflito já estivesse devidamente pacificado no julgamento da ADI nº. 2.794-8, a Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, por meio do seu artigo 2º, houve por bem alterar o dispositivo em questão, para o fim de conferir a atribuição da supervisão das fundações que funcionem no Distrito Federal e Territórios ao próprio MPDFT. Pode-se afirmar, então, que não houve qualquer mudança substancial no direito vigente, conquanto não se ignore que a alteração em voga buscou corrigir aquilo que foi um grande equívoco do legislador de 2002, visando, assim, a manter a coerência do sistema.
Novidade mesmo apenas se vê no artigo 3º da mencionada Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, que atribuiu nova redação ao inciso III do artigo 69 do Código Civil, para o fim de ali fixar um prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para que os membros do Ministério Público se manifestem a respeito de eventuais alterações estatutárias que venham a ser requeridas pelas fundações interessadas.
O tema comporta temperamentos. No direito comparado, observam-se variações quanto à possibilidade de alteração do estatuto da fundação, não apenas quanto à forma em si, mas também quanto ao conteúdo.
No direito alemão, por exemplo, admite-se, excepcionalmente, a transformação do fim fundacional, quando se demonstre impossível o alcance dos objetivos originários ou quando se ponha em risco o bem comum, devendo-se buscar, em qualquer dos casos, a preservação do desejo do instituidor e que as rendas do patrimônio da fundação sejam mantidas, quanto possível, no mesmo círculo de favorecidos ( parágrafo 87 do BGB) (
[5]). De maneira semelhante, opera-se no direito português (artigos 189 e 190 do Código Civil português).
No Brasil, a alteração dos estatutos de uma fundação é algo também possível, embora de maneira não tão ampla.
Admite-se alteração desde que haja necessidade de se adaptar os fins originariamente previstos às novas circunstâncias, visando-se, assim, ao aperfeiçoamento da estrutura e das regras da entidade para que ela possa melhor atender a esses objetivos. Adaptam-se, assim, as atividades-fins para a consecução da finalidade maior [
[6]]. Em outras palavras, as alterações, ainda quando necessárias, não poderão contrariar ou desvirtuar a finalidade da fundação, fixada no ato de instituição, encontrando aí um limite de ordem substancial.
Há ainda mais dois requisitos, de ordem formal, quais sejam: as alterações propostas devem ter sido aprovadas por dois terços dos integrantes do órgão incumbido da gestão e representação da fundação; e necessitam ser submetidas ao órgão competente do Ministério Público, que vela pela fundação, para que as aprove.
Aprovadas as alterações, serão registradas na forma legal. Caso sejam recusadas pelo órgão do Ministério Público, poderão ser supridas pelo juiz competente, mediante requerimento da parte interessada, nos termos do inciso III, do artigo 67, do Código Civil, mediante procedimento específico previsto nos artigos 1200 a 1204 do CPC-73.
Esse era o cenário legislativo vigente até então. A novidade agora é que, de acordo com a nova redação do inciso III do artigo 69 do Código Civil, dada pela Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, haverá um prazo para essa manifestação de aprovação ou desaprovação do Ministério Público acerca das alterações propostas, ou seja, caso o Promotor de Justiça Curador das Fundações não se manifeste sobre o pedido de alteração dentro do prazo de 45 dias, o seu silêncio poderá ser suprido pelo juiz, a requerimento do interessado.
Alem disso, o novo Código de Processo Civil – editado pela Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 –, diversamente do CPC-73, houve por bem não trazer quaisquer disposições acerca do procedimento para a aprovação e alteração dos estatutos das fundações junto ao Ministério Público. Nada disse, tampouco, a respeito dos prazos para que o Ministério Público manifestasse sobre tais pedidos, revogando os dispositivos do código anterior que tratavam do assunto (artigo 1201 do CPC-73).
Limitou-se, assim, o CPC-15 a indicar as hipóteses de suprimento judicial a respeito da aprovação ou alteração dos estatutos das fundações, sempre que o Ministério Público denegar previamente o pedido ou condicionar a aprovação dos estatutos às adaptações que entender pertinentes (artigo 764, I), praticamente repetindo as hipóteses já previstas no Código Civil de 2002 (artigos 65 e 67, III).
Logo, a partir da nova redação dada ao referido artigo 67, inciso III, do Código Civil, o suprimento judicial, que era hipótese já prevista para os casos de denegação da alteração estatutária, poderá também ser utilizado nas hipóteses de silêncio ou falta de manifestação do Ministério Público, depois de transcorrido o referido prazo de 45 dias.
Na prática, caso não se concorde com a postura adotada pelo órgão do Ministério Público – seja ela no sentido de denegar previamente o pedido de alteração, de condicioná-lo a reparos, ou simplesmente de silenciar-se por um prazo superior a 45 dias –, poderá o interessado valer-se do pedido de suprimento judicial, cujo rito a ser adotado será o dos procedimentos de jurisdição voluntária (previstos nos artigos 719 a 725 do CPC-15).
Trata-se de alteração louvável, pois busca dotar essa manifestação da necessária celeridade, considerando-se a eventual necessidade de uma rápida adaptação das fundações às constantes alterações regulatórias e econômicas, sem que, entretanto, abra-se mão do papel fiscalizador do Ministério Público, este que é considerado fundamental para garantir a lisura e a regularidade do funcionamento das fundações.
Propõe-se, ao final, uma reflexão: note-se que as alterações no regime das fundações, trazidas pela Lei federal nº. 13.151, de 28 de julho de 2015, aqui sumariamente apresentadas, ainda quando louváveis e tragam alguma repercussão prática, revelam-se tímidas. Com efeito, parece ser cada vez mais premente a necessidade de se aprofundar as discussões quanto à necessidade crescente de estabelecimento de controle dessas entidades, por parte da sociedade, mas sem descurar da imprescindibilidade de oferecer maiores estímulos ao desenvolvimento do denominado terceiro setor. Há um fino equilíbrio nessa balança.
Nesse sentido, parecem alvissareiras as possibilidades trazidas pela recente entrada em vigor da Lei nº. 13.019/2014, que vem sendo denominada de Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, mas que, apesar do nome, trata apenas do relacionamento entre a Administração Pública e as instituições sem fins lucrativos.
Soam como avanços, por exemplo, a questão da segurança jurídica, conferida pelo caráter nacional da referida lei, e o aprimoramento do delicado relacionamento entre essas entidades e o Poder Público, por meio da criação de instrumentos jurídicos próprios de fomento e colaboração, do favorecimento à agregação de projetos e atuação das OSC em rede, da prestação de contas simplificadas, dentre muitas outras. Mas é importante ter em mente que a lei não regula uma série de outros aspectos relativos às referidas organizações da sociedade civil e que merecem ainda maiores atenções, em especial a necessidade do incentivo ao aporte de recursos, no denominado terceiro setor, pela iniciativa privada.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da
Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] MELLO FILHO, Jose Celso de. Notas sobre as fundações. Revista de Direito Privado. Ano 14, vol. 53, jan.-mar./2013, p. 274.
[2] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord). Comentários ao novo código civil: das pessoas: (Arts. 1º ao 78), volume I. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 1046-1051.
[3] FAGUNDES, Miguel Seabra. Fundações. Âmbito de atuação do Ministério Público em sua defesa – interpretação do art. 26 do Código Civil – Afastamento imediato de seus administradores – legalidade da providência, tanto como medida de natureza administrativa, como medida de caráter judicial preventivo. Revista dos Tribunais. São Paulo. 50(304):58-77. Fevereiro/61, p. 59.
[5] ENNECERUS, Lugwig; KIPP, Theodor; et WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil, trad. Blas Pérez Gonzalez e José Alguer, Parte Geral, I, 2ª. Ed. Barcelona: Bosh, 1953, 1º Tomo, p. 516.
[6] CASTRO, Lincoln Antonio de. O ministério público e as fundações de direito privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 22.
Antonio Lago Júnior é mestre em Direito pela UFBA, professor de Direito Civil nos cursos da Universidade Salvador (Unifacs), advogado e procurador do estado da Bahia.
Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2015, 8h00